INTRODUÇÃO
O novo coronavírus, Sars-CoV-2, ocasiona a doença respiratória infecciosa coronavirus disease (covid-19), que surgiu pela primeira vez em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, e se espalhou rapidamente para muitos países, tornando-se uma das principais causas de morte em todo o mundo atualmente 1,2. Nesse contexto, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia pela covid-19. Em 22 de maio do mesmo ano, o número global de mortos ultrapassou 330 mil casos 3. Somente no Brasil, no mesmo período, foram registrados 20.803 óbitos 4.
Por trás desses números, encontram-se milhares de famílias que sofrem a dor da perda de entes queridos. A morte geralmente já é um processo difícil de ser enfrentado, o qual é, muitas vezes, permeado por sentimento de tristeza e angústia, porém, no contexto da pandemia da covid-19, os impactos psicológicos podem ser ainda mais intensos, já que não é permitida a realização dos habituais rituais de despedida 5-6.
Por se tratar de uma doença intensamente contagiosa, medidas sanitárias foram adotadas no sentido de evitar a propagação do vírus durante os funerais. No Brasil, o velório de falecidos devido à covid-19 é permitido, entretanto deve ocorrer em ambientes abertos e com a presença de no máximo dez pessoas, as quais não podem pertencer aos grupos considerados de risco nem apresentar sintomas respiratórios voltados para a doença. 7-8. Normas mais severas foram implementadas em outros países, a exemplo da Itália, em que as cerimônias fúnebres foram proibidas e os cemitérios, fechados 9-10.
A ausência de rituais de despedida de pessoas mortas pela covid-19, devido à alta transmissibilidade da doença, tem repercutido negativamente sobre a vida dos familiares, o que se expressa por meio do comprometimento psíquico. Diante da necessidade de intervenção, urge o entendimento acerca das estratégias que podem auxiliar no enfrentamento do processo de morte nesse contexto.
Além da impossibilidade da despedida, o distanciamento social faz com que os familiares tenham que lidar também com a ausência do abraço e do carinho dos amigos, o que torna a vivência do luto ainda mais dolorosa 11-13. Todos esses fatores podem levar ao adoecimento psicológico manifestado, entre outras formas, pela depressão, pela preocupação excessiva, pela angústia, pela dificuldade em aceitar a morte e pelo desinteresse pela vida 14-15.
Diante desse panorama, fica evidente a necessidade de cuidados diferenciados para pessoas que perderam familiares pela covid-19. Nessa perspectiva, adota-se como objetivo deste estudo conhecer as estratégias que podem auxiliar pessoas enlutadas pela morte de familiares pela covid-19 a lidarem com a perda.
METODOLOGIA
Trata-se de uma revisão narrativa que consiste na ampla análise da literatura sem a necessidade da reprodução de dados quantitativos e do desenvolvimento de uma metodologia detalhada 16. Contudo, é imprescindível evidenciar novas ideias e métodos para a obtenção e a atualização do conhecimento sobre uma temática específica 17. Ressalta-se que a seleção dos estudos pode estar sujeita à subjetividade dos autores.
Para melhor orientar a busca na literatura, adotou-se a seguinte questão orientadora: que estratégias podem auxiliar as pessoas enlutadas pela morte de familiares pela covid-19 a lidarem com a perda?
A busca na literatura ocorreu em diferentes dias do mês de maio de 2020, na plataforma PubCovid-19, a qual está indexada na Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos (PubMed) e no banco de dados Excerpta Medica (Embase). Essa plataforma foi criada com o objetivo de compilar as publicações relacionadas à covid-19 e organizar os artigos por áreas temáticas, a fim de facilitar o acesso e direcionar o pesquisador. Para alcançar as publicações sobre a temática, buscou-se selecionar estudos a partir dos seguintes descritores em inglês: “death” “bereavement”, “grief” e “mourning”, sendo incluídos no corpus analítico artigos científicos que versam sobre a covid-19, publicados em 2020, apresentados em inglês, e que faziam interface com as temáticas de mortes pela covid-19, luto e estratégias de enfrentamento. Excluíram-se artigos que não estavam disponíveis na íntegra de forma gratuita ou que não evidenciavam de forma clara os elementos pertinentes à pesquisa.
