Introdução
Paul-Michel Foucault, historiador francês, psicólogo e filósofo de grande importância mundial, considerado um dos mais polêmicos da contemporaneidade, foi um estudioso de inquestionável representatividade social, principalmente por envolver temas como o biopoder e a sociedade disciplinar em suas discussões. Por ter vivenciado pensamentos e tentativas de suicídio e se aproximar da psicologia e psiquiatria, contribuiu substancialmente para a compreensão de questões relacionadas à saúde mental 1.
Foucault compreendia a loucura como uma desordem social; assim, o louco era aquele indivíduo cuja conduta divergia daquela imposta pela sociedade e, por esse motivo, tinha como resultado sua marginalização e exclusão social 2. Portanto, o conceito de loucura está atrelado a uma relação entre o poder, o saber e a maneira como esses elementos são empregados para controlar o comportamento do homem no meio em que vive 3.
No que concerne à atenção às pessoas com sofrimento mental, essa estereotipação de louco e as ações excludentes acarretaram consequências biopsicossociais negativas a esse público 4. Em contrapartida a essa ideologia, surge a Reforma Psiquiátrica (EP), um movimento internacional caracterizado por lutas em busca de mudanças na assistência ofertada a esses indivíduos. Nesse cenário, tem-se exemplo de países como Itália, França e Inglaterra, que ultrapassaram barreiras políticas e romperam com o modelo manicomial e asilar, fortalecendo e disseminando, assim, concepções acerca do cuidado humanizado, pautado na reinserção social do indivíduo na comunidade 5.
Em muitos países da América Latina, como o Brasil e o Chile, o processo de EP teve seu início entre as décadas de 1970 e de 1990, sendo influenciado pelos desígnios da Psiquiatria Democrática Italiana e pelo contexto político de democratização do Estado. Esse processo se configurou como um movimento político, social e jurídico, propiciando transformações nas políticas públicas no âmbito da saúde mental, reforçando importantes ações de cuidado para melhoria efetiva da qualidade de vida das pessoas com sofrimento mental, como a desinstitucionalização e a participação dos familiares na terapêutica 6,8.
Nesse contexto, vale salientar que, no Brasil, o movimento da EP, ainda vigente, se concretizou com a promulgação da Lei 10.216/2001, também chamada Lei Antimanicomial, que visa, entre outras coisas, a garantir a proteção e os direitos das pessoas portadoras de sofrimento mental por meio da ruptura com o modelo assistencial tradicional e à construção de um novo modelo científico, político e ético de cuidado 9.
Somada a essa premissa, o Ministério da Saúde (MS), por meio da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), objetivando consolidar ainda mais os pressupostos estabelecidos com a EP, reorganizou os serviços assistenciais, propondo uma rede de atenção à saúde mental integrada e articulada. Essa Rede de Atenção Psicossocial (EAPS) foi instituída pela Portaria 3.088, de 23 de dezembro de 2011, com a finalidade de criar, ampliar e articular pontos de atenção à saúde para pessoas com demandas relacionadas à saúde mental 10.
Diante do supracitado, o presente estudo tem como objetivo realizar uma reflexão teórica sobre a trajetória histórica do cuidado ofertado ao portador de sofrimento mental no Brasil à luz da PNSM.
Cuidado à saúde mental antes e após a reforma psiquiátrica
Primitivamente, as pessoas com sofrimento mental não eram consideradas cidadãs e, por isso, não tinham seus direitos garantidos nem sua autonomia era preservada diante das decisões sobre a própria vida. Além disso, a sociedade as via como criaturas extremamente perigosas, sem condição alguma de convívio social. Nessa perspectiva, a forma de tratamento dispensado a essas pessoas era o cárcere privado compulsório, mediante as eternas internações nos hospitais psiquiátricos conhecidos naquele período como manicômios ou hospícios 9.
