Introdução
O consumo de substâncias psicoativas, conhecido culturalmente como "consumo de drogas", trata-se de um fenômeno milenar, presente em todas as civilizações e perdurável na história. Desde a pré-história, substâncias psicoativas são empregadas para inúmeras finalidades, quer seja para emprego lúdico, com fins exclusivamente prazerosos, quer seja para induzir estados de êxtase místico ou religioso, atenuação de tensões e preocupações ou até mesmo para obter cura para problemas de saúde 1,2.
Entretanto, ao longo da história, os padrões para o consumo se modificaram. Na contemporaneidade, a relação do ser humano com as substâncias psicoativas vêm sendo percebido como um grave problema social de âmbito mundial, por conta da magnitude, da expansão do consumo e dos prejuízos sociais 1. A prática do consumo tem sido relacionada às primeiras causas mortis evitáveis, aos casos de violência urbana, aos acidentes de trânsito e aos conflitos psicossociais 3-5.
No contexto brasileiro, os impactos negativos ocasionados pelo consumo de drogas incentivaram o Ministério da Saúde a criar políticas públicas de saúde específicas a fim de orientar profissionais da área. Entre essas políticas, destacam-se a política de atenção integral a usuários de álcool e outras drogas (2003), que preconiza a promoção do cuidado comunitário, regido pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e fundamentado em uma lógica transversalizadora 6. Também merece destaque a Portaria 3.088 (2011), que instituiu a rede de atenção psicossocial para pessoas com transtornos mentais e problemas decorrentes do consumo de drogas no SUS 7.
Nessa proposta de inserção comunitária, emerge a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que consiste em importante dispositivo para o acolhimento e a promoção do cuidado das pessoas que vivem problemas decorrentes do consumo de drogas. Trata-se do motor principal da atenção básica, serviço que direciona suas ações com base na integralidade e na abordagem continuada, numa lógica de corresponsabilidade entre o profissional cuidador e a comunidade, vendo o sujeito a partir de suas singularidades e no contexto no qual vive 8,9.
Além disso, insere-se, nesse serviço, um importante protagonista social, o agente comunitário de saúde (ACS), trabalhador que, ao mesmo tempo, integra a equipe de saúde e reside na comunidade que abrange a unidade básica. Essa condição lhe permite ter um vasto conhecimento sobre as peculiaridades e as necessidades do território, além de favorecer a relação de proximidade com a população, que se caracteriza pela propensão à solidariedade, ajuda mútua e liderança comunitária 10.
Logo, na dinâmica relacional que ocorre entre os ACSS e a comunidade, desvela-se uma potencialidade para o cuidado em saúde que pode ser empregada como força motriz no desenvolvimento de práticas transformadoras direcionadas aos usuários que consomem drogas 11.
Não obstante, percebemos uma potencialidade no trabalho do ACS para a promoção do cuidado no contexto do consumo de drogas. Verificam-se, na literatura, estudos que normalmente enfatizam outras perspectivas, ou seja, versam que os ACSS não estão capacitados ou não têm formação suficiente para executar o processo de trabalho em saúde ante as pessoas que fazem consumo de substâncias psicoativas. Além disso, concepções que convergem para estereótipos e consequente emissão de juízo de valor relacionados ao consumo de drogas, a exemplo do medo do tráfico, aparecem como justificativas apresentadas pelos ACSS para não prestar o cuidado 12-14. Destaca-se que tais conclusões são oriundas de estudos com abordagem objetivista. Por sua vez, não foram encontrados trabalhos que se propuseram a investigar o fenômeno à luz da intersubjetividade, que considerassem a relação que pode ser estabelecida entre pesquisador e participantes do estudo, e a comunicação efetiva que ocorre entre seres humanos 15.
Assim, a pesquisa justifica-se pela necessidade da retomada de discussões acerca do tema "ACS e a promoção do cuidado no contexto do consumo de drogas", a partir de uma nova contribuição teórico-filosófica, o que poderá auxiliar de maneira especial na compreensão dos fatores que desmotivam o protagonismo para o cuidado. Diante do exposto, o objetivo deste estudo é desvelar vivências do ACS no cuidado da pessoa consumidora de drogas.
