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Pedagogía y Saberes

Print version ISSN 0121-2494

Pedagogía y Saberes  no.46 Bogotá Jan./June 2017

 

Artículo de reflexión

José Marti', Paulo Freire e a construção de um imaginário pedagógico latino americano

José Martí, Paulo Freire y la construcción de un imaginario pedagógico latinoamericano

José Martí, Paulo Freire and the Construction of a Latin American Pedagogical Imaginary

Danilo R. Streck*

* Doctor en Fundamentos Filosóficos de la Educación, Posdoctorado, University of California UCLA e Max-Planck Institute for Human Development, Berlin. Profesor Titular Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: danilo@unisinos.br Perfil ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9848-0724.

Fecha de recepción: Julio 12 de 2016 Fecha de aprobación: Diciembre 22 de 2016


Resumo

O artigo analisa a contribuição de José Martí e Paulo Freire para a constituição de um imaginário pedagógico latino-americano. São destacados três aspectos: a] a América Latina como um lugar de elaboração pedagógica, tendo nestes dois intelectuais ideias que dão suporte para esta elaboração; b] a questão da contemporaneidade da educação na América Latina, onde convivem diferentes temporalidades; c] a presença de uma visão pedagógica cosmopolita crítica. Como conclusão, afirma-se a necessidade de manter a tensão entre o respeito ao legado e a capacidade e disponibilidade para recriar, encontrando-se na radicalidade do pensamento de Martí e Freire duas condições importantes para isso: a liberdade em relação a cânones cerrados e a liberdade para pensar a experiência de vida e a prática.

Palavras chave: José Martí; Paulo Freire; pedagogia latino-americana; imaginário pedagógico.


Resumen

El artículo analiza la contribución de José Martí y Paulo Freire en la constitución de un imaginario pedagógico latinoamericano. Se destacan tres aspectos: a] América Latina como lugar de elaboración pedagógica, que tiene, en estos dos intelectuales, ideas que soportan esta propuesta; b] la cuestión de la contemporaneidad de la educación en América Latina, donde conviven diferentes temporalidades; c] la presencia de una visión pedagógica cosmopolita crítica. Como conclusión, se afirma la necesidad de mantener la tensión entre el respeto al legado y la capacidad y disponibilidad para recrear, encontrando dos condiciones importantes para eso en la radicalidad del pensamiento de Martí y Freire: la libertad en relación a cánones cerrados y la libertad para pensar la experiencia de vida y la práctica.

Palabras clave: José Martí; Paulo Freire; pedagogía latinoamericana; imaginario pedagógico.


Abstract

The article analyzes the contribution of José Martí and Paulo Freire for the constitution of a Latin American pedagogical imaginary. There are highlighted three aspects: a] Latin America as a locus of pedagogical production having, in these two intellectuals, the ideas serving as basis for this proposal; b] the coexistence of different temporalities in Latin America, and its implication for education; c] the presence of a critical cosmopolitan pedagogical vision. In the conclusion it is argued that it is fundamental to keep in tension the respect for the legacy, and the capacity and willingness to recreate. The radical thought of Martí and Freire provides two important conditions for carrying out this task: the freedom in relation to closed canons, and the freedom to reflect on one's life experience and practice.

Key words: José Martí; Paulo Freire; Latin American pedagogy; pedagogical imaginary.


Introdução

Esta reflexão1 pretende contribuir para alargar as possibilidades de se pensar a educação na América Latina.2 Temos, hoje, crescente volume de pesquisas que nos informam sobre números e causas da evasão escolar, sobre a situação dos docentes e nossas escolas, entre inúmeras outras; temos pensamentos filosóficos sofisticados sobre o conhecimento e aprendizagem; temos tecnologias cada vez mais avançadas disponíveis para o ensino; temos políticas públicas que buscam soluções em meio à realidade impregnada de contradições. No entanto, temos também consciência de que essas ferramentas, frutos da racionalidade científica e de negociações políticas, não são suficientes para enfrentar os desafios que temos no campo da educação.