Nesse contexto, o "cuidado" em saúde mental se baseava prioritariamente na internação, e o hospital psiquiátrico era a única ferramenta capaz de auxiliar na cura da loucura. Conforme os estudos do médico fundador dessas instituições, Philippe Pinel, o tratamento pautado no isolamento era eficaz 11.
Contudo, essa prática, em vez de promover a recuperação da saúde dessas pessoas, contribuía de maneira substancial para sua segregação social, o que acarretava prejuízos significativos na evolução do tratamento, além de se caracterizar como uma concreta violação ao direito à liberdade e à dignidade à vida, pois as condições a que eram submetidas nesses hospitais eram desumanas 12.
As relações positivistas instituídas entre o louco e a loucura caracterizam o paradigma hospitalocêntrico, cuja ênfase principal é dada à doença em detrimento do sujeito e de sua experiência humana. Todavia, o atual campo da saúde mental, com vistas à atenção psicossocial, considera holisticamente a pessoa com sofrimento mental, e, nesse sentido, o foco deixa de ser a doença e o cuidado se volta para questões subjetivas que estejam relacionadas com a humanidade 13-15.
No contexto latino-americano, era possível observar o aumento dos transtornos mentais e do uso abusivo de substâncias psicoativas. Somado a isso, constatava-se que a rede de atenção em saúde mental instituída se apresentava insuficiente e sem qualquer perspectiva resolutiva e humanizada, caracterizada por condutas que violavam os direitos humanos 16.
A Reforma Psiquiátrica na América Latina, em especial a ocorrida no Brasil, também chamada de Reforma Psiquiátrica Brasileira (EPB), surgiu nesse cenário como movimento político e social transformador para requalificar a assistência em saúde mental. Como dito anteriormente, o movimento teve sua origem nos ideais disseminados pela Reforma Psiquiátrica Italiana, e esse panorama de transformações e conquistas nasceu de ações especiais de pessoas como as da psiquiatra Nise da Silveira. Esse processo se fortaleceu no fim dos anos de 1970 e início de 1980, com o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), e foi gradativamente se tornando uma política de Estado consolidada 17,18.
Portanto, a partir da década de 1970, o movimento pela EPB se concretizou, tendo como arcabouço ideológico a crítica ao modelo assistencial medicalizador e excludente, e como ações prioritárias a defesa de práticas de cuidado em saúde mental baseadas no princípio da integralidade, diretriz apresentada pelo novo Sistema Único de Saúde (sus) 19.
O modelo psicossocial embasa as novas formas de atenção em saúde mental com estratégias centralizadas na pessoa e nas suas potencialidades, bem como em propostas substitutivas do modelo hospitalocêntrico mediante a criação de uma rede assistencial no território voltada para a atenção psicossocial; o objetivo é fortalecer a reinserção socio-cultural das pessoas com sofrimento mental 20-22.
Nesse ínterim, Brasil e Paraguai passaram a fazer parte dos países que se tornaram seguidores da Declaração de Caracas, documento elaborado no ano de 1990 com o intuito de reformular a atenção à saúde mental nas Américas. Assim, nos anos de 2001 e 2011, respectivamente, esses países implementaram suas políticas nacionais de saúde mental, incorporando os princípios e as diretrizes desse novo modelo em suas normativas legais 23. Muitos foram os documentos legais que propiciaram a melhoria da qualidade do cuidado ofertado no Brasil. Um deles foi a promulgação da Lei 10.216, de abril de 2001, que legalmente redirecionou o modelo assistencial em saúde mental, garantindo proteção e todos os direitos aos portadores de sofrimento mental. Outro documento relevante foi a Portaria 336/2002 do MS, que definiu que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) têm o dever de organizar a demanda relacionada à saúde mental e os cuidados a esse público no contexto territorial, sob a coordenação do gestor local 24,25.
