Introdução
A Carta aos Filipenses foi escrita por Paulo1, provavelmente a partir de Roma, nos primórdios da década de 60 d.C., endereçada aos cristãos que estavam em Filipos, comunidade fundada por ele. Essa cidade era considerada um posto avançado de Roma no planalto interior da Macedônia Oriental (Fee, 2004, p. 33). Ela possui poucas referências ao AT, não contendo citações explícitas e sim apenas alusões implícitas, como veremos ao longo deste nosso ensaio. Diante disso, é preciso se perguntar até que ponto Paulo usou o AT em suas cartas e, mais especificamente, na Carta aos Filipenses. Ainda, é importante se interrogar: e que medida o AT e o NT se relacionam? O que se nota é que o NT traz, em seus livros, ampla gama de citações, alusões e ecos do AT, embora alguns livros tragam mais e outros menos. Um aspecto interessante da constatação de que realmente temos citações do AT no NT é que, com isso, é possível ver o quanto os autores do NT consideravam o AT como Escritura Sagrada, inspirada e divina, ou seja, como normativa para a vida diária no relacionamento entre os irmãos e com Deus.
Nossa intenção não é fazer um estudo sobre a carta em si, mas sim sobre as alusões do AT que podemos encontrar nela. Também é importante ter presente que nem sempre é fácil identificar e distinguir suas diferenças (Silva, 2008, p. 81), sobretudo quando analisamos as três possibilidades do uso do AT no NT, ou seja: citações, alusões e ecos. Vários são os autores que tratam da temática, mas usaremos sobretudo as obras de Beale e de Hays, que indicaremos ao longo de nosso texto, uma vez que são as obras principais usadas para os critérios e passos a serem trilhados a fim de se encontrar e distinguir as citações, alusões e ecos do AT no NT.
O presente ensaio, com sua análise, não tem a intenção de esgotar o assunto, mas busca, igualmente, iluminar a temática do uso do AT no NT, não obstante o foco principal seja a Carta aos Filipenses, a partir de bibliografias que consideram o seu tema. Em seguida, tece considerações sobre o uso do AT no NT a partir da LXX, fonte onde os autores do NT majoritariamente recorreram para usar o AT. A partir disso, demonstra o uso do AT na carta de Paulo aos Filipenses, mais especificamente sua incidência nos versículos 1,19; 2,10-11; 2,15, nos quais mais notoriamente se percebe a presença do AT na carta paulina, ainda que seja no formato de alusão e não de citação explícita. Nesses trechos, o autor se vale de tal recurso para fundamentar sua narrativa. Por fim, também procuramos trazer algumas notas de rodapé que nos ajudam a problematizar, ou melhor, a entender a temática a partir dos diversos autores.
O método do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento
O ponto de partida da pesquisa sobre o uso do Antigo Testamento no Novo Testamento se situa em identificar quais textos o NT cita ou se refere ao AT. Por isso, faz-se necessário definir o que é citação e o que é alusão, e quais são os critérios usados para confirmar uma citação ou alusão (Beale, 2013, p. 53)2.
Para Beale, a citação é a reprodução direta de uma passagem do AT facilmente identificada por seu paralelismo vocabular claro e com traços característicos, explicitamente comparável. Parte dessas citações são iniciadas por uma fórmula indicadora: "para que se cumprisse o que o Senhor havia falado pelo profeta" (Mt 2,15), "está escrito" (Rm 3,4), ou uma expressão semelhante. Outras passagens sem tais indicadores prévios apresentam paralelos tão óbvios com algum texto do AT que só podem se tratar de citação (p. ex.: Gl 3,6; Ef 6,3) (Beale, 2013, p. 53).
Já alusão é alvo de intenso embate acerca de sua definição e dos critérios para identificá-la. Alusão pode ser definida como uma expressão breve deliberadamente pretendida pelo autor para ser de uma passagem do AT, que encontramos de forma implícita. Diferentemente da citação do AT, que é uma referência direta, a alusão faz uma referência de modo indireto. A chave para identificar uma alusão consiste em notar se existe um paralelo incomparável ou único de redação, sintaxe, conceito ou conjunto de motivos na mesma estrutura redacional (Beale, 2013, p. 55-56).
Existem alguns critérios que são indicadores para se confirmar a presença das citações, alusões e ecos no texto bíblico. Segundo Richard B. Hays, em sua obra Echoes of Scripture in the Letters of Paul (1989, p. 29-32), são sete atributos: 1) disponibilidade, se o autor e os destinatários tiveram ou não acesso direto à fonte hebraica ou à fonte grega; 2) volume, qual é o grau de repetição de palavras ou padrões sintáticos no texto precursor e na alusão neotestamentária; 3) recorrência, é necessário analisar a existência de referências ao texto aludido ou ao contexto veterotestamentário usado; 4) coerência temática, até que ponto a suposta alusão se adapta à linha argumentativa desenvolvida pelo autor do Novo Testamento; 5) plausibilidade histórica, em vista de se constatar em que medida é plausível a afirmação de que o autor do Novo Testamento usou a alusão para conseguir um determinado efeito de sentido ressonante nos leitores da época; 6) história da interpretação, constatar se outros autores e leitores foram capazes de perceber as mesmas referências que teriam percebido os contemporâneos do escrito; 7) satisfação, após os seis itens anteriores, ainda é necessário se perguntar se faz sentido a sua utilização em seu contexto imediato, se esclarece e aumenta o vigor retórico da argumentação.
