COM BAUDELAIRE (51-52), PODEMOS CONSIDERAR que os personagens de Edgar Allan Poe, inclusive os narradores que abusam do "eu" e as mulheres, são um único homem: o próprio Poe. Em seu tempo e lugar, no período do expansionismo americano para o Oeste, parece-me que essa encenação constitutiva do nome do autor -homem de imaginação excitada, nervos aflorados e vontade saliente- anima um conjunto de atribuições diversas que se agrupam na generalidade "Homem do Ocidente" da qual deriva o "Homem estadunidense". Com o próprio mito de autor e na sua ficção, Poe aproveita retóricas do século XIX quando alegoriza o dito homem, pondo-o em conflito com um outro cultural a ele imediato: do homem do Leste extrai o do Oeste; no do Sul, faz despontar o do Norte; do leitor de jornal apto a se orientar nas escritas da cidade, faz saltar a multidão de marginalizados; do novo leitor de poemas, receptivo a exercícios cerebrais, começa a distinguir o novo leitor de contos, similar ao passageiro dos trens que ligam o subúrbio ao centro; tenta o leitor curioso, concentrado, afeito aos contos humorísticos, filosóficos, a acompanhar um outro inquieto que devora fluidas, descritivas novelas de aventuras nas zonas bárbaras do mundo. No multifacetado homem estadunidense, metonímia do homem do Ocidente que a ficção de Poe desmembra e põe em conflito, confluem todos os povos e fluxos (i)migratórios amplamente destacados nas retóricas constitutivas do Novo Mundo. A ficção de Poe explora versões críticas do novo homem prometido na colonização e, considerando suas cisões estadunidenses, desdobra-as em personagens que encenam conflitos próprios ao processo civilizatório transfigurador do outro cultural do homem ocidental. Estendendo-se nos pressupostos de Poe, um contista perspicaz como Jorge Luis Borges deixou resenhas, nas quais também deduz particularidades do homem sul-americano e de seus modos de contar, de narrar.
Confrontando no estilo traços do que chamam barbárie, a ameaça do outro, Poe sondou modos de sensibilidade simbólica reportáveis ao homem das multidões urbanas -o excomungado, o anônimo multitudinário, o livro espesso adensado de horror e silêncio-, considerando-o um mistério dos mais intrigantes. Cito trechos dos dois primeiros parágrafos do conto "O homem das multidões" e, em seguida, o final, na tradução de Oscar Mendes.
JÁ SE DISSE, judiciosamente, de certo livro alemão que er làsstsich nicht lesen - não se deixa ler. [...] De vez em quando, ai!, a consciência do homem suporta uma carga tão pesada de horror que só pode ser descarregada na sepultura. E dessa forma a essência de todos os crimes fica irrevelada.
[...][M]e achava agora convalescente e, voltando-me as forças, encontrava-me em uma daquelas felizes disposições que são tão precisamente o contrário do tédio; [...] quando a membrana da visão mental se parte [...] e o intelecto eletrizado ultrapassa tão prodigiosamente sua condição cotidiana como a vívida embora cândida razão de Leibnitz a retórica louca e frívola de Górgias. Com um cigarro na boca e um jornal no colo [...]. ("O homem" 392)
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- Este velho - disse eu por fim - é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa estar só. É o homem das multidões. Seria vão segui-lo, pois nada mais saberei dele, nem de seus atos. O pior coração do mundo é um livro mais espesso do que o Hortulus Animae, e talvez seja apenas uma das grandes misericórdias de Deus o fato de que er lásst sich nicht lesen. ("O homem" 400)
O Hortulus Animae (1500) de Johann Reinhard Grüninger contém alegorias de um jardim místico de feitio gótico. No "The Man of the Crowd", publicado em Poetry, Tales and Selected Essays, há uma nota segundo a qual Poe extraiu a referência àquele livro do século XVI, do Curiosities of Literature (1791/1823), de Isaac D'Israeli, para quem o exemplar de Grüninger continha reflexões pueris, supersticiosas e ilustrações indecorosas. O narrador do famoso conto de Poe compara o livro de Grüninger ao mistério de aquém túmulo: um desdobramento das coisas nas coisas cujas mensagens mutuamente responsivas, que o horror destina ao túmulo, o narrador só foi capaz de ponderar em um estado alterado, de convalescença, um estado de intelecção eletrizada, de um calmo interesse por todas as coisas, mesmo as pesarosas. Ao descrever tal estado referindo o livro de Grüninger, Poe também alude à mentalidade gótica que começou a se estabelecer em cidades então "bárbaras", godas, nas regiões "sertanejas" do norte da Europa durante o ocaso da Idade Média, e se firmou em anos de relativa prosperidade a partir da segunda metade do século xi, tendo vigência nos três séculos seguintes, além de ter voltado a ter impacto no estilo neogótico do século XIX e no do XX com grande ressonância internacional. Traços daquelas mentalidades, cuja rusticidade granjeou certa desatenção dos historiadores, também despontam em estruturações análogas às da arte gótica e às da corrente escolástica, como se confere no Arquitetura gótica epensamento escolástico, de Erwin Panofsky.1 Arquitetadas por modos arrebatados de intelecção, aquelas operacionalidades góticas tiveram longa vigência. O narrador do conto de Poe encontrou, na pós-convalescença, um efeito de intelecção eufórica, eletrizada por indícios (Grüninger, Leibnitz, a escrita do não dito ou do interdito) de uma cosmologia neoplatônica, prolífera, que o anônimo multitudinário metaforiza. Tal euforia mental predispôs o narrador a observar sem fastio o homem das multidões, a perseguir por zonas obscuras da cidade aquele anônimo, que recusa estar só, repudiando a distância física aproveitada nesse conto filosófico como distância ontológica. Ao vagar sem rumo, encenando o mistério irredutível de uma passagem ordinária, o homem da multidão ainda difere de seu outro, homem único e individualizado como o leitor moderno, silencioso, soberano de sua biblioteca, e como o narrador excepcionalmente empático no período posterior à convalescença.
