Introdução
As causas violentas de mortalidade caracterizam-se como eventos fatais que acarretam um grande quantitativo de vítimas, especialmente no que concerne aos grupos jovens, além de perpetuar prejuízos físicos, psicológicos, econômicos e sociais a toda a população. Nesse cenário, emergem os homicídios, que resultam de lesões ocasionadas por terceiros de forma intencional, bem como os suicídios, que decorrem das lesões autoprovocadas intencionalmente 1.
O perfil de mortalidade violenta no Brasil tem adquirido status de notoriedade em decorrência dos valores constatados, de forma que, em 2017, o país registrou 63.748 homicídios, dos quais 92,1 % das vítimas foram indivíduos do sexo masculino, bem como 12.495 suicídios, em que 78,6 % das vítimas foram homens. Embora esses dados confrontem a realidade vivenciada há 10 anos, período em que foram registrados 47.707 homicídios e 8.868 suicídios, o grupo populacional masculino já se caracterizava por sua expressividade entre esses óbitos, representado por 91,9 % e 78,8 %, respectivamente 2.
A violência no Brasil exprime a complexidade de um fenômeno de origem histórica, que tem seus alicerces firmados nas desigualdades sociais presentes no país 3. Fatores como discriminação, desigualdades de gênero e condições socioeconômicas desfavoráveis associam-se a arranjos sociais que predispõem a mortalidade violenta por homicídios ou suicídios. Ademais, as desigualdades presentes no território aglomeram-se em torno da esfera sociodemográfica, que representa um elemento influente sobre a dinâmica das violências 4.
A incidência predominantemente associada à população masculina, no contexto das mortes violentas por homicídios e suicídios, reflete especialmente a conjuntura social de formação das crenças e valores desse grupo populacional, centrada em modelos influentes de homens viris e agressivos. Consequentemente, promover a redução da mortalidade violenta entre a população masculina, que cresce de forma gradual e ocasiona perdas ao país, requer não somente a construção de novas identidades em contraponto à violência, mas o estímulo à abordagem dos aspectos emocionais do homem 5.
No que concerne aos homicídios masculinos, a utilização de armas de fogo destaca-se como uma característica inerente ao grupo e reflete a facilidade no acesso a esse instrumento, o que resulta em um quantitativo de casos comparável ao de países em situação de conflito armado. Além desse fato, a utilização das armas de fogo reduz a probabilidade de sobrevivência das vítimas, em decorrência da gravidade dos ferimentos causados 6. Os homens também assumem destaque no cenário dos suicídios, o que resulta da escolha de métodos mais violentos para sua consumação, entre os quais se destacam o enforcamento e as armas de fogo 7.
No contexto da mortalidade violenta entre a população masculina, em 2017, o Nordeste do país assumiu destaque como região com o maior número de homicídios nesse grupo, além de ocupar a segunda posição entre aquelas com maiores índices de suicídios masculinos, representados por 43,2 % e 24,3 %, respectivamente 2. Tais características podem estar associadas às desigualdades sociais, à ineficácia da segurança pública e ao acesso facilitado a armas de fogo, que impulsionam a violência letal.
A violência caracteriza-se como um problema de saúde pública brasileira devido à sua elevada incidência e prevalência, embora seja passível de prevenção 8. As mortes prematuras ocasionadas por homicídios e suicídios contrastam negativamente sobre os avanços obtidos ao longo dos anos com a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida da população 9. Dessa forma, torna-se necessária a construção de intervenções interdisciplinares, mediante estratégias de combate às disparidades sociais presentes no país 10.
Mediante o contexto de participação do homem como protagonista no cenário dos homicídios e suicídios, especialmente no Nordeste, bem como o impacto socioeconômico e cultural desses eventos, evidencia-se a necessidade da construção do conhecimento e da disseminação de informações pautadas nas singularidades regionais desses óbitos, que propiciem a construção de intervenções adequadas a cada cenário. Dessa forma, o estudo tem por objetivo avaliar o perfil das mortes por homicídios e suicídios em homens na região do sertão de Pernambuco, no período de 2015 e 2016.
