Introdução
Desde a sua tese doutoral O problema da Empatia1, que Edith Stein concebe a ideia de um centro pessoal, um núcleo a partir do qual se desenvolve a personalidade. Tal noção pressupõe que o eu não seja apenas um eu puro transcendental, mas um «eu anímico», constituído pelo sentir que emerge da vida psíquica e pessoal. Esta noção de um «centro pessoal» ou de um «núcleo», evidencia-se desde a fase fenomenológica e continuará a ser tratada e desenvolvida sobretudo na fase cristã do seu pensamento, em que a autora elabora uma ontologia em chave antropológica. A questão da individualidade revela-se como uma questão central no seu pensamento, embora a dimensão relacional seja também intrínseca à sua conceção do desenvolvimento pessoal.
Segundo Christof Betschart2, Stein tematiza a questão da individualidade a partir da pergunta por um fim. Fá-lo, apresentando o crescimento do ser humano a partir de duas perspetivas diferentes: uma interior evocando o «desdobramento» do núcleo, e outra do ponto de vista exterior, onde se pode averiguar o «desenvolvimento». O desenvolvimento designa o crescimento da pessoa a partir do exterior, na medida em que a pessoa está exposta a influências do ambiente. Pelo contrário, o desdobramento designa o crescimento a partir do interior, como um revelar-se e explicitar-se da disposição originária3. É, pois, a partir do núcleo que o ser pessoal se desenvolve a partir do centro da alma; esta, por sua vez, está enraizada no corpo e desdobra-se pela abertura do homem a si mesmo e ao ser de Deus, que é espírito.
Algumas perguntas surgem: O que se deve entender por núcleo pessoal? Que relação se pode estabelecer entre o núcleo, a alma e o crescimento pessoal, uma vez que este supõe tanto o desenvolvimento da pessoa como o desdobramento do núcleo? Qual a contribuição do ser humano para a sua própria formação e crescimento pessoal? Neste processo, que relação estabelece Stein entre imanência e transcendência?
A questão do núcleo da alma foi tratada amplamente por Benedicte Bouillot4, que a explica através do processo de redução fenomenológica, como sendo o ponto central do pensamento de Stein. Partindo dessa constatação queremos mostrar, seguindo também a posição de Christof Betschard, como a partir do núcleo se efetua o desenvolvimento do ser humano enquanto pessoa, constituindo a harmonia de corpo, alma e espírito.
Neste estudo propomo-nos delinear o percurso de realização da pessoa humana e, ao mesmo tempo, compreender quais são as condições da sua formação e realização. Na primeira parte procuraremos compreender como Stein trata a questão do núcleo nos escritos fenomenológicos, pois já nesta fase se encontram delineadas as categorias fundamentais do seu pensamento. Seguidamente apresentaremos alguns fatores do desdobramento do núcleo e do desenvolvimento do ser humano, tal como Stein o elabora na segunda fase do seu pensamento, nomeadamente em Potência e Ato5 e na Estrutura do ser humano6, em que a autora entra em diálogo com a filosofia tomista. Segundo a análise de Stein e na esteira de Tomás de Aquino, o núcleo ao desdobrar-se a partir do interior, informa a alma e transforma o todo da pessoa. Será com o auxílio dos conceitos tomistas de ato e potência que Stein irá explicar tal «desdobramento» e «desenvolvimento do ser pessoal». Na terceira parte deste trabalho, mais centrada em Ser finito e ser eterno, analisaremos a necessidade do ser humano de se abrir ao divino, pela abertura dá-se a plenitude da transformação pessoal, em que o homem se torna mais propriamente no que é, tanto na sua dimensão relacional, como na dimensão de singularidade pessoal concebida qualitativamente.
1. A noção de núcleo pessoal nos escritos fenomenológicos7
A noção do núcleo pessoal é elaborada pela autora de maneira progressiva já desde os escritos fenomenológicos. Embora a noção de «núcleo pessoal» esteja subjacente a toda a obra de Stein, na Empatia esta é pensada ainda em referência às noções husserlianas de «núcleo de essência» e de «singularidade eidética»8, mas também em referência a Max Scheler que era a segunda grande figura filosófica de Gottinga e que tratava temas de interesse vital. A pessoa, para Max Scheler, é constituída por um centro de atos. Estes, porém, não podem ser reduzidos a um «fazer»; este centro é revelado pela intuição individual. A pessoa não pode ser situada por detrás destes atos nem depois deles9. Sob a influência de Max Scheler, Stein irá integrar o eu puro no eu profundo constituído por um centro unificador, que a discípula de Husserl designa como núcleo pessoal10. É precisamente em relação à noção de valor que a noção de núcleo se determina; pois que, a noção de «estrato nuclear» (Kernschicht) da personalidade é caracterizada por uma sensibilidade a certos valores - ethos. Na Empatia, o núcleo da pessoa designa uma estrutura pessoal que especifica a estrutura categorial da alma11. Stein induz assim a uma rutura com a conceção psicologista da alma e orienta-se para uma noção substancialista da mesma, embora nos seus escritos fenomenológicos não utilize o termo substância, devido à conceção negativa deste termo por parte dos fenomenólogos, nomeadamente Husserl e Scheler, que rejeitavam totalmente tal designação. Sem utilizar tal expressão, Stein orienta-se para uma conceção transcendente da alma concebendo-a como fundamento da subjetividade12.
