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Revista de Estudios Sociales
Print version ISSN 0123-885X
rev.estud.soc. no.56 Bogotá Apr./June 2016
https://doi.org/10.7440/res56.2016.06
Práticas de empoderamento feminino na América Latina*
Paloma Abelin Saldanha Marinho**, Hebe Signorini Gonçalves***
** Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil). Publicações recentes: "Curso de Educação em Direitos Humanos: Promovendo a cidadania por uma proposta dialógica" (em coautoria). Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Direito 3: 63-82, 2014 e "Oficinas Sociais e Violência de Gênero: limites e possibilidades" (em coautoria). Revista Avaliação de Políticas Públicas 1: 97-98, 2012. ppabelin@hotmail.com
*** Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Brasil). Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil). Publicações recentes: "Agora por nós mesmos: mulheres, mães e violências" (em coautoria). INTERthesis 11 (2): 118-137, 2014 e "Discurso sobre la violencia hacia la mujer en un foro virtual: presencias del marco de género" (em coautoria). Gaceta Sanitaria 27: 111-115, 2013. hebe@globo.com
DOI: http://dx.doi.org/10.7440/res56.2016.06
RESUMO
A partir de uma breve apresentação a respeito dos debates que embasam o conceito de empoderamento e da inserção do termo na perspectiva dos estudos de gênero, o artigo apresenta uma revisão bibliográfica a respeito das práticas de empoderamento feminino, realizadas e registradas na América Latina, entre os anos 2000 e 2012. A respeito das práticas de empoderamento encontradas, os três eixos principais de análise foram: o empoderamento ancorado na renda feminina, as práticas de empoderamento originadas no cotidiano das mulheres e o grupo como estratégia de empoderamento feminino com valorização das especificidades. Foi possível observar convergência entre os resultados e os debates clássicos acerca do termo, a necessidade da inserção do debate de gênero nas práticas de empoderamento feminino e, como principal resultado, observou-se um número expressivo de práticas baseadas em oficinas e outras estratégias grupais, apontando para a compreensão do empoderamento como processo atravessado e alimentado pela construção coletiva, reforçando perspectivas históricas do feminismo.
PALAVRAS-CHAVE
Mulheres, gênero (Thesaurus); poder comunitário (palavra do autor).
Prácticas del empoderamiento femenino en Latinoamérica
RESUMEN
Desde una breve presentación sobre los debates que sustentan el concepto de empoderamiento y de la inserción del término en la perspectiva de los estudios de género, el artículo presenta una revisión bibliográfica sobre las prácticas del empoderamiento femenino, realizadas y registradas en Latinoamérica entre los años 2000 y 2012. Los ejes de análisis encontrados en las prácticas fueron empoderamiento con base en la renta femenina, prácticas originadas en la cotidianidad de las mujeres y las estrategias con base en grupos de mujeres, con valorización de las especificidades. Fue posible observar convergencia entre los resultados y los debates clásicos acerca del término, la necesidad de la inserción del debate de género en las prácticas del empoderamiento femenino, y como principal resultado se ha observado un número significativo de prácticas basadas en talleres y otras estrategias grupales, que apuntan a la comprensión del empoderamiento como un proceso atravesado y alimentado por la construcción colectiva, que refuerza perspectivas históricas del feminismo.
PALABRAS CLAVE
Mujeres, género (Thesaurus); poder comunitario (palabra clave de autor).
Women's Empowerment Practices in Latin America
ABSTRACT
Through a brief presentation of the debates regarding the concept of women's empowerment and the insertion of the term in the perspective of gender studies, this article presents a bibliographical review of the women's empowerment practices in Latin America between 2002 and 2012. The categories of analysis encountered in these practices were the following: empowerment based on women's income, practices originating in women's daily activities and strategies based on women's groups, with valorization according to specificities. It was possible to observe the convergence between the results and the classic debates regarding the term, the need to insert the gender debate into women's empowerment practices, and, as the main result, there has been an expressive number of practices based on workshops and other group strategies, aimed at the understanding of empowerment as a process permeated and nurtured by collective construction, reinforcing historical perspectives of feminism.
KEYWORDS
Women, gender (Thesaurus); community power (Author's Keywords).
Introdução
O conceito de empoderamento encontra-se em meio a debates teóricos e conflitos políticos.é um conceito fluido e muitas vezes utilizado de forma maleável, de acordo com a necessidade e o corpo ideológico de cada grupo social que dele se apropria (Vasconcelos 2003). Os debates referentes aos seus sentidos constantemente apresentam a importância de não se olhar apenas a perspectiva individual, no sentido da busca pela autonomia independente das condições sociais, mas atentar para o fato de que só há empoderamento se houver transformação pessoal atrelada a mudanças estruturais (Carvalho 2004; Freire e Shor 2011; León 2001).
Carvalho (2004), ao discutir a promoção da saúde no Brasil, utiliza o termo em inglês e apresenta definições para o empowerment psicológico e comunitário. O psicológico refere-se a um sentimento de controle a respeito da própria vida e é criticado pelo autor, para quem essa concepção não se preocupa com a modificação das estruturas sociais e é ilusória, sem corresponder à existência efetiva do empoderamento. O empowerment psicológico seria, então, uma ilusão, na perspectiva do autor. Dada a ingerência de fatores políticos nas vidas das pessoas, só há empowerment se este for coletivo.
Ao considerar a distribuição desigual de poder e de controle pelos grupos em nossa sociedade, o empowerment comunitário buscaria a reorganização desse arranjo.é um processo que parte do enfrentamento de fatores referentes à estrutura de poder presentes na esfera micro e macrossocial, o que consequentemente implica a redistribuição do poder. Ou seja, essa redistribuição é processo e resultado da promoção de empoderamento.
