Introdução
A formulação de uma política pública de saúde universal constitui-se um grande desafio no cotidiano, como é a realidade do Sistema Único de Saúde (sus) no Brasil. País de extensa dimensão geográfica, com uma população que ultrapassa 210 milhões de habitantes e em desigualdade social. Apesar de a Estratégia Saúde da Família (ESF) ter sido criada em 1994 para expandir e reorganizar a Atenção Primária à Saúde (APS) como a principal porta de entrada para o sus 1, "com vistas à universalidade do acesso a ações e serviços e à integralidade nas ações" (2, p. 186), "é um desafio no que tange garantir a disponibilidade e a acessibilidade à saúde para toda a população" (3, p. 1171).
O acesso à saúde é determinado por fatores organizacionais e técnicos influenciados pelas condições políticas, econômicas, sociais e simbólicas. Considera as dimensões da disponibilidade, da acessibilidade, da adequação funcional e da aceitabilidade 4. A acessibilidade relaciona-se à disponibilidade e à utilização de serviços em tempo oportuno conforme necessidade demandada pelo usuário, considerando a facilidade de acesso 5,6.
A demanda em saúde representa as necessidades individuais experienciadas e que são apresentadas no cotidiano dos serviços para serem atendidas. Quando o usuário busca e utiliza espontaneamente o serviço para resolver seu problema, denomina-se "demanda espontânea". Nesse contexto, "as dificuldades de acesso, elevada demanda espontânea e baixa resolutividade configuram a ineficácia na acessibilidade" (7, p. 8).
A universalidade do acesso pode ser ameaçada por vários fatores: fragmentação das ações e dos serviços de saúde, subfinanciamento, disponibilidade insuficiente de profissionais 8, infraestrutura inadequada, excesso de demanda e baixa oferta de serviços, modelo biomédico hegemônico, e restrição de instrumentos para a organização do processo de trabalho em saúde 9.
A concretização da acessibilidade à saúde é possível desde que seja trabalhada a partir de problemas advindos do cotidiano dos serviços e da demanda da população, integrados à ação direta dos profissionais, em um processo coparticipativo entre a população e os profissionais 10. A qualidade dos serviços de saúde é considerada como um indicador de saúde na Espanha, que tem investido em pesquisas que avaliam a satisfação do usuário e a qualidade dos serviços de saúde ofertados. Dessa forma, os resultados obtidos em pesquisas auxiliam na gestão dos serviços, orientando a implementação de melhorias nas políticas de saúde 11.
Dessa forma, em que pese à relevância da temática, faz-se pertinente a compreensão de vivências cotidianas de usuários, em demanda espontânea, para o acesso e a acessibilidade aos serviços e às ações no sus, tendo como porta de entrada no sistema a APS/ESF.
Nesse contexto, questiona-se: como os usuários que procuram atendimento em demanda espontânea vivenciam o acesso e a acessibilidade no sus na porta de entrada da APS? Este estudo teve o objetivo de compreender as vivências cotidianas de usuários em demanda espontânea para o acesso e a acessibilidade no sus na porta de entrada da APS.
Materiais e método
Trata-se de um estudo de casos múltiplos holís-tico-qualitativo 12, fundamentado na sociologia compreensiva do cotidiano de Michel Maffesoli 13.
O universo deste estudo contemplou cinco unidades de APS tradicional, sem equipes da ESF, e cinco unidades com equipes da ESF; seguiu-se à lógica de uma ESF e uma APS tradicional até a saturação dos dados, definidas por sorteio aleatório das 43 unidades de APS/ESF da região urbana de município de grande porte de Minas Gerais, Brasil (32 equipes da ESF e 11 da APS tradicional). Assim, trata-se de dois casos (unidades de APS tradicionais e unidades com equipes da ESF), em cenários que apresentam realidades diferenciadas pela organização das equipes e do cotidiano de trabalho, o que constitui um estudo de casos múltiplos holístico ao ter única unidade de análise: vivências cotidianas de usuários em demanda espontânea para o acesso e a acessibilidade na porta de entrada da APS. Para a análise de cada caso, buscaram-se as evidências convergentes ou divergentes nos resultados, identificando em ambas as realidades a replicação literal pela semelhança dos resultados nos casos múltiplos, com capacidade de generalização das proposições teóricas, ou seja, que possibilitam a generalização analítica para realidades similares 12.