A curiosa linhagem de Poe e contos críticos latino-americanos
Nas resenhas que dedicou a Poe, Borges tece considerações bastante distintas de tantas outras assinadas por críticos do século XIX e da primeira metade do século XX. Passando ao lado de valores estéticos predominantes e deslocando esquemas evolucionistas do século XIX, Borges destaca a perspectiva eufórica de escritores como Baudelaire e Mallarmé e os inclui no que estabelece, sem dúvidas com humor, como a linhagem de Poe. Trata-se de uma genealogia da paixão pelo anônimo multitudinário, como aquela que atravessou vanguardistas e escritores modernos, artífices hercúleos de cosmologias cujo foco deslocam para o transitório, para as sombras do contingente, das nonadas: Poe gerou Baudelaire que gerou Mallarmé que gerou Valéry.2 O humor está no fato de que a dita linhagem se mostrou bastante prolífera, apesar de seus "patriarcas" terem sido com frequência apontados como escritores decadentes por avaliações críticas que não raro recorreram ao peso da autoridade medicinal, científica, enquanto aplicavam diagnósticos moralizadores do século XIX. Filhos dessa linhagem como Baudelaire, e, por que não, Borges recusaram esses padrões valorativos dedicados à denúncia da decadência do fim do século. Note-se que em um pequeno ensaio biográfico, "O homem e a obra", Baudelaire inclusive refuta o adjetivo "estranho" do qual abusam os diagnósticos dos críticos de Poe. Além do poeta da modernidade, os demais escritores da linhagem traçada por Borges recusam a tirania das Luzes, como antes o haviam feito os góticos e os neogóticos; rejeitam, portanto, suas derivações evolucionistas, positivistas, as medicinas do espírito e os valores do imperialismo expansionista. Tal recusa confronta avaliações que prevaleceram, por um longo tempo, nas críticas a Poe: em vez do escritor decadente ou do burguês individualista que alarmou a crítica de aporte evolucionista, escritores modernos e vanguardistas encontraram em Poe uma imaginação potente.
Por mais de um aspecto, podemos reconhecer em Poe o "pai" de forças rebeldes que se alastraram: em performances de autor, de escritores modernos; na literatura estadunidense; em short stories modernas3 e em teorizações das estórias, dos contos, no continente americano; e ainda naquela genealogia da vanguarda europeia lançada com Baudelaire e traçada por Borges que, quando assumiam essa paternidade de Poe, repeliam o lugar secundário da literatura do continente americano na República das Letras. Multifacetada, a figura de Poe pertence à imaginação pública que o conhece, principalmente, como contista canónico, embora conserve dele a imagem canónica de poeta maldito. Poe considerava-se apenas poeta, dedicou-se ao conto por questões circunstanciais e, apesar disso, foi principalmente sua escrita dos contos, das short stories, que acabou se tornando canónica. O curioso é que o grande contista ficou registrado na imaginação pública com uma aura de poeta, o que sugere um desdobramento mútuo do contista ao poeta, em um complexo movimento de derivação monadológica também constitutivo de outros aspectos de sua ficção. Mais do que a memória de seus poemas, a posteridade celebra a imagem que Poe sugeriu de si mesmo no ensaio Filosofia da composição: a de um poeta indiferente à aprovação do público, dedicado a uma escrita lenta, solitária, e afeito a teorizá-la. Esse artista moderno fez-se artífice à medida que compós uma ficção crítica em relação aos discursos de verdade de seu tempo, mantendo-se atualizado por publicações de divulgação científica. Como autor de contos, Poe realizou um gesto hercúleo que o tornou um autor intrigante para leitores de gerações sucessivas, marca definitiva do continente americano na literatura mundial do século XIX, e objeto de interesse de Borges, escritor latino-americano de contos críticos que como Poe também obteve grande repercussão em todo o mundo.
Numa resenha a um livro de narrativas curtas de Hawthorne, Twice-Told Tales, Poe iniciou, em 1843, sua teorização da escrita das short stories, dos contos. Salientava como suas narrações rigorosamente ponderadas encaminham o leitor a efeitos intensos e a um sentido inicialmente insuspeitado. Contos como esses, publicados em jornais populares, estimulavam ao máximo o humor dos leitores com artifícios que incitaram a paixão deles pelo mal e pelas trevas -para tomar emprestada uma expressão de Bataille (29-46) a propósito da literatura-, ativando a febre epidêmica do dito decadentismo, pecha atribuída por alguns críticos a escritores interessados pelo outro da civilização europeia, pelo Oriente, pela América, pela promessa barrada de um homem novo. Como se sabe, uma vasta literatura, muito alimentada por contos e outras narrativas curtas, constituiu o continente americano como um outro da civilização Ocidental cuja feição extraordinária encenou-se desde os primeiros escritos sobre o Novo Mundo, retornando mais tarde nas versões nacionais e neocoloniais das regiões exóticas -extraordinárias, fantásticas, místicas etc.-, na literatura gótica e na de viagem do século XIX, no que a ficção de Poe intervém com perspicácia.