O processo de empoderamento tem lugar na esfera pessoal, intersubjetiva e política, em um continuum desde a primeira até a última, o que significa que o empoderamento só é possível quando reconhece e perpassa todas essas esferas, de acordo com Carvalho (2004), e reconhece as relações mútuas entre macroestruturas e sujeitos individuais e coletivos. Em vez de localizar o aumento do poder em um indivíduo, o que já não seria possível se considerarmos os atravessamentos variados de poder sobre ele, o poder é pensado como passível de redistribuição pelos grupos. Não se ignora que exista uma experiência subjetiva de empoderamento, mas esta é sempre incluída em um contexto político amplo.
Trata-se de uma concepção fundada também em Paulo Freire -que discute o conceito utilizando-o na língua inglesa- a partir da premissa de que a desconstrução das relações sociais de poder pode acontecer por meio da educação libertadora. O próprio Paulo Freire apresenta os riscos no uso desse termo, que pode remeter a um processo simplista e individual de transformação. Ainda que as pessoas possam desenvolver níveis de independência, transformações mais amplas são necessárias para se falar em empoderamento (Freire e Shor 2011). Tendo essa ressalva em vista, o autor compreende o termo como empoderamento de classe social: "Indica um processo político de classes dominadas que buscam a própria liberdade da dominação" (Freire e Shor 2011, 189). A perspectiva freireana é essencial para que se compreenda o processo de empoderamento em um sentido amplo. Ela demonstra que os processos de empoderamento são políticos, contextualizados e visam a mudanças sociais.
O conceito de empoderamento também pode ser bastante potente para a concepção e avaliação de práticas que visem promover a autonomia e a superação de desigualdade de poder em que as mulheres se encontram. Na tradição latino-americana dos estudos de gênero, ou feministas, parece que alguns fatores levaram à intensificação da aplicação do conceito de empoderamento: a difusão do debate teórico sobre o poder nas experiências de base de mulheres (León 1997) e o planejamento de estratégias para o desenvolvimento das mulheres na década de 1980 (Rowlands 1997) tornaram central o conceito de empoderamento nos debates e estratégias feministas.
A obra Desarrollo, crisis y enfoques alternativos: Perspectivas de La mujer en El tercer mundo, de 1988, foi preparada por Gita Sen e Caren Grown para a Conferência de Nairóbi e marca a entrada do termo empoderamento nesse campo de estudos (Stromquist 1997). Desde então, o termo recebeu diversas influências e foi utilizado em vários âmbitos dentro dos estudos e pesquisas feministas. Entretanto, a recorrência do uso do conceito na América Latina aliada à sua falta de precisão teórica, inclusive nas práticas endereçadas ao desenvolvimento de mulheres, levou feministas a se debruçarem sobre a construção e o aprofundamento teórico do empoderamento.
As autoras inseridas nesse debate preocupam-se em definir uma noção de poder para que seja formulado um conceito mais preciso de empoderamento, já que o uso do termo empoderamento chama a atenção sobre as relações de poder e toma o poder como elemento da relação social. A maior parte das autoras utiliza as ideias de poder sobre, poder com, poder para e poder desde dentro para fundamentar suas construções conceituais de empoderamento, mas soma-se a essa noção, o conceito de poder apresentado por Foucault, conforme será demonstrado a seguir.
A distinção entre o aspecto individual e o coletivo é um importante debate na construção das ideias de empoderamento. A psicologia comunitária norte-americana enfatiza o empoderamento como processo essencialmente individual. Entretanto, essa forma de olhar ignora aspectos referentes à influência social e a direitos, assim como ignora a relação direta entre práticas cotidianas e estruturas de poder, deixando de lado a inserção do sujeito em um contexto social, histórico e político (León 1997).
A ênfase no aspecto individual ou coletivo está presente em muitas produções sobre empoderamento, como inclusive já foi demonstrado anteriormente no campo da educação e da saúde, mas, no grupo de autoras do campo de gênero pesquisadas, permanece a ênfase no coletivo, ainda que não se ignorem os processos individuais. Na perspectiva dos estudos de gênero, é consenso entre as autoras mais utilizadas nos debates sobre empoderamento que este se refere a um desafio às relações de poder e a uma busca pela obtenção de maior controle sobre as fontes de poder. Ao considerar a existência de relações desiguais de gênero, o empoderamento feminino pode ser definido, em termos bastante amplos, como um processo de superação da desigualdade de gênero (Batliwala 1997; León 1997).
Compreende-se que a noção de empoderamento é possível ser pensada, dentro da chamada segunda vaga dos estudos de gênero. Nogueira (2012) mostra como as teorias e as epistemologias feministas influenciaram e influenciam os estudos de gênero, especificamente na psicologia social. Para isso, ela organiza as perspectivas dos variados feminismos por vagas, ou seja, agrupa movimentos de pessoas, teorias e ativismos que se encontram com mais facilidade em determinados períodos.
Na Primeira vaga, que vai de meados do século XIX até cerca dos anos 1960, as principais preocupações eram a emancipação das mulheres de um estatuto civil dependente e subordinado e sua incorporação como cidadãs no estado moderno industrializado. As reivindicações, portanto, eram por direitos civis e políticos, estatuto de sujeito jurídico, direito ao voto, melhora nas condições materiais da vida das mulheres, direitos sociais e no trabalho. A Segunda vaga, que durou até cerca dos anos 1980, foi potencializada pela participação das mulheres de classe média no mercado de trabalho. A ideia central naquele momento era a luta contra a opressão feminina e a favor da presença ativa da mulher tanto no trabalho quanto na família. Nesse contexto, surgiu a ideia da política do interpessoal/ o pessoal é político.
