Introdução
As fissuras labiopalatinas consistem num grupo de anomalias craniofaciais com características heterogêneas e aspectos peculiares 1, que em grande parte dos casos requerem protocolos de tratamento complexos, de maneira a implicar quase sempre na exequível necessidade para abordagens multidisciplinares 1-4.
Salienta-se que indivíduos com fissuras completas de lábio e palato, ou seja, com comprometimento do arcabouço ósseo alveolar, apresentam adicionalmente maiores indicadores para a ocorrência de deficiências transversal e sagital do arco dentário superior; ambas em resposta aos efeitos restritivos das cirurgias plásticas reabilitadoras primárias 5-7.
Logo, os procedimentos de expansão rápida da maxila, mediante apenas manejo ortodôntico ou associado com manobra cirúrgica, tornam-se imprescindíveis para o tratamento de muitos desses indivíduos 3, visto que por vezes são pré-requisitos para a realização de outras abordagens cirúrgicas de equipes da área de bucomaxilofacial 4.
Frente à problemática exposta, este trabalho tem por objetivo apresentar a descrição técnica e proporcionar uma discussão das particularidades pertinentes acerca do caso de um paciente adulto, com fissura bilateral completa de lábio e palato (FBCLP), submetido ao procedimento de expansão rápida da maxila assistida cirurgicamente (ERMAC). Para cumprir esse propósito, tomou-se por base os princípios e experiência da equipe de cirurgia bucomaxilofacial do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC/USP).
Caso técnico-descritivo
No que segue é descrita a ERMAC em um paciente com FBCLP (Figura 1). A técnica foi realizada com o indivíduo em decúbito dorsal horizontal, sob anestesia geral, intubação nasotraqueal, mediante antissepsia intra e extrabucal com polivinilpirrolidona-iodo degermante e tópico com 10% de iodo ativo. Em continuidade, procedeu-se então à infiltração com solução de xilocaína a 2% contendo vasoconstritor no fundo de sulco da maxila (Figura 1B). Após, foi prontamente efetuada incisão mucoperiosteal (Figura 1C) bilateral localizada 3 a 5 mm acima da união mucogengival, seguida por descolamento tecidual (Figura 1D), partindo-se da região da abertura piriforme até a tuberosidade da maxila; nesta situação concomitante com a exposição do nervo infraorbitário bilateralmente.
Posteriormente, deu-se início à osteotomia bilateral na região exposta (Figuras 2A, 2B e 3B, 3C, 3D). Ressalta-se que esse passo pode ser realizado tanto com serra quanto com broca número 702, sendo necessário prover um espaço ligeiramente maior no pilar zigomático a fim de que no momento da ativação do parafuso expansor não ocorra obstrução mecânica local.
Em seguida, com o cinzel reto foi conferida a osteotomia desde o pilar zigomático, até as placas do pterigoideo -processos pterigoideos do osso esfenoide- em ambos os lados (Figuras 3A e 4A, 4B).
Logo após, com auxílio da chave de ativação foi acionado o parafuso do aparelho expansor tipo Hyrax (Figuras 5A, 5B e 5C), instalado previamente à realização da cirurgia, no intuito de confirmação da ocorrência de separação passiva das osteotomias.
Por fim, realizou-se irrigação da cavidade bucal com soro fisiológico, aspiração, sutura dos retalhos com fio Vicryl 4-0 e remoção do tampão orofaríngeo (Figura 6A).
O acionamento do aparelho expansor passou a ser realizado após o terceiro dia pós-operatório, com ativação de 2/4 de volta pela manhã e 2/4 no período da tarde até o esgotamento do parafuso.
Mediante o término da expansão teve início o período de contenção, durante o qual o paciente permaneceu por 4 meses com o parafuso expansor estabilizado e mantido em posição com uso de resina acrílica, além de mais 2 meses adicionais utilizando a placa de Hawley.
Discussão
Diversos estudos na literatura mundial apontam para efeitos restritivos sobre o crescimento facial decorrentes de procedimentos cirúrgicos reabilitadores primários para o reparo das fissuras labiopalatinas (57). Em especial, essas repercussões ocorrem nos ossos maxilares de indivíduos com fissuras completas de lábio e palato e implicam diretamente na necessidade de cuidados extremamente minuciosos e resolutivos durante a realização de todas as etapas cirúrgicas 6.