Poe explorou dois efeitos já experimentados separadamente por seu público. Por um lado, os atrativos de humor que singularizam contos populares clássicos, como tales e sketches, muito publicados no século xviii e no XIX em periódicos de países ocidentais em processo de expansão da imprensa, de difusão do impresso e de industrialização. Por outro lado, a associação duradoura de narrativas grandiloquentes às realidades misteriosas, perigosas, extraordinárias de um Novo Mundo aberto às aventuras da conquista colonial e neocolonial. A novidade dessa combinatória talvez tenha sido desconfortável para alguns críticos, que não encontraram na teorização do conto -nem na orientação moralizadora das compilações francesas, nem no ideal germânico da organicidade atribuída à prática do povo de contar coisas imaginativas na própria língua castiça- pressupostos suficientemente adequados às narrativas de Poe. Desprevenidos, deparavam-se com esses contos cuja estranha equação aproveitava, por um lado, a retórica superlativa daqueles que escreveram sobre as Américas e, por outro, associava-a a atrativos de contos de consumo massivo, principalmente aqueles publicados em jornais baratos: peripécias, surpresas, blagues, suspense, fantasmagorias etc. Essa combinatória inusitada de coisas amplamente noticiadas, mesmo ao homem das multidões, também ajuda a entender o porquê de críticos, no século XIX e ainda no seguinte, terem persistido em examinar os contos de Poe como um prontuário médico.
Encontro alguns pontos em comum em escritores como os que Borges alinha a Poe, como a recusa de valores estéticos dominantes e presentes naqueles julgamentos empregados pelos que defendiam a decadência de Poe. Além disso, esses escritores, filhos de Poe, ainda compartilham certo gosto por incursões alegóricas. Como uma estranha peça do passado que desconjuntava a reguladíssima máquina moderna, uma figura epistemologicamente alienígena como a alegoria acabou interessando poetas modernos e escritores vanguardistas, com os quais contistas latino-americanos como Borges e Guimarães Rosa mostraram afinidade.4 Puderam explorá-la como técnica retórica que impregna o estilo de uma sombra colonial e cria atritos com padrões narrativos dominantes, plenos de luz, valores essenciais, estágios evolutivos do humano, medicina corporal e mental. Antipatizada por carregar um histórico importante de críticas e desconfianças, a alegoria oferece à ficção recursos efetivos na crítica a valores estéticos dominantes de teor evolutivo: valores como a condenação do artifício retórico, ou apenas certa desconfiança ante ambivalências como as da ficção. Além do gosto pelo uso de alegorias, os filhos de Poe também compartilharam a indiferença a certa hierarquização de gêneros narrativos, segundo a qual o conto fica aquém do romance, cuja superioridade se costumava atribuir a fatores como a complexidade psicológica de seus personagens e a formação do leitor atento a suas nuances. Os estetas-artífices da linhagem de Poe admitiram as sombras na luz da vigília, ao incorporarem operações alegóricas, artefatos de linguagem estranhos, ruidosos, mesmo espectrais.
Pai Poe
Seguramente, Poe teve impacto significativo, o que se confere na presteza das traduções nas línguas mais lidas da literatura mundial. Os Russos mostraram-se especialmente receptivos aos contos de Poe. Já em 1839, as primeiras traduções de Poe na Rússia o tornaram o escritor mais estimado, até que alguns críticos começaram a acusar nele sintomas de decadência. Nos Estados Unidos, a primeira reação de críticos e biógrafos a Poe desencadeou uma longa polêmica sobre sua moralidade. Mesmo assim, Oscar Mendes chama a atenção para o fato de que o nome do escritor acabou ocupando a posição de pai da literatura estadunidense, depois de ter obtido grande sucesso mundial, façanha até então inédita para um escritor de seu país, que não a dispensaria, pois ainda lutava para se firmar como nação independente, atraindo imigrantes de todo o mundo, e em fase de expansionismo interno, rumo ao far west (53, 55). Sua difusão mundial se deu inicialmente em língua francesa, a partir de traduções de Baudelaire reunidas por ele no volume Histoires extraordinaires (1856), que estourou na França. As primeiras traduções na Espanha também surgiram em 1857, e tiveram impacto em escritores da América de língua espanhola desde então, e particularmente em Borges no século XX.
Os contos que Poe publicava em jornais e periódicos massivos atritaram com demandas do século XIX por instrumentos sadios de disciplinamento da imaginação pública. Foram censurados por supostamente encorajarem tendências pouco sadias, que se mantêm no gosto do público e nos gêneros direcionados ao consumo massivo: fantasia, desregramentos, violência, delírio etc. Essa conjectura agrava-se quando se soma a outra generalidade atribuída a Poe pela crítica determinista do século XIX e pela crítica impressionista da primeira metade do século XX: aquelas tendências decadentes davam sintoma e reforço ao que os críticos reputavam ser um dos grandes males de seu tempo, o individualismo burguês. Essa premissa moralizadora prevaleceu na crítica escrita naquele período, que desqualificou escritores da linhagem de Poe considerando-os academicistas, formalistas, esnobes, cosmopolitas, vanguardistas. Uma contrapartida monumental a essas avaliações arquiteta a ficção do pai Poe: "e talvez seja apenas uma das grandes misericórdias de Deus o fato de que er lãsst sich nicht lesen [ele não se deixe ler]" (Poe 400).
E a literatura brasileira?