Esses sete critérios para a confirmação do emprego de citações, alusões e ecos do Antigo Testamento no Novo Testamento, fornecidos por Richard B. Hays, são retomados por Gregory K. Beale, em sua obra Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. Exegese e Interpretação (com tradução e publicação no Brasil), no qual são descritos nove passos (2013, p. 57-58) para a análise das citações, alusões e ecos do Antigo Testamento no Novo Testamento ampliando ainda mais os pontos da pesquisa em vista da proposta inicial de Hays. E sua obra, Beale propõe seus nove passos para se trabalhar o uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: 1) identificação e validação da referência ao Antigo Testamento: citação, alusão ou eco, no qual são retomados os sete critérios de Hays, e os demais são propostos por Beale); 2) análise do contexto geral do Novo Testamento em que ocorre a referência ao Antigo Testamento; 3) análise do contexto imediato e do contexto geral do Antigo Testamento, para interpretar atenta e minuciosamente, sobretudo o parágrafo em que a citação ou alusão ocorre; 4) pesquisa quanto ao uso do texto do Antigo Testamento no judaísmo anterior e posterior que possa ser importante para a apropriação do texto veterotestamentário pelo Novo Testamento; 5) comparação dos textos, inclusive suas variantes textuais: NT, LXX, TM e os Targumim, citações judaicas antigas (MMM, Pseudo-epígrafos, Josefo, Filon); 6) análise do uso textual que o autor faz do Antigo Testamento, para se ver em que tradição textual veterotestamentária o autor se apoia, ou se ele está dando sua versão pessoal, e como isso afeta a interpretação do texto do Antigo Testamento; 7) análise do uso interpretativo, hermenêutico, que o autor faz do Antigo Testamento; 8) análise do uso teológico que o autor faz do Antigo Testamento; 9) análise do uso retórico que o autor faz do Antigo Testamento (2013, p. 69-82).
O texto Hebraico e o texto da LXX no Novo Testamento
Para se falar de utilização do texto bíblico Hebraico ou Grego no NT, é necessário saber de qual fonte os autores do NT teriam se valido para suas produções redacionais. Ou seja, é preciso reconhecer o Texto Hebraico, se o Texto Massorético ou outro, e o Texto da Setenta (LXX) como fontes usadas na formulação do NT. Além disso, segundo Robertson (1996, p. 23-28), os autores neotestamentários e Jesus também utilizaram técnicas hermenêuticas judaicas, especialmente o midráš3 ou comentário do texto bíblico judaico.
Quando falamos de Texto Hebraico, defrontamo-nos com a expressão, já conhecida, Tanak, que é um acrônimo formado pelas letras iniciais dos nomes dos três conjuntos da Bíblia Hebraica (Torah, Nebi'im e Ketubim). Isso porque os judeus dividiam e ainda dividem as suas Escrituras Sagradas em três grupos e as classificam em: a) Torah ou Lei, que contém os cinco livros do Pentateuco, cuja palavra designa uma conotação literária e não religiosa ou teológica; b) Nebi'im ou Profetas, contendo os oito livros proféticos, divididos entre profetas anteriores (Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis) e profetas posteriores (Isaías, Jeremias, Ezequiel e o conjunto dos Doze profetas "menores"); c) Ketubim ou Escritos, que traz os 11 livros do conjunto dos escritos em geral (compreendem os Salmos, Jó, Provérbios, os cinco rolos [Rute, Cântico dos cânticos, Eclesiastes, Lamentações e Ester], Daniel, Esdras-Neemias e Crônicas) (Gonzaga, 2019, p. 276-277; Robertson, 1996, p. 23-24)4.
No que tange ao Texto Hebraico, é preciso ter presente que Tanak conta com textos dos mais variados gêneros literários, escritos em épocas e por pessoas diferentes. Outra forma de se referir à Bíblia Hebraica, com seus três conjuntos de livros, é o termo Mikra (ארקמ), que tem um tom mais formal do que o termo Tanak. O cânon da Tanak é composto de 24 livros, que na verdade são 39, visto que temos alguns que são duplos (Samuel, Reis, Crônicas, Esdras e Neemias). Os doze profetas menores são contados como um livro apenas. Além de o número variar, a Bíblia Hebraica contém uma ordem diferente da Bíblia das tradições cristãs, que seguem a ordem da Vulgata de Jerônimo (Gonzaga, 2019, p. 276)5.
Até 1947, data de descoberta da primeira caverna de Qumran, nossas edições da Bíblia Hebraica se baseavam apenas no Codex Leningradensis, o qual é o testemunho mais antigo do que se chama "Texto Massorético" (TM), mas hoje contam também com o apoio das variantes de Qumran. Com esse nome, identifica-se uma tradição textual hebraica do AT que foi vocalizada e anotada pelos massoretas. O texto consonântico recebe o nome de pré ou proto-massorético, o qual deve ter alcançado sua estabilidade e fixação por volta do séc. I ou início do séc. II d.C., fruto de um esforço de unificação de uma tradição textual que devia remontar à época do Segundo Templo (Belli (et al.), 2006, p. 39-40).