Materiais e métodos
A pesquisa apresenta uma abordagem quantitativa descritiva e inferencial, por meio da qual foi possível construir o conhecimento temático mediante a utilização de dados numéricos 11. A coleta de dados foi realizada no Instituto de Medicina Legal localizado em Petrolina, no sertão pernambucano, que atende aos óbitos ocorridos no 7° Território Sertão 1 e 8° Território Sertão 11, segregados segundo critérios da Secretaria de Defesa Social do Estado de Pernambuco. Nessa perspectiva, o período de coleta de dados deu-se entre agosto de 2018 e março de 2019.
Os dados utilizados referem-se aos registros de óbitos por homicídios e suicídios ocorridos em 2015 e 2016, cujas vítimas fossem do sexo masculino e pertencentes a todas as faixas etárias, que totalizaram um total de 665 casos coletados. Esses óbitos correspondem àqueles ocorridos no sertão de Pernambuco, o qual integra as cidades de Salgueiro, Parnamirim, Serrita, Mirandiba, Cedro, Verdejante, Terra Nova, Cabrobó, Santa Maria da Boa Vista, Orocó, Lagoa Grande, Araripina, Ouricuri, Exú, Bodocó, Ipubi, Trindade, Santa Filomena, Santa Cruz da Malta, Moreilândia, Granito, Petrolina, Afrânio e Dormentes.
Para a coleta dos dados foi utilizado um instrumento semiestruturado elaborado pelas pesquisadoras e composto por variáveis que tinham como referência os laudos tanatoscópicos e de necropsia de registro da instituição. As variáveis sociodemográficas que compunham o instrumento e que orientaram o estudo foram idade, escolaridade, profissão, raça/cor e estado civil. As variáveis de circunstâncias do evento corresponderam a local da ocorrência da violência, causa da morte (homicídio ou suicídio), instrumento/ meio que produziu a morte e localização anatômica das lesões/quantidade.
Foram considerados para a construção do estudo os grupos etários: crianças e adolescentes (0-19 anos); adultos jovens (20-39 anos); adultos (40-59 anos); idosos (60 anos ou mais [12]). Além desses conceitos, a definição de lesões superficiais utilizada no estudo foi aquela que corresponde ao comprometimento apenas das áreas superiores da epiderme, enquanto as lesões abertas são aquelas em que há o comprometimento das camadas mais profundas da epiderme, derme ou ainda do tecido subcutáneo, muscular e ósseo 13.
No estudo, foram considerados como instrumentos de ordem mecânica aqueles que promovem energia sobre o corpo e ocasionam modificações em seu estado de repouso e movimento por meio de instrumentos contundentes, perfurantes, cortantes, perfurocortantes, cortocontusos e perfurocontundentes; instrumentos de ordem física, aqueles capazes de modificar o estado físico corporal mediante calor e/ou eletricidade; de ordem química, aqueles que promovem reações químicas por meio de cáusticos, corrosivos ou venenos; ordem físico-química, aqueles cujas reações impedem parcial ou integralmente a bioquímica do organismo mediante enforcamento, afogamento, estrangulamento, esganadura, sufocação e intoxicação por gases 14.
Os óbitos por homicídio e suicídio em homens foram considerados como variável dependente, enquanto as variáveis independentes analisadas foram as sociodemográficas e aquelas que caracterizaram as circunstâncias dos eventos. Os dados foram inicialmente registrados no banco de dados construído no programa Microsoft Office Excel 2013 e posteriormente analisados por estatística descritiva. A utilização desse método de análise e avaliação dos dados deve-se à intenção de relatar de forma circunstanciada as informações coletadas, mediante as medidas de tendência central e dispersão em suas frequências absolutas e relativas, utilizando o programa estatístico Stata 14.0.