Demorou para se publicar a primeira tradução dos contos de Poe, em livro escrito no português brasileiro, o que tem merecido consideração, em teses e dissertações. Farei apenas uma ou outra consideração, para sugerir que essa demora reforça indícios de certo afastamento das linhagens nacionais, constituídas na história da literatura brasileira, em relação às formas fantasmáticas ou a gêneros instalados nos limites das convenções realistas que marcam a literatura nas Américas, tanto na transcendência onírica estadunidense (transfiguração de saberes filosóficos, científicos, tecnológicos produzidos principalmente na língua inglesa e na alemã) como na intranscendência latino-americana resultante de um deslocamento ainda maior em relação a esses saberes produzidos nas línguas das nações colonizadoras.
A grande fama mundial de Poe justifica que leitores brasileiros, já no século XIX, tenham tido acesso a publicações de sua ficção -no espanhol, no inglês, no francês e no português de Portugal. Machado de Assis está entre os muitos escritores brasileiros canónicos que traduziram poemas de Poe. Embora a publicação de traduções brasileiras dos contos tenha demorado bastante, já em 1857 começaram as publicações portuguesas de seus contos em folhetins. A primeira antologia de contos de Poe, Historias exquisitas (1927), traduzida do francês para o português brasileiro, pelo crítico literário e tradutor Affonso de Escragnolles Taunay, foi publicada quase cem anos depois das primeiras traduções russas em 1839. Bottmann registra o fato de que a tradução dos contos para o público adulto brasileiro, por Oscar Mendes e Milton Amado, saiu junto com as obras completas, apenas em 1944 (91).
Nos últimos anos, têm surgido pesquisas como a de Julio França sobre o fantástico na literatura brasileira escrita a partir do século XIX. Seu ensaio "As sombras do real" demonstra como escaparam ao foco da história da literatura brasileira, ocupada do período que vai do Brasil Império à Primeira República, ficções como as góticas, simbolistas, noir, policiais, de ficção científica, e os westerns (133). Houve pouco espaço e algumas reservas na literatura brasileira quanto às formas fantasmais, que considero, em um sentido amplo, resultantes de um tipo de sensibilidade simbólica afetada por experiências de deslocamento em relação a uma concepção prévia de realidade, como aquela novidade constituída na colonização e nos períodos de expansão neocolonial. Assim consideradas, essas formas fantasmais abrangem muitos efeitos: o insólito, o absurdo, o mágico, o mí(s) tico, o esotérico, o fantasioso, o supersticioso, o maravilhoso, o estranho, o extraordinário etc. Em relação ao continente, o Brasil pareceu, por um longo tempo, um caso à parte, o que pode ter derivado de uma lacuna que pesquisas como a de Julio França cobrem com uma outra atenção a esse tipo de literatura. Veja-se o pouco interesse inicial da crítica por Murilo Rubião, que inaugurou a ficção do insólito absurdo com o livro de contos O ex-mágico (1947), antes mesmo do imenso sucesso da literatura hispano-americana do boom. Depois da consolidação desse fenômeno editorial, Rubião apareceu, no ensaio de 1979 "A nova narrativa" (Candido 199-215), como uma exceção na dominante, realista e de vocação nacionalista, da literatura brasileira. Enquanto leitores brasileiros, apenas nos anos 1940, contaram com um livro inteiro de contos de Poe traduzidos para o português do Brasil numa edição destinada ao público adulto, na América Hispânica sua difusão foi mais favorável.
Nos anos 1980, críticos como Haroldo de Campos, Costa Lima, João Adolfo Hansen e Flora Süssekind começaram a chamar a atenção para o fato de que, na história da literatura brasileira e na da crítica, preponderam valores estéticos fixados no Romantismo do século XIX. De modos diversos, questionaram o uso anacrônico dessas valorações e discutiram a historicidade de seus pressupostos. Segundo tais valores estéticos do século XIX, a evolução das formas literárias começou pelo reconhecimento da necessidade de superar o estágio de transplante de formas estrangeiras, pelo repúdio à cópia delas e pelo comprometimento com a observação do próprio, do orgânico, em que as letras nacionais modernas se fundaram. Esses críticos colocaram em questão o fato de a conquista da autenticidade, na literatura brasileira, ter se tornado o sentido de um caminho evolutivo rumo à consciência do nacional, que tornava prioritário o reconhecimento desse processo, desde suas etapas iniciais, de aprofundamento da observação das matérias locais, imprescindível para uma representação adequada, tal como nos primeiros esforços mais efetivos de estudo e definição das realidades brasileiras por parte dos escritores realistas. A constituição desse sentido evolutivo, civilizacional, considerou a etapa de observação e realismo, da segunda metade do século XIX, um ganho inicial de consciência e disciplina. Essa etapa preparava lugar para a consolidação de uma literatura moderna, autônoma, capaz de superar a atitude inicial de observação, de reconhecimento do próprio, alcançando o poder de transfigurar tanto matérias brutas locais como contribuições estrangeiras, e tornando-as formas próprias a um nacional sob pesquisa.
Toda essa valorização de formas literárias próprias, aquelas adequadas a certos conceitos do nacional, acabou favorecendo a visada mais larga de fundos históricos presentes nos romances. Ficções curtas como os contos, muitas vezes publicados em jornais e revistas, foram encontrando melhor acolhida à medida que aumentou a difusão desses veículos, especialmente com a ampliação paulatina das publicações massivas, como na década de 1940. Além disso, quando alguns críticos consideram a literatura nacional um invento romântico e moderno, não encontram nela pressupostos da teoria germânica do conto como o valor de formação incluído nessas narrações breves elaboradas na língua mais castiça, enraizada numa linhagem pura chamada espírito do povo. As línguas nacionais na América são orgânicas aos colonizadores; já as formas breves incluem traduções e o folclore de povos primitivos, rudes, que a civilização moderna teria por tarefa estudar, transfigurar em literatura, sublimar. Essas coisas ajudam um pouco a entender a demora de cem anos para se publicar no português brasileiro um livro de contos de Poe, um escritor estrangeiro a quem a pecha de decadente ainda acompanha.
