Introdução
Analisa-se, neste texto, o percurso escolar e profissional de 14 rapazes que, tendo frequentado a Escola Normal de Ouro Preto (Enop), Minas Gerais, Brasil, de 1877 a 1889, concluíram o curso e, em sua grande parte, atuaram na docência. Busca-se dialogar com e problematizar os estudos que destacam a década de 1870 como o marco inicial do processo de feminização do magistério, caracterizado pelo predomínio das mulheres como discentes nas Escolas Normais e, paulatinamente, como mestras de meninos e meninas nas escolas elementares, fenômeno que, como sabemos, extrapola o contexto brasileiro, sendo verificado também em vários países do mundo ocidental1.
A institucionalização da profissão docente no Brasil teve a criação das Escolas Normais, a partir das leis provinciais estabelecidas após o Ato Adicional de 18 342, como importante iniciativa que deu início à formação de mestres e mestras para a atuação na educação elementar, no período imperial brasileiro. O estabelecimento dessas instituições se deu paulatinamente ao longo das décadas, tornando-se mais estável e consistente no último quartel do século XIX3. Nesse período, a Escola Normal se consolidava, dentro do processo de construção de um novo perfil docente, que passou a ser balizado pela institucionalização dos saberes e métodos. Marcava-se, assim, uma ruptura com a representação do mestre-escola, aquele que possuía os conhecimentos básicos de leitura, escrita, cálculo e outras habilidades, e se sentia autorizado para transmiti-lo4.
A Enop, cenário específico deste estudo, foi criada pela Lei 13 de 28 de março de 1835 e estabelecida em 1840. Foi uma das primeiras escolas normais criadas no Brasil, numa cidade que se constituiu como um dos principais centros mineradores no período colonial, quando era denominada "Vila Rica"; o atual nome data do período imperial brasileiro. Foi capital da província/ estado de Minas Gerais até o ano de 1897, tendo sido um importante centro urbano e cultural da região central do Brasil5. De acordo com o recenseamento brasileiro de 1872, o município de Ouro Preto - composto por 11 freguesias - possuía 42 582 habitantes livres e 5 632 escravizados.
Desde sua criação, a Enop teve funcionamento intermitente, tendo sido fechada e reaberta por duas vezes6, e, nesse período inicial, era frequentada quase que exclusivamente por homens7, apesar de não haver impedimentos para a frequência das mulheres. O caráter de educação mista, efetivamente, pode ser verificado a partir de sua reabertura, em 1872. O período que analisamos, de 1877 a 1889, além de ser o intervalo em que encontramos um maior volume serial de fontes, antes do período republicano, compreende o momento em que, após a entrada das mulheres para estudar no estabelecimento, verificamos o processo de feminização do corpo de alunos8.
Os estudos em História e História da Educação que se ocupam da docência na perspectiva masculina são recentes9, havendo os trabalhos que se balizam na perspectiva da História de Intelectuais ou personagens exemplares e suas contribuições para a educação de um período10. Por sua vez, desde a década de 1980, os estudos em História da Educação discutem sobre a feminização do magistério, sendo que, entre 2005 e 2013, foi um dos temas mais frequentes dos trabalhos apresentados na área, na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação11. Esses trabalhos representaram, para o campo, a visibilidade das mulheres como sujeitos que passaram a ocupar um espaço público reservado exclusivamente aos homens até as primeiras décadas do século XIX.
Se, por um lado, os estudos sobre a feminização do magistério contribuíram para quebrar os silêncios em torno dos sujeitos femininos ao longo do tempo12, como explicar a escassez nas pesquisas quanto ao homem professor, suas experiências e trajetórias escolares? Acreditamos que seria reflexo da naturalização do masculino como referência, como já dado, pois, até um período recente, a escrita da história era pensada e produzida predominantemente pelos homens, o que acabou se tornando um pressuposto epistemológico. Some-se a isso o fato de que as fontes oficiais refletiam os sujeitos que ocupavam os lugares de sua produção, ou seja, os espaços públicos, instituições políticas e de caráter administrativo, o que contribuía para recortar os fenômenos históricos a partir dessa perspectiva, sendo, portanto, naturalizado.
Revisitar o século XIX buscando problematizar a trajetória de rapazes que frequentaram a Escola Normal e atuaram no magistério, num período de evasão desse grupo, representa lançar luz sobre o avesso daquilo que os estudos sobre feminização do magistério propunham. Com este estudo, pretendemos contribuir para os conhecimentos do campo, analisando a trajetória daqueles rapazes que permaneceram e construíram parte de suas vidas atuando como professores. Nesse sentido, conforme Del Priore e Amantino13, para fugir do risco de se produzir abstrações generalizantes e naturalizantes sobre a atuação de homens no magistério, analisamos a trajetória de 14 homens comuns, buscando discutir a construção - ou reconstrução - do lugar simbólico do homem no magistério e, de modo complementar, o significado do magistério para esse grupo ou para cada um desses sujeitos. Além de estarem situados num contexto escolar, social e cultural específicos, suas vidas eram atravessadas por tensões e necessidades que resultaram em escolhas particulares, às quais buscamos dar inteligibilidade.