Tomo como pressuposto que José Martí e Paulo Freire são pensadores-educadores latino-americanos que podem nos ajudar a vislumbrar horizontes contra os quais enxergar melhor nossas convergências e divergências, e nossas esperanças e frustrações. O conceito imaginário é usado aqui não em contraposição à razão ou ao pensamento, mas no intuito de reconhecer, como argumenta Castor Ruiz (2003], que o pensamento lógico sempre se encontra implicado em formas simbólicas. "O imaginário remete a um sem fundo humano criador que se expressa de modo simbológico. Um sem fundo humano que não se explica de modo absoluto que se implica sempre de modo criativo em tudo que realiza" (p. 15]. O uso do conceito com esta acepção sinaliza, portanto, a abertura para a criatividade em se pensar a educação na América Latina.

José Martí (1853-1895] e Paulo Freire (1921-1997] contam entre os maiores expoentes da intelectualidade latino-americana. Ambos protagonizaram uma práxis radical que se estende para muito além de seu tempo e contexto. O espaço do artigo não permite um estudo comparativo de como cada um deles se moveu nas sociedades de sua época. Por outro lado, temos um grande número de estudos biográficos e sobre suas obras, o que nos permite trazê-los em diálogo pressupondo o acesso a este material. O acento estará em algumas convergências mais facilmente identificáveis, deixando para outros estudos o aprofundamento de diferenças que vão desde a sua formação às estratégias de ativismo político-pedagógico.

Nesta análise são destacados três aspectos de suas obras. Em primeiro lugar, a leitura da realidade na qual se realiza a prática educativa. Argumenta-se, nesse sentido, que nossa América constitui tanto o chão quanto o horizonte da prática educativa. Cabe, no entanto, perguntar sobre o que significa afirmar a América Latina como um lugar próprio, sem cair na xenofobia ou num exotismo vazio. A América Latina vai se colocando, no mundo, também como um lugar de produção pedagógica. Essa questão adquire novos contornos e novas urgências diante das políticas e estratégias de internacionalização na educação e das discussões sobre (des)colonialidade (Mota Neto, 2016).

Um segundo ponto a ser explorado tem a ver com a preocupação de ambos em não divorciar a educação do tempo em que se realiza. Para Martí o divórcio entre a educação de seu tempo e seu tempo é nada menos que criminoso; para Freire uma das coisas mais lastimáveis é alguém ser um exilado de seu tempo. Essa discussão tem importantes implicações para o modo de conceber, hoje, a relação entre educação e um padrão de desenvolvimento concebido como único e linear.

Em terceiro lugar, ambos testemunham a luta por um cosmopolitanismo crítico, fundado em uma visão de mundo igualitária e defensora das diferenças. As experiências do exílio a que ambos foram submetidos lhes serviram de estímulo para enxergar as realidades particulares e locais dentro de um contexto social e político mais amplo. Repor essa dimensão no imaginário pedagógico é fundamental num período quando sectarismos e fundamentalismos religiosos, políticos e étnicos defendem exclusões e separações com base em imagens estereotipadas do outro.

A América Latina como o lugar de produção pedagógica

A América Latina coloca-se como verdadeiro enigma que, não raro, devora a quem julga ter encontrado a chave mágica que dá acesso a seus mistérios. Quando a globalização eurocêntrica parecia tomar conta do mundo, o movimento indígena ganhava força em vários pontos do continente e na Bolívia era eleito o primeiro presidente oriundo do povo conquistado. Na religião, o subterrâneo apresenta uma vasta riqueza de experiências invisíveis para a o mundo eclesiástico e para as estatísticas oficiais. O movimento da educação popular continua revelando práticas pedagógicas de resistência e de reinvenção do social desconhecidos nos manuais didáticos.

Talvez por isso tenha razão Britto García quando afirma que a América Latina é um continente incomunicado. "América está triplemente incomunicada: por fronteras geopolíticas, por abismos entre clases sociales, por barreras que separan a la América revolucionaria de la populista y de la neoliberal" (Britto, 2002, p. 21). Conhecemos pouco sobre nós mesmos e muito do que sabemos de nós ou do que outros sabem de nós vem através do que outros dizem de nós, de especialistas em América Latina em centros geralmente situados no Norte. Em levantamento do referido autor, existiam nos Estados Unidos cerca de duas centenas de centros especializados em América Latina, enquanto que na América Central, na América do Sul e no Caribe, estes mesmos centros não eram mais do que duas dezenas. Com certeza há distintos interesses que promovem estes estudos, mas eles indicam sobretudo a nossa fragilidade em nomearmos o nosso mundo.

