Introdução
Construir o conhecimento no âmbito de uma temática é um desafio, e a Enfermagem, como ciência, possui um universo rico e inesgotável de conhecimentos que abarcam a subjetividade de quem cuida e de quem é cuidado 1. Os seres humanos cruzam caminhos, interagem de diferentes formas e relacionam-se durante o cuidado, inclusive de forma imprevisível, não linear e, por isso mesmo, nem sempre mensurável ou programável 2-4.
A enfermagem está voltada para o cuidado humano, o que implica compreender o processo saúde-doen-ça de indivíduos, de acordo com suas necessidades, físicas, emocionais, espirituais, sociais, dentre outras. Portanto, não é possível se eximir e/ou se afastar do ser do outro quando se pretende cuidar da existência do homem 1,2.
A existência nos faz refletir sobre a vida, a morte, a dor, a angústia, o pensamento e o ser, conceitos filosóficos, porém imbricados na ciência da enfermagem. Assim, diante da complexidade do ser humano e de suas infinitas possibilidades de ser-no-mundo, reconhecemos a filosofia como um caminho para a construção da práxis da Enfermagem.
Dentre os diversos caminhos que se pode seguir em busca da compreensão do outro como ser-no-mundo, a pesquisa em enfermagem com abordagem fenomenológica é uma alternativa de investigação que contribui para um olhar efetivo sobre as experiências relacionadas à existência de seres humanos que vivenciam diferentes eventos 3,5. A fenomenologia permite conhecer determinados fenômenos humanos, compreendendo o que não está evidente, revelando conhecimentos que geram reflexão e suscitam mudanças 6.
No Brasil, estudos desenvolvidos nos programas de pós-graduação stricto sensu na área de enfermagem, adotam a fenomenologia como método, tendo como principais referenciais teóricos Martin Heidegger e Alfred Schultz 7,8. Essa possibilidade metodológica permite compreender a essência de quem é cuidado, a partir do momento em que a experiência é acessada e se busca apreender a realidade vivenciada, ou seja, sua existência 4.
Assim, este estudo tem como objetivo refletir sobre a pesquisa em enfermagem à luz da fenomenologia de Martin Heidegger.
Espera-se que este estudo possa tornar-se uma referência para novos pesquisadores e aos que já possuem uma proximidade com esse referencial filosófico, além dos enfermeiros assistenciais que almejam considerar e potencializar a dimensão existencial na relação que há entre os seres humanos durante o cuidado.
Heidegger e o círculo hermenêutico
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) teve como orientadores do seu filosofar Aristóteles e Husserl: o primeiro por ser o formulador da teoria do Ser enquanto Ser, e o segundo por ser o fundador do método fenomenológico 9.
Martin Heidegger afirma que "as interpretações dos tratados e das exposições aristotélicas surgem de uma problemática filosófica concreta, de tal modo, que essa pesquisa da filosofia aristotélica não se constitui, por exemplo, apenas num realce casual, numa 'complementação' e ilustração 'do aspecto histórico', mas coperfaz, ela própria, uma parte fundamental dessa problemática, pois fornece a gravidade e o impulso decisivo para o principiar o caminho e o alcance das pesquisas" (10:19).
O modo de acessar os significados proposto por Heidegger também se encontra fundamentado no método fenomenológico introduzido Edmund Husserl, precursor da fenomenologia. Este tinha como objetivo evidenciar, por meio de uma análise da consciência juntamente com o mundo da vida, as estruturas das experiências humanas da realidade, descrevendo os fenômenos como aparecem e manifestam-se à consciência 11,12.
Heidegger não busca analisar os fenômenos que aparecem, mas sim investigar as possibilidades que estes têm de se manifestar, pois acredita que as possibilidades do fenômeno se mostrar é o próprio ser , o qual se apresenta na inter-relação de uma coisa com a outra. Embora esses filósofos apresentem em comum o conceito de fenomenologia como retorno às coisas mesmas, Heidegger dá um passo adiante quando afirma a intimidade entre o homem e suas vivências, assumindo que a experiência diz respeito ao modo de ser do homem no mundo e está, sempre, localizada no tempo e no espaço 11,13-15.
No século XX, o filósofo descreve o círculo hermenêutico, considerando que a dimensão existencial é um traço constitutivo do Dasein. Assim, a noção de círculo hermenêutico emerge de uma crítica ao objetivismo nas ciências humanas. No entanto, para o filósofo Martin Heidegger, se não há interpretação sem pressupostos, a interpretação tem um caráter projetivo, e não objetivo. Além disso, a interpretação se dá a partir de um horizonte de possibilidades providas pela ciência natural 16.