Para realizar esta investigação, o nome se constituiu como unidade de análise inicial para tentarmos reconstruir a teia de relações nas quais os sujeitos estavam inseridos. Partindo dessa opção metodológica, conforme Carlo Ginzburg e Carlo Poni14, estamos condicionados/as às possibilidades e aos limites determinados pelos arquivos depositários dos documentos que nos interessam, os quais apresentam, cada um, de acordo com sua especialidade ou finalidade, fragmentos de informações, de experiências, do cotidiano, daquilo que foi vivido. Coube a nós, pesquisadoras, articular esses fragmentos e buscar construir uma narrativa que se aproxime, o melhor possível, da dinâmica social que envolveu as atividades educacionais e profissionais dos sujeitos em questão. Para isso, os registros de batismo, em confronto com as idades declaradas nas listas de matrícula da Enop, indicavam o perfil etário dos estudantes; os dados dos genitores, presentes nos documentos escolares, levaram-nos a localizar, em muitos casos, por meio de almanaques, notícias em jornais e inventários, a profissão e a relação dos bens das famílias, para compreender a ambiência social em que estavam inseridos; os mesmos jornais, articulados a documentos administrativos -Relatórios da Assembleia Legislativa Provincial, certidões de casamento e óbito- e educacionais -Livros de matrícula de professores, termos de posse, afastamentos- possibilitaram acompanhar a trajetória escolar, pessoal e profissional, que, na maioria dos casos, envolveu a docência, ainda que não exclusivamente.
Esse conjunto heterogêneo de documentos sustenta esta análise, além de outros referentes às mulheres que frequentaram a Enop no mesmo período, que serão trazidos para fins de comparação e contraste, pois, ao se trazer a categoria gênero para a análise, consideramos, inicialmente, a constituição do masculino e da masculinidade com relação ao seu contexto social e histórico, e não como essencialidade15; além disso, consideramos que essa construção se dá, culturalmente, "em sua relação com o seu outro, em sua presença ou em ausência"16.
Os jovens normalistas em Ouro Preto
A Lei 1.769 de 1871, que restabeleceu o funcionamento da Enop em sua terceira fase, previa a frequência de ambos os sexos, em lições alternadas17, havendo, portanto, a intenção de se manter um estabelecimento misto. O curso, que, em suas duas primeiras fases, apresentava caráter de atualização dos professores já em exercício, durava dois meses18. Ao longo dos anos, foi sendo aprimorado e, com a emergência de sua reabertura em 1872, passou a ter a duração de dois anos19, aumentando para três anos em 188320. A partir da década de 1870, porém, as escolas normais, não só em Minas Gerais, mas em muitas províncias, passaram a atrair um maior número de moças que de rapazes21.
Verificamos que, de 1877 a 1889, a Enop matriculou, no último ano do curso22, 67 mulheres e 17 homens, ou seja, estes últimos representavam pouco mais de 20 % dos alunos matriculados. Concluíram o curso 68 estudantes, dos quais 54 mulheres e 14 homens. A evasão foi de cerca de 19 % das moças e de 17 % dos rapazes, sendo, portanto, quase equivalente23. Interessou-nos, nesse sentido, compreender melhor o perfil e a trajetória desses jovens que representavam a minoria num ambiente majoritariamente ocupado pelas mulheres. Na Tabela 1 a seguir, temos a visualização do conjunto desses sujeitos com relação a algumas de suas características:
N | Nome | Idade durante o curso | Naturalidade |
---|---|---|---|
1 | Antonio Mamede de Oliveira Coutinho | 19 - 20 Anos | Lorena (São Paulo) |
2 | Arthur Ribeiro de Carvalho | 20 - 22 anos | Ouro Preto |
3 | Bernardino de Senna Nunes | 19 anos | Ouro Preto |
4 | Carlos Borja Peixoto | 17 - 18 anos | Ouro Preto |
5 | Francisco de Paula Barcellos | 18 - 19 anos | Ouro Preto |
6 | Jacintho Gregório dos Santos | 16 - 17 anos | Ouro Preto |
7 | João Maria da Silveira | 18 - 19 anos | Ponte Nova (Minas Gerais) |
8 | Joaquim da Rocha Fiuza | 19 anos | Ouro Preto |
9 | Joaquim Pio de Assumpção | 19 - 22 anos | Antônio Pereira (Minas Gerais) |
10 | José Honorio de Souza Alves | 20 - 21 anos | Ouro Preto |
11 | Modestino Elesiário de Arnide | 17 - 19 anos | São João do Morro Grande (Minas Gerais) |
12 | Pedro Mourthé Sobrinho | 22 - 23 anos | Barbacena (Minas Gerais) |
13 | Rosalvo Rodolpho Moreira de Mendonça | 20 anos | Ouro Preto |
14 | Theophilo Coelho de Gouvêa | 17 - 20 anos | Serro (Minas Gerais) |
Fonte: "Matrícula dos alunos da Escola Normal de Ouro Preto", Arquivo Público Mineiro (APM), Fundo: Instrução Pública IP-123/IP-133.
