Introdução
A letalidade decorrente de ações policiais é uma das muitas manifestações da violência no Brasil. Não só as polícias brasileiras apresentam elevadas taxas de homicídio decorrentes de oposição à intervenção policial quando comparadas às de outros países, como também as mortes violentas assim produzidas representam uma parcela cada vez maior do total de homicídios registrados no país (Nunes 2018, 69). A violência policial assume hoje o caráter de uma deliberada política de governo, como se torna evidente com a defesa aberta do extermínio por parte de representantes eleitos ou em projetos de lei. Tramita, no congresso nacional, o projeto da chamada “excludente de ilicitude” - proposto pelo governo do Presidente da República Jair Messias Bolsonaro -, que visa ampliar a definição de situações em que militares e agentes de segurança podem ser isentados de punição por ações como matar (Mazui 2019). Recém-eleito, o governador do estado de São Paulo, João Dória, afirmou em entrevista coletiva: “Bandido que enfrentar a polícia vai pro chão. É ordem do governador. Vai pro chão! Ou então não enfrente, levante o braço, deite e se renda. Porque, se não se render, vai pro chão ou vai pro cemitério” (Durán 2018).
É preciso considerar que as políticas de extermínio se apoiam sobre uma longa tradição de tolerância social e institucional ante o uso desproporcional da força pelos agentes de segurança do Estado. Assim como, historicamente, as forças policiais brasileiras fazem uso desmedido da força letal, nossas autoridades públicas, nos âmbitos executivo, legislativo e judiciário, respaldam esse padrão violento de atuação. Tais disposições se manifestam tanto em períodos de exceção, como durante a ditadura civil-militar que se instalou no país a partir do golpe de 1964, quanto no período conhecido como “redemocratização” (Pinheiro, Izumino e Fernandes 1991) - e mesmo sob governos considerados progressistas (Teles 2018).
Neste trabalho, procuramos lançar luz sobre a dupla dimensão do problema: a violência letal da polícia e o seu amplo respaldo institucional. Para tanto, partimos da análise das ocorrências registradas como “resistência seguida de morte” na cidade de São Paulo, em 2012, nomenclatura que foi alterada pela Secretaria de Segurança Pública do Governo de Estado de São Paulo (SSP-SP) para “mortes decorrentes de intervenção policial” pela Resolução SSP-005 de 7 de janeiro de 2013 (SSP-SP 2013). Em seguida, analisamos o tratamento dispensado a esses fatos pelas diversas instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal - em particular, a Polícia Civil, o Ministério Público (MP) e o Tribunal de Justiça (TJ). Assim, pretendemos explorar algumas dimensões das relações que se estabelecem entre as diversas instituições estatais e a violência letal.
Esta pesquisa é fruto de uma parceria entre um coletivo de pesquisadores - articulados em torno de um projeto1 financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - e o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.2 Tal núcleo facultou acesso a um arquivo com cópias dos 316 boletins de ocorrência (BOs) de casos classificados como “resistência seguida de morte”, registrados pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil do Estado de São Paulo (PCESP) na cidade de São Paulo, em 2012. Os BOs analisados correspondem praticamente ao universo total dos casos desse tipo registrados na capital do estado. É possível que casos tenham escapado à coleta, mas é digno de nota que o número de vítimas letais decorrente de ações policiais encontrado nos BOs é superior ao divulgado pela Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado de São Paulo, que contabilizou 351 “resistências seguida de morte” na cidade de São Paulo, em 2012 (Risso 2014). Segundo dados oficiais, o número de vítimas de “mortes legítimas” praticadas por policiais em 2012 foi 655, das quais 563 foram praticadas por policiais em serviço e 92, por policiais de folga (SSP-SP 2015).
Os dados obtidos através da leitura dos BOs oferecem um panorama das ocorrências de letalidade policial, o que permite melhor compreender: em que circunstâncias essas mortes ocorrem, como são registradas, como se distribuem no tempo e no espaço urbano, quantas vítimas letais e qual o perfil delas, testemunhas arroladas e policiais envolvidos, quais as armas apreendidas nas ocorrências, além de contabilizar as prisões em flagrante. Este é o foco da primeira parte do artigo em tela. Num segundo momento, analisamos uma amostra representativa dos processos judiciais decorrentes desses registros. É possível, assim, traçar um perfil da investigação policial desse tipo de ocorrência, bem como da abordagem do MP e do TJ sobre a matéria, reconhecendo como essas instituições tendem a se posicionar e como justificam os seus posicionamentos. O tratamento metodológico dos BOs e dos processos judiciais articula técnicas quantitativas e qualitativas de análise, mas foi, sobretudo, descritivo. Ao longo da exposição, realizamos um breve exercício comparativo entre as dinâmicas verificadas em São Paulo e aquelas já documentadas no Rio de Janeiro, onde existe um maior acúmulo de pesquisas sobre o tema em questão.
São Paulo, 2012: Elementos Contextuais
Sabe-se que a letalidade decorrente de ações policiais é um componente fundamental do processo de acumulação social da violência (Misse 2006) que caracteriza a história recente das grandes cidades brasileiras. Como mostra Telles (2011), em São Paulo, a violência letal e a truculência policial formam parte da história e da experiência social dos bairros mais pobres e periféricos da cidade de São Paulo: nos anos 1980, a figura do “justiceiro” enlaçava essas duas questões (Silva 2004); nos anos 1990, esse cenário foi deslocado pela expansão do mercado da droga e pela eclosão das guerras de quadrilhas (Manso 2005); já nos anos 2000, a expansão e a capilarização do Primeiro Comando da Capital (PCC) pelo tecido social e urbano reconfiguram o jogo de relações entre violência letal, dinâmicas criminais e ação policial (Marques 2014; Biondi 2010 e 2018; Dias 2013; Manso e Dias 2018; Feltran 2018; Hirata 2018; Telles e Hirata 2010). No âmbito deste artigo, na medida em que é inviável reconstituir todo esse percurso histórico, chamamos atenção para alguns elementos que permitem qualificar o contexto imediato dos dados analisados nesta pesquisa, em particular, a trajetória e a atuação do PCC, bem como a chamada “crise de 2012”.