Heidegger inverte a relação tradicional entre interpretação e compreensão; ele afirma que a compreensão contempla uma apreensão e uma projeção de possibilidades de ser e agir 17.
Heidegger 18 refere que: "o 'círculo' da compreensão pertence à estrutura do significado e este último fenômeno está enraizado na constituição existencial do Dasein, isto é, na compreensão que interpreta. Uma entidade para a qual, como o Ser-no-mundo, seu Ser é ele mesmo, ontologicamente, uma estrutura circular" (16:195).
Já a hermenêutica é uma maneira de interpretação reflexiva, continua e ampla de tentar compreender e interpretar um fenômeno por alguém que o vivenciou 19. Assim, a expressão círculo hermenêutico significa, na fenomenologia de Heidegger, a relação circular que se estabelece entre quem questiona e o questionado 20. No entanto, para compreendermos esse princípio, é preciso partir da fenomenologia como método de investigação, considerando o conceito de fenômeno, de logos, e, consequentemente, de fenomenologia 11.
Fenômeno deriva do verbo phainestai que significa mostrar-se, manifestar-se, pôr em claro. Já logos é tornar manifesto aquilo que se discorre no discurso. Assim, fenomenologia é o que resultou da interpretação de fenômeno e logos, ou seja, é fazer ver a partir dele mesmo o que se mostra. Ela informa sobre o como mostrar-se e o modo de tratar aquilo, mas não nomeia o objeto nem caracteriza seu conteúdo 11.
E o que a fenomenologia mostra? O ser do ente, seus sentidos, suas modificações. O ente é algo que está sendo, modo das coisas serem, o que eu consigo "falar" sobre, é também como nós mesmos somos. O ente é sempre ente de um ser, mas ser não é gênero de um ente, embora ele concerna a todo ente 11.
Para designar o ente ou a pessoa que possui este ser, Heidegger utiliza a palavra Dasein, isto é, o que é de todo ser 21, o ser do homem 11. Podemos destacar dois aspectos do Dasein: 1. a essência desse ente reside em ter-de-ser, ou seja, a essência do Dasein reside em sua existência, seus modos-de-ser; 2. seus modos-de-ser são só dele, o que significa que ele pode se ganhar ou se perder de si mesmo, oscilando no caráter da propriedade ou da impropriedade 11.
O Dasein encontra-se inserido numa existência decadente no mundo histórico e temporal, que vivencia a sua factualidade por meio da sua existência e que possibilita a construção da sua própria historicidade ora no mundo público, ora no circundante e próprio 22.
O modo-de-ser do Dasein se dá em um mundo e é nesse mundo que ele pode ser, não numa relação de encaixe, de justaposição, mas de transcender o mundo, pois a transcendência pertence ao Dasein, é sua constituição fundamental, pois não há sujeito sem mundo e não há homem sem Dasein. Mas o Dasein não é só, ele é com os outros, ele é, portanto, ser-no-mundo-com-os-outros. Sendo-no-mundo-com-os-outros dá a possibilidade de o Dasein poder-ser, em abertura, mas sem esquecer que ele está predeterminado ao fim. Então a morte é a possibilidade da impossibilidade (20:22).
Portanto, pode-se afirmar que a fenomenologia de Heidegger tem elementos fundamentais para a pesquisa em enfermagem, uma vez que há intrínseca relação entre a enfermagem e o cuidado do outro. Mas essa relação não está dada, disponível, é preciso permitir que ela se manifeste, como uma condição existencial do Dasein.
Assim, para investigar o Dasein, o pesquisador precisa coabitar seu mundo, seguir seus passos, seus discursos, seus modos de existir que poderão se mostrar plurais. Já para compreendê-lo, é necessário interrogá-lo acerca das suas vivências nesse mundo 20.
Uma boa pergunta ao Dasein possibilita deixá-lo em liberdade, tal como ele é, de modo que o que funda sua existência possa emergir e revelá-lo, ainda que em parte. Ε o sentido da existência do Dasein. Assim, para um pesquisador, ao ir em busca do sentido de experiências humanas, segundo o referencial filosófico heideggeriano, é importante que ele esteja distante de todo e qualquer pensamento predicativo, concepções e julgamentos a respeito do fenômeno a ser interrogado, movimento este denominado epoché23-25.
Ao ir em busca das experiências e exposições que o sujeito faz em relação ao fenômeno vivido, que é de seu interesse 26,27, intenciona compreender o seu sentido. Heidegger destaca que esse caminhar em busca da compreensão vaga e mediana se constitui em uma análise compreensiva e uma análise hermenêutica, que ocorre a partir da interpretação dos significados à luz de um pensamento 11.