De acordo com a Tabela 1, verificamos que os normalistas tinham idade entre 16 e 23 anos. Encontravam-se, portanto, na mocidade, etapa geracional que, no período, segundo os dicionários, compreendia a idade de 14 a 24 anos, para o sexo masculino e, antecedendo a idade adulta, era concebida como momento de transição, logo, de constituição e aperfeiçoamento24. A maioridade, nesse período, era conquistada aos 21 anos25, de modo que esses rapazes se encontravam sob a proteção do pátrio poder; ao concluírem o curso e pleitearem a carreira do magistério, poderiam conquistar a independência financeira, mas, de imediato, somente quatro deles teriam autonomia civil.
Para esses rapazes, o ingresso na Enop se deu numa fase da vida e em um contexto em que outras oportunidades educacionais estavam disponíveis em Ouro Preto, como a Escola de Farmácia (1839) e as recém-fundadas Escola de Minas (1876) e Liceu Mineiro (1872). Sabemos que ao menos cinco deles (Joaquim Fiuza, Bernardino, Francisco, Pedro e José) foram alunos do Liceu Mineiro anos antes de frequentarem o curso normal26. Não sabemos dizer se concluíram o Liceu, mas constatamos que todos eles exerceram o magistério, em pelo menos algum momento.
A escolha pelo curso normal, em alguns casos, parece estar relacionada com a trajetória familiar; Theofilo, Bernardino e Modestino tiveram pais que foram professores e destes, os dois primeiros seguiram seus passos profissionais. Modestino, além do pai, tinha uma irmã professora, que havia se formado na Enop em período anterior a ele27, porém exerceu outras atividades. Um outro caso é o de Francisco Barcellos (que concluiu o curso normal em 187928), cuja sobrinha Luiza Carolina Barcellos de Carvalho também ingressou na instituição29.
A Enop pode também ter funcionado como uma alternativa gratuita e legítima para encaminhar profissionalmente jovens rapazes de família, e evitar o recrutamento compulsório para atuar em frentes de combate que, presente desde o período colonial, vigorou até 191630. Tendo como alvo indivíduos do sexo masculino entre 15 e 49 anos, as condições precárias de alimentação e saúde, os riscos de adoecimento e morte nunca tornaram a carreira de soldado popular entre jovens e suas famílias31. Além disso, no cenário urbano em que se encontravam, havia variados lugares para a masculinidade em construção; um contraponto à ideia de virilidade como condição masculina, que se pautava no poder de mando32 e no uso da violência33, era a representação, em fins do século XIX, da imagem do "homem urbanizado, letrado e burguês"34 que passou a ser difundido, sobretudo pela imprensa. O estudo, em nível secundário ou superior, constituiria esse novo repertório, que passava pelo saber se vestir e se portar, que representavam sinais de certa civilidade urbana. O curso normal, nesse contexto, era uma escolha que conferia, no intervalo de dois ou três anos de estudos gratuitos, prestígio social, principalmente no cenário educacional do período. Forjava-se uma profissão que, no passado próximo daquele período, era exercida pelos mestres-escola, mencionados anteriormente, como quem possuía reconhecimento público do domínio de habilidades requeridas para a docência.
Inspiradas em Pierre Bourdieu35, podemos dizer que se produzia, naquele período, uma compreensão de que o curso normal e o diploma atestavam uma competência específica e diferenciada para o exercício da docência, o que era compartilhado socialmente e resultava em privilégios para esse grupo, com impactos nos salários, que eram maiores. Além disso, quando não houvesse outros candidatos à mesma cadeira pública de instrução elementar ao qual se candidatavam, os professores normalistas não precisariam se submeter aos tradicionais exames de verificação de domínio dos conteúdos36. Há sinais de disseminação dessa percepção distintiva dos normalistas por outras instâncias sociais não diretamente relacionadas ao meio educacional, nos anúncios de abertura das aulas, pela imprensa, que adotam o termo "normalista" como um adjetivo para qualificar os professores egressos da Escola Normal. Podemos dizer que havia um benefício simbólico conferido pelo diploma, como ilustra o anúncio a seguir, a respeito de dois egressos da Enop: "no dia 7 de janeiro vindouro será installada uma escola nocturna na casa de instrução primária da freguezia de Antonio Dias desta capital, sob a regência dos normalistas Francisco de Paula Horta e Pedro Mourthé"37.
