1. Introdução
O presente trabalho objetiva uma exegese da perícope de 2Pd 3,14-16, pertencente a uma das sete cartas católicas. Segundo Isidoro Mazzarolo,1 trata-se da mais católica dentre todas. Portanto, absolutamente, não estamos diante de uma carta «fraca» ou de «menor valor».2 Para tal, utilizaremos as regras de Análise Retórica Bíblica Semítica, propostas pelo estudioso francês Roland Meynet,3 mediante o qual este método sincrônico foi «tornado recente» apesar de «antigo».4 A aplicação deste método se dá por meio de análise minuciosa dos diversos paralelismos encontrados numa passagem, seção ou livro, e possui diversos «frutos», não somente relacionados à interpretação, mas que incluem ainda contribuições para tradução e crítica textual, bem como delimitação de perícopes.5
A Segunda Carta de Pedro é uma obra também qualificada como um dos sete livros deuterocanônicos do Novo Testamento6, tendo sido atribuída a Pedro, embora seja um escrito mais tardio, como defendem os hodiernos comentadores7. Ela é um texto de capital importância para percebermos a evolução do cânon bíblico do Novo Testamento, visto que parece que Pedro reconhecia o valor dos escritos paulinos, como forte mensagem para a instrução da vida cristã,8 indicando, igualmente, que já devia haver uma certa «coleção» de cartas paulinas agrupadas, que circulavam pelas comunidades cristãs primitivas,9 demonstrando, no mínimo, a existência e a partilha de coleções de temas das cartas paulinas.10 Como atesta Eduard Cothenet,
O final da 2Pd tem importância particular para a história da formação do Cânon do novo Testamento. Ele atesta, com efeito, a constituição de um primeiro corpo das cartas de Paulo e a veneração da qual elas eram objeto, uma vez que, de certa forma, as coloca no nível das outras escrituras, isto é, dos escritos do Antigo Testamento. O problema da interpretação já se punha de modo agudo (veja também 2Pd 1,20): alguns deformavam o ensinamento autêntico de Paulo em proveito de suas teses particulares11.
A 2Pedro tem muitas afinidades com Judas, e ambas parecem tratar de assuntos relacionados ao sistema gnóstico, ainda que em estágio primitivo.12 Sendo um dos sete textos deuterocanônicos do Novo Testamento, consequentemente sua canonicidade foi disputada por Orígenes, Eusébio de Cesareia e Anfilóquio de Icônio, além de estar ausente no Fragmentum Muratorianum.13 É um dos livros mais «marginalizados» do Novo Testamento, não sendo mencionado por nome até o século III d.C.14 Seu conteúdo evidenciaria um ambiente pós-apostólico, sendo um documento pseudo-petrino, tipicamente romano não anterior a 140 d.C.,15 uma possibilidade já abordada por Eusébio de Cesareia em sua História Eclesiástica III,3,1.16
Do ponto de vista canônico, 2Pedro reflete um período de transição - do período Apostólico para o período Patrístico - e, sendo um dos últimos escritos do Novo Testamento, os primeiros leitores estariam plenamente conscientes da autoria petrina assumida; e o não usual «Συμεὼν Πέτρος/Simeão Pedro» (em contraposição ao mais comum «Σίμων/Simão») evidenciaria que o autor reivindica não uma realidade histórica, e sim teológica.17 Não obstante estas várias posições contrárias à autenticidade petrina da 2Pedro, alguns autores defenderam e outros defendem ainda hoje ser ela uma obra autenticamente petrina.18
A análise, aqui, inicia-se com uma crítica textual da perícope; então, procede-se à delimitação e tradução do texto grego. Ato contínuo, é efetuada uma análise filológica, e, finalmente, é oferecida uma análise a perícope de 2Pd 3,14-16 à luz do método da Análise Retórica Bíblica Semítica, para se chegar à estrutura do texto. De posse do texto devidamente estruturado, é realizado um comentário exegético.
2. Análise de 2Pedro 3,14-16
2.1. Tradução segmentada e comentada
14a | Διό, ἀγαπητοί, ταῦτα προσδοκῶντες | Por isso, amados, esperando ansiosamente por estas coisas, |
14b | σπουδάσατε ἄσπιλοι καὶ ἀμώμητοι | empenhai-vos em (serdes) imaculados e irrepreensíveis, |
14c | αὐτῷ εὑρεθῆναι ἐν εἰρήνῃ | por serdes encontrados nele em paz; |
15a | καὶ τὴν τοῦ κυρίου ἡμῶν μακροθυμίαν σωτηρίαν ἡγεῖσθε, | e considerai por salvação a longanimidade de nosso Senhor, |
15b | καθὼς καὶ ὁ ἀγαπητὸς ἡμῶν ἀδελφὸς Παῦλος | conforme também o nosso amado irmão Paulo |
15c | κατὰ τὴν δοθεῖσαν αὐτῷ σοφίαν | - segundo a sabedoria que lhe foi dada - |
15d | ἔγραψεν ὑμῖν, | vos escreveu; |
16a | ὡς καὶ ἐν πάσαις ταῖς ἐπιστολαῖς | como também (faz) em todas as suas cartas, |
16b | λαλῶν ἐν αὐταῖς περὶ τούτων, | ao falar nelas acerca destes assuntos, |
16c | ἐν αἷς ἐστιν δυσνόητά τινα, | nas quais há algumas coisas de difícil compreensão, |
16d | ἃ οἱ ἀμαθεῖς καὶ ἀστήρικτοι στρεβλώσουσιν | as quais os ignorantes e instáveis distorcem, |
16e | ὡς καὶ τὰς λοιπὰς γραφὰς πρὸς τὴν ἰδίαν αὐτῶν ἀπώλειαν. | como também (distorcem) as demais Escrituras, para sua própria perdição. |