A sociologia compreensiva do cotidiano 13 abaliza, neste estudo, a compreensão e a interpretação de um fenómeno contemporâneo de forma a descrever as experiências empíricas de usuários para o acesso e a acessibilidade aos serviços e às ações do sus na porta de entrada da APS. Assim, no cotidiano, é representada a condição humana em busca da assistência à saúde, em demanda espontânea, merecendo atenção e resolutividade do problema apresentado. Destarte, a sociologia do conhecimento comum, o vivido no cotidiano naquilo que é/está, como "experiência singular e concreta, a universalidade que reivindicam, as ideias que constituem símbolos de participação grupal" (13, p. 11), podem corroborar e/ou compartilhar as vivências de usuários participantes deste estudo com experiências de outros usuários de diversos municípios brasileiros.
Participaram da pesquisa 60 usuários que se encontravam nas 10 unidades de APS/ESF para o acolhimento à demanda espontânea, cuja participação foi voluntária. Adotaram-se como critérios de inclusão: usuários cadastrados pelas equipes da ESF ou da APS tradicional, após o atendimento na demanda espontânea, e maiores de 18 anos de idade. Excluiu-se a pessoa incapacitada de responder por seus atos.
A pesquisa de campo ocorreu de março a setembro de 2016. Utilizaram-se como fontes de evidências: a entrevista aberta e individual com roteiro semies-truturado e as notas de campo (NC) direcionadas para os procedimentos operacionais da pesquisa, com a descrição das características do município, das equipes da APS tradicional e das equipes ESF, realizadas após cada coleta de dados.
A priori, foi realizado um pré-teste do roteiro de entrevista, por duas pesquisadoras, sob a orientação da pesquisadora responsável, em uma unidade de APS não inserida como local de coleta de dados. No pré-teste, foi confirmada a adequação do roteiro da entrevista, sem necessidade de alterações.
A entrevista foi conduzida por uma das duas pesquisadoras que participaram da coleta de dados, realizada individualmente, após o atendimento do usuário na demanda espontânea, em espaço privativo na unidade de saúde onde estavam presentes apenas a pesquisadora e o participante. A abordagem dos usuários foi após o atendimento da demanda espontânea; em um primeiro momento, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi apresentado ao respondente, sendo esclarecidos o objetivo, a temática da pesquisa e a participação voluntária. Esse termo foi assinado em duas vias, uma para a pesquisadora e a outra para o usuário. Dos usuários abordados, 1o se recusaram a participar da pesquisa. As entrevistas foram gravadas em arquivo digital, tiveram duração média de 20 minutos e foram transcritas na íntegra após a autorização do participante.
Inicialmente, não foi definido o número de participantes. A coleta de dados foi encerrada após identificar a replicação literal em cada caso e no montante dos dois casos 12. Para manter o anonimato dos participantes da pesquisa, utilizou-se de códigos alfanuméricos: letra "E" de entrevistado, seguida por numeração consecutiva conforme a sequência cronológica das entrevistas. A saturação dos dados ocorreu no 6o° participante entrevistado, por replicação literal 12.
A análise de dados foi feita com base no referencial de análise de conteúdo temática, seguindo as etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação 14, integrando a sociologia compreensiva do cotidiano, ao considerar que é vivendo e experimentando anseios, valores e afeto que apreendemos os elementos constitutivos da vida cotidiana com o olhar da razão sensível 13.
A pesquisa foi desenvolvida segundo as diretri-zes e as normas regulamentadoras de pesquisas que envolvem seres humanos. A coleta de dados iniciou-se após a aprovação do projeto, sob o Parecer 1.251.73o do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São João del-Rei, Campus Centro-Oeste, e o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética 48043315.2.0000.5545.
Resultados
Considerando as características dos participantes deste estudo, 47 (78,3 %) são do sexo feminino e 13 (21,6 %) do masculino. Quanto à faixa etária, 23,3 % tinham entre 18 e 30 anos; 10 % entre 31 e 40 anos; 31,6 % estavam entre 41 e 5o anos; 1o % de 51 a 60 anos e 21,6 % acima de 6o anos. Com relação à escolaridade, 53,3 % dos participantes tinham ensino fundamental incompleto; 6,6 %, ensino fundamental completo; 8,3 %, ensino médio incompleto; 26,6 %, ensino médio completo e 3,3 %, ensino superior.