Vale ressaltar que o pesquisador vai em direção às experiências dos sujeitos e depara-se com um conjunto de significados, uma vez que o sujeito só apresenta ele mesmo. Para tal, não há preocupação com a quantidade de significados, mas sim com a qualidade, o que demonstrará as diversas percepções dos sujeitos sobre suas experiências, não cabendo critérios tradicionais de representatividade 23,28.
Portanto, "todo o trabalho de pesquisa, desde o polimento da questão, definição dos objetivos, passando pela pesquisa bibliográfica, elaboração da metodologia, trabalho de campo, análise, até a escrita final do que vai sendo desvelado, é uma experiência propriamente dita" (29:158).
Experienciar esse caminho foi a escolha de alguns enfermeiros para desenvolverem seus estudos, que, para além do cuidado do outro, possibilitaram o repensar de seu próprio Dasein, o que será apresentado a seguir.
Caminhos da pesquisa em enfermagem à luz da fenomenologia existencial de Martin Heidegger
Para produzir conhecimento em enfermagem, enfermeiros têm utilizado o referencial filosófico de Martin Heidegger, visto que os conceitos desse filósofo possibilitam o desvelamento do sentido de fenômenos que permite compreender as experiências vividas pelo outro 8,12-14.
Desse modo, torna-se possível contemplar os valores e significados subjetivos que os indivíduos atribuem às suas vivências quando se encontram lançados em um mundo que envolve o processo saúde-doença na perspectiva da assistência integral 8.
Refletir o cuidado na visão heideggeriana é pensar em um encontro existencial entre o ser que cuida e o ser que é cuidado, com o intuito de deixar o Dasein ser realmente quem ele é 19,30.
Estudo teórico desenvolvido por enfermeiros, com o objetivo de refletir sobre a essência do cuidado em condição de vulnerabilidade sob a perspectiva fenomenológica heideggeriana, permitiu o desvelamento de facetas do Ser do cuidado, agregando visão compreensiva ao corpo do conhecimento da enfermagem. A proximidade com a pessoa humana em situação vulnerabilidade possibilitou a apreensão do ser vulnerável como ser que requer cuidado autêntico 31.
O cuidado revela-se nas relações existenciais, que envolvem consideração e respeito aos modo-de-ser do outro, como essência. O cuidado autêntico possibilita que o Dasein assuma suas possibilidades e escolhas, no intuito de alcançar saúde e bem-estar. Dessa forma, proporciona liberdade e condições para viver o próprio ser 19.
Muitos dos profissionais de saúde já tomam como dadas as experiências dos entes que estão cuidando e, ao fazerem isso, se fecham para o modo específico de adoecer de cada um deles, isto é, as formas particulares, como cada um vivencia sua existência. Para tal, é necessário ir em busca do que está imerso nas relações, o que o Dasein é a cada vez.
(Re)pensar cuidadosamente acerca do cuidado que vem sido prestado sem considerar o aspecto existencial dos entes envolvidos nesse processo vem ao encontro dos questionamentos de Heidegger, quando este afirma que houve um esquecimento-do-ser e, ao retomar essa questão do ser, como já explicitado anteriormente, só se é possível quando o Dasein se compreende a partir de sua existência.
Na perspectiva de construção do cuidado de enfermagem fundado na subjetividade, um estudo realizado com casais heterossexuais sorodis-cordantes para o HIV desvelou facetas sobre a gestação que oportunizaram uma experiência tranquila, minimizando os riscos de infecção para o(a) companheiro(a) soronegativo e para o recém-nascido, qualificando e aprimorando o cuidado de enfermagem 32.
Quando refletimos sobre as questões do adoecimento, estas se encontram fundamentadas, na maioria das vezes, em ontologias, embora, durante a relação de cuidado, quando o profissional se refere ao ser que está sendo cuidado como uma pessoa que possui uma doença, que necessita de medicamentos, procedimentos técnicos e tecnologia avançada, ele esteja recorrendo a um referencial metafísico cartesiano fundamentado na distinção entre sujeito e objeto, ou seja, cuidando de modo superficial 20.
Assim, ao assistir o outro, deve-se considerar o Dasein em sua facticidade, considerando a solidariedade, a verdade e a moralidade, atributos que contribuem para todos os envolvidos no processo 31.
Ao descrever o processo e os significados de corpo atribuídos por pacientes com câncer de cólon, que realizaram colostomia, emergiu a compreensão de que, à medida que os enfermeiros apreendem as suas capacidades para se adaptar e para enxergar a si mesmos, são capazes de ajudar os pacientes a se integrarem e a se reconhecerem como seres individuais, independentes, únicos e com a capacidade física e emocional de seguir a própria vida, limitado e/ou não pela facticidade que o Dasein encontra-se lançado 33.