No v.14a o verbo «προσδοκάω/esperar», embora primariamente tenha a conotação do ato de esperar, no entanto, trata-se de uma espera envolvendo o conceito de «ansiar». Com a ênfase no anseio, incluindo a apreensão, optou-se por traduzir «esperar ansiosamente».19 No v.14b, para salientar o nominativo das palavras «ἄσπιλος/imaculado» e «ἀμώμητος/irrepreensível», inserimos o verbo ser, mesmo ausente no grego (por isso entre parênteses).20 No v.15a o verbo ἡγέομαι, embora tenha o significado primário de «supervisionar», aqui é mais adequadamente traduzido como «considerar», a exemplo do que se encontra em Fl 3,8.21
No v.16a a expressão ὡς καὶ, que aparece duas vezes neste versículo, encontra-se em mais 20 versículos com a ideia de «igualmente», «da mesma forma», «do mesmo modo». Opta-se pela tradução «como também», salientando assim seu caráter adverbial comparativo; a expressão καθὼς καὶ do v.15b, embora sirva de sinônimo, foi traduzida «conforme também» para marcar a diferença vocabular e atender ao método da Análise Retórica Bíblica Semítica.22
No v.16b o vocábulo τούτων foi traduzido por «assuntos», «coisas», abordados por Paulo em suas cartas, como inferido no v.15.23 Em contrapartida, o vocábulo τὶς na sequência do v.16c é traduzido como «coisas» para salientar o caráter de genitivo partitivo, enfatizando «coisas» dentre os assuntos mencionados no v.16b.24 E o verbo στρεβλόω, no v.16d, hápax legómenon em todo o Novo Testamento, traduz-se mais adequadamente por «distorcer» o significado das Escrituras, o qual coaduna com o significado primário de «praticar tortura» ao torcer cordas.25
2.2. Crítica Textual
O testemunho mais antigo que temos acerca do texto dessa carta está no papiro P72, datado dos séculos III/IV. Nele percebemos o uso de σπουδασεται, possível erro para «σπουδάσατε/empenhai-vos»; αμαμητοι foi mudado para «αμωμητοι/irrepreensíveis» pelo uso de ω supralinear; e uma nota marginal assinala na quarta linha περι ειρηνη (sugestão para substituir «εν ειρηνη/em paz»).
Com relação à Crítica Textual, não há grandes variantes textuais. A NA28 e Tischendorf mostram algumas variantes, inclusive de pouca importância: no v.14, o papiro P72 (com a anotação supralinear), os códices Sinaítico, Vaticano, K, C, K, L e P trazem «αμωμητοι/irrepreensíveis», enquanto o Alexandrino e os minúsculos 33, 614, 630, 1241, 1505 trazem αμωμοι (que possui o mesmo significado; todo o peso das testemunhas recai sobre ἀμώμητοι, enquanto que o uso de αμωμοι poderia ser uma tentativa de harmonizar com 1Pd 1,19), indicando possíveis correções ou alterações realizadas pelo copista26; no v.15 alguns manuscritos da versão boaírica, o uncial P e o minúsculo 1243 omitem a primeira ocorrência de «ἡμῶν/ nosso». Ainda no v.15, a Siríaca Filoxena substitui «τοῦ κυρίου ἡμῶν/de nosso Senhor» por «τοῦ πνεῦματος τοῦ κυρίου /do Espírito do Senhor». Estas variantes representam a lectio comunis nos manuscritos de maior peso, e, portanto, já pelos critérios da crítica externa se resolve o impasse, visto que as variantes são sustentadas e apoiadas por manuscritos que garantem uma «maior probabilidade de originalidade».27 Por isso, concordamos que sejam mantidas, em consonância com a leitura de NA28.
Mas é no v.16 que encontramos variantes merecedoras de maior atenção:
a) Após a palavra «πάσαις/todas», muitos manuscritos inserem a palavra «ταῖς/as»: os códices Sinaítico, P, K, L, o minúsculo 1739 e a tradição Majoritária. O Texto Recebido (Textus Receptus) manteve então esta palavra, aparecendo nas versões de Stephanus, Scrivener, Tischendorf (8ª. Edição) e Von Soden. Na versão de Westcott-Hort de 1885 ela foi retirada, e assim permaneceu na 27ª edição de Nestle-Aland. Pesava o testemunho do papiro P72 e de unciais como o Alexandrino, Vaticano, C e Ψ, os quais não inseriam esta palavra. Na atual edição (NA28), entretanto, ela foi reabilitada, observando o peso do códice Sinaítico e de uma correção do Alexandrino no século VII, além do apoio da tradição Majoritária. Podemos concluir que a leitura do NA28 é a mais aceitável, portanto.
b) Alguns manuscritos, como C, K, L, P, e, em especial, do Texto Recebido, substituem «αἷς/as» por «οἷς/os» (enquanto αἷς se refere a «ἐπιστολαῖς/epístolas», οἷς se refere a «τούτων/destes assuntos»). Mas, temos em defesa de αἷς todo o peso dos principais manuscritos (o papiro P72 e os unciais Sinaítico, Vaticano, C e Ψ) e da tradição Majoritária. Assim, αἷς aparece tanto na edição 27 quanto na 28 de Nestle-Aland, sendo, portanto, a leitura mais aceitável.
Concluímos, então, que a edição NA28, de fato, apresenta um texto superior, como resultado da colagem de vários manuscritos analisados com cura e zelo. Sendo assim, concordamos com a manutenção das variantes indicadas, como sendo as melhores para o texto da perícope 2Pd 3,14-16.