A afirmação "o pessoal é político", publicada em um livro de Carol Hanisch (2006 [1970]), espalhou-se internacionalmente e tornou-se mote importante para as lutas feministas, ainda que tenha gerado debates e controvérsias. A ideia contida na afirmação é a de que as vivências pessoais femininas estavam também inseridas em uma rede política, ou seja, em uma rede de relações de poder mais amplas, das quais as experiências de mulheres eram um produto e não situações isoladas.
Essa concepção foi imprescindível para o acolhimento das demandas das mulheres e para o entendimento de que essas demandas eram comuns entre as mulheres e faziam parte de um contexto macro. A sexualidade e o corpo feminino -colocados em destaque pela criação da pílula anticoncepcional e a consequente liberação sexual- também entraram em debate nesse momento, inserindo-se nas discussões sobre políticas de reprodução e violência.
Diante dessa multiplicidade de eventos sociais, surgiram diversas teorias feministas, que se diferenciam quanto às causas da opressão feminina e quanto às ações necessárias para lidar com ela, tais como o feminismo liberal -que já provinha da primeira vaga-, o feminismo marxista, o feminismo cultural e o feminismo negro. Três questões fundamentais estão presentes na segunda vaga: a análise das relações de poder, a análise e a problematização da diferença sexual e o surgimento incipiente de novas teorizações.é dentro desse contexto, no debate sobre as relações de poder, que é possível pensar na questão do empoderamento, como desafio das relações de poder entre homens e mulheres.
Batliwala (1997), preocupada em estabelecer relação entre o conceito de poder e o de empoderamento, aborda e define o poder como controle sobre recursos materiais -terra, água, corpo, trabalho, dinheiro-, intelectuais -conhecimento, informação- e sobre a ideologia -criação, propagação e institucionalização de conjuntos específicos de crenças, valores, atitudes e comportamentos-. Sua definição de empoderamento é, portanto, o "proceso de desafío de las relaciones de poder existentes, así como el de obtención de un mayor control sobre las fuentes de poder" (Batliwala 1997, 193).
Ao retomar a questão do conceito de poder, lembramos que a noção tal como proposta e desenvolvida por Foucault é pertinente também para a discussão de empoderamento. Foucault (1994) elenca alguns princípios sobre as relações de poder que entendemos como valiosos para a presente discussão: o poder está em todos os lugares e não se localiza em um grupo determinado; o poder é imanente às relações entre sujeitos e grupos; as relações de poder expressam-se em correlação de forças múltiplas e não na oposição binária entre dominadores e dominados; onde há poder, há resistência. Depreende-se daí que o poder se enraíza nos sujeitos e nos grupos, sendo que nenhum deles o detém de forma exclusiva. Ou seja, a microfísica do poder de Foucault alerta tanto para a existência do exercício do poder nas relações quanto para a possibilidade de que ele seja exercido por qualquer sujeito, seja na forma de dominação, seja na forma de resistência.
Defende-se, portanto, a existência de uma estrutura de poder desigual entre homens e mulheres, com maior detenção de controle e recursos por parte de homens. Entretanto, a microfísica do poder de Foucault desestabiliza a ideia de que essa é uma relação invariavelmente imutável e abre a possibilidade para o exercício do poder por parte de grupos diversificados e da resistência como opção alcançável pelas mulheres -mediante suporte, conscientização, entre outros aspectos-. Essas noções são importantes na construção e compreensão do conceito de empoderamento na perspectiva dos estudos de gênero.
León (2001) aponta que os avanços na conceituação do termo empoderamento indicam a busca de estratégias holísticas para o empoderamento e, com isso, fica claro que não há fórmulas mágicas ou estratégias infalíveis para a sua promoção. O empoderamento não é um processo linear com início e fim definidos de maneira igual para diferentes grupos de mulheres: "El empoderamiento es diferente para cada individuo o grupo según su vida, contexto e historia, y según la localización de la subordinación en lo personal, familiar, comunitario, nacional, regional y global" (León 2001, 104).
Na perspectiva dos estudos de gênero, portanto, compreende-se que este conceito se refere a um desafio às relações de poder e a uma busca pela obtenção de maior controle sobre as fontes de poder. Voltando à contextualização das vagas do feminismo e sua relação com o conceito de empoderamento, o fortalecimento do construcionismo social e das teorias da pós-modernidade, já no fim da segunda vaga, levaram aos debates sobre a diversidade sexual e ao antiessencialismo, inaugurando as questões que se constituirão o centro da discussão que caracteriza a terceira vaga.
Muitas contribuições da terceira vaga feminista estão centradas na produção teórica de Judith Butler. De forma ampla, Butler afirma que a própria apresentação da organização sexual é opressora, na medida em que estabelece formas de ser e de se relacionar nesse campo. O sujeito é controlado pelo seu corpo e, portanto, as dominações e opressões possíveis são variadas, não estando restritas à relação homem-mulher. Elas estão presentes nas expectativas de exercício da sexualidade e em normas sociais entranhadas. Assim, a necessidade de se seguir uma norma recai sobre as sexualidades não-legitimadas -gays, lésbicas, transexuais, entre outras- mas recai também sobre homens e mulheres, igualmente inseridos na normatividade sexual.