A tradução aconteceu nos anos 1940, quando o modernismo começava a consolidar seu lugar de divisor de águas na história da literatura brasileira que veio a estabilizar concepções da brasilidade estética usadas para avaliar a adequação das formas construtivas por oposição a vanguardismos sintonizados com modas estrangeiras. Mundialmente conhecido como um escritor decadente, Poe ao mesmo tempo provocava imensa curiosidade no público leitor. Se já incomodava críticos do século XIX, isso se manteve no século XX, quando alguns não tiveram de sua literatura uma impressão construtiva, sadia, cristã. Os personagens de Poe, metáforas críticas eficazes do homem do Ocidente, provocaram perplexidade no crítico brasileiro Wilson Lousada, que divulgou a imagem de um Poe decadente no Brasil. Em 1945, Lousada publicava um parecer sobre a poesia e a prosa de Edgar Allan Poe, no periódico Cultura Política -encarregado por Getúlio Vargas de divulgar os valores da cultura nacional, de 1941 a 1945, divulgado no Rio de Janeiro e em São Paulo pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. Lousada considerava Poe melhor poeta que prosador, pois supunha faltar ao ficcionista o conhecimento da alma humana que julgava indispensável para a criação artística de personagens legítimos e encontrava apenas a presença de um novelista em vez de um romancista. Além do mais, julgava tratar-se de um escritor neurótico, antipuritano, anticonformista, precursor do satanismo baudelaireano, espírito inquieto e inconformado. Lousada não encontrava em Poe nada de cristão, mas sim aquilo que o professor William P. Trent, embora autoridade discutível para Lousada, observa em seu Littérature Américaine: Poe optou pelo culto da beleza, quis a arte pela arte. Nessa opção reacionária, conforme Lousada, sobra individualismo burguês, falta sentimento cristão e simpatia pelos pobres, o que o crítico usa para explicar a fraca afinidade de Poe com seus personagens. Lousada considerava Baudelaire um admirador de Poe que havia professado por ele um entusiasmo tão exagerado, na introdução do Histoires extraordinaires, como o de Mallarmé. Citou outros críticos americanos que consideravam Poe um grande contista, mas não um romancista nem um novelista. Entre eles, Lousada destacou Richard Burton que, em Masters of the english novel, não havia se limitado a considerar Poe um grande contista, tendo chegado mesmo a uma apreciação semelhante à dos exagerados Baudelaire e Mallarmé, ao confirmar os princípios daquela estranha estética literária estendendo seu valor ao de qualquer peça de arte (146-152).
Alegoria moderna ante as luzes
O entusiasmo de Baudelaire por Poe certamente não foi pequeno. No ensaio "O homem e a obra", Baudelaire (Ficção completa 51-52) atribuiu ao modo de Poe narrar um abuso do "eu" que o contista levava adiante com cínica monotonia. Mais até, todos os personagens de Poe o duplicam: nervos relaxados, faculdades superagudas e vontade ardente. Essa persona de Poe, descrita por Baudelaire, também me parece uma alegoria do dito homem do Ocidente, e em particular das versões estadunidenses da atuação desse homem na conquista do Oeste que, conformes ao projeto de um imperialismo interno, refazem a retórica civilizatória da colonização.
Em 1843, Poe iniciou uma espécie de teorização do conto escrita na resenha ao livro de Hawthorne, Twice told tales (1837). Sob o título "Hawthorne", conceitua o conto como uma narração verossímil, capaz de produzir uma unidade de efeito, e aponta que as estratégias narrativas responsáveis por aquela unidade precisavam emular, ou mesmo superar, discursos de verdade vigentes. Notavelmente incomodado com a afeição do público de Hawthorne por alegorias frágeis, Poe posicionou-se sobre essas manobras retóricas, sopesando-as e levantando objeções. Atacou principalmente a fixação de Hawthorne pelo tipo de retórica usada por seus antepassados puritanos, pois esse alinhamento aos patriarcas impedia-o de confrontar com efetiva força as questões do presente. A resenha de Borges, intitulada "Nathaniel Hawthorne", lembra que esse foi um dos primeiros escritores americanos a contar com grande apreço da crítica e do público; também que, em boa medida, essas ressalvas ao estilo de Hawthorne construíram as bases da teorização do conto por Poe (670).
No primeiro conto de Twice-told tales, "The Gray Champion", Hawthorne já assinala a disposição mental que se disseminou nos Estados Unidos com a contribuição dos pioneiros: aquela assertividade dos que carregavam a Bíblia e a espada, as letras e a lei. Discordando de Marshall McLuhan quanto à assimilação por Poe da rivalidade entre um norte gótico e um sul mais humanista, Janine Marchessaut registra que pioneiros do norte, como os antepassados de Hawthorne, valorizavam a habilidade retórica e endossavam a defesa escolástica da livre interpretação das escrituras, o que os humanistas ciceronianos ingleses repudiavam como uma estratégia da mentalidade bárbara dos góticos da Sorbonne (26). Tal como Hawthorne, Poe também, e com um estilo avaliativo das questões de seu tempo, contribuiu com gestos e recursos "bárbaros", "góticos", para adensar aquilo que Borges (1974), no ensaio "Nathaniel Hawthorne", chama de atmosfera de pesadelo peculiar à ficção americana.