Dos 14 estudantes analisados nesta pesquisa, oito eram naturais de Ouro Preto (núcleo urbano), deduzindo-se que residiam na mesma localidade, e um era morador de uma das freguesias mais distantes da cidade (Antônio Pereira). Já quatro eram naturais de outras cidades da província, e um era natural da província de São Paulo. Não se tem notícia se os estudantes de outras localidades migravam para frequentar a Enop ou se já haviam migrado antes, por outros motivos, mas, na primeira alternativa, deviam arcar com a moradia e demais despesas, já que a escola não funcionava em regime de internato38. As localidades mais distantes de onde esses estudantes eram originários eram Barbacena, Serro e Lorena. Sabemos que, em 1879, estavam em funcionamento as Escolas Normais de Ouro Preto, Campanha, Diamantina, Paracatu e Montes Claros, e, em 1884, somavam também as de Uberaba, Sabará, Juiz de Fora e São João del-Rei39. Por essas informações, quando Pedro Mourthé, natural de Barbacena, foi normalista, não havia outras opções mais próximas para o estudo; já Theophilo Gouvêa, natural do Serro, poderia ter optado pela Escola Normal de Diamantina. Mas, mesmo se considerarmos os naturais de localidades mais próximas, como Ponte Nova e Antônio Pereira, era necessário um deslocamento considerável para se frequentar o curso40, ainda mais levando em consideração que os caminhos de acesso na época eram mais difíceis, e os meios de locomoção mais lentos que os atuais. No caso de Antônio Mamede de Oliveira Coutinho, de Lorena, quando frequentou o curso, já estavam em funcionamento ao menos outras quatro escolas normais que se localizavam a uma distância menor (Campanha, São João del-Rei, Barbacena e Juiz de Fora). Isso indica que ou já era residente de Ouro Preto, ou fez essa opção por outros motivos.
Magistério e outras atividades profissionais
Na Tabela 2 a seguir, buscamos apresentar a trajetória profissional e pessoal desses homens, do período em que estudaram na Enop até as primeiras décadas do século XX. Algumas lacunas indicam que não conseguimos identificar a continuidade da atividade anterior, mas, em quase todos os casos, é plausível que isso tenha ocorrido. Optamos pelo intervalo de dois anos, pois pareceu aquele que melhor permitiria visualizar os principais aspectos das trajetórias, que nos interessava analisar.
Fontes: Almanaques de Minas Gerais; Periódicos do Rio de Jane iro e Minas Gerais; Relatórios da Presidência na Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais; APM, Fundos: Instrução Pública - IP e Secretaria do Interior - SI: Livros de matrícula da Enop; Livros de matrícula de professores das escolas primárias; Livros de matrícula de professores nas Escolas Normais, Atas e correspondências enviadas e recebidas pela Enop. Os quadros mesclados na vertical indicam que uma atividade ocorreu após a outra. Já os mesclados na horizontal indicam que as atividades estavam sendo efetuadas simultaneamente.
Observa-se, primeiramente, que a maior parte dos rapazes frequentou o curso normal nos primeiros anos do intervalo investigado, período após o qual identificamos poucos estudantes do sexo masculino que concluíram o curso. Evidencia-se, portanto, uma rápida ascensão feminina entre fins da década de 1870 e o seu predomínio na década de 1880, e o progressivo abandono da população masculina por essa formação.
Identificamos as datas dos casamentos de apenas cinco sujeitos; entretanto, temos indícios de que outros três normalistas também se casaram. Quando temos acesso às datas, verificamos que o matrimônio ocorria após a formação normal e, na maioria dos casos, os rapazes tinham maioridade civil e já atuavam no magistério. A constituição de família era, portanto, uma perspectiva possível, já em fase inicial da carreira, e aqueles que se casaram conciliaram o matrimônio e a atividade profissional, o que nem sempre acontecia com as mulheres. Para elas, embora o magistério pudesse ser conciliado ao casamento, em alguns casos, serviu como alternativa a ele41, além de muitas professoras se casarem tarde42. Desses sujeitos, Carlos se casou com a também normalista formada na Enop, Augusta Catharina dos Santos43, o que indica que o espaço escolar também proporcionou encontros pessoais duradouros. Ambos exerceram o magistério em Minas Gerais.