Nos escritos de José Martí encontramos a preocupação com o conhecimento de nossa realidade, descrita com metáforas vibrantes. A nossa América aparece como um lugar estancado, proibido de ser e de dizer. Como nas profundezas de um vulcão adormecido, prepara-se o momento da erupção, quando o melhor de cada um dos povos que aqui vivem será posto junto para formar esta nova pátria e humanidade sob a divisa: "Universo = o vário no uno." Numa conversa com Nicolás Heredia, nas vésperas da guerra, em 1895, este lhe lembrava que em Cuba não existia a atmosfera favorável imaginada pelos revolucionários, ao que Martí teria respondido: "Mas você está falando da atmosfera e eu falo do subsolo" (Vitier, 2000, p. 10).

Essa incomunicação vale para todos os campos de conhecimento e não por último para a pedagogia. Sabemos como o pensamento pedagógico latinoamericano é caudatário de teorias vindas de fora que, antes mesmo de criar raízes, são trocadas por outras. José Martí, vivendo em Nova York, não se fechava para as novidades que vivenciava, mas defendia que as mesmas deveriam ser enxertadas num "tronco que há de ser o de nossas repúblicas" (2007, p.53). Embora ele não tenha deixado uma teoria pedagógica sistematizada, os escritos sobre educação revelam seu pioneirismo no sentido de ver a realidade latinoamericana e caribenha como lugar de produção pedagógica. Onde essa preocupação fica muito evidente é na revista para crianças, La edad de oro. Ali Martí exemplifica o que as crianças deveriam aprender, como deveriam ser ensinadas e para que deveria servir a sua educação. No primeiro número de La Edad de Oro, Martí (2001a,) expõe assim o objetivo da revista:

Para que los niños americanos sepan cómo se vivía antes, y se vive hoy, en America, y en las demás tierras; y como se hacen tantas cosas de cristal y de hierro, y las máquinas de vapor, y los puentes colgantes, y la luz eléctrica (...). (p.1).

As crianças não deveriam ver nada, tocar em nada e pensar em nada que não soubessem explicar. Martí vê as crianças como quem "sabe querer", a qualidade que as torna a esperança do mundo. As crianças sabem muitas coisas e a revista deveria ser um meio de elas contarem aquilo que sabem. Por isso ele incentiva que enviem cartas, não importando que as mesmas tenham erros de ortografia. Os meninos da América deveriam aprender a dizer o que pensam, e a dizê-lo bem.

Embora não encontremos em Paulo Freire uma referência explícita a José Martí, sua obra reflete a preocupação de não copiar um método de alfabetização entre os muitos disponíveis. O ponto de partida para a prática educativa, segundo ele, não pode ser outro que não seja a realidade cultural e social do educando. A investigação do universo temático para identificar os temas geradores nos quais, por sua vez, seriam identificadas as palavras "grávidas de mundo" para o processo de alfabetização parte do pressuposto de que o analfabeto não vive num vazio de cultura e nem num estado de ignorância absoluta. O alfabeto é uma parte do mundo a que o educando tem direito, mas que só fará sentido se for integrado em seu mundo de vida concreto como mais um instrumento para lidar com a sua realidade.

Sabemos, no entanto, que Paulo Freire não reclamava para si grande ineditismo na criação de um método de alfabetização. Para ele, a -depois controvertida- conscientização era uma maneira de alargar e aprofundar a consciência do mundo, reconhecendo os mecanismos objetivos e subjetivos que impediam a "transitividade" consciência- mundo e, portanto, um assumir-se como sujeitos em e de suas histórias. É esta perspectiva pedagógica que, posta em prática de forma sistematizada, representa o que pode ser considerado um passo importante na consolidação de um pensamento pedagógico na América Latina e que se expressa sobretudo no movimento de educação popular.