2.3. Delimitação
Alguns comentários incluem o contexto de 2Pd 3,14-16 com os vv.17 e 18: Karl Hermann Schelkle lhe dá o título de «exortações finais», assim como Jerome Henry Neyrey («Permanecer firme na tradição»), Pheme Perkins («Esperando salvação em santidade»), Fritz Grünzweig, Uwe Holmer e Werner de Booer («Exortação final»), Gilberto Marconcini («A exortação e o louvor») e Samuel Pérez Millos («Esperança e conclusão»).28 Ceslas Spicq a desvincula dos vv.17 e 18 e inclui no contexto dos vv.11 ao 13 como «moral escatológica: viver santamente na expectativa de Cristo», o mesmo fazendo Richard J. Bauckham, com o simples título «Exortação», e Alois Stöger, com o título «acontecimentos finais e vida moral».29 Isidoro Mazzarolo segue Ceslas Spicq e Richard J. Bauckham, intitulando «O testemunho da exortação de Paulo».30 Peter H. Davids mantém a delimitação dos vv.14-16, nomeando «encorajamento final».31 Michel Green vai mais além, deixando apenas os vv.15 e 16 como «Pedro cita Paulo como apoio».32 Dick Lucas e Christopher Green dividem em duas perícopes, ficando o v.14 com o título «Que tipo de povo devemos ser?», e o conjunto dos vv.15-16 «Como podemos apressar o dia do Senhor? ».33
As obras que começam uma nova perícope com o v.14 evidenciam o início marcado pela partícula «διό/por isso» (partícula coordenativa inferencial, a qual marca um novo assunto correlacionado ao que foi abordado no contexto imediato anterior (como evidencia o uso comum do verbo «προσδοκάω/esperar» nos vv.12 e 13), e Ceslas Spicq demonstra a possiblidade de finalizá-la no v.16 (já que no v.17 temos a partícula «οὖν/pois», da mesma forma coordenativa inferencial).34 Além disso, toda essa perícope está marcada pela menção do apóstolo Paulo (a única fora do corpus paulinum e de Atos dos Apóstolos). Michael Green chega a qualificar essa menção como «fascinante»35.
2.4. Análise Filológica36
Como observado no item anterior, o termo que mais chama a atenção é a presença do nome do apóstolo «Παῦλος/Paulo». São 158 ocorrências37, em 154 versículos: das quais 128 vezes, em 125 versículos de Atos dos Apóstolos, 29 vezes em 28 versículos do corpus paulinum e somente aqui fora de qualquer um destes corpora.38 Portanto, claramente, a presente menção domina essa perícope, confirmando não somente a delimitação, como um horizonte para o tema da mesma. O termo «ἐπιστολή/epístola» chama a atenção de igual forma: fora do corpus paulinum e da obra lucana, somente aqui em 2Pedro, e em duas passagens (3,1.15).
Um dos primeiros termos a abrir esta perícope é «ἀγαπητός/amado», que tem um tom apelativo, «quase como que uma súplica [...] que se coloca como consequência parenética de todas as afirmações precedentes».39 Muito comum no corpus paulinum, este termo aparece 6 vezes nesta obra (1,17; 3,1.8.14.15.17), e por livro perde em número de ocorrências apenas para a Epístola aos Romanos (7 vezes)40. Ainda no v.14, temos «σπουδάζω/esperar ansiosamente», que aparece 11 vezes41, sendo três apenas nessa obra (1,10.15; 3,14), e significa «apressar, esforçar-se, empenhar-se». Este é um outro termo importante no corpus paulinum: fora de Paulo, somente aqui na 2Pedro e em Hb 4,12.
Da mesma forma o termo «εἰρήνη/paz», que inclusive também aparece no início da 2Pedro (1,2), na expressão «χάρις ὑμῖν καὶ εἰρήνη/graça e paz a vós», uma saudação tipicamente paulina.42 Podemos perceber, então, que não somente a menção - diga-se de passagem, bem afetuosa, a Paulo, como também o uso de vocábulos tipicamente paulinos estabelece uma conexão dessa carta católica com o corpus paulinum. Podemos conferir ainda o uso de «μακροθυμία/longanimidade» e «σοφία/sabedoria» no versículo seguinte, termos caros à teologia paulina.
Continuando no mesmo versículo, temos «προσδοκάω/esperar», com sentido de «empenhar-se», que aparece 16 vezes43, em 15 versículos, bastante comum na obra lucana (6 vezes no Evangelho e 4 em Atos dos Apóstolos), e na 2Pedro aparece 3 vezes na sequência 3,12-14.44 Significa «formar pensamento sobre algo que é visto como se encontrando no futuro, esperar por, procurar por, aguardar; (...) com anseio, com medo ou em um estado de espírito neutro».45 Denota muito mais do que o simples ato de esperar, pois, aqui, requer diligência e esmerada atenção, procurando levar uma vida santa, na expectativa do mestre que deve regressar, procurando, enquanto isso, não contaminar-se com os «falsos mestres».46
Outro termo muito comum que aparece neste mesmo versículo é «εὑρίσκω/encontrar»: 176 vezes47, em 167 versículos. Duas coisas chamam a atenção: primeira, assim como «προσδοκάω/empenhar-se», temos aqui outro termo usado amplamente na obra lucana (44 vezes no evangelho e 32 em Atos dos Apóstolos, quase metade de todas as ocorrências neotestamentárias); segunda, esta é a única passagem na qual «εὑρίσκω/encontrar» é utilizado no infinitivo aoristo passivo, εὑρεθῆναι (nas demais - Mt 18,13; At 7,46; 19,1; Rm 4,1; 2Cor 2,13; 2Tm 1,18 - o uso é ativo).48 Fora do contexto bíblico, a forma εὑρεθῆναι é usada 11 vezes, nas obras dos Padres da Igreja,49 o que parece aproximar 2Pedro do período subapostólico.
Esta perícope ainda é notória por uma série de hápax legomena na 2Pedro: «ἄσπιλος/imaculado», aqui em 3,14 e 1Tm 6,14; Tg 1,27; 1Pd 1,19; «ἀμώμητος/irrepreensível», aqui em 3,14 e, como variante textual, em Fl 2,15); «δυσνόητος/algo de difícil compreensão» e «ἀμαθής/ignorante», ambas somente aqui em 3,16; «ἀστήρικτος/instável», «vacilante», em 2Pd 2,14 e 3,16; e «στρεβλόω/torcer», somente aqui em 3,16 e na LXX, em 6 ocasiões). O adjetivo «δυσνόητος/algo de difícil compreensão» é formado pelo prefixo δυς, que indica oposição ou dúvida, e por νόητος, que denota algo compreensível, exprimindo, juntos, aqui na 2Pedro, uma dificuldade em entender/compreender algumas coisas nas cartas paulinas e que estariam sendo distorcidas pelos «falsos mestres», de forma «consciente e desejada [...] segundo seu arbítrio e desejos [...] deformando as Escrituras»,50 acomodando, como isso, as Escrituras Sagradas a seu próprio modo de pensar e interpretando «algumas passagens da Divina Escritura com falsidade», tergiversando-as segundo seus desejos e paixões.51 E, embora não seja um hápax legomenon no Novo Testamento, o vocábulo «ἀπώλεια/perdição» é usado em quatro ocasiões além daqui, em 2Pd 2,1.3 e 3,7, sendo a obra que mais explora esse termo, o que faz dele um termo caro à mesma.