De modo um tanto esquemático, é possível afirmar que o PCC nasceu nas prisões paulistas no começo dos anos 1990. No decorrer dessa década, ao mesmo tempo que crescia o processo de encarceramento massivo, o coletivo se expandia pelo sistema carcerário estadual, até que, em 2001, a facção emerge para o público em sua primeira grande demonstração de força: a eclosão de rebeliões coordenadas e simultâneas em 29 unidades prisionais - evento que ficou conhecido como “a [primeira] megarrebelião do PCC” (Salla 2006). No decorrer dos anos 2000, o grupo ganha capilaridade nas periferias urbanas, com incidência sobre mercados informais e ilegais diversos, e operando, cada vez mais, como um regulador de relações e conflitos - e isso para além do universo criminal. Diversos pesquisadores convergem no reconhecimento dessa vocação reguladora da facção como um fator determinante da pronunciada queda na taxa de homicídios experimentada em São Paulo no correr dessa década. Não obstante tal tendência geral, em maio de 2006, o PCC protagonizava a sua segunda megarrebelião que, dessa vez, envolvia 73 unidades prisionais e se articulava a uma série de atentados nas ruas visando policiais e agentes penitenciários, prédios públicos e comerciais, bancos e ônibus (Adorno e Salla 2007). Nos dias seguintes a esses eventos, multiplicam-se as ocorrências de “resistências seguida de morte”, bem como chacinas e execuções sumárias com fortes indícios de participação policial, as quais resultam na morte de cerca de 500 pessoas no intervalo de uma semana (IHRC e Justiça Global 2011; CAAF 2018) - sendo esta uma primeira figuração de “guerra” declarada entre a facção e as forças de segurança do estado. Relatos sobre os chamados “crimes de maio” podem ser encontrados no livro organizado pelo movimento Mães de Maio (2011), formado por familiares de vítimas desses eventos. Após tais acontecimentos, Estado e facção parecem estabelecer uma espécie de “armistício” (Feltran 2016), que só será abalado em 2012 - ano que aqui nos concerne diretamente.
Vale destacar que, no período que antecede a crise de 2012, diversas funções administrativas no estado de São Paulo, antes ocupadas por civis, foram transferidas aos militares. Policiais e ex-policiais passaram a ocupar posições no alto escalão da burocracia do Estado e ser responsáveis pela área de segurança, cuja política adotada foi a de enfrentamento militarizado ao “crime organizado”, marcada pela centralidade do batalhão denominado “Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar” (Rota).3 A intenção da política adotada era levar tal batalhão para o policiamento ostensivo nas periferias, hegemonizando-a nas políticas de combate ao PCC. Aliado à militarização crescente das funções administrativas do Estado, estava montado o cenário para os acontecimentos que sucederiam.
Como mostram Dias et al. (2015), em 2012, o número de policiais mortos dentro e fora de serviço cresceu abruptamente, casos de chacinas e execuções sumárias se multiplicaram de modo significativo e aumentaram também as ocorrências de “resistência seguida de morte”. As autoras demonstram como na crise de 2012, homicídios de civis e policiais se enredavam numa trama de retaliações recíprocas que acabou por reverter momentaneamente a tendência de redução das taxas de homicídios da década anterior.4 Tal crescimento de mortes, e as contestações a que deram ensejo, acarretou mudanças na pasta de segurança pública do executivo estadual e no comando das polícias; também levou a disputas na forma de nomear e contabilizar a letalidade decorrente de ações policiais: os “autos de resistência”, tal como se nomeava no Rio de Janeiro, e os casos de “resistência seguida de morte”, em São Paulo, passaram a ser designados como “mortes decorrentes de intervenção policial”.
Análise dos Boletins de Ocorrência (BOs)
O boletim de ocorrência é o registro realizado pela Polícia Civil - que atua como polícia judiciária - a partir da notificação de uma ocorrência criminal à autoridade policial de plantão. Trata-se do primeiro procedimento instaurado para apurar crimes de competência da justiça comum, como é o caso das mortes decorrentes de intervenção policial desde a promulgação da Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996. Nesses casos, a ocorrência é notificada pelos próprios agentes responsáveis pela morte e, na cidade de São Paulo, o BO deve ser elaborado pelo DHPP. Esse documento registra (entre outros elementos): a data e o horário da ocorrência e do registro policial; os tipos penais em que os fatos se enquadrariam, antes mesmo de qualquer investigação policial; o local dos fatos; as pessoas envolvidas; as armas, os veículos, os acessórios e quaisquer outros objetos apreendidos; o histórico da ocorrência, geralmente elaborado a partir dos depoimentos iniciais dos policiais envolvidos.
Nos BOs analisados, é possível observar que, em 2012, o DHPP não registrava como “homicídio” as mortes em suposto confronto com policiais. Eram registrados apenas a “resistência” ou a “tentativa de homicídio” praticada pelas vítimas letais contra os agentes das forças de segurança, além dos demais tipos penais atribuídos à vítima fatal ou às pessoas presas em flagrante na mesma ocorrência. Vale notar que a vítima fatal consta no BO como “autor”, “autor desconhecido” ou “indiciado”, de maneira que a informação sobre a morte é incluída pela observação “fatal” acrescentada à sua qualificação dentre os “envolvidos” na ocorrência. O Gráfico 1 mostra os tipos de ocorrência registradas.
Vê-se que, em 67,1% das ocorrências, registrou-se, além da resistência ou tentativa de homicídio, roubo consumado ou tentativa, sendo que apenas 7,6% dos casos de morte decorrentes da intervenção policial estavam associados ao registro de tráfico de drogas. Em 10% das ocorrências, houve apreensão de drogas, contudo, em parte dessas ocorrências, tratava-se de pequena quantidade encontrada em posse da vítima letal, isto é, a morte não estava relacionada à repressão ao tráfico. Esses dados são significativos e impõem necessária reflexão sobre os papéis que a defesa da propriedade desempenha nas dinâmicas da letalidade policial em São Paulo, bem como se mostram muito mais relevante do que a alardeada “guerra às drogas”.
Ainda sobre o registro da natureza da ocorrência, é importante enfatizar que, quando preenche esse campo do BO, o policial efetua aquilo que Misse (2006) designa como “criminação”, associando certo curso de ação a um tipo penal previsto. Portanto, ao assinalar a existência de um crime de resistência associado a outros crimes - roubo, principalmente, mas também crimes não violentos como furto e receptação -, a Polícia Civil, responsável pela investigação, define desde a instauração do primeiro procedimento de apuração à presunção de legitimidade da ação dos policiais envolvidos na ocorrência. Essa situação gera amplas consequências, das quais a mais imediata é, ainda no âmbito do BO, o embaralhamento das figuras do autor e da vítima. Devido a que a situação é definida como um crime de resistência, quem morre aparece como “indiciado” ou “autor”, “autor-fatal”, no máximo como “autor-vítima”, enquanto os policiais que participaram da ocorrência, entre eles os que efetivamente praticaram um homicídio, constam nos procedimentos instaurados como “vítimas”, e os demais, como “condutores” e “testemunhas”. Pela apreciação dessas suas primeiras linhas, é possível perceber que o BO não registra um homicídio a se esclarecer, mas os crimes de alguém que se “sabe” ter morrido resistindo à prisão.