Quando Poe divergia do modo como Hawthorne vinha usando a alegoria, destacava principalmente algo de que o famoso contista de Salem parecia não ter se dado conta. Assinalava que o fundamento metafísico da ordenação clássica do mundo vinha sendo substituído pela ciência, o que também obrigava a ficção a reportar-se às ciências admitindo-as como novas instâncias autorizadas a proferir discursos de verdade, não sem rebeldia e melancolia quanto a essa condição vicária. Veja-se seu soneto "À Ciência". Quando Hawthorne pretendia desmistificar os discursos de verdade dominantes mantendo o fundamento religioso de seus antepassados, deixava de ver a nova religião que erigia ante seus olhos a nova fábula do mundo, a do discurso científico de braços dados com a moralidade do século XIX.
Poe fazia algumas concessões à alegoria desde que ela não atrapalhasse o bom andamento da ficção, cujo resultado para ele deve, de algum modo, surpreender. Para obter esse fim, através do sentido que a narração explicita, fazia passar despercebida a princípio a sugestão de outra coisa que acabava por emergir e surpreender resultando em um estranho efeito de unidade cuja força, orientada para a própria capacidade de enganar, prova-se ao vencer a perspicácia do leitor. Poe considerava esse efeito vital na ficção e podia usar inclusive a alegoria para obtê-lo. Queixou-se do uso que Hawthorne fez da alegoria, que sacrificava a seriedade e a verossimilhança pela manutenção de um fundo metafísico já destronado. A aversão de Poe às alegorias de Hawthorne devia-se ao fato de elas prolongarem o fundamento metafísico de um estado de coisas cujos ângulos sinistros sua ficção constantemente exibiu.
Poe criticava o uso anacrônico que Hawthorne fazia da alegoria em contos de enorme sucesso, na sociedade industrial americana. Na crítica aos contos de Hawthorne, Poe diverge de um uso específico da alegoria. Em sua ficção, Poe também usa, às vezes, a representação alegórica, o teatro de figuras retóricas, inclusive para uma encenação melancólica como aquela que representa a morte do fundamento metafísico dos saberes e sua substituição pela ciência, no conto filosófico "Colóquio entre Monos e Una". Ao ver-se órfã da eternidade, a representação passa a operar por acréscimo, o que coloca como desafio à narração derivar verossimilhanças umas das outras, como quando oferece ângulos intrigantes de um conflito irredutível, na ficção do contato parcial de mundos incompossíveis.
As metáforas de Hawthorne, destino onírico da literatura estadunidense, e o pendor ao realismo intranscendente da literatura latino-americana
Borges também considerou o fato de que alguns críticos modernos condenam a alegoria, como se confere na conferência "Nathaniel Hawthorne" de 1949, publicada em Otras inquisiciones (1952). Borges atribui a Benedetto Croce a melhor objeção à alegoria, que o historiador e filósofo qualifica como um gênero bárbaro, infantil, uma distração da estética. Coteja, com humor, o argumento de Croce e o juízo de Poe, para quem Hawthorne era o contista puritano que mistificava recursos alegóricos com uma insistência na correção moral capaz de tornar a forma falseadora. Borges destaca, nos contos de Poe, concepções artísticas heteróclitas: de um lado, o domínio de técnicas retóricas como a alegoria a serviço da consideração acurada, humorosa, das coisas, mesmo as mais chãs; do outro lado, a imaginação transfiguradora votada a constituir uma unidade monadológica de efeito estético, sem descuidar das marcas de historicidade nas formas (670-685). Tendo praticado tanto a alegoria como a moderna short story, Poe reprovava que Hawthorne cobrisse com uma atmosfera gratuita de mistério algumas falhas de raciocínio, na narração. Chamo a atenção para o fato de que Borges também lança, ante a objeção de Poe às alegorias de Hawthorne, uma pergunta. Ao apresentá-la, lembra que a técnica retórica minuciosamente rebordada da alegoria, seu artifício extremo, suscita nos puritanos a suspeita de impronunciáveis volições idólatras. Borges perguntava: podemos considerar alegorias essas metáforas de Hawthorne, cujo espírito de escritor puritano e prolífero viveu assombrado pela própria rotina de quem passava o dia todo escrevendo, sobressaltado pela culpa de cultivar tanto a imaginação, e remediando esse pendor à ficção com o acréscimo de uma função moral a cada conto? (671, 679-681). Hawthorne acabava traindo, com essa propensão à fábula e com um pensamento falho, desatento, o gozo mundano da própria imaginação, cujas ricas metáforas Borges desdobra em exemplos intrigantes, de teor filosófico.
Borges afirma que Hawthorne usava situações metafóricas5 de modo inteligente, para raciocinar aos saltos, com a imaginação, com a intuição. Em mulheres de rica imaginação, Borges também encontrava com frequência aquele tipo de inteligência de Hawthorne, refratária à trama cerrada do pensamento (dialético) propriamente dito. Do ponto de vista estético, Hawthorne tinha uma imaginação fecunda; falhava apenas ao submetê-la, anacronicamente, à moralidade falseadora das fábulas, ao arrematar seus contos com lições que os reduziam a uma função da consciência, tornando-os úteis a uma reforma dos costumes. Deformava suas alegorias regulando-as segundo um discurso crítico ao puritanismo de seus antepassados que, com a Bíblia, a lei e a espada, haviam sido notáveis caçadores de bruxas em Salem. Teria alcançado um efeito mais intenso, como o da fantasia pura, se preservasse certa obscuridade no fundo de terror a que induzia o leitor (Borges 672).