A jovem fenomenóloga elabora já a partir da Empatia uma noção original da pessoa, onde a noção de núcleo se tornará progressivamente o elemento central e um dos aspetos mais distintivos do seu pensamento. O «núcleo pessoal» aparece deste modo, como um privilégio do ser pessoal, ligado estritamente à sua individualidade. Nos dois últimos capítulos da sua tese, o núcleo é uma modalidade fundamental da constituição de outrem e do eu. A antropologia que a autora aí elabora, primeiro tratando da constituição psicofísica (terceira parte) e depois sobre a compreensão das pessoas espirituais (quarta parte), convoca os grandes temas fenomenológicos husserlianos, já presentes em Ideias I e desenvolvidos mais amplamente em Ideias II13. Encontramos na Empatia um núcleo invariável que pode ser considerado como a estrutura da pessoa14. Neste sentido, o núcleo da alma pode ser compreendido como um a priori da subjetividade, que se coloca como uma alternativa à conceção husserliana da subjetividade. Em Husserl esta é entendida como subjetividade transcendental, «na qual a única individualidade originária é a consciência e o ego que é o seu»15. Stein, como os outros discípulos de Husserl de Gottinga, criticará o idealismo transcendental16; no entanto, a análise do núcleo da alma situa-se no desenvolvimento da noção de transcendência husserliana. Trata-se de algo que pertence ao domínio do inefável e que se capta por um sentir (Fühlen). O núcleo na sua singularidade própria, aparece como «não-objetivável» e mesmo como inefável. É uma fenomenalidade que, como o outro em Levinas ou a vida em Michel Henry, excede a sua doação17. Edith Stein estabelecerá, no entanto, uma relação interessante entre transcendência e imanência, pela relação que liga o ego à alma. A noção de «núcleo pessoal» e a noção de «alma» vão ser elaboradas conservando a metodologia e a aproximação fenomenológica. Sem permanecer na subjetividade transcendental, Stein vai utilizar o método da redução aplicando-a tanto à imanência da consciência como à transcendência18. O núcleo da alma, concebido como a priori da subjetividade, é como um «apelo» que estrutura a vida pessoal; um apelo «à vida autêntica» e a uma determinação qualitativa19 que vai especificar tanto a unicidade da pessoa como a sua constituição relacional.
1.1 Do eu puro ao eu profundo
Na Empatia, Stein salienta que o eu puro é o garante da individualidade. Como em Husserl, o eu puro é o sujeito do vivenciar, subjaz a todo o «eu penso», «eu quero», «eu percebo»20, mas é um sujeito sem qualidades. Este eu, insere-se na corrente de vivências que a precedem e a seguem; neste sentido, o eu pode ser entendido como a unidade da corrente de vivências. O teor da «corrente das vivências» é a marca distintiva da individualidade, enquanto distingue a mesmidade da alteridade; no entanto, tal distinção, não abarca as características pessoais, a individualidade é sem qualidades21. A autora procede por isso à análise do indivíduo psicofísico cuja peculiaridade se especifica por «um sentir» (Fühlen), «porque no sentir, [o sujeito] não vive somente objetos, mas [vive-se] a si mesmo, experimenta os sentimentos como provenientes da “profundidade do seu eu”»22. Este eu já não é um eu puro, porque o eu puro não tem profundidade. Os atos que provêm da profundidade do eu são dados pelo sentimento e desvelam um estrato do eu. Para captar tais sentimentos é necessária uma orientação particular do olhar dirigido aos mesmos para os transformar em objetos. Esta orientação do olhar é diferente da reflexão na qual se capta somente o eu puro. Os sentimentos, por um lado, experimentamo-los como presentes, por outro lado, manifestam-nos propriedades pessoais23.
O núcleo pessoal dá-se a compreender por um sentir. Este sentir percebe-se tanto na relação consigo-mesmo, quando o homem está recolhido em si mesmo, sente então a cor própria do seu interior; mas também na relação da empatia: um só olhar, um só gesto, podem deixar-me pressentir outrem na sua particularidade própria24. Esta particularidade própria revela a unidade de um carácter25, pois que, toda a ação de um outro, que por sua vez exprime um querer e este um sentir, manifesta um estrato da sua pessoa. Já aqui na tese de doutoramento, Stein introduz a noção de «alma» para se referir a «certas propriedades que eu mesmo experiencio pelas minhas ações», são propriedades da alma quando são percebidas num indivíduo psicofísico, mas são concebíveis também num sujeito puramente espiritual, embora conservem a sua essência no contexto da organização psicofísica26.
Stein individua deste modo uma estrutura pessoal. Tal estrutura, porque está sujeita a uma série de influências derivadas das circunstâncias empíricas e exteriores é mutável, mas a sua variabilidade não é sem limites; pois existe uma estrutura categorial da alma que deve ser conservada, para além disso, encontra-se também um núcleo invariável que a autora considera a estrutura da pessoa.27. Averiguamos que Stein identifica já aqui, enraizado na estrutura psicofísica, um centro, algo que mostra uma unidade, não apenas unidade do carácter, que pode estar sujeito à mudança, mas também algo de invariável e que provém do sujeito consciente, que a autora considera como o sujeito espiritual. É este centro, que pela própria abertura a determinados valores, permite o acesso aos valores do outro na empatia. O encontro com os valores do outro leva a descobrir um estrato da minha pessoa que até ali me era desconhecido28. Compreender uma ação seria então «experienciá-la como proveniente, de maneira significativa, da estrutura do todo da pessoa»29. Por comparação axiológica, posso ter um conhecimento a mais de mim mesmo que até ali me era desconhecido.
Todo o sujeito, em quem perceciono por empatia uma perceção de valor, considero-o como uma pessoa, cujas vivências se reúnem numa unidade de sentido compreensível. (…). Por empatia posso viver valores e descobrir estratos correlativos da minha pessoa, aos quais a minha vivência originária ainda não ofereceu ocasião de desenvolvimento30.