Tal maneira de registrar essas ocorrências é anterior à Resolução 8 de 21 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que recomendou o registro desses casos como “homicídio decorrente de intervenção policial” e foi parcialmente atendida pela Resolução SSP-05, de 7 de janeiro de 2013. Ainda assim, é digno de nota que até mesmo no Rio de Janeiro - estado que há muitos anos apresenta as taxas de letalidade policial mais altas do país -, os autos de resistência já eram registrados como homicídio (artigo 121 do CP) com excludente de ilicitude (artigo 23 do CP) (Misse et al. 2013), mesmo antes da Resolução do CNDH. A prática da Polícia Civil de São Paulo de não registrar o homicídio em casos de morte intencional, mesmo que considerada “legítima” por parte da polícia, constitui não apenas um endosso ao uso da violência letal por policiais, como também uma infração ao Código Processual Penal.
Nos 316 registros de ocorrências analisados, identificamos três policiais mortos, 388 vítimas letais civis e 150 pessoas presas ou jovens apreendidos. Das 388 vítimas letais, apenas duas eram mulheres. A maioria era jovem, com média de idade de 24 anos, conforme pode ser observado na distribuição etária das vítimas, no Gráfico 2. Vale sublinhar, ainda, que, conforme os registros policiais, 62% dessas vítimas letais eram negras (pretas e pardas) - o Gráfico 3 detalha essa informação. Tais dados de distribuição racial, por serem fruto da atribuição de terceiros, não podem representar com precisão a composição racial do grupo de vítimas letais; entretanto, eles não deixam de operar como um indicador da prevalência da população negra como alvo preferencial da letalidade policial, o que é confirmado por outras pesquisas (Sinhoretto, Schlittler e Silvestre 2016).
Com base nos BOs, também foi possível georreferenciar a distribuição espacial das ocorrências e do número de vítimas. Os Gráficos 4 e 5 evidenciam que as ocorrências de “resistência seguida de morte” são mais frequentes e vitimizam mais pessoas na periferia, especialmente em regiões conhecidas por serem densamente povoadas e de baixa renda. Concentrações de ocorrências se verificam nos distritos de Itaquera e São Mateus, na zona leste, e do Campo Limpo e Cidade Ademar, na zona sul.
Fonte: elaboração de André Rodrigues de Oliveira, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), a partir de dados de BOs da DHPP-PCERJ e mapas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Fonte: elaboração de André Rodrigues de Oliveira, pesquisador do NEV-USP, a partir de dados de BOs da DHPP-PCERJ e mapas do IBGE.
Os documentos analisados também permitem conhecer a distribuição das ocorrências no tempo. O Gráfico 6 demonstra como houve incidência maior de casos de “resistência seguida de morte” a partir do mês de junho, quando, conforme Dias et al. (2015), se intensificou a “guerra” entre a polícia e o Primeiro Comando da Capital.
Observou-se, ainda, que, em 30% das ocorrências, além de vítimas letais, houve também prisão em flagrante ou apreensão de adolescentes. Discriminada no Gráfico 7, essa informação é relevante por duas razões principais. Primeiramente porque, como procuraremos mostrar mais adiante, a coexistência de mortos e presos em uma mesma ocorrência pode ter consequências significativas na forma como o sistema de justiça processa tais casos. Em segundo lugar, porque esse dado também sugere contrastes interessantes com a dinâmica de letalidade policial que vigora no Rio de Janeiro, onde as mortes praticadas por policiais são mais raramente acompanhadas por sobreviventes presos em flagrante (Misse et al. 2013). Como veremos a seguir, o tipo de armamento utilizado pela polícia pode estar relacionado a essa diferença.
No que se refere às forças de segurança envolvidas nessas ocorrências, nota-se que os casos de “resistência seguida de morte” resultam predominantemente de ações de policiais militares, com apenas 5% deles resultando de ações de policiais civis e menos de 1%, da Guarda Civil Metropolitana. Dentre os 293 casos resultantes de ações da Polícia Militar (PM), metade conta com o envolvimento da Força Tática.5 Dentre os batalhões da PM (BPM), há dispersão significativa das ocorrências, excetuando-se quatro casos: o 3º BPM, localizado na zona sul da cidade, que conta com 7 casos em 2012; o 2º BPM, na zona leste, e o 18º BPM, na zona norte, cada um com 9 casos; o 37º BPM, também situado na zona sul, que sozinho esteve envolvido em 13 ocorrências.
Ainda importa notar que, como mostra o Gráfico 8, do total de BOs analisados, 25% dos casos envolviam agentes policiais em período de folga e, mesmo assim, foram registradas como “resistência”, e não como “homicídio”. Como assinalado em documento da SSP (2020), as estatísticas de letalidade policial incluem as “mortes legítimas” praticadas por policiais em serviço e fora de serviço, assim discriminadas. Trata-se aqui de mais uma particularidade do estado de São Paulo, quando comparado ao Rio de Janeiro, onde somente as ocorrências que envolveram policiais em serviço eram contabilizadas como “homicídio proveniente de auto de resistência” (Misse et al. 2013).
A partir da leitura dos históricos registrados nos BOs, criamos uma tipologia própria para classificar as situações que alegadamente teriam despertado a resistência e o confronto. De todas as ocorrências, 20% referiam-se ao tipo de situação que tipificamos como “roubo ou tentativa - policial vítima”, isto é, situações em que a narrativa policial referente à dinâmica do fato era a de que um agente fora de serviço fora abordado por assaltantes, tendo reagido e matado pelo menos um deles; 47% dos casos se referiam a roubos praticados contra vítimas civis; 17% relatavam situações de abordagem policial a suspeitos; 5% remetiam a operações de repressão ao tráfico de drogas; 5% relacionavam-se à averiguação de denúncias; 2% evocavam casos de furto ou tentativa de furto; 2% se referiam a ataques a policiais, e outros 2% remetiam a situações diversas. O Gráfico 9 detalha essa distribuição.
Vale ressaltar, ainda, que a maioria dos BOs analisados registra a existência de veículos (carros e motos) na ocorrência, sejam eles roubados, recuperados, danificados, sejam envolvidos. A presença de veículos arrolados em boa parte das ocorrências aponta também para uma característica própria das ocorrências de “resistência seguida de morte” na cidade de São Paulo, onde elas se dão principalmente em vias asfaltadas (avenidas e ruas) e apenas raramente em vielas de favela, como é comum na cidade do Rio de Janeiro, onde boa parte dos confrontos ocorre com suspeitos que estão a pé.