Dentre as características desta perspectiva pedagógica podem ser destacadas duas que se encontram de forma recorrente nas definições de educação popular: a condição de não-neutralidade ideológica e política do ato educativo e o diálogo como princípio metodológico central. No caso da não neutralidade, trata-se de confrontar-se com o ato educativo como uma prática social e culturalmente situada, o que na América Latina passa pelas históricas desigualdades, discriminações e exclusões. Significa ainda reconhecer a legitimidade e autoridade que quem busca mudanças nesta realidade. Por isso, não é mais uma pedagogia para o oprimido, mas uma pedagogia do oprimido.3 Seja a história esquecida dos incas, fato que Martí denunciava, ou os temas geradores como queria Paulo Freire, o importante é que a educação esteja enraizada no chão da vida das pessoas de carne e osso, e não mais num abstrato e universal Emílio roussoniano. Nesse sentido, Enrique Dussel (1998) argumenta que com Paulo Freire se dá uma revolução copernicana em pedagogia, que ainda estaria longe de ser compreendida, no sentido de que é o educando que se educa no próprio processo social graças à sua constituição como sujeito histórico.

Outra característica desta pedagogia é a aposta em metodologias dialógicas e participativas com os instrumentos necessários para quebrar o autoritarismo nas diversas esferas da vida social e para instituir outras formas de convivência e de organização social. Em Martí, este diálogo passa pela relação ao mesmo tempo profissional/técnica e amorosa dos educadores com seus educandos. Como ele resume em Os mestres itinerantes: "Eis aqui, pois, o que devem levar os mestres pelos campos. Não somente explicações agrícolas e instrumentos mecânicos, mas a ternura, que faz tanta falta e tanto bem aos homens" (Martí, 2007, p. 42). Seria a ternura, afinal, a condição para fazer correr o sangue coagulado nas veias do povo.

Para Paulo Freire (1981) o diálogo "é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu" (p. 93). Segue-se então uma relação de precondições para que este diálogo como ato criador ocorra: um profundo amor ao mundo e às pessoas; a humildade; uma intensa fé nas pessoas, na sua capacidade de fazer e criar; o clima de confiança; um mover-se na esperança e um pensar crítico.

Nessa discussão sobre a América Latina e o Caribe como lócus de produção pedagógica muitos outros nomes poderiam ser trazidos, desde o mestre de Simón Bolívar, Simón Rodríguez, a educadoras como a cubana Maria Luíza Dolz. O desafio, como bem lembrou Adriana Puiggrós (2010), consiste em "povoar" o deserto do território simbólico com o sobre o qual trabalhamos. Nas palavras desta historiadora argentina:

Para promover nuevos sujetos en la arrasada tierra de la educación Latinoamericana, no es suficiente convocar a las nuevas generaciones. Es necesario nombrar las del pasado, reubicarlas y reubicarnos frente a ellas y con ellas. Solo así lograremos que el aspecto de un pasado irresuelto se torne sedimento productivo para la continuidad de nuestra historia. (p. 103).

É descobrir que sob as cinzas há muitas brasas vivas (Streck, 2006), esperando para serem incorporadas no nosso imaginário pedagógico.

Educação e contemporaneidade

Vivemos na América Latina a permanente sensação de que não somos verdadeiramente filhos de nosso tempo. Estamos sempre atrasados em relação a alguém que muitas vezes nem conseguimos vislumbrar, o que também faz com que tenhamos a impressão de viver numa terra e num tempo emprestados. José Martí e Paulo Freire colocam a questão da contemporaneidade da prática educativa como central em suas reflexões.

Num artigo sobre as escolas de eletricidade na cidade de Darmstadt, na Alemanha, no ano de 1883, Martí descreve sua visão da nova universidade para a nova sociedade:

É criminoso o divórcio entre a educação que se recebe em uma época e a época (...). Educar é depositar em cada homem toda a obra humana que lhe antecedeu: é fazer de cada homem o resumo do mundo vivente, até o dia em que ele vive: é pô-lo em nível de seu tempo para que flutue sobre ele e não deixá-lo debaixo de seu tempo, com o que não poderá sair a flutuar; é preparar o homem para a vida. (Martí, 2007, p. 81).