A relevância do estudo consiste, principalmente, em fornecer subsídios teóricos, baseados na vivência cotidiana dos ACSS, que poderão contribuir para o planejamento e a implementação de estratégias capazes de potencializar as ações destes no que refere ao cuidado no contexto do consumo de drogas. Ademais, a produção desse conhecimento poderá auxiliar na implantação das redes de atenção psicos-social entre os diferentes municípios do estado da Bahia, assim como contribuir para a orientação do cuidado das pessoas que vivenciam sofrimento decorrente do consumo de drogas.
Materiais e métodos
Por se tratar de um estudo que objetivou abordar a vivência humana, ocorreu a opção de fundamentá-lo com a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. O autor se ocupou em descrever as vivências temporais retomadas que se referem ao mundo da percepção, ou seja, constantemente, em função da intersubjetividade, aquelas que eram imanentes (no nível da inconsciência) se tornam transcendentes (consciente, possível de reflexão), e a experiência sensível torna-se objetividade 15,16.
O estudo foi desenvolvido em um município de médio porte situado no estado da Bahia, nordeste do Brasil, no primeiro semestre de 2018, junto a uma amostra de conveniência composta de sete ACSS, dos quais três eram mulheres e quatro, homens, com idades entre 30 e 56 anos. A seleção ocorreu em uma das reuniões gerais promovidas pela Secretaria Municipal de Saúde junto a esses trabalhadores, quando foi permitido à equipe pesquisadora apresentar o projeto de pesquisa, assim como convidá-los para que participassem voluntariamente.
Na entrega do convite, consideramos como critério de inclusão ACSS que estivessem trabalhando normalmente, sem desvio de função; como critérios de exclusão, ACSS em período de licença médica, licença-maternidade, afastamento administrativo ou indisponibilidade para participar do estudo.
A coleta das informações (produção das descrições vivenciais) ocorreu durante o primeiro semestre de 2018, mediante três encontros de grupo focal, realizados em uma sala reservada da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Os encontros tiveram duração média de duas horas; contaram com a participação dos sete ACSS, de uma moderadora e uma observadora; foram subsidiadas respectivamente pelas seguintes questões orientadoras: como você percebe o cuidado no contexto do consumo de drogas na ESF? Qual o papel do ACS no desenvolvimento de ações voltadas para o cuidado no contexto do consumo de drogas? Quais as principais dificuldades ou potencialidades que o ACS dispõe para promover o cuidado no contexto do consumo de drogas?
O desenvolvimento do grupo focal foi apropriado para o referencial teórico-filosófico utilizado no estudo, pois favoreceu a relação dialógica e a intersubjetividade. À medida que cada ACS compartilhava no grupo vivências de cuidado no contexto do consumo de drogas, os demais vivenciavam sua temporalidade e se mobilizavam para enriquecer as discussões.
Todas as informações dos encontros de grupo focal foram gravadas e transcritas na íntegra; em seguida, foram submetidas à analítica da ambiguidade, uma estratégia de organização das descrições vivenciais ("dados empíricos") construída por Sena, uma das autoras deste artigo, durante seu processo de doutoramento, por não ter encontrado na literatura tradicional especializada um procedimento adequado para a análise de relatos em pesquisas fundamentadas na fenomenologia merleau-pontyana, assim como em outras pesquisas qualitativas que têm como objeto a percepção humana 17.
Sob a orientação de Sena, seguiram-se todos os passos propostos pela técnica, a saber: 1) organizar as descrições vivenciais oriundas das gravações em formas de textos; 2) realizar leituras exaustivas dos textos que correspondem às descrições vivenciais; 3) deixar que os fenômenos se mostrem em si mesmos a partir de si mesmos, o que significa dizer que o pesquisador vive sua experiência perceptiva durante a leitura e nesta ele se reconhece como generalidade intercorporal-com isso, corrobora-se que um estudo fenomenológico sempre parte de uma vivência e que o conhecimento se constitui a partir da interação com o outro; 4) a experiência perceptiva se insere em um campo fenomenal no qual possibilita inúmeras ambiguidades, entretanto convencer-se que, para a elaboração dos achados, é necessária a realização de objetivações 17.
Portanto, a compreensão das vivências ocorreu mediante transcrição e organização das entrevistas, realização de leituras exaustivas dos textos, exercício perceptivo das descrições sob o olhar figura-fundo, para que os fenômenos se mostrassem em si mesmos a partir de si mesmos, e, por fim, objetivação em categorias. O processo de análise foi desenvolvido em aproximadamente três meses, e os resultados foram validados pelos participantes como um "retornar às coisas mesmas" 15, durante um encontro realizado com a finalidade de apresentar as categorias que emergiram das descrições vivenciais e confirmar se a percepção construída correspondia ao que desejaram tornar claro por meio da linguagem.