Interessa enfatizar também que, em 94% das ocorrências, foi relatado que houve remoção das vítimas para a prestação de socorro em hospital, conforme mostra o Gráfico 10. Muitas dessas vítimas conduzidas ao hospital vêm a óbito antes de dar entrada nele, o que é frequentemente interpretado por ativistas de direitos humanos como fraude processual, caracterizada pela remoção dos corpos do local do crime com a intenção de dificultar o trabalho da perícia. Com efeito, quando, em 2013, o então Secretário de Segurança Pública de São Paulo Fernando Grella, por meio da Resolução SSP-05, de 7 de janeiro de 2013, determinou que policiais aguardassem a chegada de uma ambulância em vez de conduzir as vítimas ao hospital, a incidência de mortes em suposto confronto diminuiu significativamente. Segundo relatório com dados atualizados desse órgão, em 2013, houve, no estado de São Paulo, uma diminuição de 17,6% do total de mortes decorrentes de intervenção policial e de 38,5%, se consideradas apenas as mortes praticadas por policiais em serviço (SSP-SP 2015).
Coligimos, finalmente, informações sobre as armas apreendidas nas ocorrências. Os dados revelam que a principal arma utilizada por policiais nas ocorrências é a pistola calibre .40, arma mais utilizada por policiais militares e civis em serviço. O uso de pistolas, por sua maior precisão e menor poder letal em relação ao do fuzil, por exemplo, oferece uma pista para compreender a maior incidência de sobreviventes detidos e taxas mais baixas de letalidade policial do que as do Rio de Janeiro, onde é amplamente disseminado o uso de fuzis por policiais durante o patrulhamento ostensivo. Já a arma mais comum dentre aquelas apreendidas junto às vítimas letais é o revólver calibre .38, arma de fabricação nacional e de uso restrito, mas “permitido” no Brasil. Enquanto o atual Presidente da República vem facilitando a posse e porte de armas de fogo por meio de decretos, faz-se pertinente chamar a atenção para o dado de que as principais armas apreendidas em posse de pessoas mortas pela polícia são vendidas no país (revólver .38, revólver .32 e pistola .380), e não, como talvez se possa imaginar, armas de grosso calibre, importadas ilegalmente. Os Gráficos 11, 12 e 13 sumariam as informações coletadas sobre as armas apreendidas.
O Gráfico 13 também chama a atenção para uma constatação surpreendente da pesquisa: a apreensão de simulacros de arma de fogo e armas brancas, e o registro de ocorrências sem armas apreendidas em posse da vítima letal. Em 22 das 316 ocorrências analisadas, foram apreendidos apenas simulacros de arma de fogo, em 2 ocorrências apenas arma branca e, em 14, não houve apreensão de arma alguma. É possível afirmar, portanto, que, em 12% dos casos, as pessoas mortas por policiais não portavam armas de fogo. Esse dado nos parece um tanto alarmante, dada a dificuldade que a ausência de arma de fogo impõe à comprovação de uma resistência à ação policial que justificasse a neutralização letal do opositor.
Análise dos Processos Judiciais
Após a análise dos BOs, o passo seguinte da pesquisa foi selecionar uma amostra aleatória para proceder ao desarquivamento e análise qualitativa dos processos. Foram sorteados 38 BOs (n=38). Isso corresponde, dentro de um nível de confiança de 95%, a uma amostra com intervalo de confiança de 15 pontos percentuais. Esse valor é alto, evidentemente, mas precisaríamos aumentar muito onpara diminuí-lo. Como o propósito da pesquisa é seguir o processamento dos casos no sistema de justiça, o intervalo de confiança é condizente com os objetivos da proposta.6
A busca pelos processos correspondentes aos boletins de ocorrência selecionados foi feita mediante consulta processual no site do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Os campos de busca utilizados foram, em geral, o número do documento na delegacia, o nome das pessoas envolvidas e a circunscrição, que indica o distrito policial em que se deu a ocorrência antes de ser enviada ao DHPP. Quando o processo encontrado com tais parâmetros equivalia à descrição dos fatos do BO, o processo era localizado para digitalização. Dos 38 BOs selecionados, foram encontrados, nessa primeira etapa, 28 processos. Dos dez restantes, um corria em segredo de justiça - o que limita a consulta apenas às partes envolvidas - e os outros não foram localizados. Dos 28 encontrados, cinco estavam no Fórum Criminal da Barra Funda, um no de Santana e 22 deles estavam arquivados no Arquivo Geral do TJSP, no bairro do Ipiranga.
Dos seis processos que ainda se encontravam nos fóruns, um deles era eletrônico e pôde ser consultado pela internet, e os outros cinco estavam nos cartórios dos Tribunais do Júri, Fórum da Barra Funda. Dois deles foram localizados e digitalizados no balcão de seus respectivos cartórios, enquanto os outros três não puderam ser consultados porque estariam circulando entre os gabinetes de promotores e magistrados. Portanto, daqueles seis ainda em andamento, foram consultados apenas três Quanto aos 22 arquivados, foi requerido o desarquivamento de todos mediante petição judicial para posterior digitalização. Três desses 22 não eram compatíveis com os dados contidos no BO correspondente, restando apenas 19. Foram digitalizados, desse modo, 22 processos daquela amostra inicial de 38.
Na justiça comum brasileira, casos de crimes dolosos contra a vida devem seguir o rito do júri. Em linhas gerais, tal rito segue o seguinte fluxo: assim que a autoridade policial tem conhecimento da infração, ela deve cumprir uma série de diligências dispostas no artigo 6º do Código de Processo Penal (CPP) a respeito do inquérito policial que é considerado procedimento pré-processual. Ao seu término, a autoridade policial deve fazer um relatório com o que foi apurado até então e enviar ao juiz. Uma vez relatado o inquérito policial e não havendo requisição de diligências adicionais por parte do MP ou do juiz, os autos do processo vão ao promotor de justiça, que pode seguir por dois caminhos: (i) apresentar a denúncia ou (ii) requerer o arquivamento. Se o juiz discordar do arquivamento, remete o inquérito ao procurador-geral (cargo do MP hierarquicamente superior ao do promotor), o qual (i) oferecerá a denúncia, (ii) designará outro promotor para que o faça ou (iii) insistirá no pedido de arquivamento, e, nesse momento, o juiz é obrigado a arquivar o inquérito policial.7 A primeira fase do processo judicial é o chamado “juízo de acusação” e tem por objeto apurar a existência de crime doloso contra a vida, pois é o que determina a competência do Júri. Essa fase se inicia com o oferecimento da denúncia ou queixa e termina com a sentença de pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição sumária. Na pronúncia, o juiz se mostra convencido de que houve crime (há materialidade) e de que há indícios suficientes de autoria ou participação por parte do réu - o juiz então determina que o caso seja levado a julgamento por sete jurados que, por maioria simples, estabelecem o veredito.
