Introdução
O debate sobre a difusão da democracia pelo mundo e sobre os problemas na instauração e no desenvolvimento do regime tem modificado seu foco de interesse ao longo do tempo. Das condições para a emergência da democracia em contextos autoritários, como os da América Latina e do Leste da Europa nos anos 1980 e 1990, passou-se para a qualidade do regime em democracias novas e antigas, desde os anos 2000. Mais recentemente, o foco se direcionou a um suposto declínio da democracia no mundo, inclusive na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Um marco dessa discussão é a publicação em 2015 da edição de 25 anos do Journal of Democracy, sob o título de “Is Democracy in Decline?”. O debate considera o número de regimes e reversões autoritárias, o estado do conjunto de direitos políticos e civis, a ascensão de movimentos políticos e líderes que ameaçariam liberdades individuais, a insatisfação com a democracia e o apoio a opções políticas autoritárias.
O artigo se propõe a inserir nesse debate a América Latina, onde questões destacadas na discussão têm sido relevantes, como a ascensão de forças políticas e líderes com discursos e práticas autoritárias e a perda de confiança da população nas instituições representativas, de câmaras legislativas a partidos e políticos.
Depois de 45 anos desde o início da chamada terceira onda de democratização e de, ao menos, três décadas desde as transições para a democracia em muitos países latino-americanos, dados do Latinobarómetro e do projeto Varieties of Democracy (V-DEM) mostram que indicadores, como o apoio e a satisfação com o regime, a confiança nas instituições e o Liberal Democracy Index (LDI), atingiram ou voltaram a apresentar os piores níveis das suas séries históricas na América Latina. Esse diagnóstico leva à conclusão de que a democracia está em declínio na região. Para explicar a tendência, os perfis políticos ambivalente e autoritário da população latino-americana foram investigados com dados das rodadas de 2002, 2009, 2016 e 2018 do Latinobarómetro. Os resultados indicam que esses perfis se compõem de pessoas jovens, com escolaridade baixa, desconfiadas das instituições e insatisfeitas com a democracia.
Os achados do artigo estão em sintonia com outros trabalhos recentes sobre o declínio da democracia no mundo em, ao menos, dois pontos. Foa e Mounk (2016) também encontraram que o perfil autoritário em países ocidentais desenvolvidos se compõe de jovens. Por sua vez, duas das demais características dos perfis políticos ambivalente e autoritário na América Latina, a desconfiança das instituições e a insatisfação com a democracia, se alinham à explicação de Mounk (2019) para o declínio, que refletiria a insatisfação popular com uma situação de liberalismo antidemocrático, típica de regimes que, por um lado, respeitam o Estado de direito e protegem minorias e, por outro, falham em traduzir preferências populares em políticas públicas. Essa insatisfação estimularia ainda a ascensão de movimentos e líderes que ameaçam liberdades individuais, agravando o quadro de erosão democrática.
No próximo tópico, faz-se uma discussão teórica sobre o declínio da democracia. Em seguida, descreve-se a trajetória de indicadores relacionados com o regime em uma perspectiva longitudinal, o que leva à constatação de que a democracia está em declínio na América Latina. Ainda nesse item, as hipóteses são apresentadas. O terceiro tópico trata dos aspectos metodológicos. A ele, segue-se uma análise sobre os fatores explicativos dos perfis políticos ambivalente e autoritário da população latino-americana e sobre as interações entre variáveis de atributos individuais e contextuais. Para concluir o texto, as considerações finais sintetizam os resultados e as contribuições do artigo.
O debate atual sobre o declínio da democracia
As preocupações com as democracias existentes foram das transições e das consolidações (Gunther, Diamandouros e Puhle 1995; Linz e Stepan 1999; O’Donnell, Schmitter e Whitehead 1986), típicas das primeiras décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial e da terceira onda de democratização (Huntington 1991), ao enfoque na qualidade do regime (Diamond e Morlino 2004; Levine e Molina 2011; O’Donnell, Vargas Cullell e Iazzetta 2004).
Paralelamente, autores como Norris (1999 e 2011) e Inglehart e Welzel (2005) têm centrado suas atenções nas atitudes individuais com relação à democracia e constatado que a convivência com o regime torna os cidadãos mais críticos, assim como o avanço das condições de vida fomenta valores de autoexpressão, o que favoreceria a tolerância e a democracia. Por outro lado, uma corrente crítica da teoria política (Alvarado-Espina 2018; Crouch 2004; Merkel 2014; Mouffe 2000; Streeck 2011) vem traçando cenários de crise no regime com base em paradoxos e problemas no seu funcionamento.
A visão pessimista adquiriu ressonância no campo do institucionalismo a partir da publicação da edição de 25 anos do Journal of Democracy. Com alguma dissonância (Levitsky e Way 2015; Schmitter 2015), os artigos apresentam enfoques e evidências distintas para apontar um declínio em número, desempenho, predomínio geopolítico e atratividade das democracias no mundo (Diamond 2015; Fukuyama 2015; Kagan 2015; Plattner 2015).