Ressalta-se que as autoras deste artigo são integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Saúde Mental: Loucos por Cidadania, e periodicamente participam de capacitações para o desenvolvimento de pesquisas qualitativas, com ênfase em metodologias que favorecem a intersubjetividade, a exemplo de entrevistas fenomenológicas e grupos focais para a produção de informações, além de ferramentas para análises vivenciais em seres humanos, tais como a analítica da ambiguidade.
O estudo obedeceu às determinações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, portanto a entrada no campo aconteceu após a aprovação do comitê de ética e pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, sob o Parecer 1.163.911 18. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, e tiveram a identidade preservada pela sigla ACS (ACS 1, ACS 2, ACS 3, ...).
Resultados
Durante os encontros de grupo focal, os ACSS demonstraram saber que o cuidado em saúde direcionado ao consumo de drogas, no âmbito da ESF, deve estar alicerçado por princípios e diretrizes que regem o trabalho na atenção básica. Porém, esse conhecimento não mostrou ser suficiente para induzir a oferta do cuidado, uma vez que constantemente declararam enfrentar diferentes dificuldades para ser corresponsáveis pela questão, conforme aparece implícito nas descrições:
No meu trabalho [ACS], a orientação que dou para um, tenho que levar para todos, independentemente se usa drogas ou não. Às vezes ficamos restringidos, mas não devemos ver o usuário de drogas como uma pessoa diferente, mas sim, como um integrante da sociedade. (ACS 3)
Precisamos dar mais atenção e não deixar tão discriminados como deixam, eles são muito separados, discriminados, até para nós agentes, a aproximação é difícil. (ACS 6)
É possível observar que, como forma de reflexão, os ACSS argumentaram sobre o caráter discriminatório que entorna o fenômeno do consumo de drogas, o que constitui barreira para o cuidado. Logo, consideram a ruptura com o estigma e o preconceito, tarefa difícil, mas necessária para a efetivação dos direitos de saúde daqueles que consomem drogas.
Apesar de os ACSS terem apresentado esse discurso, o olhar figura-fundo permitiu perceber uma ambiguidade: ao mesmo tempo que defendem a prática do cuidado a todos usuários da ESF, são tomados, involuntariamente, pelo preconceito que os imobiliza a produzir o cuidado.
Quando dizem "às vezes ficamos restringidos" e "até para nós agentes a aproximação é difícil", aflora um sentimento de recusa que dificulta o cuidado desse segmento populacional. Portanto, há um conflito que envolve o sentir e o pensar, o refletir e o agir.
A ambiguidade também se mostrou quando os ACSS destacaram a necessidade da construção de vínculos com a comunidade para o trabalho na atenção básica, sobretudo no que se refere ao cuidado daqueles que consomem drogas de forma habitual. Ou seja, eles reflexivamente reconhecem o mérito do cuidado ao seguimento, contudo parece que, de forma irrefletida, negam-se a promoção do cuidado.
O primeiro passo para cuidar das pessoas que apresentam problemas com drogas é trazê-las para perto de nós, para terem confiança em nós. (ACS 2)
Acho que alguém precisa fazer alguma coisa para que eles [consumidores de drogas] possam confiar em nós [ACS], porque estamos todos os dias ali na área, não os tratamos mal, então eles precisam ter um pouco mais de confiança nos profissionais de saúde, ter um vínculo maior. (ACS 4)
Tem que arrumar alguma estratégia, algum jeito de colocar esse pessoal para ter mais confiança em nós, agentes comunitários de saúde. (ACS 6)
Não obstante a construção de vínculos tenha sido considerada pelos participantes como sendo de fundamental importância para o cuidado, as entrelinhas das descrições revelam o distanciamento existente entre ACS e usuários que consomem drogas. A ausência de vínculos que ocorre de forma indeliberada consiste em limitação para o cuidado, pois os participantes não sabem o que fazer ou como agir para reverterem a situação no sentido da produção do cuidado.
Da mesma maneira, as descrições fizeram ver que não há uma aproximação dos demais profissionais da ESF com a promoção do cuidado aos consumidores de drogas, o que revela a carência na corresponsa-bilização desses atores sociais ante problemática.