Podemos assim averiguar, que uma datidade plenamente evidente relativa à pessoa -seja a própria como a alheia- se entrelaça e se completa reciprocamente. Portanto o núcleo da pessoa, isto é: a raiz formativa a partir da qual se forma de maneira unitária todo o seu ser, tanto interior como exterior, é dado pela observação da unidade na qual os diferentes componentes se entrecruzam31. Com a experiência de um núcleo pessoal, a consciência encontra-se em presença de algo que a ultrapassa e que ela não pode «tematizar». O núcleo na sua singularidade própria revela algo de inefável32. Esta experiência de si-mesmo, à qual corresponde uma vivência afetiva, já não é a de um eu puro, mas de um eu constituído por camadas de profundidade e por uma interioridade que é habitada por valores hierarquizados. Ora, este espaço interior que já não é representado, mas sentido e vivido, é designado na Empatia como «eu profundo» e depois progressivamente como alma, distinguindo-se esta da psique, segundo uma clarificação que se efetua progressivamente nas obras de índole fenomenológica33.
A distanciação de Edith Stein em relação à subjetividade transcendental de Husserl, está precisamente nesta designação da alma, não entendida apenas como psique, mas como estrutura unitária total da pessoa humana. «O eu puro, pelo qual o sujeito se apropria das suas vivências como suas, é como o fundamento da ipseidade. Mas a individualidade, entendida como distinção qualitativa, tem como raiz o núcleo da alma, a sua parte mais profunda que é portadora da particularidade pessoal»34.
1.2 A relação entre o núcleo pessoal e a alma
Como se define a alma? Que diferença existe entre psique e alma? Tais problemas serão resolvidos nas obras que se seguem à Empatia. A sua tese sobre a empatia apresentar-se-á, então, como um programa a desenvolver nos seus trabalhos futuros35. Na Introdução à filosofia36, Edith Stein define o núcleo pessoal como o «último momento qualitativo irredutível» cuja manifestação é prioritariamente axiológica, abre à pessoa o mundo dos valores37. Simples, imutável e imperecível, o núcleo é o princípio do «sosein», do ser tal, ou da particularidade do ser da pessoa, no sentido de uma essência singular e não genérica38.
O núcleo da pessoa vai-se desdobrando no carácter e constitui a unidade indissolúvel do mesmo. Mas o que é a alma? - pergunta-se a autora. Pelo sentir, o «eu» não só recebe o mundo dos valores e o mundo dotado de valores, mas também o acolhe em si; significa que o «eu» lhe abre a sua alma e o acomoda nela. «A alma é, pois, o centro da pessoa, o lugar onde [esta] está em si mesma»39, esta é constituída por certos estados de ânimo fundamentais, característicos e determinantes para o modo como recebe em si o mundo dos valores que lhe é acessível; estes conferem a cor aos correspondentes atos espirituais40. Encontramos assim uma conexão entre o núcleo da pessoa, a sua alma e o seu carácter41. Há um vivenciar no qual participa toda a alma, este vivenciar experimenta-se como proveniente das dimensões profundas desta. Há uma alegria superficial e uma alegria «que brota do profundo», «que procede do interior»; a alegria que procede do profundo pode inundar a alma inteira, mesmo as regiões mais periféricas, já o inverso não acontece sem mais, no profundo só pode permanecer o que brotou de si mesmo42.
O eu puro enquanto irradiação do vivenciar, situa-se então no profundo e toda a vivência que se constitui neste estado de tensão, traz em si fatores constitutivos procedentes de todos os níveis da alma43. No entanto, a estrutura da alma não se manifesta só na vida afetiva, mas também na vontade. Existe um querer que está enraizado no próprio «eu», dele provém todo o ato de vontade. O querer é a minha adesão de atitudes perante valores positivos ou negativos estimados. Pelo querer, a vontade participa na «peculiaridade pessoal»44. Esta expressa-se nas qualidades permanentes às quais correspondem formas fixas do corpo e uma tipicidade nos seus movimentos e mudanças. A autora descreve detalhadamente a realidade do corpo próprio, da sua sensibilidade, da capacidade de movimento que se origina de um núcleo que preside também ao seu desenvolvimento45.
Se tivermos em conta que qualquer estado da pessoa se expressa numa nota individual (…) e que este estado é um qual simples, que impregna toda a vida pessoal e constitui a unidade da personalidade, então a peculiaridade pessoal revela-se em cada expressão e em cada estado46 .
Este fenómeno, permite compreender a peculiaridade humana na qual também a autodeterminação, que não é apenas um princípio de espontaneidade involuntária, regula o processo. O eu está colocado no núcleo da pessoa, mas não o exaure47. O que se deve então entender por alma? Se, do ponto de vista psicológico, o conceito de alma corresponde à estrutura da psique com todos os estados de ânimo e, neste sentido, está vinculada ao corpo, do ponto de vista metafísico e religioso, a alma deve entender-se como o ser interior no qual se expressa purissimamente o núcleo da pessoa. A alma, entendida neste sentido, é um ser simples e é incapaz de desenvolvimento; está fundamentada em si mesma e fixa em si mesma, ela própria é fonte de vida anímica48. É na alma que «a nota individual se vive de maneira pura e não pode conceber-se como exemplar de um tipo»49. Ela é centro de vida e centro de ser, no entanto, exige a integração numa estrutura psicofísica e a conexão com um mundo espiritual50. De facto, «o núcleo da pessoa é a essência da pessoa que não conhece desenvolvimento, mas só desdobramento»51. Veremos como o essencial da noção de núcleo já está aqui esboçado nesta fase do seu pensamento.
2. O desdobramento e desenvolvimento do ser pessoal
Na fase dos anos trinta, em que se tinha já familiarizado com o pensamento católico52, a autora vai continuar a reflexão sobre o estatuto da alma enquanto marca distintiva da individualidade. Esta reflexão, iniciada na fase fenomenológica, será enxertada agora na pergunta pelo «sentido último do ser». Em Potência e Ato, a primeira obra da trilogia ontológica53, a conceção do ser une-se com a conceção da pessoa humana, abordando as principais questões de princípio entre Husserl e Tomás de Aquino. Esta obra redigida em 1931 em vista da habilitação para a docência na Universidade de Friburgo, é considerada uma obra de investigação e de procura54, também a própria autora a considerava uma obra inacabada; pois que, «necessitava de uma profunda revisão»55. A reflexão sobre a pessoa, já iniciada na Empatia vai continuar agora, mas no seio de um discurso que tem em vista a fundamentação do sentido do ser. A autora reforça a tese de uma «alma substancial» como suporte do eu, ao mesmo tempo, a alma é o que informa o devir do homem enquanto ser psíquico-espiritual; sobre este aspeto ela é «forma substancial» segundo as categorias escolásticas, segundo as categorias steinianas, núcleo da pessoa56.