Foram encontrados inicialmente 84 artigos científicos após a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão e a exclusão dos artigos duplicados. Depois da leitura dos títulos e dos resumos, que foi realizada por três autores de forma independente, 74 artigos científicos foram excluídos por não abordarem o tema de estudo, restando dez artigos para a leitura na íntegra, os quais foram incluídos no estudo. Por fim, para melhor sistematização dos materiais selecionados, foi utilizado um instrumento elaborado pelos autores da pesquisa que continha as seguintes informações: título, autoria, ano de publicação, país, periódico, metodologia adotada no estudo e estratégias para pessoas enlutadas pela morte de familiares pela covid-19 a lidarem com a perda.
Os estudos foram lidos exaustivamente, categorizados e analisados a fim de buscar estratégias imediatas e de longo prazo para auxiliar as pessoas enlutadas pela morte de familiares pela covid-19 a lidarem com a perda. A partir da exploração do material selecionado, a discussão foi desenvolvida considerando, como categorias empíricas, as estratégias imediatas e as estratégias de longo prazo. A discussão pautou-se na análise crítica e no confronto dos achados com a literatura nacional e internacional, o que permitiu a ampliação do conhecimento.
O estudo atendeu aos aspectos éticos pelo estudo (conforme a Lei de Direitos Autorais - Lei 12.853, de 14 de agosto de 2013, que alterou a Lei 9.610/1998), uma vez que se respeitaram os direitos autorais das pesquisas coletadas 18-19. Ainda, por se tratar de revisão integrativa, a submissão do estudo a um comitê de ética em pesquisa foi dispensada 20.
RESULTADOS
Com base nas dez publicações selecionadas, foi desenvolvido um quadro no qual são expostas as características dessas publicações segundo título, autoria, ano de publicação, país, periódico, metodologia adotada no estudo e estratégias imediatas e de longo prazo.
N.° | Título | Autores, ano, revista, país | Método | Categorias |
---|---|---|---|---|
Estratégias imediatas e estratégias de longo prazo | ||||
1 | Pursuing a good death in the time of COVID-19 21 | Wang SSY, Teo WZY, Yee CW, Chai YW, 2020 Journal of Palliative Medicine Cingapura | Reflexão | Estratégias imediatas (seções de videoconferência, chamadas telefônicas, gravação de áudios, cartas, fotos) |
2 | Death in the era of the COVID-19 pandemic 9 | Ingravallo, F, 2020 The Lancet Public Health Estados Unidos | Reflexão | Estratégias imediatas (telefones celulares com conexão à internet ou tablets eletrônicos, gravação de mensagens, rituais de luto ao vivo) |
3 | COVID-19 and unfinished mourning 11 | Farahmandnia B, Hamdanieh L, Aghababaeian H, 2020 Prehospital and Disaster Medicine Irã | Reflexão | Estratégias de longo prazo (apoio social e mental e cuidado com a saúde mental por meio de reabilitação, programas e aconselhamento especializado) |
4 | Mourning our dead in the COVID-19 pandemic 22 | O’Mahony S, 2020 BMJ Inglaterra | Reflexão | Estratégias imediatas (marchas fúnebres estão sendo transmitidas ao vivo, postagem de condolências em sites de funerais) |
5 | Loss and grief amidst COVID-19: A path to adaptation and resilience 23 | Zhai Y, Du X, 2020 Brain, Behavior, and Immunity Estados Unidos | Reflexão | Estratégias de longo prazo (apoio social por meio de estratégias adaptativas, afetivas, cognitivas, comportamentais, físicas, espirituais) |
6 | Grief during the COVID-19 pandemic: Considerations for palliative care providers 24 | Wallace CL, Wladkowski SP, Gibson A, White P, 2020 J Pain Symptom Manage Estados Unidos | Reflexão | Estratégias de longo prazo (apoio social, emocional, cognitivo, físico e comportamental) |
7 | Addressing mental health care for the bereaved during the COVID-19 pandemic 25 | Sun Y, Bao Y, Lu L, 2020 Psychiatry Clin Neurosci China | Reflexão | Estratégias imediatas (por meio de reuniões aconselhamento e psicoterapia on-line) Estratégias de longo prazo (apoio às necessidades psicológicas, impedir o desenvolvimento de transtornos mentais) |