Embora não concordasse com o transplante de tecnologias, Martí sentia que o mundo estava passando por mudanças das quais os povos no sul da América não poderiam ficar à margem. O grande desafio, que de certa forma continua, é como se inserir neste mundo em mudanças sem abdicar dos elementos culturais próprios. Daí também a sua insistência na formação de lideranças capazes de verdadeiramente "fundar" povos nesta parte do mundo.

Paulo Freire, ao dialogar sobre o papel dos modernos meios de comunicação na educação, ecoa as palavras de Martí:

Tenho a impressão de que o melhor que posso dizer, no começo da minha reflexão em torno desse problema, é: uma das coisas mais lastimáveis para um ser humano é ele não pertencer a seu tempo. É se sentir, assim, um exilado de seu tempo. (Freire, 1984, p. 14).

Ele testemunhou esse esforço de fazer cada criança uma pessoa de seu tempo quando, na qualidade de secretário de educação da cidade de São Paulo, procurou aliar a capacitação dos professores com a dotação das escolas de modernos instrumentos e recursos didáticos. O desafio, dirá ele, que cada pessoa tem como tarefa histórica:

é assumir o seu tempo, integrar-se, inserir-se no seu tempo. Para isso, porém, mais uma vez, eu chamo a atenção dos moços para o fato de que a melhor maneira de alguém assumir o seu tempo, e assumir também com lucidez, é entender a história como possibilidade. (Freire, 1991, p. 89).

Vivendo um século depois de Martí, quando a ciência hegemônica deixa ver com mais clareza os seus limites, Freire tem condições de reconhece a coexistência de temporalidades diferentes na América Latina. Sua teoria pedagógica reflete "o encontro de tempos" (Streck, 2001) que se vive hoje, onde se interpenetra o tradicional, o moderno e o pós-moderno.

Minha terra é a coexistência dramática de tempos díspares, confundindo-se no mesmo espaço geográfico - atraso, miséria, pobreza, fome, tradicionalismo, consciência mágica, autoritarismo, democracia, modernidade e pós-modernidade. O professor que na universidade discute a educação e a pós-modernidade é o mesmo que convive com a dura realidade de dezenas de milhões de homens e de mulheres que morrem de fome. (Freire, 1995, p. 26).

No sentido de Boaventura de Sousa Santos (2004, p. 791), sua pedagogia respeita a ecologia de temporalidades. Por um lado, ela se nega a não ver que existem diferentes temporalidades presentes na experiência do povo e que a prática educativa precisa ter as mesmas como ponto de partida. Por outro lado, ele se nega a reduzir todas elas a uma síntese final como ponto de chegada. Também as temporalidades estão inscritas na história como possibilidade e cada uma delas individualmente e todas elas no conjunto podem ser portadoras de humanização ou de desumanização.

Nessa linha de reconhecimento de outras epistemes basta citar, como exemplo na América Latina, o interesse suscitado pelo "buen vivir" (suma qamaña em aymara). Como expresso por Fernando Huanacuni (2010):

Los pueblos originarios están trayendo algo nuevo (para el mundo moderno) a las mesas de discusión, acerca de cómo la humanidad debe vivir de ahora en adelante, y las ideologías de mercado mundial, el crecimiento económico, el corporativismo, el capitalismo y el consumismo que son producto de un paradigma occidental, son en diverso grado las causas de la grave crisis social, económica y política. Ante estas condiciones, desde las diferentes comunidades de los pueblos originarios de Abya Yala decimos que, en realidad se trata de una crisis de vida. (p. 12).

Ninguém imagina que toda a América Latina será aimará ou mapuche, adotando as formas de vida dos povos originários. O que essa discussão traz à tona é o reconhecimento de outras formas de vida, com outras expressões religiosas, outras formas de organização social e, também, outras pedagogias. Principalmente a partir da segunda metade do século passado o conceito de cultura popular adquire tons diferenciados e o oprimido passa a ter o rosto do campesino, do trabalhador urbano, do jovem, do negro, da mulher, dos povos indígenas, das pessoas com deficiências, entre outros.