Desse modo, durante o transcorrer dos anos as consequências faciais inerentes aos efeitos dessas modalidades cirúrgicas primárias tornam-se cada vez mais evidentes 6. Por conseguinte, em indivíduos com FBCLP, além da presença das deficiências ósseas e de tecido mole próprias de fissuras completas, outras particularidades podem ser evidenciadas, incluindo a protrusão e mobilidade da pré-maxila, desvio da linha média e atresia dos segmentos maxilares; fatores esses com amplo potencial de agravo para as atribuições estéticas e funcionais 8,9.
Para mais, com base na rotina clínica do HRAC/USP destaca-se que a deficiência transversal da maxila é sempre que possível, e em conformidade com as indicações, corrigida a partir dos 8 anos de idade com uso de aparelho expansor fixo. Esta por sua vez constitui-se em etapa essencial para aqueles que serão posteriormente submetidos à cirurgia de enxerto alveolar secundário 3; atualmente efetuada na referida instituição com o uso da proteína morfogenética óssea recombinante humana tipo-2 (rhBMP-2) 4,10.
Todavia, em casos como o descrito, ou seja, que contemplam a reabilitação de um paciente adulto, o procedimento de expansão rápida da maxila deixa de ser indicado com a utilização exclusiva de aparelho ortodôntico. Isso ocorre por motivo de o estágio de maturação esquelética mais avançado envolver a consolidação de pilares ósseos faciais além de outras estruturas, tornando imprescindível nessas situações a conjunta abordagem cirúrgica por meio da técnica de ERMAC 11.
Outrossim, indivíduos com fissuras completas de lábio e palato apresentam uma importante peculiaridade, a ausência da sutura palatina mediana 12. Assim, a ocorrência ou não da realização prévia da cirurgia de enxerto alveolar torna-se bastante relevante, pois naqueles sem o enxerto prévio a ativação do aparelho expansor promove a separação das porções ósseas na área de menor resistência, isto é, na própria região da fissura, dispensando portanto a necessidade de clivagem óssea na área entre os dentes incisivos centrais superiores.
Em acréscimo a isso, nos casos de FBCLP sem enxerto prévio, tem-se que a expansão rápida da maxila resulta no alinhamento dos segmentos posteriores, com consequente aumento da amplitude dos defeitos ósseos alveolares ocasionados pela fissura em ambos os lados. Assim sendo, são preparados leitos com dimensões adequadas para a utilização do material de preenchimento da cirurgia de enxerto alveolar a ser realizada 4.
Mais especificamente, no caso do HRAC/USP em razão da utilização de rhBMP-2 para os enxertos alveolares como substituto do osso autógeno, uma vantagem torna-se bastante relevante para as FBCLP, a ausência de limitante físico da quantidade de osso necessário da área doadora. Outros benefícios do enxerto alveolar nesse âmbito consistem na estabilização mecânica da pré-maxila e fechamento de fístulas oronasais residuais decorrentes do procedimento de expansão rápida da maxilar 10.
Vale mencionar ainda, para esses casos de ERMAC e FBCLP sem enxerto alveolar realizado que, com base na morfologia craniofacial,o septo nasal desses indíviduos encontra-se inserido na região da pré-maxila, cuja anatomia é caracterizada pela separação dos segmentos posteriores bilateralmente 8,9. Desta forma, passa-se a requerer adicionalmente o cuidado pela não realização de disjunção na área correspondente a essa estrutura nasal, com o intuito principal de prevenir comprometimentos de nutrição da pré-maxila. Contudo, deve-se sempre que necessário romper os pilares caninos e zigomáticos, além de proceder à disjunção pterigomaxilar, como no tratamento das fissuras unilaterais.
Considerações finais
A ERMAC é um procedimento de grande importância para a reabilitação integral de indivíduos com fissuras. Sua indicação nesse contexto deve ser feita sempre levando-se em conta a idade, maturação esquelética, necessidade e peculiaridades de cada caso, sendo imperioso o preparo adequado das equipes de cirurgia bucomaxilofacial envolvidas na execução dessa técnica.
Conflitos de interesses
Nenhum declarado pelos autores.
Financiamento
Nenhum declarado pelos autores.