Foram utilizados o teste de qui-quadrado de Pearson e o exato de Fisher para verificar a presença de associações e relações estabelecidas entre as variáveis categóricas, utilizando como critério de escolha as frequências esperadas. Para avaliar as relações entre as variáveis numéricas, foi utilizado o teste de Mann Whitney, considerando a não normalidade da distribuição pelo teste de Shapiro Wilk. Para todos os testes, adotou-se significância de 5 %.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade de Pernambuco, sob o Parecer n.° 1.800.973 e com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética n.° 60831016.1.0000.5207. Os aspectos éticos determinados na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde foram contemplados mediante o respeito, a confidencialidade, o anonimato e o uso adequado das informações dos participantes.
Resultados
Acerca das mortes violentas em homens, foi possível identificar a prevalência dos casos de homicídio (n = 553 casos; 83,2 %) sobre os suicídios (n = 112 casos; 16,8 %). A média de idade para esses óbitos foi de 32,5 anos, enquanto, para os suicídios, foi de 40,5 anos (p-valor < 0,001). Além dessa categoria analisada, o estado civil solteiro da vítima também se caracterizou por sua prevalência em ambas as causas de morte, representada por 78,8 % dos homicídios e 64,2 % dos suicídios (p-valor = 0,001). No entanto, entre as variáveis de escolaridade, profissão e raça/cor, não foi possível identificar a presença de significância nas associações (p-valor > 0,05) (Tabela 1).
A zona de ocorrência avaliada também apresentou diferença significativa (p-valor = 0,04), de forma que os homicídios foram mais prevalentes na zona urbana (52,8 %) e os suicídios, na zona rural (57,8 %). Quanto à ocorrência em domicílio, 81,7 % dos casos de homicídios ocorreram fora do domicílio e 70,6 % dos suicídios, em domicílio; assim, apresentou-se semelhança significativa (p-valor < 0,001). Contudo, os municípios de ocorrência não demonstraram associação significativa quando avaliados (p-valor > 0,05) (Tabela 2).
PE: estado de Pernambuco; BA: estado da Bahia; CE: estado do Ceará.
*Exato de Fisher; ** qui-quadrado de Pearson.
*** qui-quadrado de Pearson.
Os objetos e as substâncias utilizadas para a consumação das mortes violentas bem como a ordem do instrumento utilizado caracterizaram-se por sua significância (p-valor < 0,001). Nesse contexto, as armas de fogo e as armas brancas assumiram posição de destaque entre os óbitos por homicídio (83,2 % e 16 %, respectivamente), enquanto as cordas e as armas de fogo foram prevalentes entre os suicídios (66,7 % e 18,5 %, respectivamente). Dessa forma, para os homicídios, os instrumentos de ordem mecânica foram prevalentes, enquanto, para os suicídios, os instrumentos de ordem físico-química superaram os demais (99,5 % e 73,9 %, respectivamente) (Tabela 2).
No contexto das lesões anatômicas, foi possível observar as associações estabelecidas para as regiões da cabeça, o pescoço, o tórax, o abdômen, os membros superiores e inferiores, e o dorso (p-valor < 0,05). Nesse sentido, as lesões na cabeça e no tórax foram prevalentes entre os homicídios (73,6 % e 65,1 %, respectivamente), enquanto, entre os suicídios, as lesões na cabeça e no pescoço apresentaram maior frequência (59,8 % e 74,1 %, respectivamente). Somente entre as lesões referentes à pelve não foi possível identificar a significância da associação (p-valor > 0,05) (Tabela 3).
Acerca do número de lesões abertas nas vítimas, foi possível identificar associações significativas apenas nas regiões da cabeça e do tórax (p-valor < 0,05), enquanto, nas demais regiões anatômicas, não houve diferença significativa entre o número médio de lesões.