Outra contribuição importante dessa vaga, apresentada por Butler e desenvolvida também por outras teóricas, diz respeito à fragmentação da identidade feminina e à necessidade de envolvimento de maneiras variadas de ser mulher. Recorremos à concepção de fragmentação tal como tratada por Butler (2012). Ao lembrar que a autora indaga fortemente a necessidade de construir uma "base única e permanente" para o feminismo, ao considerar que o abandono de uma concepção unificada da vivência feminina pode efetivamente ampliar os objetivos e as reivindicações feministas, concordamos com ela na necessidade de criticarmos as identidades fixas e fundarmos o feminismo em pilares libertos dessa unicidade, para então operarmos com um modo mais inclusivo de pensar a identidade de gênero. "A desconstrução do termo sujeito sugerida por Butler serve para abrir possibilidades de novos usos para o termo, ou construções subversivas" (Oliveira 2008, 4).
Para dar conta das multiplicidades, a categoria mulheres deve ser essencialmente incompleta, aberta à contestação de significados e livre de forças coercitivas. Complementando a discussão sobre as multiplicidades dos grupos de mulheres, Castro (1992) apresenta o conceito de alquimia das categorias sociais. Os atravessamentos de classe social, raça, geração, gênero, entre outros, formam uma alquimia na constituição de cada sujeito, tornando difícil o isolamento de qualquer uma delas ou a suposição de que uma predomina sobre as outras.
Dessa maneira, é possível depreender que, a partir da terceira vaga, soma-se ao conceito de empoderamento, a possibilidade de abertura para um maior entrelaçamento e multiplicidades de grupos de mulheres que vivem esse processo, expandindo o conceito e abarcando de forma mais direta as multiplicidades de mulheres, sem perder de vista a importância da noção de coletividade também presente no conceito.
Considerando a importância da discussão a respeito do empoderamento na perspectiva dos estudos de gênero, realizou-se uma revisão bibliográfica a respeito das práticas de empoderamento de mulheres utilizadas e registradas na América Latina. A revisão bibliográfica é parte da pesquisa mais ampla, que abordou o processo de empoderamento de mulheres em situação de violência.
Metodologia
Para a revisão da bibliografia, foram levantadas as publicações indexadas nas bases Scielo e Periódicos Capes. Os idiomas para busca foram português e espanhol, para localizar a literatura brasileira e latino-americana sobre o tema. Para a busca, foram utilizadas as palavras "empoderamento" ou "empowerment" -fazendo uso da expressão em inglês, bastante utilizada- e "mulheres" ou "feminino", com recorte entre os anos 2000 e 2012. Dentre os 54 artigos disponíveis nas duas bases, foram selecionados aqueles que descreviam as estratégias de intervenção adotadas e que faziam referência ao conceito de empoderamento que as sustentava, resultando em um total de 30 artigos. Essa seleção foi importante porque esse é um conceito utilizado muitas vezes de forma não articulada à prática, e um termo utilizado com frequência na literatura sem definição e sem conexão com a teoria. Finalmente, foram selecionados os 17 artigos -examinados no presente trabalho- que tratam especificamente de estratégias de promoção do empoderamento de mulheres.
Foram, então, analisados os conceitos de empoderamento; as estratégias utilizadas ou identificadas como promotoras de empoderamento; e a quais grupos essas estratégias se referiam -mulheres em situação de violência ou mulheres indígenas, por exemplo-.
Discussão dos resultados
Sobre o empoderamento e a tensão individual versus coletivo
A maior parte das autoras reconhece a multiplicidade e fluidez do termo empoderamento e apresenta a posição conceitual à qual adere. No que diz respeito ao continuum individual/coletivo, ele é largamente discutido e efetivamente tratado como uma tensão, sobretudo quando a discussão trata de práticas e estratégias de empoderamento. A tensão nem sempre se traduz como oposição, razão pela qual alguns autores privilegiam a intervenção no plano individual, outros no plano coletivo e outros, ainda, defendem uma articulação entre ambos. Por essa razão, os artigos examinados podem ser enquadrados em três blocos no que diz respeito à tensão individual versus coletivo:
Privilégio do aspecto individual
As pesquisas de Jonathan (2011), Fritzsche (2004), Di Liscia (2007) e Chablé et al. (2007) tomam por base o aspecto individual do empoderamento. Os elementos teóricos que apontam para essa ênfase são a tomada de consciência, a construção de possibilidades para si, o reconhecimento de recursos próprios e o controle sobre si por meio do uso de recursos financeiros. Assim, entre esses autores, a promoção de empoderamento visa às transformações dos recursos e das possibilidades individuais da mulher. O esquema abaixo resume os conceitos e abordagens adotados em cada um dos trabalhos examinados.
Jonathan (2011): faz referência à definição oferecida pelo Glossário Social, publicação de uma ONG que trata de conceitos em práticas sociais, datada de 2004: obter informações que facilitem a consciência sobre o próprio contexto para que seja possível formular mudanças.
Fritzsche (2004): trabalha com a concepção de Grossberg, formulada em 1992, para quem o empoderamento é condição para a possibilidade de resistência; geração de energia; e construção de possibilidades de crescimento e mudança pessoal.
Di Liscia (2007): sem fazer referência a uma tradição teórica específica, trata do empoderamento como reconhecimento dos recursos pessoais, construção de um sentido de humanidade a partir do que se pode fazer e do que se tem acesso em termos de direitos e igualdade.
Chablé et al. (2007): empoderamento é a capacidade de ter acesso a capacidades e potencial humano, a habilidade de ter controle sobre recursos físicos e ideologias, autoconfiança, poder interno, independência, força interior (a partir das autoras e Batliwala 1997); reconhece diversos espaços e âmbitos em que o empoderamento pode ser observado e estimulado.