Os autores do NT tiveram diante de si essa forma textual pré-massorética, mas, precisamos levar em consideração que esse texto não vocalizado, possivelmente seria análogo, mas não idêntico ao que temos na atualidade, ou seja, ao Texto Massorético (TM). Por meio do testemunho de versões antigas como Peshita (siríaca) e Vulgata (latina), que são traduzidas a partir de um texto pré-massorético, sabemos que este último era ligeiramente diferente do TM (Belli (et al.), 2006, p. 40).
A Versão Septuaginta (LXX) é a tradução mais antiga da Bíblia Hebraica de que se tem notícia. Ela contém a tradução do hebraico e do aramaico para o grego dos livros contidos na Tanak, realizada entre os sécs. III e II a.C., aos poucos, em Alexandria, no Egito. Além disso, a LXX contém os livros chamados de deuterocanônicos do AT, que foram escritos diretamente em grego (Gonzaga, 2019, p. 280)6. Os manuscritos mais antigos da LXX são precedentes ao cristianismo, alguns são datados, inclusive, do séc. II a.C. Temos um bom testemunho de toda a Bíblia segundo a Septuaginta apenas no séc. IV d.C., quando são escritos os grandes Códices Unciais (escritos em maiúsculas), quando os cristãos unem num mesmo volume AT e NT em língua grega (Belli (et al.), 2006, p. 42).
Segundo a Carta de Aristeia, um texto apócrifo do AT, a tradução da LXX, que a princípio estava circunscrita ao Pentateuco e posteriormente ampliou sua abrangência, foi uma obra encomendada pelo Rei Ptolomeu II Filadelfo, do Egito, para que ele pudesse ter uma cópia dos textos sagrados em grego na Biblioteca de Alexandria. Segundo a lenda, a obra teria sido executada por 72 judeus instalados na Ilha de Faros, sendo seis de cada uma das 12 tribos de Israel, que teriam trabalhado nela e completado a tradução em 72 dias. Mas para além do mito dessa carta, o importante é que de fato efetuou-se realizou uma obra de tradução dos textos bíblicos do hebraico para o grego, entre os anos 250 a 150 a.C. Desde o séc. I d.C. a Septuaginta foi adotada pelo cristianismo de língua grega e utilizada como base para muitas traduções antigas, como as versões latinas, eslavas, armenas, georgianas, coptas, Héxapla de Orígenes, e outras que surgiram posteriormente (Gonzaga, 2019, p. 281; Robertson, 1996, p. 26).
Para o cristianismo, a Septuaginta tem um valor muito grande. É a Bíblia mais citada no NT. De aproximadamente 350 citações do AT no NT, 300 são da versão LXX e apenas 50 são da Tanak. Ainda, é considerada de igual valor pelos Padres da Igreja, tanto orientais como ocidentais, sendo que seus Códices mais antigos datam dos sécs. IV-V d.C., a saber: Vaticanus, Sinaiticus e Alexandrinus (Gonzaga, 2019, p. 282).
No exercício de uma crítica textual adequada a LXX, é tarefa fundamental para o estudo de outras versões antigas surgidas dessa tradução, em especial a Vetus Latina ou Vetera Latina, que se trata da tradução ao latim de um tipo textual da LXX tal como circulava em torno do séc. II d.C. (Belli (et al.), 2006, p. 43). Além disso, precisa ser considerado o vastíssimo número de outros Manuscritos contidos na Septuaginta, desde o séc. I a.C. até o período cristão. Ela não acompanha a Bíblia Hebraica para a nomenclatura dos livros nem para sua ordem ou classificação, que obedece a um critério próprio, e que será seguido posteriormente pela Vulgata e pelos cristãos em geral, no que se refere à ordem dos textos nas bíblias modernas (Gonzaga, 2019, p. 281-282). Enfim, após ter discorrido sobre o texto do AT (hebraico e grego), é importante fazer a análise de sua presença dentro da Carta aos Filipenses, procurando ver qual fonte Paulo teria usado e se isso se deu por citação, alusão ou eco das Escrituras veterotestamentárias.
A Carta aos Filipenses
A maioria dos estudiosos aceita que a Carta aos Filipenses é um escrito autenticamente paulino (Gonzaga, 2017, p. 22; Craddock, 1985, p. 16). Ela caracteriza-se por um tom afetuoso. Entre suas comunidades, a de Filipos7 era uma que Paulo muito apreciava8. Era a primeira da sua missão em território europeu, onde converteu e batizou Lídia (At 16,11-15). Mas, também é uma carta que apresenta graves problemas no plano da crítica histórica e literária. A discussão não fica presa apenas sobre o local e ano de sua redação, mas recai sobre a temática da unidade literária. Aqui é preciso distinguir a questão da "integridade" e da "autenticidade". Quando se refere à integridade se menciona o documento enviado por Paulo aos filipenses na sua originalidade. Isso incide na questão que alguns estudiosos têm levantado a respeito da composição e da unidade da carta tal como a temos hoje, se forma um todo unitário ou se é fruto da união de vários textos. Há indícios, dentro da própria carta, que justificam que se trata de uma compilação, primeiro agrupada e, mais tarde, publicada, não por Paulo, mas por outra pessoa (Martin, 2011, p. 23). Quando se menciona a autenticidade, procura-se verificar quanto da carta, quer seja uma unidade ou compilação, é genuinamente de Paulo (Martin, 2011, p. 23)9. A maior parte dos estudiosos, mesmo os que julgam Fl 3,1-4,1 um fragmento interpolado, acredita ser uma carta paulina (Gonzaga, 2017, p. 22). O hino de Fl 2,6-11, segundo alguns autores, pode ser anterior a Paulo, que o teria tomado, e possivelmente editado e feito uma inclusão na carta (Martin, 2011, p. 24; Holloway, 2017, p. 16-24; Etcheverría, 2002, p. 259), mas esse é um tema ainda e sempre em discussão. O gênero literário da Carta aos Filipenses é um fenômeno complexo que levanta questões de forma, conteúdo e propósito. Porém, essa carta é considerada no meio acadêmico como uma "carta de consolação". A análise do gênero literário permite que os intérpretes das cartas de Paulo identifiquem outros materiais antigos que podem servir como fontes legítimas de comparação (Holloway, 2017, p. 31-34)10.