2.5. Análise Retórica
Na perícope 2Pd 3,14-16, há muitas oposições, basicamente entre pontos positivos e negativos, remetendo a fiéis e infiéis, ortodoxos e heterodoxos, ao aplicar a Análise Retórica Bíblica Semítica, conseguindo identificar um ponto central:
PONTOS POSITIVOS | PONTOS NEGATIVOS |
ESPERANDO ANSIOSAMENTE | (FAZENDO) ... para sua própria PERDIÇÃO |
EMPENHAI-VOS em (ser) IMACULADOS E IRREPREENSÍVEIS, | IGNORANTES E INSTÁVEIS DISTORCEM, |
SER ENCONTRADOS nele em PAZ; | HÁ algumas coisas DE DIFÍCIL COMPREENSÃO, |
como também (FAZ) Paulo... | isto mesmo (FAZEM) (OS IGNORANTES E INSTÁVEIS)... |
VOS ESCREVEU; (PONTO CENTRAL) |
Observe-se que, retoricamente: enquanto os fiéis esperam ansiosamente a salvação, «trabalham» pela mesma (v.14a), os não fiéis «trabalham» para sua perdição (v.16e); enquanto os fiéis se empenham em ser «imaculados e irrepreensíveis» (v.14b), os não fiéis, sendo «ignorantes e instáveis», distorcem, literalmente «torturam» as Escrituras, e assim empenham-se para esta condição deplorável (v.16d); se, por um lado, devem ser achados em paz (v.14c), por outro, são achados pontos difíceis de compreensão nas Escrituras (v.16c).
Temos ainda dois pares de proposições em paralelismo, ao invés de contraposições: considerar por salvação a longanimidade de nosso Senhor (v.15a) é um dos assuntos dos quais Paulo fala nas suas cartas (v.16b), e como também faz Paulo (v.15b), isto mesmo faz em todas as suas cartas (v.16a).
Obtém-se, assim, uma disposição quiástica com relação aos membros, na qual o segmento bimembro «κατὰ τὴν δοθεῖσαν αὐτῷ σοφίαν ἔγραψεν ὑμῖν/conforme a sabedoria que lhe foi dada, vos escreveu» ocupa uma centralidade. O segmento bimembro do v.15c-d, por sua vez, divide esta perícope em outras duas partes: na primeira, começa e termina com a palavra «ἀγαπητὸς/amado»; na segunda, começa e termina com a expressão «ὡς καί/como também». Cada uma dessas partes tem dois segmentos, um trimembro e outro bimembro. Assim, obtemos a estruturação da perícope 2Pd 3,14-16:
14a | Por isso, AMADOS , ESPERANDO ANSIOSAMENTE por estas coisas, |
14b | EMPENHAI-VOS em (ser) IMACULADOS E IRREPREENSÍVEIS, |
14c | por SER ACHADOS nele em PAZ; |
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - | |
15a | e CONSIDERAI por SALVAÇÃO a LONGANIMIDADE de nosso Senhor, |
15b | como também (FAZ) o nosso AMADO irmão Paulo - |
15c | conforme a SABEDORIA QUE LHE FOI DADA - |
15d | VOS ESCREVEU; |
16a | isto mesmo (FAZ) em todas as suas cartas, |
16b | FALANDO nelas acerca destes ASSUNTOS, |
16c | nas quais HÁ alguns DE DIFÍCIL COMPREENSÃO, |
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - | |
16d | que os IGNORANTES E INSTÁVEIS DISTORCEM, |
16e | isto mesmo (FAZENDO) com as demais Escrituras, para sua própria PERDIÇÃO. |
As três partes seguem uma outra disposição quiástica, além daquela identificada nos membros: a - b - a’. Como isso, indica que dar valor ao testemunho escriturístico é algo que também se espera dos amados.
A PARTE I - O QUE SE DEVE ESPERAR DOS AMADOS (v.14a-15b)
PARTE II - A SABEDORIA DE PAULO AO ESCREVER (v.15c-d)
A’ PARTE III - O TESTEMUNHO ESCRITURÍSTICO (v.16)
Como é possível observar, os segmentos seguem a disposição concêntrica a - b - c - a’ - b’:
Tirando a introdução (1,1-2) e a conclusão (3,17-18) da 2Pedro, o corpo principal da carta inicia de maneira similar ao que começou: em paralelo com 1,3-11 e 3,14-16 oferece um encorajamento para aqueles que se empenham em participar da natureza divina.52 Vale a pena ressaltar aqui, ainda, que a expressão «ἐν πάσαις ταῖς ἐπιστολαῖς/em todas as suas cartas» não denota que o autor da 2Pedro conhecesse «todas» as cartas paulinas, sejam as que temos na lista do cânon do Novo Testamento hoje, sejam as que possivelmente se perderam, como as destinadas aos Coríntios e aos Laodicenses (Col 4,16), mas, sim, que «as cartas de Paulo estavam recolhidas em uma coleção precisa e reconhecida, e que o cânon do Novo Testamento estava gradualmente se formando», ao lado das Escrituras Veterotestamentárias («ὡς καὶ τὰς λοιπὰς γραφὰς/como também as demais Escrituras»), que já contavam com tal reconhecimento.53
3. Comentário Exegético
Pudemos verificar como organizar quiasticamente essa perícope em três partes, apontando enfaticamente para a segunda. Pudemos igualmente verificar que empenho e exemplo dominam aqui, fazendo um paralelo positivo entre o empenho dos irmãos e o empenho de Paulo, e um paralelo negativo entre o exemplo de Paulo e o mau exemplo dos infiéis. É importante frisar que a perícope se articula ao redor de 2 preposições principais, regendo-se por dois verbos principais no imperativo (v.14: «σπουδάσατε/empenhai-vos»; v,15: «ἡγεῖσθε considerai»).54 Esses imperativos revelam a força parenética da perícope, que leva ao «esforço» por caminhar nos passos do Mestre.55 Façamos uma breve análise de cada uma dessas partes.