Para efetuar tal empreendimento, Stein serve-se dos conceitos tomistas de ato e potência aplicando-os à estrutura do ser pessoal e às vivencias do eu. Na Estrutura do ser humano57, a autora aplica as investigações efetuadas em Potência e Ato, para fundamentar a conceção do ser humano necessitante de um «processo de formação». Todo este processo é identificado como provindo de um núcleo pessoal, um centro, que corresponde ao ser mais profundo do homem, como aliás, tinha já sido delineado na fase fenomenológica. É a partir do núcleo, considerado como o que «tal pessoa» é em si mesmo, que se dá o desenvolvimento do ser pessoal e a sua consequente formação. Nesta obra, embora seguindo o método fenomenológico, a autora entra em diálogo mais direto com Tomás de Aquino para defender a sua tese de uma determinação qualitativa da alma humana, contra uma conceção da individuação pela matéria58.
2.1 A estrutura da alma e a «formação»59 do ser humano
Podemos considerar nesta fase do seu pensamento, no que concerne o nosso tema, que a questão principal a ser colocada é: como se estrutura a alma? A partir de onde ela se estrutura? Averiguamos que o ponto de partida, tanto do pensar como da formação da pessoa, continua a ser o eu, a certeza que «se tem de si próprio»60. Esta certeza é um conhecimento original, um ponto de partida diante do qual não se pode retroceder61. Este mesmo princípio é aplicado e utilizado para explicar a estrutura da pessoa. A autora segue, neste ponto, o Husserl das Investigações Lógicas II, enquanto atitude questionadora perante as coisas e bebendo da intuição imediata62. Aplicando este método ao si-mesmo, a fenomenóloga explica que referir-se a si mesmo é referir-se à sua alma:
Em mim, ou, melhor, «dentro da minha alma». A minha alma tem extensão e altura, pode ser plenificada por algo, há coisas que podem penetrar nela. Nela estou em casa, de uma maneira bem diferente de como estou em casa no meu corpo. Nela o eu pode estar em casa. De fato, o próprio eu enquanto concebido como «eu puro» não pode estar em casa de maneira nenhuma. Só um eu anímico pode estar em casa, e dele deve se dizer que está em casa quando está em si mesmo. Vemos então que de repente o eu e a alma se aproximam muito entre si. Não pode haver alma sem eu dado que a primeira é pessoal pela sua própria estrutura. Porém um eu humano tem que ser também um eu anímico: não pode haver eu humano sem alma63.
Podemos então perguntar-nos que relação se deve estabelecer entre o «eu anímico» e a alma. Qual é a estrutura da alma? Stein parte do princípio que o eu mantém uma relação com a vida anímica, é esta que «o eu»deve formar. O eu puro, tanto para Husserl como para Stein, é um eu regido pela intencionalidade pois refere-se a objetos64.A esta referencialidade, Stein chama estrutura a qual informa e estrutura a vida anímica. Tal estruturação acontece com o concurso da intencionalidade e também pela livre atividade do eu65. Ora o eu anímico tem o seu fundamento ontológico na própria alma constituída pelas suas próprias potências e hábitos. Pelos conceitos tomistas de potência e ato Stein explica a transformação que se dá na estruturação da vida anímica, que consiste na atualização das potências da alma; tal transformação corresponde à espiritualização da própria alma.
Em Potência e Ato a autora trata o problema do ser na esteira de Husserl e de Tomás de Aquino, concebendo-o a partir da vida do eu. Aplicadas às vivências do eu, as noções de ato e potência, permitem à autora reforçar a tese da «alma substancial», enquanto suporte ontológico do eu. A alma é o que informa o devir do homem enquanto um ser psíquico- corpóreo66. Stein vê que existe uma relação estreita entre potencialidade, hábito e atualidade67, pois o que resulta atualizado é decisivo para que as potências delimitem o campo natural de possibilidades para a atualidade68. É no jogo recíproco de potência-ato- hábito, posto em movimento pelo «motivo» que atualiza a potência, que se baseia a plasmação de si69. A alma pressupõe a vida anímica e está enraizada no corpo: «sou um corpo pessoal e uma alma pessoal»70. Dado que a alma é uma alma pessoal e que apresenta a estrutura básica da intencionalidade, a sua personalidade confere-lhe a possibilidade de se dirigir ao seu próprio desenvolvimento. Ao ter dimensões, os atos em que se concretiza a vida da alma, têm amplitude e profundidade, ou então qualidades opostas. A amplitude, a profundidade e a força da alma, conferem-lhe o seu modo de ser, a sua individualidade, que para além de ser um qual simples, irredutível a esses componentes, comunica uma marca específica a cada alma concreta e a quanto procede dela71.
a alma humana, com a sua estrutura pessoal e a sua qualificação individual, revelou-se- nos como a forma de todo indivíduo corporal e anímico. Denominamo-la também «núcleo da pessoa», porque o todo ao qual damos o nome de «pessoa humana» tem nela o centro do seu ser72.
Esta estrutura essencial da alma pode ser considerada uma forma interior, como um a priori da subjetividade. É porque pertenço a esta estrutura real que sou uma «pessoa humana»73.