Quanto ao local de sua redação, três teorias tentam definir a época com base no lugar, e vice-versa, podem ser alinhavadas sob os títulos: Roma (redação entre 60-63 d.C.), Cesaréia (redação entre 58-60 d.C.) e Éfeso (redação entre 54-57 d.C.). Segundo uma antiga tradição a Carta aos Filipenses é originária da época do cativeiro em Roma, provavelmente onde Paulo passou maior tempo preso. Além disso, as observações acerca das saudações "δεσμοῖς/prisão"11, "πραιτώριον/pretorio" (Fl 1,13) e os "Καίσαρος οἰκίας/da casa de César" (Fl 4,22) fazem convergir numa tendência para que se tome a decisão de considerar Roma como local redacional. A hipótese que tem Éfeso como local redacional coloca novos pontos de vista no debate. Éfeso era próxima de Filipos, o que facilitaria um rápido deslocamento. Aqueles que defendem Cesaréia consideram essa possibilidade a partir da parte final do cativeiro em Roma, argumento considerado débil e ignorado por muitos (Hahn e De Boor, 2006, p. 163-167; Hawthorne, 2008, p. 556-564; Hendriksen, 2005, p. 376-378).
O uso do AT na Carta aos Filipenses
Segundo a metodologia do uso do AT no NT, acima apresentada, busca-se neste item a identificação e a comparação dos textos do AT aludidos na Carta aos Filipenses, tendo como fonte os textos da LXX. A princípio, a Carta aos Filipenses não mostra um interesse especial pelos textos das Escrituras do AT, ou seja, o AT12. Conforme nos indica Silva (2008, p. 78), em sua tabela de citações do AT nas cartas paulinas, de fato, não encontramos nenhuma citação explícita nessa carta. Todavia, Paulo oferece elementos dignos de atenção nesse campo, pois retoma com certa fidelidade a terminologia de alguns textos do AT, como podemos conferir em Fl 1,19 (=Jó 13,16); Fl 2,10-11 (=Is 45,23) e Fl 2,15 (=Dt 32,5). Essas referências, como indicado no item sobre o método do uso do AT no NT, não podem ser consideradas citações e, de fato, não se desenvolvem como tais. Porém a reprodução fiel à terminologia do AT nela encontrada, indica uma dependência voluntária ao texto do AT no nível da alusão (Belli (et al.), 2006, p. 200; Hays, 1989, p. 21-24; Reumann, 2006, p. 189-200).
Outro aspecto a ser sublinhado é o do contexto bíblico do hino paulino de Fl 2,6-11. Em particular, parece existir duas figuras implícitas na apresentação cristológica desse texto: a de Adão como "imagem de Deus" e, sobretudo, a do "servo sofredor" de Is 53, em seus aspectos de humilhação e exaltação. Nesse sentido, o conteúdo da carta, em sua perspectiva comunicativa, não exige uma referência explícita. Pelo contrário, o fato de se fazer alusão em termos e/ou figuras bíblicas, demonstra que os destinatários tinham familiaridade suficiente com os textos do AT para reconhecê-los e isso mostra que a exortação e o anúncio cristãos estão enraizados na tradição das Escrituras de Israel (Belli (et al.), 2006, p. 201).
a) em Fl 1,19, Paulo faz alusão a Jó 13,16 no texto referente à LXX (Hawthorn e; Martin, 2004, p. 49)13. Esse trecho, raramente tratado na crítica literária paulina sobre o uso do AT, permite-nos examinar seu uso literário como alusão às Escrituras do AT, tendo em vista que este não foi um locus theologicum frequentado por nossos precursores acadêmicos (Hays, 1989, p. 21). No v.19, Paulo assegura aos filipenses que: "através de suas orações e da ajuda do Espírito de Jesus Cristo, isto resultará em minha salvação14."
Fl 1,19 - NT | Tradução | Jó 13,16 - LXX | Comentário |
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“οἶδα γὰρ ὅτι τοῦτό μοι ἀποβήσεται εἰς σωτηρίαν διὰ τῆς ὑμῶν δεήσεως καὶ ἐπιχορηγίας τοῦ πνεύματος Ἰησοῦ Χριστοῦ”. | "Pois sei que isto me resultará em minha salvação por meio de vossa súplica e pela assistência do Espírito de Jesus Cristo". | “καὶ τοῦτό μοι ἀποβήσεται εἰς σωτηρίαν, οὐ γὰρ ἐναντίον αὐτοῦ δόλος εἰσελεύσεται”. | Conforme exposto, a alusão faz alusão ou eco à passagem de um Jó, confiante na intervenção divina por meio das orações dos filipenses. |
A afirmação da declaração de Fl 1,19, a saber: "τοῦτό μοι ἀποβήσεται15 εἰς σωτηρίαν/isto me resultará em salvação", embora não precedido por uma fórmula, é uma ressonância das palavras retiradas de Jó 13,16, segundo o texto da LXX: "E isto resultará em salvação para mim, pois diante dele o engano não aparecerá". O eco é efêmero e a sentença de Paulo é totalmente compreensível para um leitor que nunca ouviu falar de Jó. Um leitor alimentado pela LXX pode, tranquilamente, apontar a alusão a Jó 13,16. Mas é capaz também de localizar a fonte da "voz" original e suas intrigantes ressonâncias. Dessa forma, entre a situação de Jó e de Paulo, cria-se um importante processo hermenêutico de intertextualidade, no qual o primeiro esclarece e ilumina o segundo (Hays, 1989, p. 23; Reumann, 2008, p. 238; Pitta, 2010, p. 92; Reumann, 2006, p. 189-190).