Tanto Martí como Freire uniram a educação estreitamente com a vida vivida. Para Martí, (2007, p. 240) "a educação precisa ir aonde vai a vida. É insensato que a educação ocupe o único tempo de preparação que tem o homem, em não prepará-lo." Em Paulo Freire, por seu turno, temos um testemunho de alguém que soube recriar a sua pedagogia no movimento da história, como atestam os alongamentos da pedagogia do oprimido para pedagogia da esperança, pedagogia da indignação e pedagogia da autonomia.

Cosmopolitanismo crítico

A vida de Martí e de Freire foi marcada por longos exílios. Martí foi exilado na Espanha, passou por vários países da América Central e viveu durante muitos anos em Nova York, nos Estados Unidos. O exílio de Paulo Freire, por seu turno, levou-o à Bolívia e ao Chile, aos Estados Unidos (Harvard) e depois para um período de aproximadamente uma década em Genebra (Suíça) a partir de onde, como assessor do setor de educação do Conselho Mundial de Igrejas, seu trabalho se espalhou para todos os continentes. Para ambos, com todo o sofrimento pelas rupturas e separações, a experiência do exílio forjou uma visão cosmopolita crítica de mundo que se manifesta inde-levelmente em sua pedagogia.

Este cosmopolitanismo se expressa de várias maneiras, dentre as quais destacamos duas. Uma delas diz respeito à integração de uma grande diversidade de fontes em suas reflexões. Em Marti, por exemplo, temos a influência dos pensadores cubanos Félix Varela y José de Luz y Caballero, do krausismo espanhol, do norteamericano Ralph Waldo Emerson e do positivismo com a valorização da educação científica (Arce, 1996).

Em Freire, essas influências não são menos diversas. Encontramos nele desde Martin Buber a Che Guevera; desde Sócrates a Anísio Teixeira, desde o campesino ao intelectual erudito. Disse-o bem Carlos Rodrigues Brandão (2010, p. 42.) quando falou da "vocação coerentemente errante e andarilha" que atravessa o imaginário de Paulo Freire: "Em tempos em que pessoas, grupos de militantes e movimentos sociais não raro reduziam o olhar de suas ideias a alguns poucos autores de uma única teoria social, Paulo Freire sempre foi um tecelão de diferenças,"

Isso não significa ausência de posicionamento, mas uma opção epistemológica que, sem deixar de fazer escolhas e tomar partido, reconhece a insuficiência de qualquer sistema interpretativo diante da realidade multifacetada. Essa opção está nos versos de Martí e também na dedicatória de Paulo Freire em Pedagogia do oprimido, transcritos abaixo:

Con los pobres de la tierra
Quiero yo mi suerte echar:
El arroyo de la sierra
Mi complace más que el mar.
(Martí, Versos Sencillos)

Aos esfarrapados do mundo
E aos que neles se
Descobrem e, assim
Descobrindo-se, com eles
Sofrem, mas sobretudo,
Com eles lutam.
(Freire, Dedicatória de Pedagogia do Oprimido]

Uma das marcas da educação latino-americana, como vimos acima, é sua autoconsciência como prática política. Numa realidade de interesses conflitantes, a neutralidade implica anuência com aqueles que detém os instrumentos e meios de exercer o poder. Para Martí, a politicidade estava centrada na formação de homens e mulheres capazes de promover e assegurar a emancipação das nações da América Latina e do Caribe. Sua revolução, por isso, tinha estrategicamente um caráter transclassista. Por ocasião da morte de Karl Marx, Martí escreveu um artigo no qual o homenageou por haver tomado o lado dos mais fracos e reconheceu o seu mérito por haver assentado o mundo sobre novas bases e despertado a classe operária européia. Mas considera inadequado o método de resolver os conflitos ao jogar homens sobre homens.4