Se você chegar no posto e falar "aquele rapaz é usuário de drogas, estou trazendo porque teve uma overdose!" O pessoal da equipe não tem a mesma ética que você tem, de repente, todo mundo fica sabendo. E aí o usuário fica com aquele pensamento: "confiei no agente e ele me traiu". (ACS i)
Médicos e enfermeiras poderiam formar grupos para orientar a população sobre as drogas, mas também se tivessem conhecimento sobre como fazer isso, ou interesse, pois acham que não é o papel deles. Existem médicos que mal olham para a cara do paciente, imagina fazer grupo para falar de drogas. (ACS 4)
As ações integradas e a parceria entre os setores foram destacadas como fundamentais para o desenvolvimento de um cuidado efetivo, porém as tentativas ineficientes de ações nesse sentido foram apontadas como empecilhos para o cuidar.
Tínhamos um grupo de adolescentes lá no posto, e hoje a maioria deles são usuários de drogas. E por que não demos continuidade ao grupo? Porque não recebemos apoio da Secretaria de Saúde e nem das Escolas. (ACS 2)
Às vezes nos treinamentos, sinto a cobrança dos gestores de que devemos mostrar à população quem é o agente. Eu sei que sou um bom agente, mas onde estão os demais serviços da rede para referenciar? Tem coisas que não depende só de mim, ou da Estratégia de Saúde da Família, depende de toda uma rede preparada. (ACS 7)
Em uma perspectiva mais abrangente, questões relacionadas ao "sucateamento" dos recursos humanos na atenção básica também foram sinalizadas como impeditivas para o cuidado no contexto do consumo de drogas, como observamos nas descrições:
Temos produzido muitos profissionais capitalistas, isto também tem sido uma grande dificuldade. A pessoa vai trabalhar como um capitalista, não quer transformação no Sistema Único de Saúde, quer apenas ganhar o salário. (ACS 3)
Eles [usuários da ESF que consomem drogas] nunca vão confiar, nem no enfermeiro, nem no médico, até porque enfermeiro e médico mudam muito com as transições de gestão, então, não tem como criar vínculo com a população. (ACS 6)
As condições de estresse e sofrimento no trabalho dos ACS se mostraram como desmotivadoras, o que tem limitado o interesse em desenvolver práticas efetivas e transformadoras, e, por consequência, influenciado negativamente no cuidado ao público em questão.
Quando criaram os agentes comunitários de saúde, nos fizeram muitas propostas de intervenção social, e hoje, vemos vários agentes que participaram dessas intervenções com depressão, porque não é fácil você chegar em uma casa, ver as pessoas passando necessidade e você não poder fazer nada. (ACS 1)
Uma vez falei na Secretaria de Saúde que precisavam chegar à área e explicar para a população qual é o nosso papel, porque a população acha que devemos resolver todos os problemas da comunidade. (ACS 5)
Diante dos resultados apresentados, desvelou-se que as dificuldades percebidas pelos ACSS para o cuidado no contexto do consumo de drogas são bem amplas, complexas e se mostram como questões ambíguas, ora operando na impessoalidade, afetando a natureza humana sensível, ora operando na pessoalidade, atingindo a dimensão reflexiva, que é sociocultural.
Discussão
Mediante o exercício da intersubjetividade, evidencia-se que os ACSS compartilharam a ideia de que as práticas de cuidado voltadas ao consumo de drogas precisam estar alicerçadas pela universalidade, pela equidade, pela integralidade, pela longitudinalidade do cuidado e pelo cuidado centrado na pessoa.
Na intersubjetividade possibilitada pelos encontros de grupo focal, a partir da integração entre participantes, mobilizados pelo entrelaçamento entre o sentir e o refletir, os ACS vivenciaram uma coexistência intersubjetiva. Esses entrelaçamentos desvelam a generalidade intercorporal, a qual acontece mediante o encontro de sujeitos, no coexistir, nas experiências que se abrem a outras experiências. Desse modo, ocorre a produção de momentos de ressignificações vivenciais, afetivas e reflexivas da relação eu-outro-mundo 15,19.
Ao retomarmos a Política Nacional de Atenção Básica, é possível perceber que os critérios discutidos ao longo dos encontros pelos participantes constituem alguns dos eixos orientadores para o trabalho em saúde; enquanto a universalidade, a equidade e a integralidade constituem-se em princípios, a longitudinalidade do cuidado e o cuidado centrado na pessoa correspondem a algumas das diretrizes 20. Logo, a qualidade do cuidado está relacionada à capacidade de acolhimento e à satisfação do usuário.