Paulo, possivelmente aguardando seu julgamento, ecoa na voz de Jó a afirmação de sua confiança no resultado favorável de suas aflições, mesmo que implicitamente, transferindo a si próprio aqueles tormentos e amarguras que tradicionalmente estavam relacionadas a Jó. De fato, uma apreciação completa do efeito da alusão ou do eco pode levar o leitor a refletir não apenas nas correspondências entre Paulo e Jó, mas também nos contrastes: enquanto Jó suportava seu sofrimento com perplexidade obstinada, observando-o como se estivesse diante de um vidro opaco, Paulo, sofrendo como apóstolo de Cristo, interpreta seu sofrimento como uma participação no sofrimento do Cristo crucificado, como faz em outras de suas cartas, e, assim, vê-se capaz de se alegrar em meio às adversidades. A afirmação tenaz de Jó de sua própria retidão se torna na boca de Paulo uma afirmação triunfante de confiança no poder e na fidelidade do Deus que ressuscitou Jesus dentre os mortos. (Hawthorne e Martin, 2004, p. 49; Reumann, 2008, p. 232; Pastor, 2009, p. 71)16.
Na perspectiva da Análise Retórica (Meynet, 1993, p. 391-408; Meynet, 1996, p. 403-436), o v.19 se insere na unidade da perícope de Fl 1,12-26, trecho conhecido como "tentações de Paulo". Porém, as propostas macroquiásticas (de sua grande estrutura quiástica) em Filipenses diferem consideravelmente entre si e, por isso, não fornecem base convincente para interpretação. Alguns estudiosos vinculam 1,19 ao conjunto literário das chamadas "tentações de Epafrodito" (Fl 2,19-30), e isso tem alguma plausibilidade; ambas as passagens são importantes e expressivas: ameaça de morte (1,21-23; 2,27), a esperança, a experiência da libertação e da misericórdia de Deus (Reumann, 2008, p. 233). A proposta macroquiástica para Fl 1,19-26 se apresenta, então, da seguinte forma: envolve "vida" e "morte"; o v.21b, "morrer", faz paralelo com "partir", do v. 23; o v.22, "viver na carne", é homeomorfo a "permanecer na carne", do v.24; o v.22, "fruto para o meu trabalho", corresponde a "por vossa causa", do v.24; o v.23, "estar com Cristo", faz uma identificação retórica com "viver (é) Cristo", do v.21a. No mínimo, é uma antítese, talvez em estilo de diatribe (Reumann, 2008, p. 233-234), como é comum encontrarmos em textos paulinos. Além disso, é importante que tenhamos claro que o emprego da retórica permite a Paulo comunicar-se de forma mais argumentativa e isso é programático no Apóstolo (Aletti, 2011, p. 71).
João Crisóstomo lê Fl 1,19 a partir da dinamicidade da força das orações e ação divina do Espírito Santo: "Olhe na humildade deste santo: nos combates era lutador, inumeráveis seus feitos, depois ele foi premiado com sua própria coroa. De fato, este era Paulo: O que se poderia dizer? Ele até escreve para aos filipenses: 'Pela vossa oração posso ser salvo'; ele, que havia ganhado a salvação por inúmeras boas ações" (Rodriguez, 2001, p. 281-282).
b) em Fl 2,10-11, Paulo faz um paralelo com o texto de Is 45,23, segundo da LXX, onde Deus diz uma palavra (λόγος), justiça (δικαιοσύνη), que "não retornará" ou que "não voltará atrás". Em Fl 2,11 continua o paralelismo tendo como ponto de apoio o mesmo texto de Isaías da Septuaginta, usando "confesse", que alguns traduzem por "reconheça" ou "jure", para se referir ao termo que na LXX é ἐξομολογήσεται (Reumann, 2008, p. 358-377; Fee, 2004, p. 292; Grappe, 2013, p. 31)17.