A constituição de serviços substitutivos ao manicômio, como as residências terapêuticas, os CAPS, os leitos em hospitais gerais para demandas de urgências psiquiátricas, as estratégias de desinstitucionalização e de reabilitação psicossocial, e os dispositivos territoriais, como as Estratégias de Saúde da Família, configuraram a Rede de Atenção Psicossocial (EAPS), regulamentada pela Portaria 3.088, de dezembro de 2011. Entre outros aspectos, ela objetiva ampliar e integrar os pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento mental e/ou com necessidades provenientes do uso de crack, álcool e outras drogas 25-27.
Essas propostas, ainda que instituídas por leis e portarias do MS, se encontram em processo construtivo e em permanente transformação para, com isso, promover seu amadurecimento e sua consolidação. Isso se constitui como um grande desafio para a EAPS, uma vez que suas ações devem atingir muito mais do que os aspectos biológicos da vida daqueles que têm demandas relacionadas à saúde mental, culminando, dessa forma, na superação efetiva dos pressupostos e dos dispositivos que institucionalizam pessoas 19.
O modelo de rede da EAPS é semelhante ao instituído no Chile, em que as primeiras experiências de desinstitucionalização ocorreram durante o governo da Unidade Popular. O modelo chileno adotado atualmente propõe a criação de uma rede de saúde mental e psiquiatria caracterizada pela composição de múltiplos dispositivos para a atenção das distintas necessidades das pessoas com sofrimento mental, assim como a EAPS brasileira 28.
Em um contexto amplo, avanços semelhantes ocorreram em outros países da América Latina, a exemplo do Paraguai, como dito anteriormente, que construiu uma política de saúde mental com a participação dos usuários do serviço, de familiares e de profissionais. Contudo, não houve a superação completa do modelo hospitalocêntrico-manicomial. Diante de tal realidade, o governo paraguaio está tentando aprimorar o atendimento em saúde mental, pautando suas estratégias no respeito aos direitos humanos e no atendimento comunitário, enfatizando a qualidade de vida e a equidade. Para isso, tem se espelhado no modelo brasileiro e argentino, além de assumir compromissos e propor ações, por meio da atual PNSM (2011-2020), que apontam para a possibilidade de superação do modelo excludente manicomial 29.
Os desafios para a consolidação do modelo psicos-social nos países da América Latina, principalmente no Brasil, perpassam por questões orçamentárias e de incorporação de princípios que permitam a organização da rede de serviços, como a descentralização das ações e a universalização do acesso 29.
Retrato do desmonte
Diante dos inúmeros avanços vivenciados pelo movimento da EPB, a partir de 2015, iniciou-se uma série de eventos considerados como retrocessos significativos para o modelo de atenção psicossocial em andamento. A nomeação, em 11 de dezembro de 2015, para o cargo de coordenação-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do ex-diretor técnico do maior asilo manicomial da América Latina nos tempos da ditadura militar representou uma ruptura histórica na nomeação de coordenadores desde o processo de redemocratização, visto o alinhamento do novo coordenador como contrário a pontos fundamentais da reforma psiquiátrica. Gerou-se, a partir de então, intensa mobilização nacional contrária à decisão, deixando insustentável a continuidade desse coordenador, o que culminou com sua exoneração em maio de 2016 30.
Porém, a considerada "maré contra reformista" continuou se fortalecendo. Em dezembro de 2017, foram aprovadas, na Comissão Intergestora Tripartite, novas diretrizes para as políticas de saúde mental no Brasil, em um contexto considerado semelhante à reformulação da Política Nacional de Atenção Básica: protestos, manifestações de repúdio e perspectiva de retrocesso 31.
Em 2019, como reforço às diretrizes, divulgou-se a Nota Técnica 11/2019, que trouxe alguns esclarecimentos acerca das mudanças na PNSM e nas diretrizes sobre drogas, despertando novamente inúmeras críticas por ser considerado um retorno aos moldes anteriores à EPB. A Nota, entre outros aspectos, traz a inclusão do hospital psiquiátrico na EAPS e desconsidera a "rede substitutiva", alegando que nenhum serviço substitui o outro, sendo todos igualmente importantes 32.