Hawthorne inaugurou a literatura estadunidense cujas invenções, segundo Borges, equiparam-se às verdades do sonho e às da imaginação. No caso de Poe, o destino onírico fundado pelo predecessor exaltou-se em pesadelo. Mesmo Faulkner, escritor de um realismo onírico cuja brutalidade às vezes pode equivaler à crueza dos escritores gauchescos do realismo argentino, sustenta um estilo infernal, alucinatório, não terrestre. Certo pendor a um realismo intranscendente distingue a literatura argentina que, nos termos de Borges, é cliente do dicionário e da retórica, não da fantasia; deriva da observação, não dos sonhos da imaginação. Com calmo interesse, Borges atribui uma atitude semelhante à do narrador de "O homem das multidões" ao desembaraço de alguns escritores gauchescos ante as coisas mais sem transcendência, por eles pormenorizadamente observadas. Aqui, o anônimo multitudinário já não é apenas objeto de observação, mas o próprio observador. De modo bastante inusual, Borges pondera que essa destinação à cópia, a formas fantasmáticas, impróprias, parodísticas e equívocas, não está ao alcance dos escritores norte-americanos e produz neles uma curiosa veneração. Apenas em estado excepcional, de pós-convalescença, o narrador de "O homem das multidões" pode alcançar tal estado de profundo interesse pelas coisas chãs, ordinárias. A literatura estadunidense produziu nomes de um gênio novo como Poe, e seu pendor onírico a tornou atraente aos escritores europeus de sua linhagem. Borges completa a diferenciação ponderando que aquela afinidade onírica também sinaliza uma inclinação imperativa nessas literaturas, uma limitação, um destino. Levando o raciocínio até aí, Borges aplica à literatura de língua inglesa o parâmetro da destinação, muito usado ao se tratar da literatura latino-americana, a uma dominante realista sem maior transcendência. Com muito humor, a paródia borgiana desse padrão avaliativo encena tal caráter intranscendente, equívoco, quando desloca um valor estético do pensamento evolucionista do século XIX, segundo o qual a distância entre aqueles que vivem o atraso e as coisas brutas está mediada por um senso de observação ainda desorganizado. Presos em uma fase infantil do pensamento, ainda despreparados para a ciência e a imaginação transfiguradora do gênio, os latino-americanos estariam em uma fase evolutiva fadada ao intranscendente, ao equívoco, ao gozo verbal, ao paganismo idólatra (cópias falsas do divino), à supervalorização da habilidade retórica e do dicionário. Borges destaca que uma coisa deriva na outra, veneram-se: o intranscendente e o estético, as multidões errantes e as verdades anônimas, a clássica sina do realismo e a moderna destinação aos padrões oníricos (Borges 684).
Poe não podia partilhar a forte adesão popular aos contos de Hawthorne nos quais identificava um uso indefensável da alegoria, no entanto fez um uso crítico e teórico dela. Antes e depois de Poe, alguns escritores modernos a repeliram sumariamente como uma velharia que emperra a comunicação, por pedantismo, por incapacidade de síntese ou por um formalismo reacionário de transcendência vazia. No Romantismo,6 recaíram as maiores suspeitas sobre o livro que não se deixa ler, quando a alegoria passou a ser violentamente oposta ao símbolo, oposição que até então não havia ocorrido nem aos poetas antigos nem aos teólogos medievais.
A alegoria antiga não foi bem recebida pelos românticos, a quem se demandava experiências estéticas ou a produção de imagens capazes de comunicar a identidade da nação. Operando de outro modo, em chave retórica, a alegoria permite uma correlação virtualmente aberta de um termo de designação concretizante A, como aquele homem que vaga na multidão no conto de Poe, com sucessivos termos de significação abstrata B, que oferecem: versões estadunidenses do homem ocidental; uma aproximação empática ao pensamento gótico contraposta às censuras de D'Israeli a Grüninger; e a metáfora monadológica do anônimo multitudinário.
Os americanos do século XIX: imigrantes e migrantes recém-chegados
No século XIX, a literatura universal fez largo uso do motivo neocolonial da viagem a terras exóticas como as da América do Sul, em ficções que obtiveram grande sucesso de público como a Narrativa de Artur Gordon Pym (1837) de Poe, ou como a aventura amazônica "A jangada" (1881), de Julio Verne. Esse tipo de literatura glosava, no século XIX, o tom de grandeza épica e as minuciosas descrições imaginativas do longo repertório da conquista colonial. A narração das aventuras de Pym, por exemplo, usa essa solenidade e estiliza uma curiosidade etnográfica ao modo dos naturalistas; aproveita-as no estilo que oferece uma chave crítica quanto ao discurso civilizatório.
Na artificiosa nota introdutória à Narrativa de Artur Gordon Pym, publicada em 1837 no periódico Southern Literary Messenger, Poe joga com a exigência clássica de verossimilhança quando faz Pym justificar, nessa nota, a autoria de sua aventura que o contista teria apenas transcrito. Pym termina a nota afirmando que não teme a incredulidade popular ante a evidência dos fatos que, depois, começa a narrar com a minúcia característica das narrativas de aventuras exóticas, abundantes no século XIX. Antes, no entanto, havia avisado que contava de memória coisas maravilhosas às quais ao menos a família e os amigos dariam crédito. Como única testemunha, dispunha de um mestiço de índio que não seria digno nem de assumir a narração do conto, nem de obter a confiança do público (Poe 739).