Fl 2,10-11 - NT | Tradução | Is 45,23 - LXX | Comentário |
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10 ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων 11 καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος2018 Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός. | 10 para que ao nome de Jesus todo joelho se dobre, nos céus, na terra e debaixo da terra, 11 e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. | κατ᾽ ἐμαυτοῦ ὀμνύω Ἦ μὴν ἐξελεύσεται ἐκ τοῦ στόματός μου δικαιοσύνη, οἱ λόγοι μου οὐκ ἀποστραφήσονται ὅτι ἐμοὶ κάμψει πᾶν γόνυ καὶ ἐξομολογήσεται πᾶσα γλῶσσα τῷ θεῷ | Fica marcada a diferença da alusão ou eco que Paulo faz de Isaias: há uma ênfase paulina em declarar abertamente em Jesus um caráter divino, o que desafiaria frontalmente o culto imperial ao imperador |
Para Fee (2004, p. 292), em Paulo Fl 2,10-11: " πᾶν γόνυ κάμψῃ [...] καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται/ todo joelho se dobre [...] e toda língua confesse". Em Is 45,23: " κάμψει πᾶν γόνυ καὶ ἐξομολογήσεται πᾶσα γλῶσσα/se dobre todo joelho e confesse toda língua". Possivelmente, Paulo (séc. I) teria citado um texto ancestral, um hipotético texto-tipo Alexandrino (séc. IV), porém, com uma transposição de "πᾶσα γλῶσσαἐξομολογήσηται/toda língua confesse", o que teria ocorrido também em Rm 14,11 (“γέγραπται γάρ· ζῶ ἐγώ, λέγει κύριος, ὅτι ἐμοὶ κάμψει πᾶν γόνυ καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσεται τῷ θεῷ/pois está escrito: eu vivo, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho e toda língua confessará a Deus”), ratificando, dessa forma, uma leitura por ele conhecida e não de uma narrativa por ele criada. Além disso, a transposição, embora varie um pouco, textualmente falando, nos faz pensar, por um lado, que Paulo deve estar citando de memória e, por outro, o Códice Alexandrino também não significa e nem pode ser considerado uma adaptação paulina de forma livre. O mais provável é que Paulo conhecesse o texto de Is 45,23 a partir de algumas versões, inclusive do texto hebraico. Porém, isso não impede que haja vários ecos verbais evidentes por meio de expressões paralelas (Focant, 2016, p. 156).
A importância não apenas de Fl 2,10-11, mas de todo o hino cristológico, Fl 2,6-11, cresceu ao longo dos séculos de cristianismo, porém suas origens em Filipos são obscuras. Somente um apóstolo inspirado poderia escrever tão belo trecho que ressoaria aos ouvidos dos filipenses como um modelo de volta às raízes da fé cristã na tradição veterotestamentária, quem sabe de uma Igreja de língua aramaica, mais próxima do próprio Jesus, e fornecer bases para uma cristologia posterior (Reumann, 2008, p. 377)19. Neste sentido, uma alusão ou um eco, feito por Paulo, do texto de Isaias teve por objetivo fazer com que seus leitores centrassem suas vidas em Cristo, tendo-o como paradigma e regra normativa. Seu objetivo era levar ânimo aos filipenses, e aos leitores de todas as épocas, a fim de que colocassem seus olhos em Cristo e seguissem seu modelo de entrega, amor e sacrifício. Serve de exemplo para a vida presente no Espírito, enquanto que ao final teremos com ele a glória escatológica e a "forma" que Cristo já tem no presente, sendo "tudo isso para a glória de Deus Pai" (Fee, 2004, p. 296-298)20.
Em meio a inúmeras propostas de estrutura quiástica, os vv.10-11 estão situados no conjunto de Fl 2,6-11, o qual raramente é "quiasticizado". O quiasmo foi reivindicado nos vv.10-11, mas há pouco acordo entre os estudiosos do tema (Reumann, 2008, p. 362). Os Padres da Igreja e outros autores da época Patrística deixaram os seguintes relatos sobre esses dois versículos do hino cristológico: "Cristo é adorado como Deus na unidade de seu ser humano e divino" (Gaudencio de Brescia); "Sua humanidade é penetrada por sua divindade e vice-versa, em virtude da comunicação de propriedades" (Gregorio de Nisa); "Ele, que justamente louvou ao Pai, recebe agora nosso louvor" (Cirilo de Alexandria); "Agora todos os tipos de criaturas o reverenciam. Até espíritos angelicais se prostram metaforicamente" (Orígenes); "Cristo se senta agora como soberano, como o primogênito dentre os mortos" (Gregório de Nisa); "Isto demonstra que Cristo é Deus" (Teodoreto); "O Pai é glorificado mediante a salvação da humanidade" (Atanasio); "Toda língua quer dizer 'todas as nações' e o fato de reconhecer o Senhor como Cristo honra o Pai" (Rodriguez, 2001, p. 311). Em todos esses testemunhos, o que se constata é que a glória do Pai é encontrar o Homem que havia sido feito e que estava perdido e dar vida ao que estava morto e convertê-lo em templo de Deus. Mas isso não poderia ter sido realizado se aquele que existia na forma de Deus não tivesse assumido a forma de escravo e se humilhado a ponto de permitir que seu corpo morresse" (Rodriguez, 2001, p. 312-313). Aliás, o nascimento de Cristo assumindo toda a condição humana, inclusive em suas precariedades temporais, é uma visão plenamente paulina (Gonzaga, 2019a, p. 1194-1216).