Privilégio do aspecto coletivo
Privilegiam o aspecto coletivo do empoderamento, as pesquisas de Stromquist (2001) e Meneghel, Farina e Ramão (2005). Stromquist (2001) compreende o empoderamento como educação política, conceito que pode ser compreendido dentro de uma tradição paulofreireana de empoderamento, que privilegia a ação pedagógica como transformadora das relações sociais de opressão e encara o empoderamento como a transformação resultante dessas relações. Meneghel, Farina e Ramão (2005) privilegiam a mobilização das mulheres negras no sentido de valorização da própria cultura e da possibilidade de sua organização coletiva.
Stromquist (2001): cita os trabalhos de Paulo Freire e define empowering como educação política
Meneghel, Farina e Ramão (2005): trabalha com a concepção de León (2001), que compreende o empoderamento como mudanças nas relações entre homens e mulheres, acompanhadas de transformações na linguagem e de novas construções sociais. Traz ainda a contribuição de autores variados sublinhando o empoderamento como forma de desafio às relações hierárquicas de poder tal como estabelecidas.
Reconhecimento de níveis variados de empoderamento
Como dito anteriormente, a maior parte das pesquisas entende empoderamento como um processo que perpassa e conjuga diversos níveis, do individual ao coletivo. Aponta para isso a compreensão do empoderamento como tomadas de decisão individuais e coletivas, engajamento em ações individuais e coletivas, autonomia pessoal e de grupos oprimidos, mudanças nas relações entre homens e mulheres, empoderamento dentro de um modelo conceitual relacional. Esses estudos abordam o empoderamento como um processo que se dá tanto no âmbito individual quanto nos processos relacionais e coletivos.
Silva (2008): conjuga conceitos variados, que incluem Carvalho (2004): empoderamento como um recurso importante para a redução de desigualdades e para a tomada de decisão individual e coletiva. Extrai ainda de outro autor (Lather 1991): a capacidade de analisar o contexto, de identificar situações e causas da opressão e de engajar-se em ações individuais e coletivas para a mudança de vida.
Moreira et al. (2012): compreende empoderamento como o processo de tornar-se capaz de expressar necessidades e preocupações, conhecer estratégias de envolvimento nas tomadas de decisão e atuar no sentido de satisfazer as necessidades -política, social e culturalmente-. Os autores trabalham adicionalmente com referências das quais extraem níveis aos quais o empoderamento pode se referir.
Wendhausen, Barbosa e Borba (2006): vale-se principalmente de duas fontes: Vasconcelos (2003), para quem empoderamento é aumento de poder, de autonomia pessoal e coletiva, especialmente de grupos submetidos à opressão; e Wiley e Rappaport (2000), para quem empoderar é dar possibilidades para as pessoas decidirem sobre suas vidas e para que elas se insiram em processos sociais e políticos.
Meneghel et al. (2004): opera com a concepção de León (2001) e define empoderamento como mudanças nas relações entre homens e mulheres, acompanhadas de transformações na linguagem e de novas construções sociais.
Meneghel et al. (2003), presente também em Meneghel et al. (2004).
Aguilar et al. (2008): Trabalho que usa a concepção de Rowlands (1997), que define as três dimensões do empoderamento.
Medina (2007) Idem Aguilar et al. (2008)
Echeagaray, Michel e Martelo (2006): vale-se igualmente do modelo de análise de Rowlands (1997) e acrescenta contribuições de diversos autores para definir empoderamento como processo de tornar-se agente ativo da própria vida e das transformações culturais e sociais- especificamente a situação de opressão vivida pelas mulheres; necessidade de tomada de consciência como primeiro passo desse processo, que se refere a exercer o poder em diversos níveis -pessoal, coletivo e nas relações interpessoais; estratégia popular feminina; participação social feminina.
Hosyns, Hosyns e Butler (2012): extrai o conceito de um documento de agência não governamental, que define empoderamento como mudanças nas relações de poder para que se possa viver bem.
Castelnuovo (2010): conjuga contribuições de autoras variadas: mecanismo por meio do qual pessoas, organizações e comunidades ganham domínio sobre seus assuntos; empoderar significa reverter a subordinação feminina por meio do fortalecimento da cidadania, dos direitos e de capacitações; e desafiar as relações de poder existentes.
Marín e Okalí (2008): lança mão também de Rowlands (1997) e de seu modelo das três dimensões do empoderamento.
Ainda no que diz respeito ao conjunto dos artigos examinados, duas questões merecem ser trazidas: o aprofundamento teórico sobre o conceito e o desenvolvimento do debate sobre gênero relacionado aos processos de empoderamento.
Apesar de tratarem de estratégias de empoderamento exclusivamente para mulheres ou que incluíssem mulheres, nem todos os artigos trouxeram para primeiro plano a questão de gênero, a abordaram teoricamente: as relações sociais de gênero não são discutidas em Jonathan (2011); Fritzsche (2004); Silva (2008); Moreira et al. (2012) ou Wendhausen, Barbosa e Borba (2006).
Considerando que os termos "mulheres" e "feminino" integraram os critérios de busca da revisão bibliográfica, as práticas de empoderamento encontradas elegeram como foco grupos de mulheres, ou consideraram a especificidade de gênero no campo das práticas. Contudo, trabalhar a perspectiva de gênero demanda conhecer a realidade vivida pelas mulheres em cada contexto analisado e promover uma reflexão sobre papéis sociais de gênero. Considerando que os trabalhos versam sobre a sociedade latino-americana, reconhecidamente hierárquica do ponto de vista das relações entre homens e mulheres, a ausência parece digna de registro, ainda que não se possa deduzir daí que as práticas examinadas nos artigos citados não coloquem em discussão a desigualdade, os papéis sociais de gênero ou os constrangimentos à liberdade da mulher.
