Introdução
O câncer infantil corresponde a um grupo de várias doenças que têm em comum a proliferação descontrolada de células anormais e que pode ocorrer em qualquer local do organismo 1-3. No Brasil, para cada ano do triênio 2020-2022, estima-se uma incidência de 8.460 novos casos 4. Nesse contexto, a leucemia linfóide aguda (LLA) é a neoplasia mais frequente, seguida de tumores do sistema nervoso central (SNC) e linfomas 5-7.
O câncer infantil geralmente afeta as células do sistema sanguíneo e os tecidos de sustentação, que em geral, são constituídas de células indiferenciadas, resultando, na maioria dos casos, em uma melhor resposta aos métodos terapêuticos 4. Dessa forma, associado aos progressos no tratamento oncológico, atualmente, se diagnosticados em estágios iniciais, cerca de 80% dos pacientes podem ser curados 4,6,8.
As modalidades de tratamento das neoplasias malignas mais comumente utilizadas são a cirurgia, radioterapia (RT) e quimioterapia (QT), isoladas ou combinadas 9. Nesse contexto, ademais das células neoplásicas, a QT e a RT atuam também sobre estruturas normais, principalmente as que sofrem maior número de divisão celular, como por exemplo a mucosa oral 10. Por esta razão, muitos efeitos colaterais da terapia antineoplásica podem se manifestar na cavidade oral 10,11. A incidência e a gravidade dessas toxicidades dependem de fatores como idade do indivíduo, tipo de neoplasia, modalidade terapêutica, tipo de quimioterápico, condição da cavidade oral anterior ao tratamento e nível de cuidado oral durante a terapia antineoplásica 5,6,12-14.
As toxicidades orais agudas mais comuns são a mucosite, hemorragia, infecção, xerostomia, neurotoxicidade e disgeusia 5,6,15,16. Tais toxicidades resultam em desconforto, dor, comprometimento da nutrição, redução da qualidade de vida, interrupções/atrasos/alterações nos tratamentos oncológicos, que consequentemente, afetam negativamente o prognóstico, e aumentam o tempo e os custos com hospitalização 17. Desta forma, o objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência de toxicidades orais decorrentes do tratamento oncológico em crianças e adolescentes atendidos no Hospital Estadual da Criança (HEC), no período de 2016 a 2017.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo observacional do tipo descritivo, retrospectivo, baseado em dados secundários dos registros de prontuários médicos. Pacientes portadores de outras doenças que não as neoplasias malignas ou de doença mental e indígenas não foram incluídos neste estudo.
O HEC está localizado na cidade de Feira de Santana, Bahia e oferta atendimento médico voltado para especialidades pediátricas de média e alta complexidade, incluindo a Oncologia. Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana, sob parecer n° 035/2009.
Inicialmente foram identificados 65 prontuários de crianças e adolescentes atendidos na unidade de terapia oncológica do HEC, no período de 2016-2017. Após a aplicação dos critérios de elegibilidade, 58 casos compuseram a população final deste estudo.
A coleta de dados foi realizada através de formulário específico, validado por meio de um estudo piloto com 5% dos casos. As variáveis estudadas foram: a) sociodemográficas (idade, sexo, raça, local de residência, situação de trabalho do pai e da mãe, renda familiar mensal, abastecimento de energia, esgotamento sanitário e recolhimento de lixo); b) relacionadas à neoplasia (tipo de neoplasia maligna e localização) c) relacionadas às toxicidades orais (tipo de toxicidade, localização anatômica, sintomatologia e tratamento); d) relacionadas ao tratamento oncológico (modalidade terapêutica, medicamentos utilizados e status de sobrevida).
Os dados foram submetidos à análise descritiva, utilizando o programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) na versão 17.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA). Para as variáveis qualitativas foram utilizadas tabelas de frequência, com suas respectivas porcentagens, enquanto que para as variáveis quantitativas foram adotadas medidas descritivas, tais como média e desvio padrão. Ademais, foi realizado teste χ2 de Fisher para comparar as variáveis: tipo de neoplasia e modalidade terapêutica com o status de sobrevida; tipo de neoplasia e status de sobrevida com as condições socioedemográficas (local de residência, situação de trabalho do pai e da mãe, renda familiar mensal, abastecimento de energia, esgotamento sanitário e recolhimento de lixo). Para esta análise, foi adotado nível de significância de 5%, onde p≤0,05 foi considerado significativo.