Vale destacar que, entre os processos analisados, constatamos dois casos em que a ocorrência de “resistência seguida de morte” parecia ter sido “processada” judicialmente por uma vara criminal comum; portanto, sem um processo concomitante no Tribunal do Júri, vara responsável pelo processamento de crimes dolosos contra a vida. Em ambos os casos, havia sobreviventes detidos, e os processos tratavam dos crimes a eles atribuídos, enquanto as mortes em confronto com a polícia e mesmo as peças periciais que se referiam a elas compunham os autos dos processos, mas não eram objeto de análise de promotores e juízes. Ou seja, tais mortes não figuravam como objeto de um registro específico. Assim, submetia-se a investigação de um crime contra a vida a uma vara criminal comum e, como ela não tem essa competência, tal procedimento acabava significando seu arquivamento antecipado.
A partir da leitura dos processos digitalizados, a equipe de pesquisa analisou o fluxo do processamento dos casos, quantificando as peças presentes nos autos e a data de cada uma, além de analisar qualitativamente o conteúdo das peças técnicas e os argumentos acionados nas peças jurídicas, como denúncia, defesa, sentenças etc. Os autos dos processos analisados, em linhas gerais, apresentam a seguinte composição: BO, portaria de instauração de inquérito policial, laudos periciais e depoimentos, além do que chamamos de “peças conclusivas”: o relatório de investigação da polícia civil, o posicionamento do MP e o do juiz.
Inquérito policial
A portaria é a peça inaugural do inquérito. Com ela, o delegado atesta que a ocorrência foi a ele reportada, instaura o procedimento investigativo e requer uma lista de providências. Nos processos digitalizados, percebemos que o delegado, em geral, sumariza a ocorrência nos mesmos termos que os policiais militares envolvidos definem a situação em seus depoimentos, no momento do registro do BO. O trecho abaixo, retirado de uma portaria de inquérito redigida por um delegado de polícia e presente nos autos de um dos processos analisados é exemplar:
Chegou ao meu conhecimento por meio de mensagem intranet oriunda do 72º DP que, na data de hoje, policiais militares foram vítimas do crime de resistência, quando tentavam deter um indivíduo que havia roubado uma motocicleta, o qual, na ação delituosa, deflagrou tiros contra a guarnição militar e acabou sendo atingido no revide, falecendo.
Após esse breve resumo, o delegado dá por instaurado o inquérito e determina a juntada de peças diversas: cópia do registro de ocorrência, das mensagens de intranet e os autos de exibição e apreensão de armas são os mais frequentes.
Os laudos periciais são variados e correspondem a uma parte significativa dos autos dos processos. Nos 22 processos analisados, foram encontrados diversos tipos de laudos. Em geral, o primeiro a ser produzido é o relatório de recognição visuográfica de local de crime, que é feito pela própria equipe do DHPP. Em todos os processos analisados, tal perícia inicial foi realizada no dia ou, no mais tardar, no dia seguinte da ocorrência, com a preservação do local sendo feita pela PM. Os policiais também se dirigem ao hospital para onde foram levados os corpos e/ou feridos. Nesse documento, portanto, os policiais civis descrevem o local dos fatos, os vestígios encontrados e as características físicas das vítimas - uma vez mais designados como autores de crime de resistência.
Um segundo laudo que aparece em praticamente todos os processos (19 de 22) é o laudo de perícia de local, produzido pela polícia científica. Esse documento colige fotografias do local do crime colhidas na data da ocorrência, com imagens de cápsulas, projéteis, perfurações em veículos e paredes e, invariavelmente, manchas de sangue no chão. Nesses documentos, a distribuição desses elementos pelo local do crime é meramente descrita pelos peritos, sem gerar qualquer narrativa sobre a dinâmica dos fatos - que corrobore ou contrarie a versão dada em depoimento.
O laudo necroscópico também está presente em todos os processos. Regularmente, ele é realizado em data próxima da ocorrência ou no mesmo dia. Esse documento serve para atestar a causa da morte e traz a indicação de todos os ferimentos da vítima, com uma detalhada descrição das lesões nas diversas regiões do corpo, a identificação dos pontos de entrada, alojamento e saída dos projéteis, com a apresentação de fotos e croquis. Embora não disponhamos do conhecimento técnico adequado para a análise desses laudos, algumas observações informadas pela literatura especializada (CAAF 2018) ao menos levantam dúvidas sobre a veracidade das narrativas de confronto. Em diversos casos, é possível observar um número elevado de tiros concentrados em regiões letais do corpo, especialmente cabeça e tórax; também é possível identificar indícios de tiros a curta distância, trajetórias de cima para baixo e a existência de um número significativo de orifícios de entrada pelas costas dos indivíduos - elementos geralmente associados a casos de execução sumária -, além da existência de tiros nas mãos e braços, o que sugere tentativa de defesa desarmada, bem como nos pés e nas nádegas, o que pode indicar tortura.
A respeito do Rio de Janeiro, Misse et al. (2013) observaram que o auto de exame cadavérico (peça análoga ao laudo necroscópico) era a principal peça técnica utilizada para consubstanciar denúncias contra os policiais. No entanto, os autores constataram que mesmo a presença de elementos que corroboravam teses de uso excessivo da força ou execução sumária eram desconsiderados em juízo devido à ausência de informações adicionais aos indícios presentes no laudo, sobretudo a ausência de perícia de local, raramente realizada no Rio de Janeiro. A indiferença do Judiciário em face das evidências de execução presentes nos laudos levou Farias (2014) a refletir sobre a “zona de tatuagem” - como é chamado o principal indício de tiro de curta distância nos laudos cadavéricos - como o carimbo do Estado no corpo do favelado.
Há, ainda, em quase todos os processos (20 dos 22) examinados, o laudo de exame residuográfico, que procura resíduos de disparo de arma de fogo nas mãos dos envolvidos na ocorrência. Apesar de frequente, esse laudo se apresenta como inconclusivo. O resultado negativo apresentado para o exame é descrito nos laudos como “circunstância que pode se substanciar em uma das seguintes hipóteses: efetiva inexistência de partículas de chumbo na amostra suspeita analisada” ou “existência de partículas de chumbo na amostra suspeita analisada, porém, em concentração abaixo do limite de detectabilidade inerente à sensibilidade do reagente químico”, de modo que a “conclusão sobre o fato fica condicionada à apreciação de outras evidências” (trechos repetidamente encontrados em laudos de exame residuográfico presentes em processos analisados).