3.1. O que se deve esperar dos amados (v.14a-15b)
3.1.1. O empenho dos amados (v.14)
A partícula «διό/por isso» mostra que essa perícope é uma consequência lógica do que foi anunciado no v.1156, um apelativo voltado aos destinatários. Portanto, esta é uma sequência da anterior (vv.11-13), que, por sua vez, faz parte do contexto mais amplo do capítulo 3 que trata acerca do «dia do Senhor»57. Este capítulo, então, forma uma seção. Como diz Simon J. Kistemaker, «se os crentes aguardam com ansiedade quando irão morar eternamente onde habita a justiça, na nova terra, então já neste mundo precisam praticar a justiça».58 Consequência: futuro escatológico torna-se a base para exortação ética,59 para «ser santo nos costumes» no kronos cotidiano.60
Um termo muito comum nesta carta, em especial neste capítulo, é usado então: «ἀγαπητός/amado». Com exceção de 2Pd 1,17, onde o singular se refere a Jesus Cristo, as demais ocorrências sempre se dão no plural, falando dos fiéis como aqueles que são alvo do amor divino, infinito. Neste sentido, como nos recorda Edouard Cothenet, «a 2Pd destaca um tema-chave da teologia de Paulo: a misericórdia de Deus».61 Segundo Alois Stöger, esse tratamento petrino em relação a Paulo já denota um reconhecimento da figura de «Apóstolo dos gentios» (Rm 11,13), de seu caráter de apóstolo de Cristo, que, com o passar do tempo, vai sendo amadurecido na Igreja.62
Com o verbo «προσδοκάω/esperar», «esperar alguma coisa acontecer, seja boa ou ruim», mostra-se a expectativa da salvação, e em especial nessa passagem pela vinda de Cristo, o grande alvo e que envolve a restituição de todas as coisas, novos céus e nova terra.63 É a atitude espiritual dos chamados «cristãos escatológicos».64 «Porque um novo mundo de justiça está vindo, no qual somente os justos podem entrar, os cristãos devem viver de maneira justa para estarem aptos a entrar nele».65
O esforço, que se detecta como primordial aqui, é transmitido pelo verbo «σπουδάζω/esforçar-se», «fazer algo com intenso esforço e motivação, trabalhar duro, fazer o melhor», zelo sagrado, demonstração de interesse.66 Um termo que enfatiza a responsabilidade do cristão, como indivíduo, de se esforçar no desenvolvimento da conduta cristã (Fl 2,12).67 Portanto, um empenho para serem «ἄσπιλοι καὶ ἀμώμητοι/imaculados e irrepreensíveis», como que indicando «os dois braços de única cruz e balança»68, sendo uma palavra natural para o esforço moral69, mostrando que, para progredir na vida cristã, além da graça de Deus, são igualmente necessários «esforços na luta de cada dia, pois gloriosa é a meta que nos conduz através de toda pena e tribulação».70 Isso exige esforço no seguimento e permanência em Cristo, não apenas individual, mas igualmente comunitária,71 buscando «guardar-se limpo de toda sordidez do pecado».72 Deste modo, os cristãos imitam seu Mes»tre, o qual era sem defeito e sem mácula (1Pd 1,19).73 É um «plano de voo para a carreira cristã. A conformidade com Cristo é consequentemente o «padrão do cristão», enquanto os «falsos mestres» em 2Pd 2,13 são classificados como «nódoas e deformidades».74
Ser «ἄσπιλος/imaculado», evidencia que o cristão deve pertencer à mais alta qualidade, sem defeito. Inicialmente, de uso cultural, mas é possível ver aqui como o Novo Testamento dá um novo conceito religioso e moral. Tanto que, para traduzir «irrepreensível», ao invés de «ἄμωμος/sem defeito», termo usual na LXX para vítimas sacrificais, usa-se aqui a palavra mais rara «ἀμώμητος/irrepreensível», que possui um apelo mais moral.75 Neste sentido, o apelo é para que se permaneça vigilante e diligente o tempo todo, a fim de se perseverar no caminho do Mestre.76
O termo «εἰρήνη/paz», neste contexto, designa estar correto com Deus, entrar em sua presença com alegria ao invés de experimentar sua ira,77 estar em amizade com Ele78. Aqui não significa a disposição subjetiva da paz da alma, mas a ordem histórico-salvífica e a relação pacífica da graça entre Deus e o mundo (2Pd 1,2),79 denotando aquela paz eterna pela qual toda paz terrena não passa de um débil antegosto,80 a paz objetiva e universal que vem com o reino de Deus,81 exigindo também a paz social, em modo a coincidir com a vocação recebida no batismo, como que sendo operadores da paz indicada por Cristo, a exemplo da bem-aventurança de Mt 5,9. Por isso, o dativo αὐτῷ não deve ser traduzido «dele», ou «por el», e sim «diante dele», «nele», à sua vista, implicando uma vinda pessoal.82 Trata-se de um dativo de agente, que indica a pertença, neste caso, em relação a Deus.83 Significa estar intimamente unido a Deus, caminhando no estado da salvação que Ele nos oferece e renova cotidianamente.84
Paz e esforço encontram-se unidos numa passagem da pseudo-clementina (2 Clemente 10,2): «Pois se nos esforçamos (σπουδάσωμεν) em fazer o bem, a paz (εἰρήνη) virá a todos nós».85
3.1.2. O exemplo do amado Paulo (v.15a-b)
No v.15a, em especial, Thomas R. Schreiner86 enfatiza o sentido de «ter em mente» mais do que «considerar», ecoando assim o que foi tratado em 2Pd 3,9: alguns reclamam que há uma demora, mas a «μακροθυμία/longanimidade», a paciência, do Senhor não é retardo, e sim «σωτηρία/salvação».87
A salvação aqui mencionada não é «σωτηρία ὑμῶν/nossa salvação», a salvação dos crentes, mas salvação em geral; muitos outros dependem da longanimidade do Senhor.88 É um uso incomum da palavra «σωτηρία/salvação», ao invés de falar daquilo que conduz à salvação, a longanimidade é a própria salvação89, não apenas futura, mas já «no tempo presente e atual dos crentes»,90 conectada ao imperativo «ἡγεῖσθε/considerai», a qual é oferecida gratuitamente às pessoas.91 O termo «μακροθυμία/longanimidade» remete ao termo semítico «אֶרֶךְ אַפַּיִם/longânime de fúrias», muito usado no Antigo Testamento para ilustrar o retardo da ira divina.92 Segundo Alois Stöger, este prazo que Deus dá a seus filhos e filhas, é colocado «à nossa disposição», justamente «em sua longanimidade», para que aproveitemos em vista de nossa conversão e «para nossa salvação».93