2.2 O processo de formação
A partir de tal estrutura, dá-se o processo de formação dos vários âmbitos e estratos da pessoa humana. O resultado desta interação expressa-se, não apenas no carácter, mas também no movimento e nas expressões corpóreas. Para explicar tal processo, Stein analisa o conceito de «força» que pertence tanto ao âmbito psíquico como ao espiritual. A autora denomina «força» o que é formado na vida espiritual e denomina «material» a matéria que enche o espaço. Ora, tanto a força como o material carecem de forma e estão necessitados de formação74. A força é uma potência que só se pode atualizar gradualmente. Nos seres humanos a atualidade espiritual implica uma quantidade de força e esta consome pelo menos parte da força natural, encontra-se vinculada à constituição psicofísica75. O homem pode cooperar direta ou indiretamente, porém livremente, na geração da força e não apenas ao dispor da já existente; neste sentido, compreende-se que o homem vai-se construindo e renovando a si mesmo num constante processo de transformação, sem nunca alcançar um estado definitivo76, pois que a vida do homem admite diferenças de grau, tanto na atividade intelectual como na espiritual.
Neste processo de formação pode intervir a vontade. Qual é o seu papel? Pode ser tanto dominando a expressão ou dominando a própria vida anímica. A passagem dos fenómenos puramente anímicos à expressão cultural, pode também ser submetida ao controlo da vontade. Esta atitude, capaz de dominar a sua conduta, dá uma marca diferente ao indivíduo, daquela em que este se deixa expressar livremente, sem limitações77. O corpo, no entanto, deve a sua expressão ao fato que é instrumento do espírito. Os movimentos do ânimo e da vontade possuem uma força informadora especialmente intensa, capaz de se expressar em traços duradoiros. A impressão que comunicam ao corpo, e especialmente ao rosto, está em direta correspondência com a alma e com o carácter, pois que os movimentos pontuais e a sua contínua repetição, têm as suas raízes nas disposições anímicas, as quais por sua vez experimentam a sua informação nos hábitos, através dos movimentos pontuais78. No entanto, a configuração do corpo não incide num material desprovido de forma; o corpo, no qual se desdobra a vida espiritual, é já desde o princípio um corpo configurado. Não se trata de uma configuração meramente espacial, mas de uma configuração cheia de significado que está em correspondência com o modo de ser próprio da alma; essa correspondência admite vários graus de perfeição79.
2.3 Transformação pessoal e individualidade qualitativa
O que é peculiar na alma, considerada como um todo, é o facto de possuir uma dimensão interior, um centro do qual pode sair para se encontrar com os objetos80. Este centro é considerado como um princípio formal, ou uma «forma substancial», segundo a terminologia tomista, que modela, a partir do interior e do exterior, «o núcleo da pessoa»: ou por outras palavras, o que o sujeito pessoal é em si mesmo, o que define o raio da sua mutável atualidade81. O que é modelado é em primeiro lugar a vida interior. O núcleo é o ser que se atualiza, que forma e transforma progressivamente um carácter. É o núcleo que determina intrinsecamente o processo de formação82. Pode-se dizer que o núcleo vive em todos os seus atos, mas não em todos na mesma medida, pois os atos que mudam, são mais ou menos pessoais. No entanto, o núcleo é potencial em relação à vida atual, esta não é fundada somente em relação ao núcleo, mas também em relação ao mundo objetivo e ao mundo das outras pessoas com as quais vive83.
Em Potência e Ato, a autora explica que se entendermos a alma apenas como algo que transparece no corpo, então poderíamos caracterizá-la com o princípio aristotélico alma forma corporis, mas se por alma assumirmos o desenvolvimento de um ser psíquico e humano, então não se pode considerar somente a exterioridade como o que é formado, mas o que se forma é também a interioridade. Neste caso deve procurar-se no coração da interioridade o princípio formal, uma «alma da alma»84. Deste modo compreendemos que a «forma» não é apenas «forma do corpo», mas também «forma espiritual»; refere-se à essencialidade própria e única do seu ser, à sua singularidade. Se para Tomás de Aquino, a matéria, o corpo, era o princípio de individuação, para Stein esse princípio está essencialmente no «núcleo da pessoa» e concerne não apenas o corpo, mas o homem todo, que se vai delineando na sua unidade85.
A alma espiritual ocupa dentro da unidade da natureza humana um lugar central e dominante; no entanto, a unidade não se forma sem determinar toda a estrutura ôntica, pelo que não pode ser equiparada simplesmente com a forma substancial86. A «forma substancial é o princípio estrutural do indivíduo humano como um todo, e trata-se de um princípio único»87. Por isso, a matéria, o corpo, considerado como elemento que manifesta a individualidade, não pode ser concebido de maneira quantitativa, materia signata quantitate, (a matéria determinada quantitativa), como era para o Aquinate88; na escola tomista este princípio de individuação, não só se refere ao homem, mas a todas as substâncias corporais. «Stein não se contenta com isto, pois o homem não é só substância corporal, mas um microcosmo e com isto uma criatura única, que tanto tem parte no mundo material como no mundo espiritual»89. A formação do corpo, a partir do núcleo da alma, pressupõe que «o corpo esteja completamente compenetrado pela alma, de maneira que não só a matéria organizada se converte em corpo penetrado de espírito, mas também o espírito se converte em espírito materializado e organizado»90. A formação concerne então o ser humano na sua unidade; esta tem por finalidade tornar o homem no que é segundo o que está contido no núcleo. Tal formação é individual e requer a colaboração do eu consciente com as predisposições pessoais, que se efetua pela abertura e requer a adesão voluntária do homem, pois que este «pode e deve formar-se a si mesmo»91.