Prover economicamente a família fazia parte das representações em torno da masculinidade, e o próprio matrimônio constituía, para os homens, essa masculinidade. Para o século XIX, "envelhecer solteiro poderia significar pobreza, infertilidade, devassidão ou homossexualismo"44. A Tabela 3 abaixo sintetiza as ocupações profissionais dos sujeitos.
Atividade profissional | Quantidade de egressos | |
---|---|---|
1 | Professor de escola elementar | 9 |
2 | Professor de Escola Normal | 2 |
3 | Professor do Liceu de Artes e Ofícios | 2 |
4 | Funcionário dos Correios | 4 |
5 | Escrivão | 1 |
6 | Tipógrafo | 1 |
7 | Subdelegado | 2 |
8 | Funcionário de diferentes segmentos da Administração Provincial/Estadual | 3 |
Fonte: Almanaques de Minas Gerais; Periódicos do Rio de Janeiro e Minas Gerais; Relatórios da Presidência na Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais; APM, Fundos Instrução Pública - IP e Secretaria do Interior - SI: Livros de matrícula da Enop: Livros de matrícula de professores das escolas primárias; Livros de matrícula de professores nas Escolas Normais; Atas e correspondências enviadas e recebidas pela Enop.
Ao relacionarmos as informações da Tabela 3 às da Tabela 2, podemos compreender a dinâmica das permanências e das mudanças de ocupação ao longo do tempo. Assim, dos nove normalistas que exerceram o magistério em escolas elementares ao longo de suas vidas, cinco deles aparentemente a exerceram exclusivamente. Entretanto, chama-nos a atenção que os pedidos de remoção para o exercício do magistério em outras localidades eram comuns, havendo mais de uma requisição para cada um desses sujeitos, fato já mencionado por Nascimento45. A circulação pelo território parece ser uma constante para professores e professoras que, no início de suas carreiras profissionais, buscavam se estabelecer em localidades onde era mais conveniente. João Maria da Silveira, por exemplo, acabou retornando a Ponte Nova, onde nascera, circulando pela região46.
Conforme Faria Filho e Macedo47, se, em 1865, as mulheres representavam 16,1 % do professorado em nível elementar em Minas Gerais, no ano de 1881, esse índice havia aumentado para 38,6 %. Segundo Gondra e Schueler48, os historiadores que se dedicam à temática da feminização do magistério brasileiro consideram que a presença de indivíduos do sexo masculino na docência primária fez-se marcante até as primeiras décadas do século XX. Assim, esses professores exerceram o magistério num contexto em que os homens ainda eram a maioria na docência elementar. Entretanto, constituíam um novo perfil, o de professores jovens e formados.
Dois dos alunos iniciaram a vivência profissional no interior da própria Enop, como amanuenses, ou seja, executando serviços de copista, de secretaria e de substitutos temporários dos mestres impossibilitados de exercerem a função: Joaquim Pio e Antônio. Joaquim foi nomeado amanuense em 1884, quando era estudante do segundo ano49. Além das atividades administrativas, sabemos que substituiu a professora da aula prática, em maio de 188550, e, depois de formado, foi professor de instrução pública elementar do município de Piranga, onde exerceu o magistério durante quase toda a sua trajetória profissional51. Antônio foi nomeado amanuense após a exoneração de Joaquim, quando este concluiu o curso, em 188752. Dedicou toda a sua carreira profissional atuando na Escola Normal de Uberaba, que havia sido recém-criada53. Inicialmente como lente da aula prática, prestou concurso e foi aprovado para a cadeira de Desenho Linear e Geometria, na qual lecionou até ser nomeado vice-diretor54. Anos mais tarde, exerceu o cargo de diretor da instituição55.
Pedro Mourthé parece ter sido o único egresso desse grupo a conciliar a docência nas escolas elementares com outra atividade profissional: a de funcionário da Tesouraria da Fazenda56. Já Francisco de Paula Barcellos aparentemente foi o único que, após cerca de oito anos atuando no magistério57, inicialmente na cidade do Pomba, depois em Formiga, abandonou a profissão e começou a trabalhar na Diretoria da Fazenda Provincial em 1889, assumindo o cargo de funcionário do Tesouro do Estado em 1890, cargo semelhante ao de Pedro, atuando como amanuense na secretaria de finanças. Mudou-se para Belo Horizonte em 1897, logo na fundação da nova capital, e seguiu atuando como funcionário público58.