Levar vidas piedosas para receber a salvação e a paciência exercidas pelo Senhor são assuntos também abordados por Paulo em suas cartas.94 Como declara Isidoro Mazzarolo, «a referência a Paulo e suas cartas (3,15-16) teria uma finalidade de proteger os cristãos de origem pagã da recaída ao mundo e ao modo de vida anterior».95 Em virtude disso, ele é «ὁ ἀγαπητὸς ἡμῶν ἀδελφὸς/o nosso amado irmão». É uma demonstração tão afetuosa que alguns a tomam como prova cabal da autoria não-petrina dessa carta96. «Irmão», mais do que companheiro na fé, aponta para o companheiro de apostolado97, não obstante as dificuldades de caminhada98, mas que encontrara concórdia na Conferência de Jerusalém (At 15; Gl 2).99 Neste sentido, indica não tanto um irmão cristão, como em 2Pd 1,10, mas denota o «encargo» de Paulo, no «sentido técnico de companheiro de missão».100 O apelo ao apóstolo Paulo seria um recurso de busca de prestígio e autoridade por parte do «pseudo-Pedro»;101 mas também evidenciaria o apreço dos escritos paulinos pelos destinatários.102 Com tal apreço, Paulo torna-se então um bom exemplo, reforçado pelo uso da expressão «καθὼς καὶ/conforme também», em 2Pd 3,15.
3.2. A sabedoria de Paulo ao escrever (v.15c-d)
Chegamos ao ponto nevrálgico de toda essa perícope 2Pd 3,14-16. A «σοφία/sabedoria» dada a Paulo ecoa a linguagem que o próprio utilizou para si em 1Cor 3,10, e o uso de «δοθεῖσαν/foi dada» é um «passivo divino», do verbo «δίδωμι/dar», enfatizando que sua habilidade não provém de dotes naturais, mas da graça divina,103 acenando para o fato de que a sabedoria paulina não era conquistada por suas próprias mãos, mas algo que Deus lhe havia outorgado.104 Aqui há uma ligeira modificação da usual fórmula paulina «pela graça que me foi dada» (Rm 15,15, observar ainda o uso comum do verbo «γράφω/escrever») para a «sabedoria que lhe foi dada». Assim, ao explorar a temática da sabedoria concedida por Deus pelo «passivo teológico», relaciona-a à capacitação divina no Antigo Testamento para a realização de sua obra (Ex 31,3); portanto, mais uma vez equipara-se de forma inequívoca os escritos paulinos àqueles consagrados como canônicos pelo judaísmo e aceitos pelo Cristianismo nascente. Pois a sabedoria, neste caso, é revelação e inspiração.105 O emprego deste termo aqui também revela que essa virtude paulina «o torna mais apto para ser escutado» em assuntos da vida cristã,106 indicando o carisma apostólico de Paulo a respeito do conhecimento e do ensinamento acerca do Cristo Ressuscitado.107
Paulo aborda bastante o tema da sabedoria em suas epístolas, em especial na Primeira Epístola aos Coríntios: ele não desejava demonstrar sua própria capacidade intelectual, jactar-se de algo evidente (1Cor 2,1.4), mas enfatizar que Cristo é a nossa sabedoria (1Cor 1,24). Jesus é a fonte da verdadeira sabedoria (Ef 1,17). Esta é a sabedoria que Paulo evocava para instruir os neófitos e confirmar os já edificados na fé (Cl 1,28). O tema da «sabedoria dada» somente é encontrado em outra passagem das Escrituras: em Mc 6,2: «ἡ σοφία ἡ δοθεῖσα τούτῳ/a sabedoria que foi dada a este», referindo-se ao próprio Jesus. É um privilégio comentado fora do contexto canônico apenas por Policarpo aos Filipenses (3,2):
De fato, nem eu, nem qualquer outro como eu pode se aproximar da sabedoria do bem-aventurado e glorioso Paulo. O qual, estando entre vós, falando pessoalmente aos homens de então, ensinou acurada e fidedignamente acerca da palavra da verdade; e igualmente vos escreveu cartas. As quais, examinando, podereis edificar-vos na fé que vos foi dada.108
Esta é a sabedoria utilizada ao escrever... para quem? Pode ser uma carta em particular, embora isto seja difícil de verificar.109 Muitos são os estudiosos que concordam existir uma forma das cartas paulinas já no final do primeiro século; Clemente, Inácio e Policarpo, no século II, conhecem as cartas aos Romanos, Coríntios e Tessalonicenses.110 Ainda que a 2Pedro não seja autenticamente petrina, ela tem em mente o contexto da Primeira Epístola de Pedro. Tendo presente 1Pd 1,1 e 2Pd 3,1, poderia estar sendo endereçada também aos cristãos da Ásia Menor.111 Portanto, com o termo «ἔγραψεν ὑμῖν/vos escreveu», Pedro pode estar falando de uma carta de Paulo enviada às Igrejas da Ásia Menor, em um sentido mais genérico, sem definir ou pensar a destinatários geograficamente bem definidos, e poderia ser uma referência às epístolas que Paulo escreveu aos Gálatas, Efésios e Colossenses.112 Se se leva em consideração a possível ênfase em «τὴν τοῦ κυρίου ἡμῶν μακροθυμίαν/a longanimidade de nosso Senhor», relacionando com o tema da parusia do Senhor113, este se encontra apenas em 1Coríntios e 1Tessalonicenses.114 Karl Hermann Schelkle115 traz uma lista de passagens de exortações a não deixar de aproveitar a longanimidade de Deus (Rm 2,4; 3,25s; 9,22s; 11,22s), e outras como exortações à pureza na espera pela parusia (Rm 13,11-14; 1Cor 7,29-32; 2Cor 5,6-10; Ef 4,30s; Fl 2,15s; Cl 3,4; 1Ts 5,4-11; 2Tm 3,1-5; Tt 2,12-14), ampliando o leque e incluindo, portanto, Filipenses e duas Epístolas Pastorais. Porém, Charles Bigg116 lembra que se a ênfase recai em «ἄσπιλοι καὶ ἀμώμητοι/imaculados e irrepreensíveis», haveria um anseio em corrigir as desordens morais descritas no capítulo 2 da 2Pedro, e, assim, qualquer uma das cartas paulinas poderia estar sendo citada.