Uma vez que discutiram sobre os princípios e algumas das diretrizes indispensáveis para o cuidado de toda a população adscrita, incluindo aqueles que fazem o consumo de drogas, depreendemos que se apresenta um perfil de potencialidade no trabalho dos ACSS, o qual pode ser utilizado para o cuidado da clientela em questão.
No entanto, essa potencialidade parece não ser enfatizada, ou seja, é deixada em segundo plano pelos participantes, pois, a todo o momento, eles se esforçaram em compartilhar a concepção de que dificuldades sobressaem para o exercício de cuidadores. Logo, desvela-se um outro perfil perceptivo para os participantes do estudo, aquele relacionado aos ACSS que vivenciam o sentimento de "impotencialidade" quanto ao fenômeno "consumo de drogas".
Na medida em que resgatavam em suas vivências as dificuldades para o cuidado, os participantes vivenciavam o corpo próprio. A noção de corpo é discutida pelo filósofo como a experiência intersubjetiva, ou seja, a vivência da temporalidade, as experiências pessoais que são mobilizadas a partir das interações sociais, ao próprio entrelaçado ao que é do outro, que opera em cinco dimensões: corpo habitual, corpo perceptivo, corpo falante, corpo sexuado e corpo do outro. No presente estudo, as descrições vivenciais dos ACSS possibilitaram estabelecer um diálogo com as noções de corpo habitual, corpo perceptivo e corpo do outro, portanto, não discutiremos corpo falante e corpo sexuado no presente estudo 15.
A partir da discussão quanto às diferentes concepções, emergiu, no discurso dos participantes, o caráter de estigma e preconceito que entorna o fenômeno, ou seja, retomaram o imaginário social de que o consumo habitual de drogas se trata de um comportamento desviante. À luz do pensamento de Merleau-Ponty acerca da percepção, esse imaginário social, que retoma um horizonte de passado, constitui uma vivência do corpo habitual21.
Apesar de ser considerada uma tarefa difícil, os ACSS assumiram que precisam romper com o imaginário, muitas vezes de cunho pejorativo, que trazem consigo. Por sua vez, demonstraram ambiguidade ao conceber que todo usuário da ESF, independentemente de consumir drogas ou não, tem direito ao cuidado em saúde.
Dessa forma, percebemos a instabilidade vivenciada pelos participantes do estudo. Ao mesmo tempo que estão convencidos de que precisam vencer o preconceito, o corpo habitual retoma a imagem aprendida na convivência sociocultural-o consumo de drogas como um ato imoral -, mobilizando-os a omitir-se diante da situação.
A atitude de lançar-se em direção ao futuro, a partir da orientação do corpo habitual, corresponde à noção de corpo perceptivo, ou seja, é como um movimentar-se em duas perspectivas: de um lado, o corpo procura algo a partir de um passado anônimo, de um não saber de si, pois toda percepção acontece em uma atmosfera de generalidade e se dá a nós como anônima. Por outro lado, desconhecendo o que procura, o corpo transcende-se em direção ao futuro, como um lançar-se para além de si, rumo às possibilidades 15,22.
A retomada do corpo habitual parece ser vivida não somente pelos ACSS, mas também por todos os outros trabalhadores que compõem a rede de atenção psicossocial. Tal compreensão partiu da identificação de discursos que revelaram um desinteresse geral pela problemática, postergando a responsabilidade compartilhada pelo cuidado.
Em uma perspectiva diferente, também se desvelaram como entraves para o cuidado profissionais de saúde descomprometidos com os princípios do SUS, rotatividade de médicos e enfermeiros nos serviços de saúde que implica a descontinuidade do cuidado, ausência de parcerias intersetoriais, desvalorização do trabalho do ACS e sofrimento por conviver com a vulnerabilidade social da população.
Apesar de esses enfrentamentos não serem específicos do processo de trabalho voltado para o fenômeno "consumo de drogas", compreendemos que correspondem a um contexto de precarização da atenção básica que desmotiva o exercício da função. A conjuntura apresentada vai de encontro aos princípios propostos pela Política Nacional de Atenção Básica.
Com novos olhares, notamos que as dificuldades para o cuidado relacionado ao consumo de drogas também são permeadas pela dinâmica de trabalho na ESF e não estão associadas somente ao estigma, ao preconceito, ao medo da violência e do narcotráfico. De fato, as questões relacionadas à criminalização, à violência e à estigmatização também são apontadas por outros estudos como principais limitadores para o cuidar do grupo populacional em questão 12-14,23-26. Ademais, pouco se discute sobre as repercussões do processo de trabalho na ESF para esse tipo cuidado.