Dois dos artigos examinados -Jonathan (2011) e Fritzsche (2004)- não chegaram a problematizar, desenvolver ou aprofundar o conceito de empoderamento, tornando difícil a avaliação da articulação entre o plano conceitual e a prática analisada. Por isso, as práticas ali apresentadas não integram o quadro analítico apresentado item "O grupo como estratégia de empoderamento feminino e a valorização das especificidades".
Sobre as estratégias de empoderamento
Empoderamento ancorado no incremento da renda feminina
A questão do trabalho e da renda aparece com frequência na pesquisa de estratégias para o empoderamento de mulheres, o que não é surpreendente. De acordo com Rowlands (1997), no campo feminista a noção de empoderamento ficou conhecida em torno da década de 1980 na América Latina porque compôs o discurso sobre gênero e desenvolvimento, especialmente para os planejadores de programas e projetos na área. Desde então, o termo vem sendo utilizado com frequência para se referir a estratégias relacionadas a trabalho e renda como veículos do empoderamento feminino.
A Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o empoderamento feminino como um dos objetivos do milênio para 2015. A vinculação entre o conceito de empoderamento e as estratégias de geração de renda, derivadas dessa determinação da ONU e das publicações do Banco Mundial na última década sobre o mesmo tema, parece haver fomentado projetos governamentais e não governamentais que trabalham nesse mesmo eixo, buscando o empoderamento das mulheres por meio de sua inclusão nos processos produtivos.
No entanto, Marín e Okali (2008) chamam a atenção para o fato de que essa inclusão aumenta a sobrecarga de trabalho feminino, já que as mulheres continuam responsáveis pelo trabalho doméstico. Para as autoras, as mulheres tornaram-se alvo de programas de desenvolvimento que, ao ignorar contextos sociais e culturais específicos, trouxeram como solução para a desigualdade de gênero o investimento em projetos de geração de renda. A experiência relatada avaliou três projetos governamentais de investimento em microcrédito e geração de renda para mulheres e concluiu que não houve empoderamento das mulheres envolvidas por diversos motivos: a renda gerada foi baixa, não foram observadas mudanças nas relações de poder que permeavam as dinâmicas familiares das participantes, e os projetos vieram de cima para baixo, sem o envolvimento das mulheres na proposta. Os projetos buscaram modificar os papéis produtivos das mulheres sem a necessária reflexão sobre seus trabalhos reprodutivos.
Tratando da mesma questão produção/espaço público x reprodução/espaço doméstico, uma das pesquisas (Hosyns, Hosyns e Butler 2012) avaliou se a remuneração do trabalho doméstico de mulheres envolvidas em cooperativas poderia facilitar seu empoderamento. A hipótese das autoras leva em conta que os trabalhos domésticos são uma parte importante da produção, sem, no entanto, serem remunerados, razão pela qual sua valorização condizente poderia contribuir para que as mulheres se sentissem empoderadas. As autoras posicionam-se de forma contrária à ideia de que o ingresso das mulheres nos processos produtivos possa ser considerado fonte automática de empoderamento. Baseando-se em documento publicado por uma organização internacional britânica, elas argumentam que a economia deveria estar centrada nas pessoas e não o contrário, e por isso os trabalhos domésticos deveriam ser valorizados como elementos da cadeia produtiva. A pesquisa, ainda que se reconheça limitada a uma experiência específica de cooperativa, aponta a existência de processos de empoderamento vividos pelas mulheres envolvidas nos trabalhos domésticos, processos esses observados nas mudanças de atitude frente a formas de organização coletiva e em atitude desafios às estruturas econômicas dominantes.
Outra pesquisa (Chablé et al. 2007) analisou o destino do dinheiro recebido pelas mulheres, se com elas mesmas ou com a família. Grande parte das mulheres auferia renda com base em sua participação em projetos de microcrédito, e as autoras observaram que o dinheiro recebido era utilizado na maioria das vezes na casa e com os filhos, nunca reinvestido nas próprias mulheres ou para seu lazer/conforto. Apesar de entenderem que o empoderamento não se restringe à esfera individual, as autoras pontuam que a utilização da renda em benefício exclusivo da unidade doméstica pode apontar para a manutenção da mulher no papel reprodutivo, não obstante sua inserção no processo produtivo, conclusão coerente com o enquadre conceitual eleito.
Ainda neste tópico, um dos artigos (Aguilar et al. 2008) apresentou uma análise do empoderamento de mulheres que se organizaram em um grupo de produção apoiado por uma agência governamental externa ao país que sediava a intervenção. Ao reconhecer as conquistas geradas pelo grupo de produção, as autoras concluíram, no entanto, que a reflexão sobre gênero, relações de poder, organização coletiva e manejo de conflitos não pode ser esquecida nos trabalhos que visam à inclusão de mulheres na produção econômica local, se eles visam enfrentar as desigualdades de gênero.
O empoderamento feminino resultante do recebimento do Bolsa Família, tal como analisado por Moreira et al. (2012), compreende que o recebimento de recursos financeiros pelas mulheres dá a elas maior autonomia para o uso do dinheiro e as aproxima da rede de assistência social, viabilizando ações de conscientização sobre seus direitos. Assim, o programa de transferência de renda foi considerado um instrumento de empoderamento feminino. Ainda assim, a conformação da mulher ao papel de mãe e responsável pelos filhos, condicionalidade para o recebimento do benefício, age como um fator que pode reforçar a desigualdade de poder entre homens e mulheres, tornando-se um obstáculo para o empoderamento feminino. Essa foi justamente uma das pesquisas que não trabalhou conceitualmente a questão de gênero, e por isso conviria estender a análise das repercussões do programa sobre a construção do empoderamento de mulheres brasileiras.