Esses dois percursos indicam uma característica presente nas experiências de homens professores que diferenciaria das mulheres: conciliar o magistério com outra atividade profissional, também discutido por Moraes e Vidal59 ou a ascensão profissional, seja dentro do campo educacional, seja em outras profissões. Outros casos se assemelham a esses, como os de Bernardino e Carlos. Ambos vivenciaram o deslocamento dentro da carreira docente para outros níveis de ensino: Carlos atuou por cerca de sete anos como professor em escolas elementares em Mar d'Espanha, Ayuroca e Rio Preto, quando pediu exoneração e se mudou para Ouro Preto. Lá abriu uma aula noturna no Liceu de Artes e Ofícios, onde lecionava português e aritmética, ao mesmo tempo que abriu uma aula particular. Após cerca de quatro anos, passou a secretário da Enop e, em seguida, professor da aula prática, de História, Cosmografia e Geografia na mesma instituição, não mais lecionando nas escolas elementares60.
Bernardino também foi professor no Liceu de Artes e Ofícios, além de ter sido professor em escolas elementares61.
O Liceu de Artes e Ofícios de Ouro Preto foi instalado no dia 25 de março de 188662. De iniciativa filantrópica, com algum auxílio do governo, a instituição tinha o corpo discente constituído pela camada mais pobre da sociedade, com o objetivo de lhe proporcionar a aprendizagem de um ofício. Entre esse público estavam os negros libertos pela lei do Ventre Livre, de 1871 - aqueles nascidos de negras escravizadas, a partir dessa Lei, seriam livres63. Com o aumento do contingente de pessoas pobres livres, nas últimas décadas do século XIX, houve, além da ampliação de escolas elementares, a criação de aulas noturnas para adultos, em várias partes do Império; segundo Barros64 e Gonçalves65, essas aulas eram voltadas principalmente para os negros, tanto os livres quanto os escravizados. Dos sujeitos aqui analisados, cinco lecionaram em aulas noturnas, com perfis diversos.
Bernardino e Joaquim Pio lecionaram em escolas noturnas de iniciativa pública; Carlos, como mencionado anteriormente, tomou a frente na abertura de uma aula noturna no Liceu, de iniciativa filantrópica e auxílio do governo, enquanto João e Pedro abriram aulas noturnas particulares, o primeiro em Ponte Nova e o segundo em Ouro Preto. A perspectiva de abrir um curso noturno pago para a camada pobre da sociedade indica que se tratava de uma demanda premente e com boas perspectivas para os jovens recém-formados. Os anúncios abaixo ilustram esses diferentes perfis:
Abrio-se no lyceo de artes e officios mais uma aula nocturna para os pobres escravizados, os quaes deverão apresentar licença dos respectivos Snrs., a fim de lhes ser facultada a matricula. Incumbio-se d'esse patriótico trabalho o professor Snr. Carlos Borja Peixoto.66
Com o fim de tornar a instrucção accessivel a todos os que, desejando cultivar o espirito, não o podem fazer durante o dia, por causa de suas ocupações, resolverão os abaixo assignados abrir n'esta cidade, à rua Direita, uma aula nocturna, onde leccionarão - 1.
Letras, compreendendo leitura, calligraphia, elementos de civilidade, as quatro operações de inteiros, systema métrico e doutrina, - e arithmetica e portuguez. Pelo ensino da primeira matéria cobrarão de cada alumno, 3 000 reis mensais, e pelo de cada uma das outras, 5 000 rs. A aula funccionará das 6 horas da tarde as 9 da noite.
N'ella serão admitidas pessoas de qualquer idade e condição, desde que tenhão regular comportamento.
Os escravos, porem, só poderão frequental-a com permissão de seus respectivos senhores.67
O requisito de que tenham regular comportamento e o ensino de elementos de civilidade indica que se tratava de uma alternativa que previa acolher pessoas cujos hábitos e padrões de comportamento necessitavam ser também educados. Possivelmente por isso, não encontramos, até o momento, nenhuma evidência de que as mulheres atuaram nesse segmento de ensino, provavelmente pelos constrangimentos morais.
Essa atuação nas aulas noturnas, as quais eram concomitantes às aulas elementares regulares ou não, pode ter se constituído como um degrau para a ascensão na carreira docente, como foi o caso de Carlos, ou como uma oportunidade para responder a uma demanda em crescimento, como parece ter sido os casos de João e Pedro. Entretanto, levanta indícios também de uma atuação engajada politicamente, já que a causa abolicionista estava em pauta, envolvendo os segmentos profissionais de diversas formas. Um exemplo bastante ilustrativo é o caso de Mo-destino, um dos quatro egressos que não atuou no magistério e fundou o jornal União Postal68 de Ouro Preto, do qual era proprietário. Nesse jornal, encontramos uma notícia, aparentemente escrita por um ex-escravizado ou filho de escravizados (ou assim se quer identificar o autor, que assina como Henrique Cancio), que agradece a uma iniciativa antiescravista feita pelo conselheiro Joaquim José de Sant'Anna, cujo nome dá título à matéria, e é chamado de "ancião". Segue um trecho da matéria, escrita em versos, presente no número 21, de 31 de dezembro de 1887:
Salve, três vezes salve, oh! Venerando ancião!