Conforme Raúl Fornet-Betancourt (1998, p. 30), Martí inaugura uma tradição de recepção de Marx na América Latina, que tem como parâmetro a opção pelos pobres. A teologia da libertação e importantes segmentos da educação popular se inserem nesta tradição ao não fazerem uma identificação imediata entre o popular e a classe social num sentido marxista mais estrito. Podemos incluir Freire dentro desta tradição. A educação como ato político está ligado de forma abrangente com a possibilidade de humanização que, na sociedade capitalista, passa pelas classes sociais, mas não se esgota nelas. Em suas palavras:

Nunca entendi que as classes sociais, a luta entre elas, pudessem explicar tudo, até a cor das nuvens numa terça-feira à tardinha, daí que jamais tenha dito que a luta de classes, no mundo moderno, era ou é o motor da história. Mas, por outro lado, hoje ainda e possivelmente por muito tempo, não é possível entender a história sem as classes sociais, sem seus interesses em choque. A luta de classes não é o motor da história, mas certamente um deles. (Freire, 1992, p. 91).

Outra marca deste comopolitanismo é a construção de um mundo comum gerado na diversidade. Em Martí o conto "La historia del hombre contada por sus casas" exemplifica bem a sua maneira de ver o mundo. Primeiro, ele ajuda as crianças a reconhecer que há uma historicidade na construção das moradias. Não havia na "idade da pedra" as ferramentas e o conhecimento para fazer casas como as temos hoje. As casa evoluem com o desenvolvimento tecnológico. Não obstante, há também as diferenças devido ao clima e à cultura de cada povo. E isso faz do mundo um lugar mais bonito:

Ahora todos los pueblos del mundo se conocen mejor y se visitan: y en cada Pueblo hay su modo de fabricar, según haya frío o calor, o sean de una raza o de otra; pero lo que parece nuevo en las ciudades no es su manera de hacer casas, sino que en cada ciudad hay casas moras y griegas, y góticas, y bizantinas, y japonesas, como si empezara el tempo feliz en que los hombres se tratan como amigos, y se van juntando. (Martí, 2001a, p. 70).

Paulo Freire expressa essa mesma ideia com a noção de "unidade na diversidade" como o horizonte tanto da ação política quanto da ação pedagógica.

Uma de nossas tarefas, como educadores e educadoras, é descobrir o que historicamente pode ser feito no sentido de contribuir para a transformação do mundo, de que resulte um mundo mais 'redondo', menos arestoso, mais humano, e em que se prepare a materialização da grande Utopia: Unidade na Diversidade. (Freire, 1995, p. 36). 5

No momento quanto a internacionalização se torna um imperativo na políticas educacionais e nas práticas de pesquisa, o pensamento e as práticas de José e Martí e de Paulo Freire podem servir de baliza para pensar o tipo de relação que buscamos com outras instituições e outros países. A internacionalização pode ser mais um canto de sereia que sob novo manto esconde velhas formas de dominação intelectual e cultural; ela poderá representar também uma tentativa de inserção solidária, digna e propositiva no cenário global, ao mesmo tempo que nos ajuda a compreender melhor quem somos, e o papel e o lugar que desejamos para nós.

Entre legado e recriação

É comum vermos grandes figuras de nossa história serem transformadas em significados vazios, cada qual colocando sob seus nomes elogios e críticas nem sempre condizentes com a letra e muito menos com o espírito que animou a sua vida e as suas lutas. Creio que a radicalidade que caracteriza o pensamento de Martí e Freire pode servir-nos para manter em tensão o respeito a um rico legado e o desafio para a criatividade no presente. Manter vivo um legado está para muito além da repetição de slogans e clichês. Significa, em primeiro lugar, conhecer e estudar a obra que contém o legado que se julga importante preservar e transmitir. Significa ainda ir às fontes das quais estes autores se alimentaram e buscar compreender o contexto acadêmico e social da elaboração de seu pensamento. Sem isso, tanto defensores quanto detratores se encontram a meio caminho e prestam um desserviço ao avanço do pensamento, no caso, da elaboração de uma pedagogia latino-americana.