A apresentação dos resultados configura-se em duas categorias temáticas que representam os significados das experiências vividas pelos usuários em demanda espontânea para o acesso e a acessibilidade aos serviços e ações no sus, na porta de entrada da APS: 1. O SUS é para curar, no entanto é ele que está doente: a cultura médica vivida, na voz dos usuários, e suas três subcategorias: 1.1. Sistema Único de Saúde ou de descaso? 1.2. SUS: a dor é sua, se vira!; 1.3. Será que o Sistema Único de Saúde é capaz de cumprir seus deveres?; 2. O SUS ideal e a realidade vivida pelos usuários, e suas duas subcategorias: 2.1. Atenção Primária à Saúde: nós não temos a condição de responder à sua necessidade neste momento, quem sabe um dia! E 2.2. O SUS é bonito no papel.
O SUS é para curar, no entanto é ele que está doente: a cultura médica vivida, na voz dos usuários
Na primeira categoria, os participantes deste estudo abordam as vivências cotidianas perante elevada demanda espontânea, a cultura médica e as dificuldades para o acesso e a acessibilidade às ações e aos serviços no sus.
Eu tenho que mostrar meus exames, mas não tem como [...] é difícil demais conseguir ficha, porque é muita gente para pouco médico [... ] demora demais agendar consulta, exame de sangue às vezes demora. Aí a pessoa está doente e não pode se auto-medicar, e aí como faz? (E3)
Eu fiz meu exame de mama há seis meses, está pronto e até hoje não consegui entregar, os dois médicos daqui um está de férias e o outro, de licença, e ninguém te dá uma posição. (E39)
Os usuários questionaram a condição e a infraes-trutura dos serviços de APS/ESF e o vivido no sistema: Sistema Único de Saúde ou de descaso?
Nós não temos um serviço de saúde informatizado adequadamente, nós não temos postos de saúde decentes, são sujos, não poderia ter sujidades porque é um sistema de promoção da saúde, curar a pessoa, era para ter salas mais agradáveis e que não custa tanto dinheiro. Mas é uma questão de má administração financeira das verbas para saúde, isso é um problema que nós não sabemos lidar, e nós, enquanto cidadãos, não sabemos as regras da cidadania. Nós somos mal informados e, quando vamos defender os nossos direitos, somos tratados como perversos. É isso que acontece no nosso país. (E22)
Os profissionais de medicina fazem descaso com a gente, já o resto dos profissionais, principalmente as enfermeiras, são atenciosas. (E24)
Olha, em partes, o serviço é resolutivo, agora tem a outra parte, a demora para marcar consulta, o médico que não dá atenção [...]. Ah! Olha, para o sistema de saúde melhorar, não depende só daqui, precisa de um envolvimento muito maior. (E24)
A subcategoria sus: a dor é sua, se vira! descreve as percepções dos usuários diante dos profissionais que atuam nos serviços de APS/ESF.
Acho que, se todo mundo agisse com a mesma dedicação, com o mesmo carinho, ver que realmente a gente não vem aqui se não precisar, porque só procuro quando preciso, porque, se eu não preciso, tem quem precisa.
Mas tem profissionais que não estão nem aí! Tipo assim, a dor é sua, se vira! (E46)
A subcategoria Será que o Sistema Único de Saúde é capaz de cumprir seus deveres? descreve a importância do sus na compreensão dos usuários participantes deste estudo (EI, E4, ES, EIO, EI3, EI4, EIS, EI6, E17, E22, E23, E24, E31, E37, E44, E4S, E49, ES0, ES1 e ES6).
O mais importante para a gente é o Sistema Único de Saúde. O SUS é para curar e levantar as pessoas, mas, no entanto, ao invés do SUS curar as pessoas, o SUS é que está doente, o SUS está muito crítico, porque o governo, os nossos governantes, eles estão precisando de serem guiados por alguém que tem entendimento e sabedoria. Era para os nossos governantes serem umas pessoas civilizadas, ser um vitelo de um espelho possante que a gente pudesse espelhar neles, não é? Agora, como que você vai se espelhar nos governantes, igual têm no nosso Brasil? (EI)
Há uns quatro anos era mais complicado conseguir atendimento pelo SUS, agora a gente consegue com mais facilidade acesso à informação, atendimento, acompanhamento. (E4)
Pode ser que seja sorte, mais sempre que eu vou eu vejo um trabalho eficiente e de competência. Para mim funciona, eu vejo o pessoal reclamando, mas eu até então, não tenho do que me queixar, toda vez que preciso sou bem atendida e consigo solução. (E23)
Apesar da expressão dos usuários, participantes deste estudo, sobre as diversas dificuldades e barreiras que comprometem a efetivação dos direitos constitucionais previstos pelos princípios do sus, foi possível identificar aspectos facilitadores como a proximidade geográfica da unidade de APS/ESF para o acesso, a disponibilidade de serviços, como, por exemplo, a consulta de pré-natal, a puericultura realizada pela(o) enfermeira(o), a vacinação, entre outros procedimentos e ações, além da abordagem da equipe multiprofissional com capacidade de produzir a escuta qualificada, com responsabilização, vínculo e resolubilidade (NC).