Discussão
Informações recentes acerca da violência letal no Brasil refletem uma realidade inquietante na qual, embora o país apresente avanços socioeconômicos e de melhoria da qualidade de vida populacional, ainda persiste em condições de desigualdade social e não garante condições adequadas de vida para parcelas significativas da população 15. Dessa forma, a associação entre a violência e as desigualdades sociais desponta como fator que percorre o âmbito territorial e ciñmina na interrupção precoce da vida de inúmeras vítimas pertencentes a todas as gerações 4.
Os homicídios, considerados a representação emblemática da violência na sociedade, promovem impactos não somente na saúde mental e física das vítimas, mas também são capazes de reduzir significativamente a qualidade de vida do corpo social no qual se encontram inseridos. Ainda que, no Brasil, a violência homicida resulte em um grande quantitativo de vítimas e reflita negativamente sobre toda a sociedade, algumas de suas características ressaltam a invisibilidade à qual essa problemática está submetida 16.
No cenário dos homicídios, o estado civil emerge como fator potencialmente associado à ocorrência desses eventos. Em um estudo realizado no município de Manaus, foi possível identificar que homens jovens e solteiros encontravam-se predominantemente entre as vítimas fatais dessa violência. Esse fenômeno resulta especialmente de sua maior incidência sobre indivíduos de pouca idade, que não se encontram em união estável, o que demonstra a importância desse estado civil no contexto em análise 17.
No presente estudo, foi possível identificar que os homicídios afetam especialmente a população jovem, que se encontra inserida na faixa etária economicamente ativa. Além desse fato, foi possível avaliar o predomínio do fenômeno homicida entre os homens solteiros quando comparados àqueles em união estável. Esse perfil, que se assemelha ao observado na cidade de Manaus, evidencia que as condições de pouca idade bem como a ausência de uma união estável promovem uma maior vulnerabilidade a esses óbitos devido ao fato de promover frequentemente uma maior exposição desse grupo às mortes violentas.
No Brasil, a violência homicida além de acometer especialmente a população masculina, jovem, encontra-se frequentemente associada a condições de margina-lização social e educação limitada 18. Essa causa de óbito sofre interferência direta de fatores relativos às baixas condições socioeconômicas, predominantes em municípios com maior extensão territorial e maior índice de urbanização, além de afligir especialmente indivíduos que não têm ocupação 19. Nesse sentido, as desigualdades sociais representam um fator importante quando considerada a incidência dessa causa de morte 20.
A população negra também tem assumido posição notória no contexto dos homicídios, especialmente por sua elevada frequência entre esses óbitos. Esse cenário expressa uma realidade na qual os indivíduos negros apresentam menor classe social e renda, o que leva a condições de marginalização e posterior vulnerabilidade a esses óbitos 21. Embora fatores como nível de escolaridade, profissão, raça/cor das vítimas e município de ocorrência dos homicídios demonstrem relação limítrofe com sua incidência, no presente estudo, não foi possível identificar associações significantes entre essas variáveis.
Em meio à conjuntura das mortes violentas nas quais se encontram incorporados os homicídios, aqueles consumados por meio de armas de fogo representam um risco à integridade da segurança brasileira. O uso desse instrumento encontra-se intimamente relacionado à efetivação das violências homicidas, bem como sua incidência prevalente sobre os homens jovens, que se caracterizam como parcela populacional mais propensa à violência homicida por esse meio 20.
O predomínio da arma de fogo como instrumento de ordem mecânica mais prevalente na consumação dos homicídios também foi perceptível no presente estudo. A partir da análise desse perfil, foi possível perceber uma semelhança com aquele homogeneamente encontrado no país, em que as armas de fogo são utilizadas frequentemente, seja por acessibilidade ao meio, seja com a intenção de promover maiores lesões.
Os homicídios, em especial os efetuados por armas de fogo, ocorrem frequentemente em vias públicas, característica que evidencia a intencionalidade da ação praticada por terceiros e reduz significativamente as chances de sobrevivência da vítima. Nesse sentido, a circulação em vias públicas nos finais de semana, em horários menos usuais, associada ao consumo de bebidas alcoólicas e drogas, podem promover a exposição do indivíduo a essa situação de risco 22.