Isso leva ao grande desafio subjacente ao longo deste ensaio: a necessidade de criar, ou melhor, de recriar. Uma condição para isso é a liberdade que se expressa de duas formas: a liberdade em relação a cânones cerrados e a liberdade para pensar a experiência de vida ou a prática. Temos essas duas características tanto em Martí quanto em Freire. Ambos podem ser acusados de diletantismo por quem necessita "enquadrar" os autores em esquemas ou campos teóricos fechados. Podem ser vistos também como exercitando um outro tipo de rigorosidade fundado em princípios éticos e - para usar um termo fora de uso - "causas" pelas quais estavam dispostos a pagar alto preço. No caso de Martí, o preço foi a morte em campo de batalha pela independência de seu país.

Soma-se a isso a liberdade de pensar a própria prática. José Martí (2007) criticava a soberba dos intelectuais que, pondo-se sobre "um pedestal de livros" constituem uma aristocracia que se esquece de ler o livro da vida, "o livro mais difícil de ler e cujas folhas não se vira - ai! - sem nelas deixar o sangue nas mãos" (p. 236). Mas criticava também o engano daqueles que acreditavam poder dispensar a leitura e a meditação para compreender o seu mundo, a sua prática e sua vida. Paulo Freire fazia da prática o lócus privilegiado de sua reflexão, reafirmando ser este um dos critérios para "pensar certo", seguido de outro critério igualmente importante: desconfiarmos do excesso de certeza. Em suas palavras: "É uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas" (Freire, 1992, p. 30).

Para concluir, voltemos ao imaginário. O exercício de leitura de Martí e Freire proposto neste ensaio teve o propósito modesto de apontar para aquele sem fundo criador que no início identificamos como imaginário. Cabe muito neste sem fundo, mas nem tudo. Como criação nossa, ele será do tamanho de nossas utopias e terá os contornos que formos capazes e estivermos dispostos a lhe dar. Ambos autores mostram que não há mágica nisso, nem "esperas vãs".6 Martí (2007, p. 236) resumiu este compromisso na seguinte história: "A um viajante que morria de sede se lhe animaram as forças dizendo que lhe trariam água em certo ponto do caminho: Ai do viajante, e da viagem, se ao chegar à sua estação não houver a água oferecida."


Notas

1 Reflexão derivada do projeto de pesquisa "Participação popular e desenvolvimento: Um estudo dos processos político-pedagógicos no orçamento participativo no Rio Grande do Sul (2011-2014), uma parte do qual é dedicado ao estudo de fontes da pedagogia latino-americana. O projeto conta com financiamento do CNPq e da FAPERGS.
2 Registro meu agradecimento aos colegas cubanos que, em fevereiro de 2016, propiciaram uma série de encontros numa Jornada martiano-freiriana organizada pelo Pe. Román Espadas, SJ, por ocasião da Feira do Livro de La Habana, onde foi apresentada a versão em espanhol do Dicionário Paulo Freire (editado pelo CEAAL).
3 A definição de Alfonso Torres capta bem esta dimensão de Educação Popular: "Por EP entenderemos un conjunto de prácticas y elaboraciones discursivas en el ámbito de la educación cuya intencionalidad es contribuir a que los diversos segmentos de las clases populares se constituyan en sujetos protagonistas de una transformación de sus intereses y utopías" (Torres, 2007, p. 22).
4 "Aquí están buenos amigos de Karl Marx, que no fue sólo movedor titánico de las cóleras de los obreros europeos, sino veedor profundo en la razón de las miserias humanas, y en los destinos de los hombres, y hombre comido del ansia de hacer el bien. Él veía en todo lo que en sí propio llevaba: rebeldía, camino a lo alto, lucha." ("Honores a Karl Marx, que ha muerto" Marti, 2001b, p. 388).
5 "Unidade na diversidade" é uma expressão comum no seio do Conselho Mundial de Igrejas para expressar o seu propósito ecumênico no cristianismo.
6 Na poesia "Canção óbvia" Paulo Freire (2000, p. 5) expõe sua visão utópica: "Quem espera na pura espera/vive um tempo de espera vã (....) Não te esperarei na pura espera/porque o meu tempo de espera é um/tempo de quefazer."


Referências

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