Resultados
Neste estudo, foram identificados 58 crianças e adolescentes. A maioria era do sexo feminino (53%) e de cor não branca (100%). A média de idade foi de 6,62 (±4,73) anos, com maior número de casos na faixa etária de 3-5 anos (28%) (Tabela 1). As famílias eram provenientes sobretudo da zona urbana (66%) e possuíam renda familiar mensal ≤ 1 salário mínimo (60%), estando 85% dos pais e 41% das mães ocupacionalmente ativos. Quanto às condições de moradia, 100% possuía rede elétrica própria na residência, 56% contavam com tratamento de rede de esgoto na moradia e 86% com a coleta seletiva de lixo (Tabela 1).
a= 4 dados perdidos; b= 11 dados perdidos; c= 10 dados perdidos; d= 7 dados perdidos; e= 8 dados perdidos; f= 9 dados perdidos
Dentre as neoplasias que acometeram a população estudada, a LLA foi a mais frequente (38%), seguida dos tumores do SNC (19%) e da leucemia mielóide aguda (LMA) (17%). Quanto à localização, o sítio mais afetado foi a medula óssea (60%) (Tabela 2). A QT isolada foi a modalidade terapêutica mais empregada (67%), seguida da terapia combinada entre cirurgia e QT (16%). A citarabina (60%) e a vincristina (56%) foram os quimioterápicos mais prescritos. Ao analisar o status de sobrevida, 41% dos indivíduos apresentaram remissão parcial da doença e 37% foram a óbito (Tabela 3).
a= 1 dado perdido; b= 3 dados perdidos.
*Tumores do Sistema Nervoso Central= 3 Tumores troncoencefálicos, 2 Ependimomas, 2 Gliomas, 1 Astrocitoma, 1 Craniofaringeoma, 1 Germinoma e 1 Tumor de células germinativas do sistema nervoso central
a= 6 dados perdidos e todos os pacientes foram tratados com mais de um medicamento;
b= 4 dados perdidos;
**Outros= 1 caso de Bleomicina, Dacarbazina, Dactinomicina, Imatinibe, Paclitaxel, Topotecano e Vimblastina, cada
Durante o tratamento antineoplásico, 23 (40%) crianças e adolescentes exibiram alguma toxicidade oral e destes, 4 (17,4%) tiveram o tratamento oncológico interrompido por esta razão. Estes 4 pacientes evoluíram com status de sobrevida: doença estável, remissão parcial, retomada do tratamento e um não possuía informação sobre esta variável. A mucosite oral esteve presente em 50% dos casos e a candidíase em 34%, acometendo sobretudo os lábios (55%), mucosa jugal (36%) e língua (32%). Os principais sintomas associados às toxicidades orais foram a dor (64%) e a disfagia (45%) (Tabela 4). Dentre eles, 18 (78%) realizaram tratamento para as toxicidades orais, sendo a nistatina o medicamento mais prescrito (88,9%), de forma isolada ou associada a outras terapêuticas.
a= 7 pacientes apresentaram 2 toxicidades associadas e 1 apresentou 3;
b= 1 dado perdido e 10 pacientes apresentaram acometimento de mais de uma localização;
c= 12 dados perdidos e 4 pacientes apresentaram 2 sintomas
Ao analisar o status de sobrevida com o tipo de neoplasia (p= 0.432) e a modalidade terapêutica (p= 0.08), não houve associação entre as variáveis. A análise do tipo de neoplasia em relação às condições sociodemográficas também não resultou em associações estatisticamente significantes: local de residência (p= 0.74); situação trabalho pai (p= 0.94) e da mãe (p= 0.21); renda familiar mensal (p= 0.49); abastecimento de energia (p= 0.76); esgotamento sanitário (p= 0.92); e recolhimento de lixo (p= 0.30). Por fim, a análise do status de sobrevida e as variáveis sociodemográficas evidenciou associação estatisticamente significante para o local de residência (p= 0.03), enquanto que para as demais variáveis não houve associação: situação trabalho pai (p= 0.61) e da mãe (p= 0.70); renda familiar mensal (p= 0.06); abastecimento de energia (não foi possível calcular); esgotamento sanitário (p= 0.31); e recolhimento de lixo (p= 0.07).