A maior incidência dos homicídios masculinos em áreas urbanas também foi constatada no sertão de Pernambuco, de forma que sua ocorrência durante o período analisado se deu especialmente fora da residência das vítimas. Assim, mediante análise dos dados do estudo, em comparativo com aqueles encontrados na literatura, é possível perceber que o crescimento dos centros urbanos e consequentemente o aumento das desigualdades sociais fornecem um ambiente propício à manifestação da violência provocada por terceiros e, em algumas situações, podem limitar as chances de sobrevivência das vítimas.
O número elevado de lesões abertas nos casos de homicídio encontra-se especialmente associado a práticas criminosas com aspectos notórios de crueldade. Nesses casos, observa-se a presença de um grande quantitativo de perfurações por armas de fogo ou instrumentos cortantes, bem como a utilização do esquartejamento e do fogo, com o intento de ocasionar sofrimento às respectivas vítimas. Tais características configuram esses homicídios como fenômenos que evidenciam a relação de poder sobre o corpo do vitimado 23.
Entre as regiões brasileiras, o Nordeste assumiu destaque como aquela que apresentou um crescimento superior à média nacional nas taxas de criminalidade de 2006 a 2016, além de caracterizar-se como a região mais violenta do país em números absolutos de homicídios. Essa violência também foi potencializada nas cidades do interior nordestino, a exemplo das cidades do semiárido e sertão do estado de Pernambuco. Esse perfil regional decorre especialmente das condições sociodemográficas e econômicas desfavoráveis encontradas nessa região 24.
A violência, especialmente armada, não representa somente um problema de segurança, mas um problema generalizado e crescente de saúde pública em nível mundial. Esse fato deve-se aos gastos excessivos com saúde, aos anos potenciais de vida perdidos e à redução da esperança de vida que afeta o corpo social no qual as vítimas dessas violências se encontram inseridas 25.
Assim como os homicídios, que incidem predominantemente sobre indivíduos do sexo masculino, os suicídios comportam-se como eventos semelhantes e resultam em quase tantas vítimas masculinas quanto os homicídios 18. Os casos de suicídio têm apresentado um crescimento progressivo entre a população brasileira, além de tornar-se um importante problema de saúde pública no país em decorrência de sua expressividade e particularidades da população mais acometida 26.
No estudo em questão, foi possível identificar que os suicídios se encontraram distribuídos frequentemente entre a população adulta. Dessa forma, a média de idade dos suicídios foi superior à presente nos casos de homicídio, o que reforça a distinção entre os grupos masculinos vítimas das mortes violentas. De um lado, encontram-se os adultos, vítimas de lesões ocasionadas por terceiros e, de outro, um grupo de idade aproximada ao anterior, vítimas de si próprios.
Embora a consumação da violência suicida se encontre em ascensão entre a faixa etária jovem, esses óbitos apresentam-se prevalentemente distribuídos em meio à população em idade avançada, o que evidencia o contraste entre os processos de ideação, planejamento e tentativa de suicídio. Além desse fato, indivíduos em condição de desemprego, ruralidade e solteiros apresentam maior propensão à tentativa e posterior consumação do suicídio 27.
O risco para a ideação suicida encontra-se predominantemente associado a fatores como o desemprego e a baixa escolaridade 28, bem como à raça/cor indígena e branca, que se destacam como as principais populações vitimadas por esses óbitos no Brasil 29. Embora a raça/cor parda apresente uma frequência acentuada no presente estudo para ambas as causas de morte, essa variável junto com escolaridade, profissão e município de ocorrência dos óbitos não demonstraram associações significativas.
No contexto dos suicídios, o sentimento de isolamento e a falta de apoio, frequentemente agravados por desequilíbrios familiares, conjugais ou outras relações sociais, podem aumentar o risco na incidência desses óbitos. Além desse fato, populações residentes nas áreas rurais de países em desenvolvimento e que possuem como sustento a agricultura caracterizam-se como alvos constantes dos suicídios, especialmente da autointoxicação por agrotóxicos, decorrente da maior acessibilidade a esse meio 30.