O SUS ideal e a realidade vivida pelos usuários
Os parcos recursos disponíveis para a oferta à população atrelados à elevada demanda espontânea e à postura/atitude de alguns profissionais contextualizam para o usuário, participante deste estudo, um cotidiano de busca, como pode ser observado na subcategoria Atenção Primária à Saúde: nós não temos a condição de responder à sua necessidade neste momento, quem sabe um dia!
Eu acho que os profissionais não são preparados, eles não têm um discurso para estar enfrentando a impaciência do outro e ignorância do utente. Não têm essa preparação, entender que o outro é ignorante, olhar o lado do outro, mas aí ele apela para ignorância e entra na mesma frequência [...]. Mesmo recebendo um não, mas fala com respeito àquela pessoa, respeito à cidadania. "Nós não temos capacidade de responder à sua necessidade nesse momento, quem sabe um dia!" Mas não, já dá uma resposta nervosa, porque o utente já chega nervoso, com problema, ele está desesperado... e o nosso cidadão leva para o lado pessoal. (E22)
Surge na voz do usuário que o sus é bonito no papel:
Não funciona como devia funcionar, não é resolutivo de forma alguma; se fosse resolutivo, a gente não veria o estado das pessoas, todo mundo que vem aqui está impaciente, você observa as pessoas quando estão esperando, elas estão insatisfeitas [...], mas o serviço público de saúde é muito bonito no papel, mas não funciona na realidade. (E22)
Na análise múltipla dos casos, foi possível identificar que as unidades de APS tradicional foram apontadas pelos usuários, participantes deste estudo (E1, E2, ES, E9, E23, E26, E27, E28, E29, E35, E36, E3S e E44) como mais resolutivas e organizadas em relação às unidades da ESF.
Aqui, neste centro de saúde, tem o dia certinho para agendar consulta e consultar. Agenda numa semana e na outra a gente consulta, não é demorado não [...]. Para mim, graças a Deus, sempre foi acessível, nunca tive problema não. Só teve uma vez que eu vim na consulta e não me atenderam e nem ligaram para desmarcar [...]. Só elogios, isso eu tenho demais, eu mudei para cá tem um ano e a ESF onde eu frequentava, em outro bairro, era muito tumulto, não tinha a resolução que aqui tem, então, tudo que eu preciso com no máximo uma semana aqui resolve. (E35)
Considerando a análise múltipla dos casos, as subcategorias Sistema Único de Saúde ou de descaso?; Atenção Primária à Saúde: nós não temos a condição de responder à sua necessidade neste momento, quem sabe um dia! e O SUS é bonito no papel consideram os sentimentos proferidos pelos participantes deste estudo (E2, E4, ES, E6, ES, E9, EIO, E11, E12, E13, E14, EIS, E16, E17, EIS, E19, E20, E21, E22, E23, E24, E2S, E2S, E30, E31, E32, E33, E37, E40, E41, E43, E46, E47, E4S, E49, ESO, ES1, ES2, ES3 e ESS), usuários em demanda espontânea, em busca de acesso e acessibilidade às ações e aos serviços. No cotidiano, a resolubilidade no sistema constitui-se um desafio, principalmente perante as dificuldades enfrentadas quando o usuário é referenciado aos outros níveis de complexidade (E3, E7, E17, E24 e E34); a demora ao marcar retorno à consulta (E1, E3, E6, E7, E17, E39, E42 e E4S); a falta do profissional médico e a centralidade de suas ações com atenção fragmentada e intervenções curativistas (E6, EU, E1S, E22, E23, E24, E2S, E33, E40, E41, E42, E44, E4S, E46, E47, ES1 e ES2); e a falta de insumos básicos como a vacina (E10, E24, E34 e E39).