A individuação deve, pois, ser pensada de maneira qualitativa. Mas como se dá a transformação do ser pessoal? A partir de onde ela se efetua? Stein recorre aos conceitos tomistas de potência e ato, para explicar a passagem ou mudança entre o que o ser humano já é (em ato) e o que será no futuro.
o núcleo da pessoa é o fundamento para a sua vida atual, este é real. E na medida em que a atualidade é interpretada como realidade oposta à mera possibilidade e o ato como ato de ser, o núcleo da pessoa tem um ser atual (…). A vida espiritual consciente é o grau superior da atualidade, portanto o modo superior do núcleo da pessoa, o qual como um todo e em relação a este é potencial, mas entra na sucessão ora com esta, ora com aquela «parte» de si mesmo, no modo superior da atualidade92.
A passagem da potencialidade à atualidade para Stein deve-se ao facto que as vivências passadas recaem num fundo da consciência e tornam-se potenciais, enquanto podem ser revividas pela consciência, podem tornar-se ainda atuais. Na medida em que a atualidade é interpretada em relação à mera possibilidade, o núcleo da pessoa é um ser atual93. Por outro lado, o ser do núcleo nunca está totalmente atualizado, nem no modo da sua eficiência, nem no do acesso à consciência, pelo facto de a alma, onde se situa o núcleo, estar enraizada no corpo. O núcleo, sendo um ser simples, está na origem da mutabilidade da pessoa, ele tem um ser atual, que se desenvolve no tempo. Embora precise do tempo para o seu desdobramento, parece que não está no tempo, pois opera através dos tempos94. Assemelha- se por isso ao ser divino, que é através de todos os tempos e que não é no tempo, pois é eterno95. O núcleo não pode ser pensado diferentemente, senão como o que se forma e se atualiza na vida espiritual, pois é atualização de potências; e enquanto tal, é o que forma e transforma um carácter. Deve-se dizer que a pessoa muda constantemente, enquanto o núcleo que determina intrinsecamente todo o processo de formação, não se forma e não muda da mesma maneira96.
O núcleo, poderia assim ser considerado como a «substância da alma». Em que consiste tal substância? Consiste na sua «força», na «abertura» e no qual. Estes não podem ser considerados separadamente; pois que são uma só coisa, de maneira que a cada qual pertence a sua «abertura específica» e a sua «força específica»97. A plena manifestação da alma e o acréscimo da sua vida interior é predelineado enquanto telos na «entelechia», no núcleo originário da pessoa98. Neste sentido, quanto mais o ser humano vive em profundidade, mais se manifesta o seu núcleo e menos depende das mudanças externas99. Porque está vinculada ao corpo, a alma experimenta-se como algo mais do que o que está atualizado em cada momento. Pois, embora o núcleo esteja por detrás da vida consciente, este é tanto o que se atualiza nela como a sua base100. O núcleo parece, assim, indicar a dimensão transcendente da pessoa; aquela dimensão que manifesta uma «certa permanência», apesar do necessário desenvolvimento, que inclui a mudança e a transformação. Segundo Stein, o núcleo da alma manifesta a maior semelhança do ser humano com o ser divino, que é ato puro sem mudança, pois «é já o que é». De maneira semelhante, também o ser do núcleo, à medida em que é, é atualidade. Ora a atualidade é indício, em cada momento, da individualidade qualitativa considerada como resultante da atualização do núcleo.
3. A plena realização da pessoa humana
Assim, para a autora, a realização do ser humano enquanto pessoa pressupõe, não apenas a evolução do ser pessoal que compreende uma contínua passagem da potência ao ato, mas também diferentes graus de ser, como Tomás de Aquino tinha estabelecido no De ente et essentia101. Por outro lado, o ser humano sendo um ser finito e temporal, nunca é uma realidade acabada (concluída), o seu ser em ato, não é um «ato puro», mas uma realização de possibilidades essenciais submetidas a um início e a um progresso102; «à realização progressiva pertence um ente que traz consigo possibilidades ainda irrealizadas»103. Algo que não é ainda o que deverá ser, mas que já está incluído no seu «dever ser»; compreende-se, por isso, que o seu desenvolvimento seja designado antecipadamente. O ser real-temporal é um ser colocado nele-mesmo. As suas possibilidades irrealizadas (potências) estão fundadas nele, e o seu ser participa do seu ser e corresponde à passagem a um grau superior de ser104. Esta determinação não deve ser entendida como determinismo, mas como uma orientação para um fim. No entanto, enquanto o ser humano é uma individualidade qualitativa e não quantitativa, a sua realização enquanto qual, tem um desígnio pessoal e único. Tal desígnio encontra a plenitude da sua realização pela espiritualidade, como a autora evidencia na sua obra maior, Ser finito e ser eterno; pergunta-se, neste contexto, que relação se pode estabelecer entre espiritualidade e personalidade:
Enquanto homem é espírito segundo a sua essência, sai de si mesmo com a sua «vida espiritual» e entra no mundo que se lhe abre, sem perder nada de si mesmo. Ele exala não somente a sua essência (…) duma maneira espiritual exprimindo-se inconscientemente, mas além disso age pessoalmente e espiritualmente. A alma humana enquanto espírito eleva-se na sua vida espiritual para além de si mesma105.
Se, para Stein o espírito é uma característica essencial da pessoa, no entanto, devemos compreender mais especificamente o que a autora entende por pessoa. Se, por pessoa, segundo a definição clássica, se entende o «suporte da essência» de um sujeito dotado de razão,106 na designação fenomenológica107 é o eu que é o suporte da sua vida, é nele que jorra a vida interior, é o eu que a vive e a experimenta como sua. É evidente que a significação do termo «suporte» neste contexto é diferente do suporte da essência numa coisa: pois que, neste caso, a vida não é somente suportada, mas o suporte é ele próprio vida. Qual é então a espécie de suporte que se encontra no ser pessoal? Se o eu pessoal é o suporte da pessoa humana e a pessoa é o suporte da sua essência, isto é, a quididade, o que faz com que o homem seja homem, «em que sentido se pode dizer que ele traz consigo o seu ser-homem?»108.