Discussão
As neoplasias malignas em crianças e adolescentes, em países dos diferentes continentes, tende a acometer com maior frequência o sexo masculino, sobretudo no primeiro ano de vida, ou entre o segundo e terceiro anos 18-20. No presente estudo observou-se maior número de casos em indivíduos do sexo feminino (53%) e com idade entre 3 e 5 anos (28%) seguida de 0 a 2 anos (26%), entretanto, deve-se ressaltar que essas diferenças foram pequenas e considerar o número reduzido de indivíduos estudados.
Os principais fatores de risco associados ao desenvolvimento do câncer em crianças e adolescentes são os fatores genéticos herdados ou mutações adquiridas de causa incerta, ademais dos fatores exógenos como agentes físicos, químicos e biológicos 4,21. Apesar da existência de potenciais fatores de risco por exposição intrauterina da criança, não existem evidências científicas suficientes que suportem a associação entre o câncer infantil e os fatores ambientais. Dessa forma, a prevenção do câncer infantil ainda é um desafio e a ênfase atual na abordagem a esse tipo de câncer deve ser dada ao diagnóstico precoce e encaminhamento imediato para um tratamento oportuno e de qualidade, que possibilite maiores taxas de cura 21.
No presente estudo, observou-se associação estatisticamente significante entre o status de sobrevida e o local de residência. Nessa perspectiva, outros autores já haviam relatado que condições socioeconômicas desfavoráveis podem ser agravantes às dificuldades já impostas pelo câncer 22, como influenciar no acesso a serviços de diagnóstico, seja por falta de conhecimento ou pela distância. Os indivíduos deste estudo residiam sobretudo em zona urbana, com renda mensal de no máximo um salário mínimo e com acesso a saneamento básico. Ademais, observou-se que a maioria dos pais eram ocupacionalmente ativos, enquanto as mães eram majoritariamente inativas. Esse quadro provavelmente está relacionado ao fato da mãe ser a principal cuidadora dos filhos, ou seja, são elas que costumam levar as crianças às consultas e realizar os demais cuidados (2), enquanto que os pais tornam-se os provedores da renda. Além disso, Cheng et al. (2008) relatam que um estado socioeconômico desfavorecido está geralmente relacionado a uma condição bucal mais desfavorável e a uma maior prevalência de cáries, o que aumenta o risco de complicações durante a terapia oncológica 23.
No que diz respeito ao tipo, a LLA é considerada a neoplasia mais frequente em crianças e adolescentes 20, seguida dos tumores do SNC, corroborando nossos resultados. Outras neoplasias malignas que acometem frequentemente esta população são o neuroblastoma, tumor de Wilms, retinoblastoma, tumor germinativo e sarcomas, que também foram encontradas no nosso estudo 5-7. Além disso, destacamos a presença de um caso de osteossarcoma em mandíbula, considerado um tumor raro tanto pelo acometimento da região de cabeça e pescoço, quanto pela faixa etária 21,24.
De forma geral, o tratamento das neoplasias pode abranger a cirurgia, a RT e a QT, sendo a QT empregada em cerca de 70% dos casos 18,25, corroborando nossos achados. Os quimioterápicos mais prescritos para os pacientes do presente estudo foram a citarabina e a vincristina, que são drogas integrantes dos protocolos empregados para o tratamento da LLA 6, neoplasia mais frequente no nosso estudo. Dentre os pacientes analisados, 41% apresentaram remissão parcial da doença e 37% evoluíram para óbito. Nesse sentido, é importante ressaltar que apesar do progresso nos tratamentos oncológicos e o maior acesso oferecido à população, o câncer ainda é considerado a principal causa de morte por doença entre crianças e adolescentes no Brasil 21.
Apesar das evoluções, a RT e a QT atuam destruindo ou inibindo o crescimento de células com elevado índice mitótico, sem diferenciar células tumorais das saudáveis causando, assim, toxicidades em outras partes do organismo, como na cavidade oral 18. Neste contexto, as crianças tendem a ser três vezes mais susceptíveis a essas toxicidades e dentre elas, as mais incidentes são a mucosite, infecções oportunistas, sangramento, xerostomia, dor, alterações de sabor, neuropatias e trismo 20, corroborando nossos achados.