Se pensarmos em termos de articulação entre conceito e prática, encontramos um hiato. Em Moreira et al. (2012), além da premente necessidade de discussão sobre questões de gênero, como apontado anteriormente, a própria relação entre conceito de empoderamento e prática considerada empoderadora parece pouco coerente. Os conceitos de empoderamento eleitos pelos autores, especialmente o conceito da OMS, destacam aspectos como a capacidade de expressão de necessidades, o envolvimento na tomada de decisões, a atuação micro e macro para a satisfação das necessidades das mulheres e o equilíbrio das relações de poder. Ou seja, os próprios conceitos exigem olhar o processo de empoderamento de forma não instrumental, considerando as necessidades específicas de cada indivíduo envolvido na relação. Assim, pode-se colocar em questão tanto a adequação conceitual do termo quanto a necessidade de colocar em questão o debate sobre relações sociais de gênero. Como lembra Rowlands (1995):
Economic relations do not always improve women's economic situation, and often add a layer of extra burden. Often, development work is still done 'for' women, and an exclusive focus on economic activities does not automatically create a space for women to look at their own role as women, or at other problematic aspects of their lives. (Rowlands 1995, 104)
A autora acredita que o incremento da renda pode auxiliar as mulheres em um processo de empoderamento, entretanto, esse é um trabalho que não pode ser feito de maneira isolada, sem o questionamento de valores sociais arraigados, tais como as estruturas de gênero, raça e econômicas. Essa ideia está de acordo com os estudos encontrados sobre o tema, que defendem maior aprofundamento teórico e debates sobre programas de geração de renda, apontando para a importância do envolvimento concomitante das mulheres no processo de produção e na reflexão sobre gênero (Hosyns, Hosyns e Butler 2012; Marín e Okali 2008).
Apesar de os programas de geração de renda terem surgido eminentemente em outros países da América Latina, no Brasil, parece importante suspeitar de práticas voltadas para grupos vulneráveis -como é o caso de mulheres pobres- que não se dediquem a propósitos outros que não o mero repasse de renda. A geração de renda, o microcrédito e os incentivos financeiros, desconectados da reflexão sobre as formas de dominação de gênero, podem deixar esses grupos ainda mais distantes de efetivas mudanças nas relações de gênero, conformando-os a papéis de subordinação.
As práticas de empoderamento originadas no cotidiano das mulheres
É interessante observar que as práticas de empoderamento que promoveram reflexão sobre os papéis de gênero e foram consideradas empoderadoras consideraram os contextos em que as mulheres vivem e refletiram sobre o papel reprodutivo e doméstico que elas ocupam. Tiveram início em ONGs, organizações coletivas, mobilizações comunitárias e, ainda, projetos de pesquisa-ação ou pesquisa-intervenção acadêmicos (Castelnuovo 2010; Di Liscia 2007; Echeagaray, Michel e Martelo 2006; Meneghel, Farina e Ramão 2005; Meneghel et al. 2003; Medina 2007; Silva 2008; Wendhausen, Barbosa e Borba 2006).
As práticas geradas a partir de dados sobre a realidade local, como as pesquisas-intervenção analisadas, ou a partir das próprias pessoas envolvidas no processo de empoderamento, foram oficinas sobre direitos, oficinas de reconstrução da história ou da cultura local, oficinas ou espaços de reconstrução de histórias de vida, espaços de reflexão sobre o cotidiano e/ou sobre papéis de gênero e participação em grupos políticos. As análises dessas estratégias encontraram resultados positivos a respeito do desenvolvimento de processos de empoderamento pelas mulheres envolvidas.
O artigo de Meneghel, Farina e Ramão (2005), por exemplo, traz a experiência de oficinas para mulheres que estivessem em situação de violência de gênero, com o objetivo claro de contribuir para seu empoderamento. As oficinas surgiram como resposta à demanda apresentada pelas próprias mulheres, vítimas de violência de gênero perpetrada pelos companheiros. A partir daí, foi construído o projeto de oficinas, no contexto de um programa de extensão universitário, utilizando como base o conceito de empoderamento de Magdalena León e teorias acerca da formação e da intervenção em grupo. As mudanças observadas nas mulheres, tanto em suas vidas privadas quanto em suas respostas como grupo, sinalizaram o empoderamento delas.
Outro artigo representativo de resultados positivos no que tange ao empoderamento de mulheres é o de Echeagaray, Michel e Martelo (2006), citado no item anterior. Neste, revela-se a experiência de uma organização de mulheres que questiona as relações sociais de gênero a partir de leituras da bíblia, e realiza-se no contexto de encontros religiosos. As próprias mulheres elegeram os temas abordados e o uso de leituras religiosas aproxima a discussão de seu cotidiano e de seu conjunto de valores. Apesar de apontarem limitações na gestão democrática desses grupos, as autoras apresentam mudanças das mulheres em diversos âmbitos, o que em seu entender indica o desenrolar do processo de empoderamento a partir da experiência registrada.
Dois dos artigos que não desenvolveram conceitualmente a questão de gênero estão nesse grupo. Apesar da questão não estar presente teoricamente, na prática as relações de gênero emergiram e foram trabalhadas nos artigos de Silva (2008) e Wendhausen, Barbosa e Borba (2006). Em ambas as intervenções discutidas, o gênero não foi colocado previamente como tema, já que se pretendia discutir processos de imigração e vivências das pessoas em conselhos gestores; entretanto, quando a questão de gênero foi colocada, e reconhecida como objeto da intervenção, foi possível trabalhar o empoderamento das mulheres com relativo êxito. O artigo de Stromquist (2001) propõe uma análise do letramento como uma estratégia possível de empoderamento a partir de revisão bibliográfica e não de uma experiência específica. Assim, ele analisa práticas de outros atores.