Considera-se que a demanda espontânea de usuários, em ambos os casos, está voltada para o agendamento de consultas, o atendimento médico e o acesso aos exames em uma assistência ao adoecimento. Os resultados apresentam as perspectivas dos participantes deste estudo perante o acesso às ações e aos serviços que desejam e/ou necessitam e a acessibilidade com resolutividade no cotidiano, além de enfatizar a visão individual dos participantes sobre o sistema de saúde público, o sus (NC).
Discussão
Perante as experiências cotidianas vivenciadas pelos usuários em demanda espontânea, para o acesso e a acessibilidade aos serviços e às ações no sus, tendo como porta de entrada as unidades de APS tradicional ou da ESF, as perspectivas se voltam para a cultura médica e a resolutividade de queixas/adoecimento. As noções formuladas a partir das vivências dos participantes deste estudo, antes de serem denominadas como negativa do saber, trazem riqueza de conhecimento e mostram, de forma única, a essência de toda atitude advinda de experiências 15.
A APS/ESF, como porta prioritária de entrada no sus, deve estar organizada como coordenadora do cuidado e ordenadora das ações e dos serviços disponibilizados na Rede de Atenção à Saúde de forma a facilitar o acesso, sendo mais próxima possível do domicílio do usuário, onde ele deve estar adstrito e ser acompanhado pela equipe multiprofissional, a qual deve dispor, em seu cotidiano, de recursos físicos, pessoais e materiais compatíveis às ações de saúde, além de organização, expansão e qualidade da atenção 1. Contudo, como evidencia este estudo, o acesso aos serviços de saúde da APS/ESF continua desafiador, restritivo e burocrático, regulado pela demanda espontânea do usuário e pela agenda médica.
Desafios semelhantes ligados ao acesso e à resolubilidade na APS foram apontados em estudo na África do Sul, no qual se explicitou que, embora os problemas de acesso aos serviços públicos de saúde sejam vivenciados por todos, as pessoas com deficiências e limitações são afetadas de maneira específica. Os usuários proferiram que a saúde não pode ser universal nem equitativa se for menos acessível a alguns grupos da sociedade 16.
As experiências vividas pelas pessoas têm ambos os lados, ou seja, sentido e razão. Portanto, deve-se ter uma compreensão holística de cada ser e de seu discurso, pois, mesmo que vivenciando um lado mais que o outro, sentido e razão estão sempre se contaminando 17.
Quando funcionam adequadamente, os serviços ofertados pelo sus são capazes de proporcionar maior excelência do cuidado, sistematização do fluxo dos usuários, tratamento efetivo das condições crónicas, satisfação e resolutividade das demandas da população 18. Entretanto, percebe-se a cultura biomédica em oposição ao papel ordenador da APS que, historicamente, enfrenta o subfi-nanciamento, a inadequação da infraestrutura física, a insuficiência de recursos materiais e humanos para atender, classificar e resolver em caráter universal, integral e equânime a queixa do utente quando ele necessita 19.
A queixa do usuário em demanda espontânea requer atos e atitudes dos profissionais de Enfermagem, responsáveis pelo acolhimento nas unidades de APS/ESF, fundamentados na sensibilidade, que é a base da maneira de ser, do cotidiano e da sociedade em si. Desse modo, em todos os sentidos agradam o indivíduo desde que a interação dele com a sociedade e a natureza seja promovida de forma holística 17. Nesse sentido, podemos inferir que a abordagem do profissional com o usuário no ambiente da APS pode ser refletida no sentimento do usuário em relação ao sistema (NC).
A cultura biomédica, muito presente neste estudo, não é primazia no Canadá. O trabalho em equipe multidisciplinar tem abordagem dos pacientes em grupos, de acordo com as demandas individuais para os cuidados de saúde primários. Após a abordagem grupal, os pacientes são atendidos em consultas individuais por um dos profissionais da equipe, e não somente pelo médico, evitando atraso para agendamento de consultas 20. Aqui, enfatiza-se a relevância do trabalho em equipe do enfermeiro e técnico de enfermagem na atenção à saúde no cotidiano dos serviços da APS/ESF e dos demais serviços que compõem o sus.
O subfinanciamento tem se tornado o grande gargalo do sus, pois criam-se obstáculos para a população acessar os serviços de saúde 21,22. Dessa maneira, percebe-se que é utópico desvincular a política pública da efetividade, porquanto seu objetivo não se esgota com a eficácia, mas sim com a eficiência para o gozo da sociedade. É evidente o descaso. Muitas vezes, nem direitos previstos na Constituição da República Federativa do Brasil são garantidos efetivamente. Desse modo, tristemente, a população fica entregue à sua própria sorte 23.