Logo, a reflexão dos participantes de que as adversidades do processo de trabalho na ESF constituem-se em uma barreira para o cuidado no contexto do consumo de drogas lhes permite a vivência do corpo do outro. Para Merleau-Ponty, essa expressão significa tornar-se um outro eu mesmo, ou seja, ao mesmo tempo que o ACS reconhece a necessidade de atuar diante do fenômeno "consumo de drogas", sente-se desmotivado por conta das precárias condições de trabalho 15.
Nos escritos de Merleau-Ponty, o corpo próprio relaciona-se à vivência da percepção, e esta sempre conduz à experiência do outro eu mesmo. Para o autor, a percepção sempre é compreendida de acordo com o ponto de vista de quem a vive, já que a única coisa que se pode objetivar dessa vivência é de que se trata de uma experiência ambígua, em que coexistem duas naturezas: uma impessoal (os sentimentos) e outra pessoal (pensamento, a linguagem) 15,22.
As descrições dos participantes corroboram essa ambiguidade: ao mesmo tempo que reconhecem o que é necessário para cuidar dos usuários que consomem drogas, são tomados por uma sensação de impotência diante da questão. A frustração com o processo de trabalho na ESF se sobressai às expectativas de resolubilidade do serviço, implicando o desânimo para implementar práticas cuidativas.
Uma vez que o ACS desacredita na ESF, a potencialidade de seu trabalho é atenuada, o que influenciará diretamente no cuidado dos usuários, entre os quais se inserem os que consomem drogas de forma habitual. À medida que o ACS se desmotiva, abre possibilidade para que um outro eu apareça: aquele que não acredita na atenção básica e que é indiferente aos problemas comunitários decorrentes do consumo habitual de drogas.
Diante dessa complexa relação, não descartamos a importância do desenvolvimento de ações junto aos ACSS que lhes permitam romper com a visão discriminatória que entorna o fenômeno em questão. Todavia, a mobilização para o cuidado relacionado ao consumo de drogas poderá ocorrer, de modo mais expressivo, quando os formuladores de políticas públicas reconhecerem as dificuldades que despertam nos ACSS o sentimento de impotência e, a partir de então, instituírem melhores condições de trabalho para o cuidado das pessoas que vivenciam problemas decorrentes do consumo de drogas.
Nesse sentido, acreditamos que a principal contribuição do estudo consiste em dar visibilidade à relação conflituosa vivenciada pelo ACS, o qual reconhece que precisa cuidar das pessoas que vivenciam problemas decorrentes do consumo de drogas, mas, por conta do julgamento moral ou da desmotivação decorrente da precarização do trabalho, omite-se diante da problemática.
Conclusões
Embora tenha emergido a potencialidade para o cuidado no contexto do consumo de drogas, a ambiguidade se revelou quando os ACSS se julgaram impotentes diante do fenômeno e incansáveis em sustentar o argumento de que ser corresponsável pela questão não consiste em uma tarefa fácil. Ao retomarem a vivência do corpo próprio, mostraram vivenciar uma desmotivação para o cuidado, influenciada por questões amplas e complexas, que variam desde a associação do consumo à imoralidade, à violência e ao narcotráfico, até a convivência com o "sucateamento" da ESF e a precarização da categoria dos ACSS.
Portanto, o estudo propõe que a ineficiência dos ACSS ante a problemática seja abordada a partir da consideração de seus diversos enfrentamentos para o exercício da função. A elaboração e a implementação de políticas públicas que considerem as limitações desses trabalhadores poderão colaborar, de maneira significativa, no cuidado relacionado ao consumo de drogas.
No que se refere às limitações do estudo, ressaltamos que os estudos fenomenológicos não permitem compreender os objetos de estudo em sua complexidade, pois a experiência do cuidado mostra-se como um fenômeno, sempre em perfil, a partir de um ponto de vista ou perspectiva: ele nunca se mostra em sua inteireza. Logo, acreditamos que o desenvolvimento de outras pesquisas por profissionais que compõem a equipe interdisciplinar de saúde mental poderão auxiliar na compreensão dos fatores que limitam a promoção do cuidado das pessoas que vivenciam problemas decorrentes do consumo de drogas, bem como na elaboração e na implementação de ações eficazes e resolutivas.