Para além desses, são também comuns o laudo de exame em arma de fogo (13 processos) e o laudo de exame de peças e confronto balístico (20 processos). O primeiro consiste na descrição das armas apreendidas (calibre, condições, proprietário registrado, se há numeração ou se está raspada etc.) e no registro da existência ou não de vestígios de disparo recente, bem como dos resultados de testes de verificação da possibilidade de realização ou não de disparos. O segundo registra os resultados da confrontação de ranhuras e deformações características de estojos, cápsulas e projéteis encontrados nos locais da ocorrência ou em cadáveres, e as produzidas, em ambiente controlado, pelas armas apreendidas.
Menos frequentes, estão presentes ainda o toxicológico - uma vez que, como vimos, as ocorrências que envolvem drogas não são muito comuns -, bem como os que registram os resultados de perícia feita em aparelho telefônico, roupas e dinheiro apreendidos. Em apenas um dos casos, foi realizada ainda a simulação de ocorrência, em que se tentou reconstituir a dinâmica dos fatos segundo a narrativa dos policiais envolvidos.
Outra parcela significativa dos autos analisados é composta pelos depoimentos. Existem aqueles que são colhidos no dia da ocorrência e que integram o BO, e aqueles dados por pessoas chamadas a depor na delegacia no curso da investigação. Nos 22 processos analisados, constam depoimentos de 73 policiais, 41 vítimas dos crimes imputados às pessoas que acabaram mortas, de 28 familiares ou amigos desses “autores-vítimas” fatais, 12 testemunhas de alguma forma relacionadas com a ocorrência de resistência propriamente dita e 5 pessoas presas ou apreendidas.
Como mencionamos, os policiais depõem no momento de registro da ocorrência, na qualidade de vítimas, condutores e testemunhas. Além de mais numerosos, seus depoimentos chamam a atenção pela uniformidade. Os discursos são padronizados: os policiais-vítimas relatam a situação em que se deu o encontro com os “suspeitos”, a “injusta agressão”, o revide fatal e o socorro; policiais condutores e testemunhas relatam invariavelmente a mesma dinâmica com um mínimo deslocamento de ponto de vista. O segundo tipo de depoimento mais frequente é aquele dado pelas vítimas do crime inicialmente imputado ao morto e que, no mais das vezes, não presenciaram a morte. São, em geral, depoimentos de vítimas de roubos, que relatam quais e de que maneira seus pertences foram subtraídos e as características físicas do criminoso. Por vezes, reconhecem o autor do roubo a partir de fotografias do cadáver apresentadas pelos policiais. São, portanto, depoimentos decisivos para a incriminação dos mortos.
Esse mesmo efeito tende a ser produzido pelos depoimentos dos familiares e amigos da vítima fatal. Esses depoentes são indagados sobre os antecedentes de seu familiar, sobre seus “vícios” e hábitos. Emergem, então, relatos de desemprego prolongado e falta de ocupação, de passagens por prisões e unidades de internação, e de uso de álcool e drogas que parecem compor a figura de um “mau elemento”, cuja morte parece, de partida, plausível, senão de todo justificável. Tais informações desenham para uma “caracterização moral da vítima” (Misse et al. 2013) que colabora com a culpabilização dela por sua própria morte.
Peças Conclusivas
Nas últimas páginas dos autos estão as peças conclusivas. Operadores do direito se manifestam em diversos momentos do processo e de diversas formas, mas, para fins deste estudo, foram escolhidas apenas aquelas que sumarizam os trabalhos realizados e criam um relato jurídico dos fatos.
A primeira delas que aqui nos interessa é o relatório final da investigação, feito pelo delegado da DHPP que conclui o inquérito e envia o processo para o MP, para que lá se decida pela denúncia, pelo arquivamento ou seja devolvido com a requisição de outras diligências investigativas da delegacia. Tais documentos descrevem quais diligências foram tomadas, inclusive de modo tópico, apontando perícias requeridas e realizadas, depoimentos colhidos etc. Em um dos processos analisados não foi encontrado o relatório. Nos 21 restantes, dois foram realizados em menos de um mês, um entre dois e seis meses, oito entre seis meses e um ano, seis entre um ano e um ano e meio, dois entre um ano e meio e dois anos, e um após dois anos do ocorrido.
Vale ressaltar que essa documentação mais apresenta um relatório de atividades do que uma investigação, uma vez que, burocrática e protocolarmente, a autoridade policial enumera todas as diligências feitas e a localização nos autos das correspondentes peças produzidas por cada uma delas. Não existe, como seria de se esperar, a exposição pormenorizada das conclusões da investigação, ponderando sobre as evidências e os diversos indícios coligidos, confrontando-os entre si e com as versões dadas nos diversos depoimentos. Ao invés de apresentar seus próprios argumentos e conclusões, o delegado tende a definir a situação de “resistência seguida de morte” de maneira sumária, apoiando-se larga e acriticamente na versão dos policiais envolvidos na ocorrência, por vezes corroborando a inocência deles e a culpabilidade do morto. Ao final, sugerem uma solução jurídica para o ocorrido, que, na maioria das vezes, é o arquivamento pela excludente de ilicitude na ação dos policiais. O trecho a seguir foi extraído do relatório de investigação de um dos processos analisados e é exemplar do conteúdo deste tipo de peça.
[...] Tais declarações corroboram a versão apresentada pelo policial militar [NOME 1]. Ademais, verifica-se no laudo necroscópico que [NOME 2] encontrava-se embriagado (concentração de 2,2 g/l de álcool no sangue). Apesar de [NOME 3] mentir ao dizer que não conhecia [NOME 1], os fatos demonstraram que [NOME 1] agiu de forma correta, sem excessos, o que sempre se espera de um policial militar.
O laudo de exame de munição consta às fls. 58/60 e o laudo das armas envolvidas na ocorrência consta às fls. 91/94.
O laudo de local de crime foi juntado às fls. 96/99. Laudo residuográfico consta às fls. 101/106.
Por fim, o laudo necroscópico do autor consta acostado às fls. 127/130.
Este é o relatório final o qual apresento à apreciação de Vossa Excelência para as providências e deliberações necessárias.