Todo o hino cristológico de Fl 2,5-11, e não apenas os vv.10-11, é realmente um texto-chave para se entender a forma como Paulo vê a Deus. Fica claro que Cristo serve como modelo, mas o faz como aquele que melhor expressa a natureza divina. Sendo Deus, Cristo se despojou de si mesmo, não buscou seus próprios interesses ou benefícios. Sendo homem, sem deixar de ser Deus, "humilhou-se e se aniquilou até a morte e morte de cruz". Para Paulo, isso define a essência de Deus. Os filipenses, e todos os seguidores de Jesus, não são chamados simplesmente a "imitar Deus" no que fazem, mas são chamados a ter essa mesma atitude, mente (consciência) e os mesmos sentimentos de Cristo, para refletir a imagem de Deus também nas atitudes e nas relações dentro e fora da comunidade cristã (Fee, 2004, p. 298; Focant, 2016, p. 160)21. A palavra "μορφῇ/forma", presente no hino paulino, também pode evocar a imagem de Deus presente no primeiro homem do livro de Gênesis. Talvez exista uma contraposição velada entre a figura de Cristo e a de Adão, e suas respectivas atitudes (Pastor, 2009, p. 76).
c) passemos agora ao estudo da última citação do AT feita por Paulo em Fl 2,15, que é uma alusão a Dt 32,5. Em Fl 2,15, dois artifícios chamam atenção. O primeiro é a alusão ao texto, a partir da LXX, do Cântico de Moisés de Dt 32,5, nas expressões “τέκνα μωμητά, γενεὰ σκολιὰ καὶ διεστραμμένη/filhos de Deus irrepreensíveis no meio de uma geração pervertida e corrupta”. E o segundo artifício é a expressão “φαίνεσθε ὡς φωστῆρες ἐν κόσμῳ/brilhareis [resplandecereis] como estrelas no mundo”. A alusão paulina ao texto de Dt 32,5 está longe de ser direta. No texto de Deuteronômio, os israelitas são descritos como “τέκνα μωμητά/filhos degenerados” [maculados] e “γενεὰ σκολιὰ καὶ διεστραμμένη/geração perversa e corrompida”, enquanto em Filipenses, Paulo oferece a seus leitores a possibilidade de se tornarem “τέκνα ἄμωμα/filhos inculpáveis”, ou seja, “filhos sem mácula”. A referência, no entanto, não é dos dias de Paulo, mas da história da geração do êxodo, que representa um aviso aos fiéis em Cristo, da comunidade dos filipenses (Holloway, 2017, p. 133-134; Craddock, 1985, p. 51)22.
Fl 2,15 - NT
Tradução
Dt 32,5 - LXX
Comentário
ἵνα γένησθε ἄμεμπτοι
καὶ ἀκέραιοι, τέκνα θεοῦ ἄμωμα μέσον γενεᾶς σκολιᾶς καὶ διεστραμμένης, ἐν οἷς φαίνεσθε ὡς φωστῆρες ἐν κόσμῳ,
A fim de que vos torneis irrepreensíveis e puros, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração corrupta e pervertida, entre os quais brilhareis como luzeiros no mundo.
ἡμάρτοσαν οὐκ αὐτῷ τέκνα μωμητά, γενεὰ σκολιὰ καὶ διεστραμμένη.
Aqui temos uma alusão paulina feita ao texto de Dt 32,5, a fim de reforçar a imagem de Cristo e de sua própria imagem [de Paulo] como modelos aos cristãos filipenses.
Em Fl 2,15, Paulo presentifica toda a temática e teologia do Êxodo. Desta vez, Paulo está procurando uma maneira de alcançar metas, tanto para os filipenses (Fl 2,15) quanto para ele próprio (Fl 2,16). Se os filipenses se submetem à Lei de Deus "sem murmurações nem queixas", eles terão como consequência "serem" (γένησθε,, da raiz verbal γίνομαι)) "ἄμεμπτοι καὶ ἀκέραιοι/irrepreensíveis epuros". Paulo se vale desta linguagem também em outras passagens para se referir ao status dos justos no julgamento final (1Ts 3,13; 5,23). Aqui, no entanto, o que está em vista é o comportamento cristão no presente e já pensando ao futuro. O Apóstolo está imaginando um processo de dois estágios no qual a condição futura daqueles que acreditam é determinada por sua transformação atual. Ele imagina um processo similar em Fl 1,11-12, onde ser encontrado "irrepreensível e puro" no dia de Cristo depende de "ter sido preenchido" (πεπληρωμένοι) com o fruto da justiça nesta vida (Holloway, 2017, p. 133)23.
A linguagem de Paulo em Fl 2,15 também faz um eco quase idêntico ao texto de Dn 12,3, na versão da LXX: "φανοῦσιν ὡς φωστῆρες τοῦ οὐρανοῦ/os sábios brilharão como as estrelas do céu" e de 1 Enoch 104,2: "ἀναλάμψετε ὡσεί φωστῆρες τοῦ οὐρανοῦ/vós brilhareis como estrelas do céu". Mas com uma diferença importante, a promessa em Daniel (também de 1 Enoch) fala de uma "angelificação" dos justos no mundo vindouro. Enquanto em Fl 2,15 a promessa é que os fiéis cristãos podem iniciar essa mesma experiência já nesta vida, "“μέσον/em meio a", "ἐν οἷς/entre quem", ou, ainda, mesmo agora eles brilham como estrelas "ἐν κόσμῳ/no mundo" (Holloway, 2017, p. 134; Pastor, 2009, p. 79-80)24. Cabe notar que paralelos estreitos do texto de Dt 32,5, da versão da LXX, são encontrados em Mt 12,39 ("uma geração má e adúltera"), em Mt 17,17 ("ó, geração incrédula e perversa!") e em At 2,40 ("Salvai-vos desta geração perversa"). De modo semelhante, por serem "a luz do mundo" (Mt 5,14.16; Ef 5,8; 1Ts 5,5), estão constantemente proclamando seu redentor a um mundo confuso, injusto e cruel, em prol do Reino (Hendriksen, 2005, p. 499).