A partir dos trabalhos examinados, é possível afirmar que estratégias resultantes da aproximação com a realidade local e a compreensão do empoderamento vinculado à questão de gênero parecem ser indicativos de maior efetividade das estratégias de empoderamento feminino.
O grupo como estratégia de empoderamento feminino e a valorização das especificidades
Outra questão que aparece a respeito das estratégias utilizadas é a eleição do grupo como dispositivo de intervenção, e a concomitante valorização das especificidades de cada conjunto de mulheres por meio de estratégias diversificadas. Aqui, fazemos uma apresentação dos artigos, tanto no que diz respeito a grupos de mulheres com que se trabalhou a questão do empoderamento quanto no que tange à descrição das práticas grupais. O quadro 1 a seguir mostra essa heterogeneidade.
Trata-se de um quadro esquemático que não esgota a abordagem de cada artigo examinado, mas que serve bem para demonstrar que as estratégias de empoderamento aplicadas a grupos atendem a propósitos bastante diversificados, além de serem aplicados a um perfil de mulheres diverso em termos de faixa etária -adolescentes do sexo feminino-, etnia -mulheres indígenas- e classe -mulheres beneficiárias do Bolsa família-. O empoderamento é convocado para discutir condições de vida específicas -mulheres em situação de violência de gênero, participantes de programa de microcrédito, cooperativadas, artesãs organizadas em um grupo de produção, militantes que viveram na ditadura-. Além disso, é possível observar a superposição de categorias: mulheres negras em situação de violência de gênero; e mulheres pobres, camponesas e indígenas.
Sobre o uso de oficinas, observa-se que o formato destas variou de acordo com as especificidades de cada grupo, valorizando-as. Para o grupo de mulheres negras em situação de violência de gênero, foi privilegiado o uso da contação de histórias da cultura negra e, para o grupo de mulheres indígenas também houve oficinas de valorização da própria cultura. Assim, no lugar de estratégias universalizantes para o empoderamento de mulheres, a abertura para a diferença permitiu acolher a diversidade. Ainda, no caso das mulheres militantes que viveram em uma ditadura (Di Liscia 2007), privilegiou-se a memória, para a revalorização de trajetórias, aproximando-se, mais uma vez, da singularidade dessas vivências.
A promoção do empoderamento, portanto, não se dá por fórmulas prontas, diretas e infalíveis. Não se trata de um processo linear, com início e fim definidos, nem de um processo uniforme, que se dá de maneira igual para diferentes grupos de mulheres (León 2001). Para que o empoderamento seja possível, não há fórmulas prontas e o processo será tanto mais efetivo quanto mais se valorizar a história pessoal. Portanto, a aproximação e a valorização das singularidades, e não a universalidade, parecem abrir a possibilidade real de promover mudanças pessoais e sociais, o que apoia a reflexão sobre a necessidade de levarmos em conta a fragmentação das vivências das mulheres, e de seus interesses específicos, acolhendo a diferença e a multiplicidade.
Conclusões
Foi possível constatar, a partir da revisão bibliográfica, pontos de convergência entre os resultados descritos nos artigos examinados e o debate teórico clássico sobre o conceito de empoderamento. A compreensão do empoderamento como processo ora individual, ora coletivo, ora presente nas duas dimensões, aparece não apenas na concepção teórica do termo como também nas práticas analisadas.
A necessidade de fazer convergir o debate sobre gênero e as práticas de empoderamento é uma forma de inseri-las nos estudos e nas práticas feministas sem reduzir o conceito ao senso comum. Esse equívoco, além de alimentar um uso acrítico do conceito, arrisca-se a promover uma abordagem por demais restrita das vivências pessoais das mulheres e a coibir justamente as transformações que se quer promover no campo da igualdade nas relações de gênero.
Observa-se também que as práticas fazem alusão às possibilidades de reflexão sobre os papéis sociais de gênero de homens e mulheres, visando à quebra de desequilíbrio de poder, o que também corresponde à noção de empoderamento da segunda vaga feminista. Entretanto, a valorização das especificidades e da multiplicidade dos grupos de mulheres remonta à maior fragmentação na categoria identitária feminina proposta pela terceira vaga.
O número expressivo de práticas baseadas em oficinas e outras estratégias grupais aponta para uma compreensão do empoderamento como processo atravessado e alimentado pela construção coletiva, reforçando perspectivas históricas do feminismo. O recurso a essas estratégias coletivas, o respeito à diversidade das mulheres e o sucesso alcançado pelas estratégias construídas com base no cotidiano das mulheres são dimensões alinhadas à noção de suporte e de constituição de um processo de empoderamento solidário, ao mesmo tempo que singular.
Para futuras pesquisas na temática do empoderamento, sugere-se a ampliação das bases de dados para a pesquisa e a exploração mais detalhada da literatura latino-americana na conceituação de empoderamento e na abordagem das práticas de empoderamento com grupos variados de mulheres, além de maior exploração das dimensões culturais e educacionais do empoderamento -eixos discutidos de forma limitada nesta pesquisa.
Comentarios
* O artigo é parte da dissertação de mestrado da primeira autora, sob a orientação da segunda autora. A dissertação denomina-se "Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo. O processo de empoderamento de mulheres em situação de violência doméstica". O mestrado foi concluído na Universidade Federal do Rio de Janeiro e a aluna obteve bolsa da Capes para a realização da pesquisa.
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Data de recebimento: 01 de setembro de 2015 Data de aceitação: 26 de janeiro de 2016 Data de modificação: 10 de fevereiro de 2016