Os dados colhidos durante a investigação não permitiram outra conclusão se não aquela que não permite estabelecer de forma concreta e fidedigna qualquer outra hipótese que não seja de resistência seguida de morte, agindo os agentes da lei em legítima defesa própria e de terceiro e no estrito cumprimento do dever legal. Tal conclusão torna-se mais evidente diante da sede e número de tiros encontrados nas vítimas,8 que no caso parecem dar guarida a tese de resistência. De outra forma, não existem outras testemunhas presenciais que permitissem contradizer o que os policiais militares afirmaram em seus depoimentos ou mesmo outras provas materiais que se pudesse perquirir. Os dois adolescentes, assim como o indivíduo maior, possuíam antecedentes criminais e infracionais, alguns que denotam sua periculosidade. Infelizmente os adolescentes viveram pelas armas e morreram pelas mesmas. Na ação não há evidências de que tivesse havido execução pura e simples, sendo o relato dos policiais, medianamente coeso e indo de encontro as provas materiais. Diante do fato de ter se esgotado e igualmente preservado as provas até aqui existentes, não vislumbramos outra hipótese a não ser a de dar por encerrado os trabalhos de Polícia Judiciária. (Grifos do documento original)
A segunda peça conclusiva analisada foi a promoção de arquivamento ou denúncia, realizada pelo membro do MP. É responsabilidade dessa instituição avaliar o inquérito e decidir, com base no que ele apresenta, se o caso deve continuar sendo investigado, se pode ser arquivado ou se será realizada a denúncia. Vale ressaltar que o MP é constitucionalmente o órgão responsável por operar o controle civil da atividade policial, portanto é responsável por zelar por um uso adequado da força por parte das forças de segurança.
A análise dos posicionamentos do MP nos 22 processos indica que o promotor de justiça tende a endossar abertamente a versão policial, chegando por vezes a aprimorá-la, tornando-a mais coesa e articulada. Como os delegados, os promotores tampouco costumam evocar o conteúdo dos laudos técnicos periciais. Quando o fazem, é porque, via de regra, os dados parecem corroborar a versão policial. Em casos como aqueles acima destacados, nos quais existem elementos que parecem perturbar a narrativa do confronto, esses fatores ou são relativizados, ou solenemente ignorados. É também sistemático o esforço dos promotores para incriminar e responsabilizar o morto pelo seu destino; tão sistemático quanto o pedido de arquivamento. O posicionamento do MP do estado de São Paulo tende a adotar semelhante indiferença à do MP do estado do Rio de Janeiro, como observado nas pesquisas de Misse et al. (2013) e de Zaccone (2013):
[...] muitos promotores acabam por operar uma máquina burocrática, que se resume ao relato dos policiais ao apresentarem as ocorrências em sede policial. A ineficiência da máquina é o próprio fundamento para muitos pedidos de arquivamento. [...]. Abstraindo os fatos objetos da investigação, algumas decisões de arquivamento propõem de forma genérica o enquadramento da conduta dos policiais àquela prevista no Código Penal como a da legítima defesa, sem fazer referência específica a nenhum dos elementos produzidos no inquérito. (Zaccone 2013, 88-89)
O trecho a seguir, extraído de uma promoção de arquivamento presente nos autos de um dos processos analisados exemplifica a postura do MP de São Paulo nesse tipo de ocorrência:
As vítimas fatais praticaram roubos, a mão armada, contra as vítimas [NOME 1] e [NOME 2]. Os policiais militares ao avistarem [NOME 3] e [NOME 4] em atitude suspeita resolveram abordá-los, todavia, eles resistiram à ordem de parada mediante violência, passando a efetuar disparos de arma de fogo contra os policiais, os quais para se defenderem e também prenderem os agentes, reagiram e efetuaram disparos de arma de fogo contra [NOME 3] e [NOME 4].
Assim sendo, não havendo elementos que demonstrem que houve excesso na conduta praticada pelos policiais e considerando que o conjunto probatório amealhado nos autos aponta que eles reagiram a uma injusta agressão, coibindo ação criminosa, não vislumbro justa causa para ação penal.
Ante todo o exposto, requeiro o ARQUIVAMENTO do presente inquérito policial, com as ressalvas do art. 18 do Código de Processo Penal.
Apurou-se, por fim, que [NOME 1], mesmo sendo ainda um adolescente, já apresentava registro de atividade infracional anterior (conforme boletins de ocorrência juntados a fls. 34/39). Não há, portanto e ao menos por ora, como afastar a versão apresentada pelos policiais [NOME 2] e [NOME 3] no sentido de que tenham agido sob as excludentes da legítima defesa e do estrito cumprimento do dever legal: eles iniciaram a perseguição ao autor de um roubo de motocicleta, que não apenas não atendeu à ordem de parada como efetuou disparos de arma de fogo contra si. Naquele momento, importava defender as suas próprias integridades, além de fazer cumprir a lei e manter a ordem. Eles, portanto, usaram moderadamente dos meios necessários para repelir a injusta agressão de [NOME 1] além de cumprir o seu dever como policiais. Diante de todo o exposto e não podendo afastar a ocorrência de legítima defesa e de estrito cumprimento do dever legal, requer o ARQUIVAMENTO do presente inquérito policial e do inquérito policial militar apensado, sem prejuízo do disposto no art. 18 do Código de Processo Penal. (Grifos do documento original)
A terceira peça conclusiva é a decisão judicial, em que o juiz acata o arquivamento do inquérito ou, em caso de oferecimento de denúncia, a recebe. A seguir, um trecho exemplar dessas telegráficas manifestações judiciais, extraído de um dos processos analisados:
Vistos.
Nos termos da fundamentação expendida pelo ilustre representante do Ministério Público, determino o arquivamento do presente inquérito policial, ressalvando o previsto no art. 18 do Código do Processo Penal.
Proceda-se às anotações e comunicações de praxe.
2) Diante da concordância do Ministério Público (fls. 258/258 verso) e nos termos dos arts. 118/120 do Código de Processo Penal, defiro a liberação da arma à Polícia Militar. Providencie-se.
Intime-se.
Em todos os processos concluídos analisados, o pedido de arquivamento foi concedido, e o juiz determinou a devolução das armas apreendidas à polícia.
Considerações Finais
Os resultados da pesquisa nos levam a refletir sobre algumas especificidades das circunstâncias em que ocorrem e o modo como são processadas as mortes decorrentes de intervenção policial na cidade de São Paulo, além de chamar a atenção para o respaldo institucional à atuação policial letal oferecido pelas instituições do Sistema de Justiça Criminal. Observamos que a polícia, sobretudo a militar, mata principalmente jovens negros do sexo masculino, predominantemente em áreas periféricas da cidade e em situações de repressão aos crimes contra o patrimônio. Em 2012, essas mortes nem mesmo eram registradas como homicídios, embora fossem investigadas por uma delegacia especializada em homicídios, e as vítimas fatais sequer figuravam como vítimas nos BOs. As perícias técnicas realizadas e os depoimentos colhidos nos inquéritos demonstraram-se protocolares e irrelevantes para a formulação das peças conclusivas, que solicitavam o arquivamento dos casos com formulações padronizadas, a despeito da existência de elementos que pudessem confrontar a versão dos policiais.