A partir de então, a gestão das Políticas de Saúde Mental e a de Álcool e outras Drogas passa a ser competência da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, no Ministério da Cidadania, conforme a Medida Provisória 870, de 1° de janeiro de 2019 33.
Outro nó crítico da Nota Técnica 11/2019 refere-se à inclusão das Comunidades Terapêuticas (CTS) na EAPS. As CTS, consideradas como componentes de um modelo privatista e manicomial, representam instituições de caráter religioso voltadas ao tratamento do uso compulsivo de álcool e de outras drogas, pautadas em modelos hierárquicos de tratamento e saberes sob a ótica da prática da abstinência. Nessas comunidades, a equipe responsável determina, em sua maior parte, as atividades a serem realizadas e delibera sobre o contato com o ambiente externo e o acesso a objetos do cotidiano, podendo, por conseguinte, abrir margem para dificuldades no processo de reinserção social ao não abordarem a perspectiva de construção da autonomia desses indivíduos sobre si e seu tratamento, de maneira paradoxal ao preconizado pela reforma psiquiátrica 18,31.
Pode-se citar, também, o incentivo destinado à criação de ambulatórios "especializados" para quadros menos graves em detrimento da cobertura dos serviços da Atenção Básica, dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família e dos mais de 2000 CAPS distribuídos pelo país, os quais operam conforme a capilaridade territorial com alto potencial resolutivo. Salienta-se, ainda, a abordagem da temática da saúde mental infanto-juvenil apenas para referir-se ao internamento em hospitais psiquiátricos 17,32.
Outro aspecto que cabe discussão é o incentivo do uso da eletroconvulsoterapia (ECT), também conhecida como eletrochoque, como aparato terapêutico no âmbito do sus. Dessa forma, o MS passa a destinar recursos para a compra dos equipamentos da ECT e admite seu uso em casos de transtornos mentais graves. No entanto, tal questão merece ser problematizada em razão do histórico de sua utilização de maneira desordenada e abusiva nos manicômios brasileiros 32.
Destarte, urge a necessidade de se debater e protelar todas as mudanças que se articulam aos moldes contrários ao de atenção psicossocial e de respeito à autonomia do indivíduo, que tanto preza o movimento de EPB. Faz-se de suma importância também o incentivo à participação de toda a sociedade e a família na formulação das políticas de saúde e, nesse caso principalmente, na política de saúde mental, a fim de assegurar o controle social no sus e nas práticas que preservem o direito de autonomia e de cidadania da "pessoa e usuário que sente, sofre como qualquer um e merece um atendimento humanizado" 34.
Conclusões
A EPB representa um movimento de extrema relevância na consolidação de um modelo de atenção psicossocial baseado na autonomia, na territorialização do cuidado e na reinserção social do indivíduo em sofrimento mental e em uso de álcool e outras drogas, se tornando, por meio de muitas lutas e reinvidicações, política oficial de Estado. Um Estado de Bem-Estar Social.
É preciso uma ação conjunta dos diversos setores da sociedade em busca da defesa dos direitos conquistados ao longo dos anos, além de contar com uma PNSM inclusiva e humanizada. Enfatiza-se a essencialidade da participação popular na formulação dessas políticas, considerando que, nos últimos anos, esse direito tem sido constantemente negado até mesmo às entidades de sociedade civil que compõem o Conselho Nacional de Saúde, representando um grave retrocesso em razão da garantia em Constituição Federal do controle social no sus 35.
Pretendemos, com base nesta reflexão, suscitar e provocar debates a respeito do rumo que toma o cuidado com a saúde mental no Brasil, não esgotando o tema aqui, mas estendendo-o para maiores discussões e embates em busca da manutenção e do aprimoramento das conquistas da EPB, não retornando ao antigo modelo manicomial, desterritorializado, desumano e excludente.