Sob os parâmetros da Análise Retórica, visto que Paulo usa muito a retórica em sua construção teológica (Aletti, 2011, p. 51), o v.15 se situa no trecho de Fl 2,12-18. O grande convite que perpassa esse texto é: "exerça sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo" (Reumann, 2008, p. 405), e, nesse sentido, o que se pretende é tratar como os crentes se relacionam uns com os outros e com a politeia da cidade e do Império. A passagem é marcada pela aliteração "πάντα ποιεῖτε/fazei tudo" (v.14). Aqui temos uma forte presença de palavras iniciadas com " ἐν”: “ἐν οἷς φαίνεσθε ὡς φωστῆρες ἐν κόσμῳ/entre os quais brilhais como luzeiros no mundo" (v.15). Além disso, ocorre a repetição por quatro vezes de " εἰς": " λόγον ζωῆς ἐπέχοντες, εἰς καύχημα ἐμοὶ εἰς ἡμέραν Χριστοῦ, ὅτι οὐκ εἰς κενὸν ἔδραμον οὐδὲ εἰς κενὸν ἐκοπίασα/oferecendo a palavra da vida para o orgulho a mim para o dia de Cristo, que em vão não corri nem em vão trabalhei" (v.16) (Reumann, 2008, p. 405-406).
Conclusão
Conforme proposto inicialmente, a partir das bibliografias que consideram o assunto, desenvolvemos neste artigo o uso do AT no NT, sobretudo, o uso do AT na Carta aos Filipenses, seja por meio de citações, alusões ou ecos. Constatamos que na Carta aos Filipenses não temos citações e sim alusões ou ecos. Essa é uma prática comum nos diversos autores do NT, quase sempre a partir da versão da LXX e não do Texto Hebraico, e em Filipenses não é diferente. Dessa forma, percebe-se o quanto esses hagiógrafos consideravam o AT como Escritura divina.
Conforme o uso paulino do AT no NT, verifica-se uma fundamentação sólida onde o Apóstolo dos Gentios (Rm 11,13) buscou respaldar sua abordagem à comunidade de Filipos. Por meio de alusões ou ecos da intertextualidade veterotestamentária, Paulo quer transmitir confiança na intervenção divina diante dos desafios enfrentados, conforme os textos de Jó 13,16; alusão feita em Fl 1,19. Aqui vale a pena recordar que não é muito difícil estabelecer os limites entre alusões ou ecos, pois são implícitas e não explícitas como as citações. Já o hino cristológico, mais especificamente o trecho de Fl 2,10-11, alude ou ecoa o texto do Servo sofredor de Is 45,23, no qual se reforça a identidade dos filipenses na busca de ânimo, a fim de que colocassem seus olhos em Cristo e seguissem seu modelo de entrega, amor e sacrifício na obediência à vontade do Pai e em prol do próximo. E o texto de Fl 2,15 alude ou ecoa Dt 32,5, também Dn 12,3 e o livro apócrifo de Enoch. O autor paulino busca desenvolver em seus leitores os propósitos e valores cristãos, para que, dessa forma, fossem reconhecidos pelo que são: "τέκνα θεοῦ/filhos de Deus". E isso lhes serviria de exemplo na vida presente, enquanto ao final pudessem ter com ele a glória escatológica, já pensando ao futuro.
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise de como o AT cumpriu papel fundamental a fim de que os filipenses adotassem os mesmos sentimentos de Cristo Jesus (Fl 2,5). Assim, com sua natureza convertida, digna do Evangelho de Cristo respaldada no exemplo paulino, suas vidas deveriam assumir um parâmetro ético que revelasse essa correspondência, onde o egoísmo, a vanglória, as quedas e as contendas estariam fora de qualquer cogitação.
Enfim, através da imagem da luz que brilha em meio às trevas fica esclarecida a relação Igreja-mundo. Dessa forma também se impõe uma perspectiva ética, na qual os fiéis são chamados a iluminar o mundo por meio de um testemunho de conduta íntegra. E a fidelidade prática ao anúncio evangélico que faz da Igreja um testemunho válido no meio do mundo (Barbaglio, 1991, p. 381-382). Ademais, todas as injunções que Paulo estabelece sobre os filipenses são para um propósito: para que (íva) eles se tornem (γένησθε)) pessoas melhores do que são. Se suas vidas são caracterizadas pela assertividade (ἐριθεία), conceito (κενοδοξία), reclamações (γογγυσμός), e pela argumentatividade (διαλογισμός), agora eles são assegurados por Paulo de que é possível e preciso melhorar ainda mais, em Jesus Cristo. Eles podem se tornar irrepreensíveis (ἄμεμπτοι),), sem culpas (ἀκέραιοι), sem defeitos (ἄμωμος), filhos de Deus (τέκνα θεοῦ).). Mas, para Paulo essa transformação só é possível quando há um desejo de resposta humanamente humilde e positiva às exigências de Deus, ligado à força criativa da graça divina. O termo "τέκνα/filhos", em Fl 2,15, derivado de "τίκτειν/dar à luz", salienta a ideia de semelhança familiar, de compartilhar a natureza dos pais, neste caso, com Deus (Hawthorne e Martin, 2004, p. 144-145).