Algumas observações conclusivas do estudo ganham maior relevância quando contrastadas com o caso do Rio de Janeiro, onde há um acúmulo maior de pesquisas sobre o tema. Se, no Rio, a maioria dos chamados “autos de resistência” parece ocorrer em situações descritas pela polícia como operações de combate ao tráfico de drogas, a maior parte das ocorrências de “resistência seguida de morte” na cidade de São Paulo é justificada como decorrente de situações de repressão à prática de roubos. Enquanto há quase sempre apreensão de drogas no Rio de Janeiro, em São Paulo, ela se dá raramente. Tais dados revelam focos distintos da repressão policial e do uso da violência letal em cada contexto. Destaca-se também que, no Rio de Janeiro, as mortes ocorrem principalmente em vielas de favela por policiais que realizam incursões em operações de maior monta. Em São Paulo, as mortes ocorrem nas ruas e avenidas asfaltadas da cidade, com a presença de veículos arrolados em praticamente todas as ocorrências analisadas.
Desde os pioneiros trabalhos de Verani (1996) e Cano (1997) sobre os chamados “autos de resistência” - com base em casos que eram ainda processados no âmbito da justiça militar - até os estudos mais recentes, como o de Misse et al. (2013) e o de Zaccone (2013) sobre o processamento desses casos na justiça comum ou sobre a luta dos familiares de vítimas da violência de Estado por justiça (Farias 2014; Araújo 2012), a indiferença legal e a impunidade despontam como problemas centrais e determinantes para a continuidade das políticas de extermínio no Rio de Janeiro. Os dados acima apresentados sobre São Paulo corroboram a prevalência desse problema, no entanto colocam em xeque algumas das explicações para a impunidade no Rio de Janeiro.
No livro Quando a polícia mata (Misse et al. 2013), concluiu-se que, devido à ausência de testemunhas e perícia de local, prevalecia a versão apresentada pelos policiais na ocasião do registro de ocorrência, sem que houvesse empenho da Polícia Civil e do MP para apurarem as circunstâncias da morte. Nos casos que chegavam ao Tribunal do Júri, o julgamento se desenvolvia em torno da caracterização moral da vítima, com o objetivo de definir se ela podia ou não ser responsabilizada pela sua própria morte, pois não havia outros elementos para comprovar ou refutar a versão apresentada pelos policiais. A pesquisa realizada em São Paulo revela que, a despeito do maior empenho da Polícia Civil em arrolar testemunhas e realizar perícias técnicas, os casos continuam centrados na caracterização moral da vítima e descartam de antemão a hipótese de abuso da força.
Saltam aos olhos a presença de testemunhas não policiais nos BOs e os inquéritos de “resistência seguida de morte” em São Paulo. A maioria delas são vítimas dos roubos atribuídos às pessoas mortas pela polícia, que são chamadas a reconhecer o corpo da vítima enquanto autor do fato. Mas existem ainda depoimentos de familiares do morto e de pessoas que moram ou trabalham perto do local da morte, em alguns casos também pessoas presas ou apreendidas. Ainda que, normalmente, as testemunhas não tenham presenciado o momento da morte, elas tendem a oferecer depoimentos que reforçam a versão apresentada pelos policiais. Isso difere bastante com relação ao Rio de Janeiro, onde as únicas testemunhas presentes nos registros de ocorrência tendem a ser os próprios policiais autores do homicídio e, nas fases posteriores do inquérito, costumam ser chamadas a depor apenas as pessoas que fizeram o reconhecimento do corpo, normalmente a mãe.
A pesquisa realizada por Misse et al. (2013) no Rio de Janeiro destaca como um dos principais empecilhos à apuração das circunstâncias da morte a ausência de perícia de local. Devido às mortes ocorrerem principalmente em favelas, rotuladas como “áreas de risco”, as equipes de polícia técnica alegavam não haver segurança para realizar exames periciais no local do fato. Em todas as ocorrências em favela, os corpos eram removidos para o hospital mais próximo sob a alegação de prestação de socorro, e nenhuma equipe retornava ao local para realizar perícias. A ausência de perícia de local dificulta não apenas a apuração das circunstâncias, mas também a “individualização da conduta” dos policiais nos casos em que resta comprovado o abuso da força. Devido ao uso disseminado de fuzis por policiais do Rio de Janeiro, os projéteis não ficam alojados nos corpos das vítimas (são transfixantes) e, sem perícia de local, esses projéteis não são recolhidos para a realização de um exame de confronto de balística que possa atestar qual o policial responsável pelos disparos. Já em São Paulo, todas as mortes decorrentes da ação policial são investigadas pelo DHPP, que realiza tanto o exame visuográfico quanto a perícia de local em praticamente todos os casos. É também comum a realização de exame de confronto de balística com projéteis encontrados no local do fato ou alojados no corpo da vítima.
Os inquéritos elaborados pela Polícia Civil em São Paulo são, sem dúvida, mais completos que aqueles realizados no Rio de Janeiro; no entanto, as perícias técnicas e os depoimentos colhidos não costumam ser levados em conta nas peças conclusivas presentes nos autos. Em um dos processos analisados, por exemplo, a perícia constatou que a arma apreendida em posse da vítima fatal era um simulacro de arma e, portanto, incapaz de produzir tiro. Tal informação foi ignorada pelo MP, que solicitou à justiça o arquivamento do caso sem sequer mencionar que a vítima estava tecnicamente inviabilizada de resistir à prisão com uma arma de brinquedo. Como colocado acima, em 12% dos casos não houve apreensão de arma de fogo em posse da vítima fatal que, em tese acatada pelas autoridades, teria resistido à ação da polícia de maneira a justificar a sua morte.
A análise dos processos elaborados em São Paulo permite identificar um elevado grau de apoio de agentes estatais ao uso exacerbado da violência letal e militarizada, principalmente por parte dos promotores que, por prerrogativas constitucionais, deveriam impor barreiras à letalidade policial. Tal apoio institucional é uma condição de possibilidade para a naturalização da máxima “bandido bom é bandido morto”, pensamento não só antidemocrático como anticivilizatório, que de chavão demagógico se fez programa de governo.