Se pertence ao eu que a sua vida jorre dele e que ele experimente a sua vida como a sua própria, então o eu pessoal deve poder também compreender a sua vida e informá-la livremente por si mesmo. Deste modo compreendemos que Deus, que numa liberdade perfeita informa a sua própria vida e que é inteiramente luz (…) deve ser uma pessoa no sentido mais elevado (…). Quando interpretámos a pessoa como um eu e o eu como suporte da sua própria vida, conseguimos caracterizar a maneira particular como a pessoa é suporte da sua vida109.
Parece-nos interessante a relação aqui estabelecida entre o eu e a pessoa, pois, o eu já não é aqui concebido como eu puro, mas eu anímico e espiritual, este é o suporte da pessoa, é a sua orientação; de facto, o eu abraça a pessoa e, neste sentido, é o seu suporte. No entanto, para Stein a pessoa diz respeito ao homem todo, à sua harmonização, que resulta da sua tridimensionalidade: corpo, (Leib), alma e espírito110. Embora todas as três dimensões sejam importantes na constituição do ser humano, o que caracteriza o homem como pessoa é o espírito. «O espírito é a dimensão de abertura da pessoa, é o que[a] faz (…) ser pessoa»111.
3.1 A abertura: a realização da pessoa pelo espírito e pela liberdade
A abertura pode ser concebida como abertura a si mesmo, que consiste no espírito subjetivo, o qual corresponde à vida consciente, mas também no espírito objetivo, que se encontra já atuante e presente nas coisas criadas. Neste sentido, «o espírito humano está condicionado pelo que lhe é inferior e superior: está incorporado num produto, material que ele anima e forma em vista da sua forma corporal»112. A pessoa humana sustenta e abraça o seu corpo e sua alma, mas é ao mesmo tempo sustentada e abraçada por eles. A sua vida espiritual eleva-se de um fundo obscuro, como um círio brilhante, mas é nutrida por uma matéria que não brilha, o espírito humano não é transparente113, uma vez que toda a vida consciente não abraça todo o meu ser.
As relações entre o corpo vivo e a alma estão profundamente implicadas uma na outra. No entanto, o próprio da alma é ser o próprio centro de ser (Seinsmitte)114 e o que é específico da alma humana é a vida interior. Diferentemente dos animais, na pessoa humana a alma é consciente, o eu desperto, o olho do espírito olha para o interior e para o exterior, pode assumir com inteligência o que lhe vem ao encontro, uma vez que é dotado de liberdade pessoal, pode responder de tal ou tal maneira. O homem pode responder assim porque é um ser espiritual115. O que é característico do espírito enquanto pessoa, não é somente o facto de ser o suporte da sua essência, mas o facto de poder dispor de si livremente e por isso, «pode ser o seu próprio mestre»116. Graças ao eu que habita no profundo da alma, o homem pode formar-se a si mesmo. A vida do eu é constituída pelas maneiras de ser de tal alma117. Então,
[A] possibilidade de formar-se a si mesmo depende na alma, ao mesmo tempo do que ela tem em comum com o espírito puro e do que se diferencia dele. O que ela tem em comum, é o facto de ser consciente da vida do seu eu, de poder agir livremente à sua maneira. O que a diferencia do espírito puro, é o fato que o seu comportamento livre não abrange todo o seu ser, ele deixa nela [pessoa] traços e que ela se encontra de facto informada pelo exterior e fortemente marcada por ele118.
Por espírito puro, Stein entende tanto os espíritos puros criados, finitos (anjos), como o espírito puro de Deus, que é também ato puro sem potência e sem devir119. A alma é na sua essência de natureza espiritual, mas está incorporada na matéria; no entanto, deve chegar à posse da sua essência, alcançar-se a si mesma, por meio do conhecimento de si e pela liberdade. Ora «a forma mais original do conhecimento de si é a consciência que acompanha a vida do eu»120. Trata-se de uma possessão de si, de um retorno a si imanente à vida espiritual, dando ao si o seu sentido mais original. É um conhecimento que surge da maior profundidade. Esta profundidade da alma contém, contudo, um fundo obscuro pelo facto de estar ligada a um corpo. «O fundo obscuro de onde se ergue toda a vida espiritual humana (a alma), apresenta-se à luz da consciência na vida do eu, sem, no entanto, se tornar transparente»121. A vida do eu, revela-se deste modo, como vida psíquica, mas pela saída de si mesmo e pelo remontar à luz, a vida psíquica revela-se como vida espiritual. Este facto é possível porque o si estende-se, a partir do eu puro, em volta do espaço da alma. O eu e a alma não são justapostos, o eu habita na alma, abraça-a e na sua vida, o seu ser torna-se presente, vivo e consciente122. O olhar dirige-se assim à alma como para um objeto e descobre comportamentos e hábitos que deve mudar.
Tais afirmações, nas quais estou diante de mim mesmo como diante de um objeto, mostram (...) a alma como um todo, semelhante a uma coisa [dingartig], com propriedades (ou qualidades) que se manifestam no seu comportamento e por outro lado são influenciáveis por ele. Por este comportamento ser «meu», concernente a minha liberdade, tenho o poder de colaborar eu próprio na formação (realização) [Gestaltung] da minha alma123.
É somente pela vivência que se manifesta algo da essência da alma, entendida não como essência geral, mas como essência própria da alma individual, deste modo manifesta- se o seu modo de ser pessoal124. A vida espiritual surge sempre de novo da vida dos sentidos, mas o homem pode fixar-se num ser superior e dirigir-se de lá à vida interior125. Como ser finito, o homem é um ser criado e necessita, para a realização e desenvolvimento do seu ser, da relação com o Ser primeiro. O Ente primeiro é uma pessoa126, um ser espiritual, embora tenha uma só essência, esta revela-se em três pessoas. «A divindade trina é o próprio domínio do espírito (…). Toda a espiritualidade ou dom do espírito da parte das criaturas, significa uma elevação neste domínio»127; é nele que se encontra a imagem primeira do nosso próprio ser. Pois todo o ser é participação no «Primeiro Ser» e tem nele o seu ponto de partida128. É na interioridade, quando esta se abre à vida divina, que o espírito humano conhece na luz divina; mas a união da alma com a vida divina supõe a natureza espiritual desta como uma essência pessoal-espiritual129. Para Stein, pela espiritualidade, pela abertura pessoal e espiritual a Deus, realiza-se uma imagem única e pessoal, com uma essência própria, que significa uma diferenciação específica130.