8 | Supporting adults bereaved through COVID-19: A rapid review of the impact of previous pandemics on grief and bereavement 26 | Mayland CR, Harding AJ, Preston N, Payne S, 2020 Journal of Pain and Symptom Management África Ocidental, Haiti e Cingapura | Revisão | Estratégias imediatas (rituais on-line, tenda do luto nas unidades de terapia intensiva) Estratégias de longo prazo (cuidados psicológicos para as famílias, serviços de apoio pós-luto) |
9 | Bereavement in the time of Coronavirus: Unprecedented challenges demand novel interventions 27 | Carr D, Boerner K, Moorman S, 2020 Journal of Aging & Social Policy Estados Unidos | Reflexão | Estratégias imediatas (conversas familiares por meio de aplicativos de bate-papo por telefone ou vídeo, serviços memoriais virtuais e celebrações da vida do falecido) Estratégias de longo prazo (apoio social e emocional de amigos e familiares realizado por profissionais, programas e infraestruturas sociais) |
10 | Supporting families in end-of-life care and bereavement in the COVID-19 era 28 | Moore KJ, Sampson EL, Kupeli N, Davies N, 2020 International Psychogeriatrics Reino Unido | Reflexão | Estratégias imediatas (tecnologia pode oferecer formas alternativas de comunicação durante o distanciamento social) Estratégias de longo prazo (planos de cuidados avançados, planejamento de cuidados de fim de vida) |
Fonte: elaboração própria.
DISCUSSÃO
De acordo com a literatura científica selecionada, as estratégias imediatas que podem auxiliar pessoas enlutadas pela morte de familiares pela covid-19 a lidarem com a perda dizem respeito ao processo de morte e morrer de seu parente e à adoção de medidas que facilitem o contato com o moribundo por meio de chamadas telefônicas, gravação de áudios, cartas e fotos 9,20-21,25,29-30. Essas ações foram adotadas em países como Cingapura e Estados Unidos da América, onde o número de mortes foi elevado por conta das altas taxas de transmissibilidade da doença, o que obrigou essas nações a adotarem medidas de restrição com relação a visitas de familiares nos hospitais e nas cerimônias religiosas celebradas diante da morte, fazendo com que os familiares vivenciassem o luto de forma antecipatória 5,22,24. Tais ações são importantes, pois facilitam o processo de aceitação da morte antes de ela acontecer.
A concepção da morte se concretiza em cinco estágios que acontecem de maneira sucessiva: negação, revolta, barganha, depressão e aceitação 5,31-32. No processo de luto antecipatório, a mesma sequência é esperada no familiar enlutado, todavia é adicionado o sentimento da esperança 11,33. Apesar de esse fenômeno ser mais bem descrito em eventos como guerras, em que a família dos soldados sofre antecipadamente a perda desse familiar 34, esse contexto também pode ser aplicado quando existe um ente querido doente com o prognóstico de cura inviável. Nesse sentido, estudos internacionais revelam que os familiares de pacientes com doenças graves e/ou terminais, internados em unidades de terapia intensiva, vivem o luto antecipatório pela concepção consciente de que a qualquer momento seu familiar pode morrer 26-27,31-32. Nesse cenário, faz-se necessário um olhar para o familiar de modo que lhe seja permitido vivenciar o processo de luto antecipado ou existente naquele momento em todos os seus estágios.
Ainda que as estratégias imediatas apontadas na literatura para auxiliar pessoas enlutadas pela morte de familiares pela covid-19 a lidarem com a perda sejam importantes, são de difícil implementação, considerando o colapso que os sistemas de saúde mundiais estão enfrentando. Essa conjuntura se apresenta devido ao aumento diário do número de infectados que necessitam de internação nos serviços de média a alta complexidade, levando à falta de leitos para cuidados semi-intensivos e intensivos, à sobrecarga de trabalho dos profissionais de saúde que poderiam realizar tais intervenções imediatas 21,28,35-37. Dessa forma, existe a necessidade de as instituições de saúde elencarem profissionais com formação para a realização de intervenções nos campos psicológico e social para a realização dessas ações.