De forma geral, os resultados do nosso estudo a respeito das toxicidades orais corroboram a literatura. A mucosite possui incidência variável entre 10 e 100% nas diferentes modalidades terapêuticas e especificamente em pacientes tratados com QT, acomete cerca de 40% dos indivíduos 18,20. Dentre os quimioterápicos, o metotrexato, a ciclofosfamida, doxorrubicina, bleomicina, vimblastina, vincristina e o 5-fluorouracil são considerados estomatotóxicos, e estão mais relacionados com o surgimento da mucosite oral 5,6. As lesões podem variar entre eritema e úlceras, que acometem sobretudo regiões de epitélio não-queratinizado, como mucosa jugal, assoalho de boca e ventre de língua. Entratenado, nos casos mais graves as superfícies queratinizadas também podem ser afetadas 26. Dessa forma, a perda de continuidade do epitélio, associada a imunossupressão e a redução do fluxo salivar, contribuem para o aparecimento de infecções oportunistas 27-30. Nesse contexto, a candidíase é a infecção fúngica mais frequente 20.
Segundo a Multinational Association of Supportive Care in Cancer, apesar de ainda não ser possível estabelecer um guideline, estudos recentes demonstraram eficácia da terapia de fotobiomodulação no tratamento da mucosite oral em pacientes pediátricos 31. Entretanto, em muitos centros essa terapia não pode ser empregada pela ausência do equipamento ou de profissionais habilitados. Desta forma, o manejo da mucosite oral passa a ser paliativo, por meio do controle dos sintomas através de anestésicos tópicos e analgésicos sistêmicos. Além disso, atua-se na prevenção de infecções secundárias através de instrução de higiene oral, prescrição de antifúngicos tópicos e enxaguatórios à base de clorexidina a 0,12% e no tratamento específico para os quadros de infecção já instaladas 20,32,33.
Diante da presença de lesões de mucosite e infecções oportunistas, os pacientes apresentam quadro clínico que envolve sintomas de dor, queimação e disfagia 34. Este quadro pode acarretar em uma nutrição inadequada, conduzindo o paciente a perda de peso, anorexia, caquexia e desidratação 24. Dessa forma, as toxicidades orais podem resultar em atrasos na administração, limitações de dosagens dos quimioterápicos, aumento do tempo de hospitalizações e dos custos do tratamento 17,20,35, como pôde ser observado em 17,4% dos pacientes deste estudo. Nesse sentido, a atuação do cirurgião-dentista durante a terapia oncológica auxilia na continuidade do tratamento, com melhor qualidade de vida, e consequentemente, contribui para um melhor prognóstico e sobrevida do indivíduo 36.
Dentre os sobreviventes do câncer infantil, aproximadamente 75% terão um problema crônico de saúde resultante da terapia oncológica 37. Nesse contexto, o cirurgião-dentista deve estar atento para diagnosticar e manejar as toxicidades orais tardias através de estratégias individualizadas. Especificamente para pacientes submetidos a RT em região de cabeça e pescoço ou QT associada a irradiação de corpo inteiro antes de 5-6 anos, costumam ser observadas alterações no desenvolvimento cranio facial e alterações na formação dentária 20.
Devido às limitações próprias deste modelo de estudo, não se permite fazer associações de causalidade entre as variáveis estudadas, uma vez que trata-se de um estudo descritivo. Desta forma, são necessários novos estudos longitudinais, que permitam um melhor entendimento a respeito dos fatores associados às neoplasias e toxicidades orais em crianças e adolescentes. Complementarmente, por ser um estudo baseado em dados secundários dos prontuários médicos, ressalta-se a importância do correto e completo preenchimento destes documentos.
Apesar disto, os resultados do presente estudo evidenciam a importância da inserção do cirurgião-dentista na equipe multiprofissional, a fim de atuar no preparo odontológico para o tratamento oncológico, bem como diagnosticar e manejar as toxicidades orais agudas e crônicas. Ademais, ressalta-se a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas específicas voltadas para a saúde bucal deste grupo específico de pacientes.
Conclusões
Dentre as 58 crianças e adolescentes que receberam tratamento oncológico no HEC no período 2016 e 2017, 40% apresentou toxicidades orais e 4 tiveram o tratamento antineoplásico interrompido por esta razão. A mucosite e a candidíase foram as mais comuns, acometendo principalmente os lábios e associadas a dor. A nistatina foi o medicamento mais utilizado para o manejo. A presença destas toxicidades orais indica a necessidade de um cirurgião-dentista na equipe multiprofissional de tratamento do paciente oncológico infanto-juvenil. Consultas pré-tratamento, adequação do meio bucal e acompanhamento odontológico sistemático são primordiais para prevenção, controle e tratamento destas toxicidades.