3.3. O Testemunho Escriturístico (v.6)
3.3.1. O empenho de Paulo (v.16a-c)
«Como também (ὡς καὶ) (faz)...», ou seja, da mesma forma que os amados destinatários, Paulo se empenhou, não só na vida cristã, mas em escrever acerca do que foi exposto anteriormente, a saber, a importância da santidade e a paciência do Senhor117, sendo uma grande virtude humana, a qual precisa ser exercitada na vida ética do cristão.118 O uso de «πάσαις/todas» e do artigo «ταῖς/as» é uma referência a todo o corpus paulinum como concluído por essa época.119 São, em definitivo, escritos «canônicos».120
O empenho de Paulo também é evidenciado por se dedicar tanto ao trabalho escriturístico que há alguns pontos difíceis de entender. Pontos difíceis é a tradução do hápax legomenon δυσνόητος (hápax em todo o Novo Testamento), que fala de algo que não pode ser facilmente compreendido.121 Encontramos na literatura cristã uma declaração bem semelhante com esse vocábulo em Similitudes de Hermas 9,14,4:
«Eu disse: Agora, Senhor, esclarece-me por que a torre não está edificada no chão, mas sobre a rocha e «a porta.» Ele respondeu: «Ainda, és ignorante e insensato! » Eu repliquei: «Senhor, tenho necessidade de te perguntar tudo, pois não consigo compreender absolutamente nada. Essas coisas são grandes, gloriosas e difíceis de serem compreendidas (δυσνόητα) aos homens».122
Este uso de «δυσνόητος/algo de difícil compreensão» pode ser uma referência à abordagem paulina sobre a liberdade cristã ou a assuntos escatológicos,123 ou ainda a outros temas que Paulo teria dado apenas «uma visão panorâmica», ao invés de deixá-los totalmente definidos, como o próprio «dia do Senhor», que também está presente aqui nesta carta (2Pd 3,10).124 Como visto na crítica textual, deve-se preferir «αἷς/as» a «οἷς/os»: se considerássemos a segunda leitura, teríamos alguns assuntos difíceis entre os que foram mencionados anteriormente nesta carta; mas a primeira leitura implica que em algumas cartas no corpus paulinum encontramos pontos difíceis. Isso seria mais uma evidência da existência deste corpo escriturístico. O cristão é, então, convidado a um empenho para compreender esses pontos. Este empenho em escrever, aliado à diligência sobre os últimos tempos, também se encontra delineado em duas passagens da Epístola de Barnabé (4,9 e 21,8.9):
Desejando escrever muitas coisas, não como mestre, mas como convém a quem ama, nada do que possuímos negligenciamos, apliquei-me a escrever (γράφειν ἐσπούδασα), como vosso humilde servidor. Estejamos atentos nestes últimos dias! Nada adiantará todo o tempo de nossa vida e de nossa fé, se agora, neste tempo de impiedade e na iminência dos escândalos, não resistirmos, como convém a filhos de Deus.
enquanto o belo vaso ainda está convosco, nada negligencieis das vossas coisas, mas buscai-as continuamente e cumpri todos os mandamentos, pois eles são dignos. Eis por que me esforcei em vos escrever. 125
3.3.2. O mau exemplo dos infiéis (v.16d-e)
Em contraposição ao bom exemplo de Paulo, temos agora o mau exemplo dos ignorantes e instáveis, «que abusam das Escrituras, interpretando-as arbitrariamente e utilizando-as para confundir aqueles que não estão ainda instruídos nem firmes na doutrina transmitida (1,21) ».126 Ignorante é a tradução de ἀμαθής, que se refere ao homem que não adquiriu uma educação formal, um inculto, não apenas do ponto de vista humano, mas daquela educação transmitida espiritualmente.127 Já «instável», é tradução do termo ἀστήρικτος, o qual define aquele que tende a mudar e hesitar em seus pontos de vista e atitudes. Alguém que por isso é um fraco, até mesmo «idiota», não guardando a sã doutrina.128
A atitude deplorável destes é salientada pelo fato de distorcerem as Escrituras, chegando a confundir e a «seduzir os ignorantes e impacientes»,129 mas, com isso, trabalham para a própria destruição.130 Essas pessoas, infelizmente, não receberam instrução suficiente na fé que os capacitasse a interpretar corretamente passagens difíceis nas Escrituras.131 Aqui temos o verbo «στρεβλόω/torcer», o qual denota a prática da tortura, torcendo ou esticando os membros de uma pessoa. Encontramos este sentido nas seis passagens da LXX: 2Sm 22,27; 3 Mc 4,14; 4 Mc 9,17; 12,3.11; 15,14.132 Portanto, eles mutilam as Escrituras, ao imporem uma interpretação própria, para seu próprio proveito licencioso, em detrimento da fé cristã e do seguimento de Cristo, não possuindo a humildade de aprender com os outros.133 Com isso, Pedro indica que «a Escritura não pode ser interpretada a bel-prazer, mas unicamente de acordo com o Espírito de Deus que a inspirou (1,20s) [...] em harmonia com a doutrina da Igreja».134 Policarpo, ao escrever para os filipenses, já reclama disso (7,1):
Todo aquele que não confessa que Jesus Cristo veio na carne, é anticristo; e aquele que não confessa o testemunho da cruz, é do diabo; aquele que distorce as palavras do Senhor para seus próprios desejos, e diz «não há ressurreição, nem julgamento», esse é primogênito de Satanás.135
É o triste empenho desses «falsos mestres»... Não fazem somente com as epístolas paulinas, mas também com as demais Escrituras. O uso de «γραφή/escrever», não importa se esteja no plural (como aqui) ou no singular, emprega-se no Novo Testamento para as Sagradas Escrituras e, portanto, há uma clara consideração dos escritos paulinos em pé de igualdade com as Escrituras do Antigo Testamento.136 Não há possibilidade de um uso diferente,137 mesmo para uma passagem problemática como Tg 4,5.138 O uso de «λοιπός/demais» refere-se a outro do mesmo tipo, funcionando como um adjetivo,139 e, contrariamente ao que diz Michael Green,140 inclui inequivocamente as cartas paulinas na categoria de «γραφαί/escritos» inspirados.141