A desconfiança nos governantes foi mencionada nos resultados deste estudo. Os desafios do momento se configuram como um objeto de desconfiança política. "Um elemento que permite pór em relevo a importância do relativismo cíclico na consciência coletiva é a atitude em relação ao político [...] e o que concerne a atividade política" (13, p. 179).
Para Maffesoli 24, a democracia é como um modelo representativo, cujo poder é delegado a um líder, o qual tem o dever de trabalhar em benefício de toda a população, e não em prol de seus próprios interesses, como elucidado na voz dos participantes deste estudo.
A equidade de acesso e a redução das desigualdades são os principais objetivos dos cuidados primários de saúde. No entanto, os apoios necessários para atingir a equidade são frágeis e vulneráveis às mudanças no ambiente fiscal e político. Nesse sentido, os serviços primários de saúde australianos foram examinados durante um período de cinco anos (2009-2013), em que se constatou que os serviços controlados pelo governo estadual tiveram o acesso dificultado, reduzido ou comprometido devido aos resultados das mudanças no cenário político. Já os serviços controlados pela comunidade, as organizações não governamentais, tiveram um aumento em sua amplitude de estratégias usadas para abordar a equidade em saúde. Essas diferentes trajetórias sugerem o valor da governança comunitária e destacam a necessidade de monitorar o desempenho da equidade em saúde 25.
Mesmo considerando entraves, desacertos e iniquidades, houve um efetivo progresso na área da saúde pública brasileira, apesar de o sus ainda não conseguir atender com eficácia e resolutividade as necessidades de saúde de todos os usuários em tempo oportuno e esperado. Ainda é necessário um desenvolvimento contínuo do sistema por meio da gerência participativa e descentralizada, das políticas públicas e sociais que visem à efetivação da integralidade em saúde e da universalidade da atenção, sem discriminação e iniquidades 26,27.
A amostragem intencional constitui-se uma limitação neste estudo, ao incluir como participantes os usuários que estavam presentes nas unidades de APS/ESF no dia da coleta de dados, representando um subgrupo de parte da população usuária do sus. Mas, em estudos de casos múltiplos, com saturação dos dados por replicação literal 13, a amostragem intencional pode ser considerada representativa em populações com condições similares.
Este estudo apresenta contribuições para a área da saúde e da Enfermagem ao compreender a demanda espontânea, o acesso e a acessibilidade na porta de entrada preferencial do sus, a APS, segundo as vivências de usuários. Os resultados podem suscitar reflexões e subsídios para a organização e o planejamento do trabalho cotidiano na APS, com vistas ao arranjo da demanda em ações programáticas e espontâneas em casos de urgência e emergência, o que favoreceria o acesso universal aos usuários, conforme necessidade de cada um e da coletividade.
Conclusões
Ao retomar a fala "O sus é para curar, no entanto, é ele que está doente", revela-se a necessidade de repensar o fluxo de atendimento dentro do sistema, controlado pela demanda espontânea e regulado pelo adoecimento, conferido a partir de movimentos reais e espontâneos de usuários, de suas expectativas e necessidades.
No cotidiano, as pessoas estão presentes nos serviços de APS/ESF devido a uma necessidade ou agravo percebido e, muitas vezes, não são atendidas de forma integral, e sim em resposta ao dano ou queixa do momento, concretizando a atenção curativa, fragmentada, sem vinculação e corres-ponsabilização de profissional e usuário. Os profis-sionais têm um papel relevante no acolhimento e na vinculação do usuário; podem ser tanto os facilitadores como os dificultadores da relação a ser estabelecida e do acesso às ações e aos serviços pelos usuários. É na APS/ESF que, normalmente, os usuários terão ou deverão ter o primeiro contato e encontrarão uma porta de entrada para o sistema. Portanto, acolher de forma humanizada faz toda a diferença no atendimento à demanda espontânea.
Vale ressaltar a magnitude do SUS como uma política pública inclusiva no Brasil, mediante a diminuição das desigualdades de acesso à saúde. No entanto, esse sistema é um processo social em construção interdependente de uma efetiva participação popular, para melhorias na atenção com acesso qualificado pela acessibilidade às ações e aos serviços do SUS, conforme necessidade de cada usuário e da coletividade.