Em consonância com os casos de homicídio, entre os suicídios também prevalecem as diferenças regionais. Nesse sentido, o Nordeste destaca-se como a região do país com maior crescimento nas taxas de suicídio ao longo dos anos. Esse fenômeno encontra-se associado não somente às características socioeconômicas apresentadas pelas vítimas, mas também às lacunas presentes na construção de estratégias em saúde destinadas à prevenção e à promoção da saúde do homem 19.
Tornou-se possível observar na presente pesquisa que esses óbitos, além de vitimarem frequentemente homens solteiros, apresentam maior prevalência em localidades rurais, especialmente nos domicílios das vítimas. Esse perfil revela uma realidade em que o crescimento dos grandes centros urbanos afeta desigualmente aqueles que residem em áreas urbanas e rurais, predispondo-os a violências de natureza distintas.
Em conformidade com os resultados deste estudo, uma pesquisa realizada no estado do Pará identificou o domicílio das vítimas como local de ocorrência mais comum para os suicídios 31. Nesse sentido, a residência da vítima é considerada o local mais propenso à consumação dessa morte, especialmente por favorecer o sentimento de comodidade, além de garantir uma maior facilidade para obter os instrumentos a serem utilizados 7.
A utilização de meios mais violentos para a tentativa de suicídio caracteriza-se como o principal fator de diferenciação do perfil de mortalidade entre homens e mulheres, que resultam no predomínio das maiores taxas sobre a população masculina. A utilização de instrumentos oblongos e flexíveis para o enforcamento, bem como as armas de fogo, caracteriza-se como as principais escolhas do grupo populacional masculino para a efetivação dessa violência 26.
Entre os principais instrumentos para a consumação do ato suicida, foi observada a predominância das cordas, seguidas por armas de fogo, ambos os meios responsáveis por ferimentos graves que reduzem a chance de sobrevivência dos indivíduos. Nesse sentido, os enforcamentos, as lesões por arma de fogo e a autointoxicação por pesticidas são considerados como as maiores causas de suicídio no Brasil, respectivamente 29.
Enquanto as principais lesões encontradas nos casos de homicídio analisados foram prevalentes sobre as regiões anatômicas da cabeça e do tórax, no suicídio, as principais atingidas foram cabeça e pescoço, o que expressou a intencionalidade de promover a morte mediante a lesão de órgãos e estruturas vitais do corpo. Nesse sentido, os traumatismos crânio encefálicos, lesões comuns a ambas as causas de morte, caracterizam-se por incidir especialmente sobre homens jovens e acarretam custos excessivos ao sistema de saúde, além de danos irreversíveis e fatais à vítima 32.
A temática do suicídio caracteriza-se como um grave problema de saúde pública ainda de maior relevância quando se constata uma lacuna evidente nos estudos da suicidologia, devido ao fato de ainda ser alvo de estigmas sociais no que concerne aos fatores que predispõem a crise suicida. Dessa forma, discussões com profissionais e gestores de saúde representam um esforço fundamental na ampliação das abordagens, das perspectivas e dos campos do conhecimento acerca do suicídio 33.
Em decorrência dos comportamentos e das práticas estabelecidas cotidianamente no desempenho das funções sociais, a figura masculina apresenta sua masculinidade questionada frequentemente e, portanto, recorre à violência para restabelecê-la 34. Tais características geralmente associadas à população masculina referem-se a uma construção histórica na qual a violência é parte da socialização dos meninos ainda na infância e permanecem até a vida adulta 35.
Mediante discussões sobre a masculinidade, associadas àquelas de aspecto sociopolítico, torna-se possível a identificação de ferramentas adequadas ao processo de implementação de políticas públicas. Assim, é necessário o desenvolvimento de ações que visem não somente à atenção aos agravos de maior incidência sobre a saúde do homem, mas também à promoção da vida e à prevenção das violências, que viabilizam mudanças no contexto do perfil de mortalidade masculina 36.