Para além das intervenções imediatas, a literatura científica alerta para a necessidade de estratégias de longo prazo que visem a fornecer auxílio especializado durante a vivência do luto de forma que ele não ultrapasse a barreira natural e torne-se um processo patológico. Essas ações têm relevância substancial, pois diversos estudos já descrevem que, após a pandemia, possivelmente muitas pessoas serão acometidas por problemas de ordem mental, tais como depressão e distúrbios psicológicos em decorrência da não ressignificação do processo de morte de seu ente querido 11,22,24,35. A OMS alerta para a crise global de saúde mental devido à pandemia da covid-19, na qual cerca de 40 % do total de familiares de pessoas acometidas pela doença podem desenvolver transtornos pós-traumáticos 21. A fim de minimizar esses impactos em longo prazo, é possível que, desde já, sejam traçadas estratégias que permitam a vivência do luto.
Nesse ínterim, a literatura científica ratifica que as estratégias de longo prazo ajudarão pessoas enlutadas pela morte de familiares pela covid-19 a lidarem com a sobrecarga emocional. Nos estudos consultados, constatou-se que os familiares que perderam entes queridos pela covid-19, sem condições de despedida, apresentaram alterações na saúde psicológica, entre elas o humor depressivo, o transtorno de estresse pós-traumático, a preocupação exagerada, a angústia, a dificuldade em aceitar a morte e o desinteresse pela vida 38-39.
Dessa forma, urge que sejam repensadas estratégias de cuidado, com a necessária inclusão de um cuidado intersetorial que disponibilize reabilitação e aconselhamento especializado aos parentes do falecido e garanta um acompanhamento contínuo 40-41. Nesse sentido, recomenda-se uma atuação mais diretiva por parte dos profissionais de psicologia e de assistência social por meio de um acompanhamento mais prolongado, com vistas à viabilização do retorno desses familiares enlutados ao convívio social harmônico (23, 42-43). Para isso, podem ser criados programas de aconselhamento especializado às famílias com parentes falecidos pela covid-19 que proporcionem o atendimento contínuo 44-45. Salienta-se que a inserção dessas classes profissionais citadas no auxílio do processo do luto proporciona um cuidado especializado e direcionado, visto que os profissionais de saúde estão atuando na linha de frente do cuidado e não dispõem, muitas vezes, de tempo hábil para prestar adequada assistência nesse processo.
Considerando a importância de questões voltadas para a saúde emocional dos indivíduos, não podemos deixar de abordar as questões voltadas para a dignidade humana, a qual é compreendida como a capacidade de decisão, a autonomia profissional, com a garantia dos direitos à vida, à saúde, à educação e à liberdade de expressão, que são extremamente complicadas no final da vida, principalmente em casos de morte 46-47.
Para além da atuação mais diretiva por esses profissionais, a literatura selecionada aponta para a necessidade da ampliação da rede de atenção psicossocial para atender às demandas de saúde mental da população pós-pandemia da covid-19. Estudo realizado em Massachusetts revela a importância da ampliação da rede de saúde mental de modo que oferte um cuidado intersetorial que disponibilize reabilitação, programas e aconselhamento especializado à família e aos parentes do falecido e garanta um acompanhamento contínuo 48-49. Dessa forma, facilita-se que outros profissionais especializados em saúde mental sejam incluídos nesse cenário para propor métodos de vivência do luto que considerem as novas modalidades de rituais fúnebres e de vivência da morte.
CONCLUSÕES
De acordo com a literatura científica selecionada, as estratégias que podem auxiliar pessoas enlutadas pela morte pela covid-19 a lidarem com a perda dizem respeito à adoção de chamadas telefônicas, à gravação de áudios, à elaboração de cartas e à validação de fotos, as quais são classificadas como imediatas. No tocante às estratégias de longo prazo, destacam-se o cuidado psicológico e a ampliação da rede de atenção psicossocial para o acompanhamento de pessoas com sinais de depressão ou distúrbios psicológicos em decorrência do luto.
A escassez de materiais científicos que elenquem possíveis estratégias que podem auxiliar pessoas enlutadas pela morte de familiares pela covid-19 a lidarem com a perda desponta para a necessidade de abordar tal temática, considerando que as pesquisas estão, em sua maioria, voltadas a aspectos epidemiológicos da doença. Nesse sentido, destacam-se a urgência e outros materiais que apresentem novas estratégias que possam ser utilizadas nos diversos contextos econômicos e sociais.