E nós da escravidão os filhos desgraçados,
Que até eramos privados
Da família e de amor, de paz e de carinho,
Aves de arribação, sem um pequeno lar
Aonde ao por do sol fossemos fabricar
P'ra nossos filhos berço ou um pequeno ninho,
Que entregues muita vez a bárbaros senhores
Como animaes quaisquer, aos cálidos calores
Do sol do meio dia, a trabalhar a eito
E quase já sem vida o nosso pobre peito,
Viamos correr do nosso corpo exangue
Com pedaços de carne uns jorros mil de sangue...
[...]
Salve, três vezes salve, oh! Venerando ancião
Que arrancastes-nos hoje a negra escravidão!69
Modestino Elizário de Arnide aparentemente apresentava condição financeira privilegiada, sendo proprietário de uma chácara onde cultivava amoreiras para a produção de bicho de seda70. Era também funcionário dos correios e, em determinado momento da carreira, passou a "funcionário federal"71.
Os demais egressos da Enop que aparentemente não atuaram no magistério foram Arthur Ribeiro de Carvalho, que foi funcionário dos correios, chegando a diretor-geral, e possuía a patente de Capitão, assim como seu pai72; Rosalvo Rodolpho Moreira de Mendonça também trabalhou nos correios, especificamente nos cargos de praticante e oficial da administração, sendo promovido a chefe de seção e, posteriormente, a contador73; Jacintho Gregório dos Santos foi colaborador da Secretaria-Geral das Obras Públicas, servente dos correios, escrivão interino dos casamentos e terceiro suplente do subdelegado do distrito de Antônio Dias, na capital74. Curioso identificar que todos os quatro sujeitos contavam com empregos públicos nas diversas instâncias dos correios. Podemos dizer que eram atividades que proporcionavam estabilidade, no caso dos empregos públicos, ou autonomia, como a propriedade de um jornal. Nesses casos, os estudos secundários aparentemente não influenciaram nas atividades que exerceriam ao longo de toda a vida, não fosse o fato de serem estabelecidas em meio urbano e estarem estreitamente vinculadas e dependentes da leitura e da escrita. Segundo Tambara, com relação à província do Rio Grande do Sul, muitos dos homens normalistas não chegavam a assumir a docência, indicando que ingressavam nos cursos normais para conquistarem uma instrução diferenciada75. No caso desta pesquisa, esse índice é reduzido, representando 29 %. A Figura 1 abaixo ilustra a distribuição profissional desse grupo de homens, por tipo de atividade profissional.
Fonte: Almanaques de Minas Gerais; Periódicos do Rio de Janeiro e Minas Gerais; Relatórios da Presidência na Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais; APM, Fundos Instrução Pública - IP e Secretaria do Interior - SI: Livros de matrícula da Enop; Livros de matrícula de professores das escolas primárias; Livros de matrícula de professores nas Escolas Normais; Atas e correspondências enviadas e recebidas pela Enop.
No período analisado, o espaço autorizado para as mulheres atuarem, nas escolas normais, era o das aulas práticas que, normalmente, funcionavam em escolas anexas. O caráter prático dessa disciplina lhe conferia status inferior com relação às demais, o que se percebe, por exemplo, a partir de uma nota publicada no jornal O Sexo Feminino, da cidade de Campanha:
Graças a Deus que a mulher já serve para mais alguma cousa, do que lavar, engomar, cosinhar, fazer rendas, crivos; já serve para substituir a um professor da escola normal da capital da província, indo leccionar mathematicas! Lê-se no Diário de Minas de 31 de julho deste anno que a professora da aula práctica annexa à escola normal de Ouro Preto D. Amalia Ethelvina Bernhauss fôra designada pelo inspector geral da instrucção pública para substituir o lente de mathematicas daquella dita escola, Ovidio João Paulo de Andrade.76
A nota ilustra a hierarquização das disciplinas das Escolas Normais, o que também é visto na trajetória dos professores aqui analisados. O ingresso deles nas Escolas Normais se deu por meio das aulas práticas, antes de assumirem as aulas das disciplinas do currículo teórico. Essa ascensão, como vimos, foi mais comum nas trajetórias de homens (14 %), enquanto foi quase que inexistente nas das mulheres. Estas, excetuando-se as substituições esporádicas, como mencionado, tiveram as aulas práticas como o auge da carreira como docente.