De maneira geral, as mortes violentas, presentes em todo o mundo, afetam especialmente os países latino-americanos, e o perfil das vítimas é frequentemente de pouca idade. No entanto, essa realidade confronta a possibilidade de prevenção que pode ser alcançada com a participação das mais variadas esferas sociais 37.
O processo de enfrentamento das violências fatais requer a formulação de políticas públicas direcionadas à promoção da vida, o que exige uma abordagem de cunho multidisciplinar desenvolvida a partir de ações sociais em que a saúde atua como aliada através da vigilância e da assistência 3. Nesse sentido, a violência em meio à população masculina não representa apenas um descritor de dados demográficos, mas também compreende as dimensões de poder e patriarcado inerentes a esse contexto 18.
Dessa forma, pondera-se sobre o papel do enfermeiro que se compromete tanto com a assistência quanto com os indicadores em saúde e o que expressam 38. No entanto, esse processo pode representar uma barreira a ser superada devido à dificuldade de compreensão mútua das dimensões biológicas e psicológicas que permeiam as violências 39. Assim, a atuação do enfermeiro nos processos de identificação da violência, sua prevenção e promoção de um cuidado humanizado dependem, sobretudo, de ações de educação permanente, que se revelam indispensáveis na qualificação desses profissionais 38.
Por isso, seja nas relações afetivas, seja nas sociais, a violência representa um artifício perverso e um recurso que não deve ser justificado ou banalizado, visto que impactam sobre a saúde e suas demandas 40. Assim, as barreiras na atuação profissional devem ser ultrapassadas com a realização de treinamentos e apoio no local de trabalho 41.
As limitações encontradas no desenvolvimento do presente estudo referem-se aos impasses no processo de coleta decorrentes da redução da disponibilidade de computadores entre agosto de 2018 e março de 2019, o que acarretou o impedimento da coleta dos casos de óbitos ocorridos em 2017. Todavia, os dados coletados apresentaram-se quantitativamente suficientes para a análise à qual foram submetidos e representaram fidedignamente o perfil populacional avaliado.
Conclusões
Mediante a análise de dados coletados, foi possível identificar que os sociodemográficos e de circunstâncias dos eventos avaliados demonstraram-se influentes sobre a ocorrência de ambas as causas de morte. Dessa forma, tornou-se possível traçar um perfil dos homens acometidos por homicídios, que são adultos solteiros, vitimados em vias públicas por essa violência e com lesões prevalentemente ocasionadas por armas de fogo. Em contrapartida, aqueles acometidos por suicídio, embora sejam adultos solteiros, são vítimas de atos provocados em suas residências e efetuados por cordas.
Foi possível observar que os homicídios são frequentemente ocasionados por lesões na região torácica, que demonstram a intencionalidade e reduzem as chances de sobrevivência das vítimas. Os suicídios demonstraram um padrão diferente, em que frequentemente são provocados por lesões com cordas, instrumento de fácil manuseio e acessibilidade. A compreensão desses óbitos entre a população masculina representa um desafio para o contexto socioeconômico e cultural vivenciado no Brasil devido às interferências socio-demográficas que incidem sobre ambas as causas.
Dessa forma, o grupo populacional masculino deve ser considerado heterogêneo e de características particulares em termos de formulação das políticas públicas de prevenção às violências letais. Evidencia-se a necessidade do desenvolvimento de abordagens crítico-reflexivas acerca da problemática, que sejam capazes de fundamentar a construção de estratégias para o enfrentamento dos homicídios e suicídio. Nesse contexto, emergem os profissionais de enfermagem que, como parte do corpo populacional e profissional que cuida diretamente da população, torna-se um ator indispensável para a construção, a aplicação e a adequação de estratégias voltadas à prevenção das violências.