A fenomenologia de Heidegger permitiu a autor-reflexão de enfermeiros que trabalham em uma unidade de pronto-atendimento, o que possibilitou prestar um cuidado efetivo ao outro. Esse movimento evidencia a compreensão do enfermeiro ao dar sentido às suas ações de forma autêntica, quando cuida do outro. No entanto, o cuidar do outro implica cuidar de si, essencial para que o profissional se reconheça no mundo 34.
Assim, emergem as possibilidades de o Dasein projetar-se no mundo, na busca do seu vir-a-ser-no-mundo. Ao projetar-se, o Dasein encontra a sua condição mais originária, a de não poder-ser, sua finitude, que é uma questão profundamente incômoda para todos os homens 11.
Por vezes, a vivência da morte é inautêntica, em que constantemente o privilégio do poder-ser-mais-próprio é encoberto e, com isso, passamos a morrer de nós mesmos. Falar sobre morte significa pensar sobre nossa própria morte 35.
Essa é mais uma possibilidade do referencial heideggeriano quando se trata de compreender a possibilidade do Dasein, isto é, vislumbrar a morte como um acontecimento inerente à própria vida, impulsionando reflexões acerca da sua própria finitude, como um ser impotente diante da terminalidade enquanto ser-no-mundo-com-o-outro 11.
Ser-no-mundo-com-o-outro durante a pesquisa fenomenológica heideggeriana não é uma tarefa simples, pois Heidegger não teve como pretensão elaborar um método de pesquisa empírica, mas sim, fornecer elementos que possam auxiliar no desenvolvimento das ciências eidéticas 36. Os estudos citados anteriormente possibilitam que os leitores se deparem com a diversidade dos resultados que as pesquisas fenomenológicas podem revelar.
Não se deve pensar que há procedimentos, etapas e/ou manuais que norteiam esse tipo de pesquisa, pois, ao mesmo tempo que uma faceta do fenômeno é desvelada, há a possibilidade do Dasein de escolher e refletir a respeito do que lhe convém diante da sua facticidade, de vir-a-ser e não-vir-a-ser 36.
Assim, diante do exposto, é possível apreender como a fenomenologia possibilita à enfermagem compreender o ser do outro, como também o seu próprio ser, permitindo que o mundo, as relações humanas e o cuidar possam se dar de modos plurais.
Considerações finais
O exposto até aqui evidencia o encontro entre a Fenomenologia como método de pesquisa e a possibilidade de intersecção com a enfermagem. Contudo, essa relação tem se dado quase que exclusivamente na pesquisa, mas não na prática de enfermagem. Esta tem se mostrado, por vezes, tecnicista, com foco apenas na dimensão física, sem considerar os demais aspectos que abarcam o ser humano - psicológico, social e espiritual.
As ideias da fenomenologia podem colaborar para um cuidado que valorize as questões existenciais do Dasein. Certamente, é uma das muitas possibilidades de cuidar de modo autêntico, com um olhar para novos e diferentes ângulos de compreensão do ser humano.
Contudo, a tarefa que se mostra é complexa, não só para a fenomenologia, pois não são apenas os resultados de pesquisas fenomenológicas que não são postas em prática, no cotidiano do cuidado. Isso acontece com outros paradigmas de pesquisas também. Porém, no que diz respeito à fenomenologia, compreender o outro como ser-no-mundo no contexto do adoecimento é favorecer sua compreensão, maximizar potencialidades, aceitar limitações, cuidando de modo a preservar sua essência.
Conceber o cuidado sob o olhar fenomenológico, portanto, é vê-lo para além da simples questão de administração de medicamentos e realização de procedimentos. Implica apreendê-lo tal como no sentido original, ex-ducere, que é a possibilidade que o ser tem de se colocar num determinado caminho. Ε estar-com-o-outro, numa construção individual e coletiva desse cuidado, o qual se dá no movimento e em perspectivas.
Portanto, o referencial filosófico de Martin Heidegger demonstra-se pertinente para a realização não apenas de pesquisas na área de enfermagem, mas também para a prática de enfermagem, de modo a compreender o Dasein na sua singularidade de ser-no-mundo.
Subsídios
Este manuscrito teve o auxílio da agência de fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Os estudos financiados por essa agência de fomento e que deram origem a este manuscrito são: Análise das transformações ocorridas nas disciplinas de Enfermagem Pediátrica da Unicamp: subsídios para reestruturações futuras, auxílio à pesquisa, processo n.o 04/15802-6. Em busca da normalidade: sendo-com adolescentes com insuficiência renal crônica, bolsa de mestrado, processo n.° 2013/21148-3.