Trajetórias profissionais interrompidas
Ao acompanharmos as trajetórias profissionais desses homens professores até a idade madura, ou seja, até cerca de 25 anos de exercício da profissão, identificamos que dois dos sujeitos estudados faleceram precocemente. João Maria da Silveira atuava exclusivamente como professor de escola elementar e faleceu quando tinha 30 anos, e desconhecemos a causa77. Carlos Borja Peixoto, que iniciou a carreira como professor de escola elementar e seguiu como professor do Liceu de Artes e Ofícios e da Enop, faleceu com 33 anos78, tendo seus dois últimos anos de atividade profissional marcados pelo afastamento para tratar da saúde, comprometida por congestão pulmonar79.
Além das duas mortes prematuras, dois professores foram afastados da docência por circunstâncias excepcionais: Joaquim da Rocha Fiuza foi denunciado aos órgãos públicos por embriaguez em 1897 e, havendo reincidência da falta, houve abertura de processo no Conselho Superior de Instrução Pública. Os documentos são unânimes em afirmar que o professor "tem por hábito embriagar-se, de tal modo a ficar impossibilitado para o magistério" e, mesmo tendo recebido advertências em ocasiões anteriores, não mudou o comportamento nem apresentou qualquer documento que o isentasse dessas acusações. O Conselho decidiu por multá-lo80. A partir de 1898, não são encontradas mais informações sobre a sua atuação como professor ou em outra atividade.
Antônio Mamede, cuja atuação foi exclusiva na Escola Normal de Uberaba, chegando a ser diretor, após cerca de 15 anos de docência, foi encaminhado para o manicômio de Barbacena sob alegação de demência81, aos 38 anos de idade, aproximadamente. Antônio Mamede, conforme discutido acima, foi amanuense na Enop e indica uma trajetória bem-sucedida de aluno que atingiu um dos pontos mais altos na carreira docente.
Conclusões
Os sujeitos investigados nesta pesquisa seguiram o contrafluxo das tendências que vimos para o magistério nas últimas décadas do século XIX. Num período em que alternativas escolares concorriam com o curso normal, em alguns casos, a trajetória familiar, marcada pelo vínculo com a docência, provavelmente tenha influenciado na escolha por essa profissão. Mas são homens que ingressaram numa carreira que ainda era assumida majoritariamente por homens, havendo, portanto, resquícios de uma tradição herdada dos séculos anteriores, a dos mestres-escola. O principal diferencial para o contexto estudado parece ser o fato de que esses sujeitos experimentaram um processo de produção de hierarquias no exercício da docência, na medida em que o curso normal conferia legitimidade e status diferenciado àquele que o concluía e, lembremos, esse grupo passava a ser majoritariamente feminino, a partir da década de 1870. Os homens estavam se beneficiando, portanto, de um mecanismo que qualificava e legitimava em especial as mulheres, para o exercício do magistério.
Tratava-se de um grupo diversificado, com muitas singularidades, sendo pontos comuns a passagem pela Enop, o fato de se inserirem no mundo do trabalho imediatamente após concluírem o curso e, assim como as mulheres, circularem por diversas localidades, aparentemente em busca de condições melhores de trabalho, ou para voltar para as suas cidades de origem. Conciliavam, na maioria das vezes, a constituição de família e o exercício profissional, o que era mais comum que no caso das mulheres. A ascensão para outros níveis de ensino, ao longo da carreira, também era uma oportunidade mais viável para eles do que para elas.
As múltiplas oportunidades para ocuparem o espaço público aparecem representadas nas diversas trajetórias aqui analisadas: para alguns, o curso normal não parece ter influenciado diretamente nos cargos públicos que ocupariam por toda a vida, e o fato de terem sido normalistas (ou serem normalistas) não aparece como elemento que agregue, nem mesmo distinção simbólica, nas identidades profissionais que exerceram, diferindo daqueles que atuaram como professores. Ainda assim, a passagem pelo curso normal e os conhecimentos adquiridos provavelmente tenham influenciado na sua formação, uma vez que esses sujeitos construíram as suas carreiras em campos em que a leitura e a escrita eram fundamentais, e atuaram no funcionalismo público mineiro, ou seja, em universos profissionais não tão distantes da realidade vivenciada por eles na Enop.
Por fim, confrontamo-nos com a impossibilidade de definir ou explicar, de forma genérica, a relação dos homens das décadas finais do século XIX com a docência, pois muitas instâncias e dimensões do contexto cultural e temporal atravessaram as escolhas que fizeram. De todo modo, apresentar a complexidade de elementos que permeiam as trajetórias desses sujeitos pode ser um dos caminhos para a desnaturalização e o aprofundamento da discussão em torno do homem professor, no contexto em que o processo de feminização da docência ganhava impulso.