O narrador oral autêntico da América era o índio, com suas formas milenares e dignas de toda a desconfiança dos leitores de jornais e revistas. Também hostil ao autóctone, o povo americano começava a se constituir acrescentando rapidamente as contribuições de migrantes e de imigrantes às dos grupos de pioneiros. A Poe, faltava uma teorização americana do conto, do contar, tal como isso se praticava na América, sobre tudo que atravessa a ficção americana, e sobre modos da imaginação autoral participar na imaginação pública. Poe a desenvolveu em resenhas como as que dedicou aos contos de Hawthorne, fazendo objeções a um uso ineficaz da alegoria. Mesmo assim, por um longo tempo depois dessas resenhas, alguns críticos assimilaram preferencialmente as teorizações do conto desenvolvidas pelos franceses, no período expansionista do Império Napoleônico, e a contrateorização do conto desenvolvida pelos germânicos como reação às investidas francesas no campo simbólico de seus vizinhos.
Não foi tarefa simples para Poe impor ao século XIX sua vontade de autor que considerava os hábitos dos leitores e dos veículos de publicações para consumo rápido, com um máximo de proveito, de prazer: o tempo médio de que o leitor contemporâneo dispunha para se sentar, algo em torno de duas horas como numa viagem de trem; o espaço curto dedicado a narrativas breves nos jornais; o gosto difundido por narrativas que produzem perplexidade, como as de horror, as policiais, as humorísticas, as de aventura e as de fundo filosófico, que nos levam a pensar sobre os mistérios da mente humana, a morte, a solidão, a ruína, o futuro da humanidade. Poe estabeleceu uma relação entre sua escrita do conto e os tipos de leitores que o mercado identificava, para servi-los com suportes de publicação apropriados à sociedade industrial do século XIX. Os contos autorais de Poe não provinham de uma genealogia estrita de formas autóctones nem daquela dos pioneiros de Hawthorne; inclusive, Poe também estudou algum tempo e se formou como leitor no Reino Unido e na Escócia.
Se as guerras pioneiras de independência dos Estados Unidos já haviam acontecido nas últimas décadas do século xviii, o país ainda lutava para manter sua unidade agregando uma população de variedade cultural, formada por grandes levas de imigrantes europeus e asiáticos. Foram principalmente esses povos que empreenderam a conquista do Oeste, onde se fixaram mantendo, principalmente, atividades como a agricultura, a pecuária e a mineração. O perfil de leitor que Poe tinha em mente dispunha de características e hábitos condizentes com os das populações do Leste, industrializado e urbano, cujos pioneiros ingleses haviam sido os ancestrais de Hawthorne. Poe acabou entrando para a história da literatura americana como o autor de um estilo que atualizou a imagem das tendências industriais do país, de modo originário.
No século XIX, quando se publicavam muitas narrativas breves, algumas em versos, de inspiração popular e que poetizavam o espírito do povo, Poe optou por escrever contos breves, stories, sempre em prosa, e por marcar a distância de estilo dessas narrativas em relação a seus poemas, que escrevia em versos. Produziu reflexão teórica, sobre uma coisa e a outra, questionando algumas das noções assentadas em seu tempo acerca do que fosse a prosa e do que fosse a poesia. Os livros de contos, como os conhecemos hoje, começaram a ser publicados nas primeiras décadas do século XIX. Poe já teorizava a escrita do conto quando decidiu diferenciá-lo de outras narrativas comuns em sua época, como o capítulo de novela, as sketches, os relatos autobiográficos e as crônicas romanceadas. Cortázar (32-48) notou que Poe separava, de um lado, os verdadeiros contos e, de outro, os contos mais "artísticos", os contos-poemas que se fazem no território da beleza, com recursos como as múltiplas digressões neoclássicas, ou com o pateticismo frouxo disseminado por influência romântica. Apreciava os efeitos eletrizantes de contos como os que publicavam a Blackwood's Magazine, as revistas literárias escocesas e as inglesas do começo do século XIX. Poe censurava o habitual descuido editorial quanto à homogeneidade do gênero quando se juntava em livro tanto contos como sketches quanto qualquer outro tipo de narrativa, como na republicação do famoso Twice-told tales de Nathaniel Howthorne, de 1842.
Poe sabia que não podia narrar da mesma maneira que os contos de antiga divulgação oral, e isso não produziu nele o abatimento do último Romantismo, mas uma melancolia muito ativa de cientista rebelde em um século que afiava a ciência (Baudelaire 51-52). Tão diferente da atmosfera orgânica e vigorosa do conto de difusão oral, a novidade acabou se firmando no gosto do público leitor, com grande sucesso e influência na literatura universal, principalmente a partir das traduções que Baudelaire fez dele para o francês (Mendes 53). A conformação, cada vez mais reticular, das instituições que organizam a produção de narrativas na sociedade da escrita instalara em veículos massivos, como os jornais, a publicação de literatura e de crítica, atividades às quais Poe se dedicava, entre outras ocupações editoriais. Se, com o tempo, e não sem polêmica, o estilo particularíssimo dos contos de Poe justificou-o como um divisor de águas na história da literatura, e em especial da teorização do conto escrito no continente americano, seu trabalho como crítico no diário Mensageiro literário também ajuda a distinguir a historicidade de sua escrita, a de seus contemporâneos e a dos contistas do continente no século XX. E me parece que ainda ajuda muito a pensar o presente.