Que «λοιπὰς γραφάς/outras escrituras» seriam essas? Certamente o Antigo Testamento - pelo menos os escritos proféticos,142 e também alguns do Novo Testamento, como os evangelhos,143 em especial os três primeiros, a carta de Tiago144 - e, obviamente, os escritos paulinos.145 Ao que tudo indica, já se estava valorizando as Escrituras de ambos os Testamentos.146
Existe um curioso uso de στρεβλόω e λοιπός juntos numa outra passagem das Similitudes de Hermas (9,2,7):
O que está atrás de ti não podes ver, mas contemplas o que está diante de ti; não te atormentes (στρεβλόω) pelo que não podes ver. Procura dominar as coisas que contemplas, e não te intrometas com o resto (λοιπός). Esclarecerei tudo o que te vou mostrar. Contempla, portanto, o resto (λοιπός)147
Isto aproxima ainda mais esta carta pseudo-petrina do período subapostólico; porém, ao mesmo tempo, torna-se uma das primeiras testemunhas de como os escritos paulinos são estimados como inspirados, normativos e autoritativos.148
A severidade do castigo por essa transgressão evidencia-se pelo fato de que estes são destinados «τὴν ἰδίαν αὐτῶν ἀπώλειαν/à sua própria perdição».149 Segundo Alois Stöger, essa advertência revela que estes que estão distorcendo as Escrituras, segundo seus interesses, «estão em perigo de condenação eterna».150 De uso favorito nessa carta, «ἀπώλεια/perdição» não fala de uma simples extinção da existência, mas de um eterno estado de tormento e morte.151 Não se trata aqui de erros menores de doutrina, mas do uso de falsas interpretações para justificar imoralidades; inclusive, o uso enfático de «ἰδίαν/própria» faz uma referência irônica a 2Pd 1,20, alertando que nenhuma profecia é de particular interpretação.152
De certa forma, a 2Pedro pode ser compreendida como uma defesa da veracidade da profecia, uma apologética refletindo o conflito entre «falsos mestres» e revelação autêntica. Assim, uma ideia acerca da inspiração envolve não somente a «responsabilidade» divina, mas também a coparticipação humana. E esta não fica circunspecta exclusivamente a teorias, mas envolve prática: incutir a reverência necessária para levar os fiéis ao arrependimento e à santificação.153 Mais ainda, a 2Pedro nos indica que o caminho mais seguro é «renunciar ao capricho e parecer próprios para deixar-se conduzir pelo Espírito Santo e pelo magistério da Igreja».154 Neste sentido, a 2Pedro tem uma abrangência muito ampla, em seu campo de atuação, pois representa uma «estratégia orgânica e eficaz, seja em relação aos fiéis cristãos, seja em relação aos falsos maestros».155
4. Conclusão
Ao efetuar a exegese nessa perícope, aplicando a Análise Retórica Bíblica Semítica, foi possível verificar a centralidade das escrituras paulinas e do problema acerca de sua correta interpretação. Longe de supervalorizar esses escritos, o hagiógrafo reclama que não somente esses são distorcidos, mas igualmente também as outras Escrituras. Havia uma ação de «falsos mestres» que estavam «torturando» as Escrituras, que provoca uma reação enérgica e incisiva do escritor dessa carta. É um problema agudo para a comunidade (ou comunidades) para a qual (as quais) este hagiógrafo escreve. Ainda que sejam pontos difíceis de serem compreendidos, estes não podem ser distorcidos ao bel-prazer de quem quer que seja.
Não é possível concluir de forma satisfatória a quais escritos paulinos estaria se referindo: se à totalidade ou a uma parte do corpus paulinum. Mas é possível concluir que eles são considerados como Escritura Sagrada, em pé de igualdade com o Antigo Testamento. Esta centralidade dos escritos paulinos, nessa perícope, evidencia o quanto estes gozam de imenso prestígio no meio dos destinatários e primeiros leitores dessa carta.
É possível verificar ainda, pela Análise Retórica Bíblica Semítica, a disposição concêntrica de dois temas: «amados» e «empenho». Se os «falsos mestres» se empenham em distorcer as Escrituras, devemos nos empenhar em compreendê-las; se Paulo é tão amado e querido no meio das comunidades, igualmente nós devemos ser amados por Deus, buscando ser achados, encontrados nele (Jesus) «imaculados e irrepreensíveis», para estarmos preparados para a sua vinda.
Viu-se também que a perícope 2Pd 3,14-16 comporta uma disposição quiástica, de opostos: somos os amados por Deus que devem se empenhar para o bem; os «falsos mestres» deixam de merecer o epíteto de amados por se empenhar em distorcer os escritos do «amado Paulo». Uma séria advertência para os últimos dias. Por isso, essa perícope fecha a longa seção que engloba todo o capítulo 3 da 2Pedro, que fala da vinda do Senhor.
Finalmente, foi possível extrair importantes conclusões acerca da datação dessa carta, que automaticamente também envolve a autoria. Somente nessa perícope, foi possível verificar uma quantidade significativa de termos paulinos - os destinatários são enormemente identificados com Paulo, como foi possível constatar acima. O debate acerca dos escritos paulinos pressupõe uma data avançada, quando esses escritos não somente já estão bem difundidos, mas também sua canonicidade está sendo bem delineada. Além disso, foram vistas muitas similaridades com a literatura tardia pós-apostólica. Todos estes dados colocam essa carta para uma data avançada, entre o final do primeiro século e o início do segundo século da era cristã. Portanto, não pode ser o Pedro histórico o autor dessa carta e sim um outro escritor, membro da escola petrina.