Essa singularidade da alma é desenvolvida na relação que esta estabelece com o ser trinitário, uma relação de amor. Se o amor na sua realização mais alta é dom recíproco e união, então uma pluralidade de pessoas é-lhe necessária; ora a única realização perfeita do amor é a vida divina em si mesma, o dom recíproco das pessoas divinas. O que se situa mais próximo do amor puro, que é Deus, é o dom de si das pessoas finitas a Deus. Aquele que se doa a Ele chega a uma perfeição existencial suprema, e este amor é ao mesmo tempo conhecimento, dom do coração e ato livre131.
3.2 O Amor como maneira de ser pessoal
Esta doação de si é de certa maneira uma resposta ao dom que Deus faz à alma que se deixa purificar; por isso nas obras místicas, Stein, na esteira dos seus mestres espirituais, descreve as etapas de tal caminho de purificação132 até chegar à doação mútua onde se encontra o centro da sua alma, o lugar onde Deus habita. Só Deus pode desvelar à alma este centro, embora não signifique que Deus entre num lugar onde ele não estava antes, mas significa que a alma se abre livremente a ele e se doa a esta união133. «Trata-se de uma união de amor»134. Este fundo íntimo da alma -o núcleo- está marcado por um traço singular. O «nós» criado pela união ao divino toma uma forma única, em função de cada alma. Este «nós», é um entrelaçamento absolutamente singular, irredutível a qualquer outro, porque está marcado pela particularidade da alma que se une ao divino135 e que a torna semelhante ao ser trinitário pela participação na sua própria vida, que é amor. «Através da vida do outro nele, o eu finito encontra um engrandecimento e um enriquecimento infinitos, sem perder a individualidade nem no sentido da ipseidade nem no sentido qualitativo»136. A união mística realiza de maneira perfeita o que é verdade do amor em geral, pois o amor tem sempre a marca da maneira de ser pessoal.
Como Stein tinha já estabelecido nos escritos fenomenológicos, «o facto que eu ame uma pessoa e até que ponto a ame, baseia-se na maneira em que me impressione a peculiaridade dessa pessoa e isso é algo de absolutamente único como o é esta própria peculiaridade»137. Esta peculiaridade está associada à finitude, segundo uma ideia que já vem da Empatia. Mas encarada sob o ponto de vista da união mística, a finitude toma um sentido inédito, pois, embora Deus seja a plenitude do amor, os espíritos criados não podem acolher toda a plenitude do amor divino, a sua participação é proporcionada à medida do seu ser e isso significa, não somente uma quantidade, mas também uma qualidade: o amor traz a marca de ser pessoal138. Se Deus é amor, a participação no ser divino daquele que o acolhe na alma, deve ser uma participação no amor; este traz consigo a marca de ser pessoal139.
Conclusão
Vimos assim que é a partir do núcleo que o ser humano se desenvolve e se forma como pessoa. O desenvolvimento do ser pessoal opera-se em relação ao mundo circundante, isto é: ao mundo exterior, quer seja em relação às coisas criadas, como na relação com as pessoas. Já o desdobramento do núcleo acontece na relação da pessoa consigo mesma; pois trata-se de um trabalho da própria pessoa, cujo resultado é a manifestação e a realização daquela «essência» que já está inscrita na natureza mais íntima que a constitui. Embora o núcleo esteja sujeito ao devir e se vá atualizando nas vivências pessoais, tudo o que se vai abrindo e expressando no carácter e nas expressões corporais, já está de alguma maneira contido no núcleo, pois que este encerra as possibilidades de realização da pessoa. O núcleo pode ser pensado como uma forma vazia, um a priori, ou uma possibilidade de realização. É a partir do núcleo que todo o ser humano se vai formando (tomando forma), e é a partir desta formação que a sua individualidade se especifica qualitativamente. Para Stein, tal formação, passa por uma opção pessoal, pois que o ser humano se deve «formar a si mesmo». O núcleo informa a alma e o corpo no decurso do processo. A individualidade não se dá pelo corpo (matéria), como para Tomás de Aquino, mas pela forma, a partir do interior.
Será, no entanto, na relação pessoal e única do ser humano com o ser divino, que o núcleo, entendido como a «essência da alma», se abrirá plenamente e conhecerá aquela imagem ou «marca qualitativa» específica que é a sua. Em que consiste essa marca pessoal? Stein compreende, na esteira de S. Agostinho, que a imagem mais fiel de Deus no ser humano é o amor, pois que amar a Deus implica amar o próximo como a si mesmo; por outro lado, o justo amor de si mesmo não se pode compreender sem o amor de Deus140. Para a autora carmelita, o amor é considerado como fundamento e finalidade da vida espiritual e, deste modo, a razão de ser do ser humano. O pleno desdobramento do núcleo estaria na capacidade de amar a Deus e de amar o próximo por amor de Deus. Como refere Christof Betschart, tal capacidade é fruto do desenvolvimento e do desdobramento do núcleo e não depende necessariamente de condições ideias para a sua efetivação, pois pode-se amar em todas as situações, mesmo naquelas que são difíceis141. Na conceção de Stein, é na relação com Deus que cada alma pode atingir o seu pleno desenvolvimento, pode ser por ela fortificada e ter o domínio do seu próprio corpo142 e a sua força de compreensão.