Foa e Mounk (2016 e 2017) vão além e, tendo democracias da América do Norte e da Europa como referência, identificam um risco de desconsolidação. Para eles, com base nas edições de 1995 a 2014 do World Values Survey, os cidadãos não só estão mais críticos dos seus líderes como mais cínicos sobre o valor da democracia, menos esperançosos de que possam influenciar as políticas públicas e mais dispostos a apoiar opções autoritárias. Também teria havido uma inversão na opinião das gerações. Se, não há muito tempo, jovens eram mais entusiastas dos valores democráticos do que idosos, hoje, segundo os autores, o respaldo ao radicalismo político é maior entre jovens, enquanto o apoio à liberdade de expressão é menor.
Foa e Mounk (2016) rejeitam ainda a avaliação de que o apoio crescente a formas autoritárias de governo se concentra entre os chamados perdedores da globalização, já que os autores também encontram respaldo a elas entre jovens e ricos. Nesse segmento, o apoio a que militares governem passou de 6% para 35% entre 1995 e 2011 nos Estados Unidos.
Essas opiniões estariam cada vez mais se refletindo no comportamento eleitoral. Partidos e candidatos que se voltam contra o establishment político, buscam concentrar poder e questionam normas democráticas têm sido exitosos em muitos países pelo mundo. Para Foa e Mounk (2017), as democracias consolidadas são estáveis porque seus cidadãos consideram que o regime é legítimo e que as opções autoritárias são inaceitáveis; mas, quando uma minoria significativa já não pensa assim e vota em candidatos antissistema que desprezam elementos constitutivos do regime, pode-se dizer que a democracia está se desconsolidando.
Em resposta a Foa e Mounk (2016), Inglehart (2016) argumenta que as tendências que os dois autores identificam são um efeito do momento pelo qual passam os Estados Unidos, onde a democracia teria se tornado disfuncional, visto que a maioria da população teria sentido um declínio da sua renda associado a um aumento da desigualdade. Nessas condições, em que a sobrevivência está em xeque, seria previsível que houvesse um impacto no apoio à democracia. A perspectiva de longo prazo para o regime seria, de fato, sombria na hipótese de que essas condições se tornem permanentes.
Do diagnóstico de declínio ou desconsolidação da democracia, o debate se direcionou a tentativas de explicar essa tendência. Mounk (2019) a associa à insatisfação com o regime, que, por sua vez, se alimentaria de uma situação de liberalismo antidemocrático. A ascensão de movimentos e líderes que atentam contra liberdades seria, então, um reflexo da insatisfação popular com regimes que, por um lado, respeitam o Estado de direito e protegem minorias e, por outro, falham em traduzir preferências populares em políticas públicas.
As origens dessa falha seriam duas: 1) a atuação de instituições que retiram áreas de política e decisões do controle democrático, cujos principais exemplos são agências burocráticas autônomas, bancos centrais, cortes judiciais e tratados comerciais; 2) o insulamento dos políticos com relação a quem os elege, em razão do papel crescente do dinheiro na política e do distanciamento entre as experiências pessoais e profissionais dos políticos, assim como suas condições de vida e a situação da maioria dos eleitores.
Na avaliação de Howe (2017), a insatisfação com a democracia é insuficiente para explicar a tendência de declínio do regime. Segundo ele, os sentimentos antidemocráticos se vinculam mais a mudanças corrosivas que estariam remodelando as sociedades. Para ilustrar esse ponto, o autor mostra que não há diferença significativa nos Estados Unidos entre quem tem mais ou menos confiança nas instituições políticas com relação às opiniões sobre líder forte e governo militar e ao apoio a eleições livres, direitos civis e democracia. Não seria, então, a insatisfação com o funcionamento do regime que explica o ceticismo com a democracia como princípio.
Se, como mostrou Norris (1999), cidadãos críticos podem seguir comprometidos com o regime, não se passaria o mesmo com quem é propenso a aceitar suborno, sonegar impostos, receber benefícios direcionados a outros e evitar multas. Segundo Howe (2017), aqueles que veem menos problemas nessas atitudes são mais favoráveis a líder forte e governo militar e apoiam menos eleições livres, direitos civis e democracia. A indiferença quanto ao regime, então, se entrelaçaria com uma gama ampla de atitudes antissociais e autointeressadas. O autor encontra que a avaliação de que essas atitudes são justificáveis é maior entre os jovens e vai crescendo nesse segmento com o passar do tempo. Tudo isso poderia estar relacionado com o individualismo crescente das gerações mais jovens.
Por outro lado, Norris e Inglehart (2019) sustentam que a ascensão de movimentos e líderes que atentam contra liberdades individuais é a conversão em votos de uma reação ao que chamam de “revolução silenciosa”. Transformações de longo prazo nas sociedades ocidentais desenvolvidas teriam melhorado as condições de vida e levado a uma revolução nos valores culturais, em que o instinto de sobrevivência teria cedido lugar à autoexpressão, na forma de valores pós-materialistas, sobretudo para as novas gerações. Com a perda de espaço, além das dificuldades econômicas e do crescimento da diversidade social, grupos que preservam valores conservadores teriam reagido e se aproveitado do interesse menor dos jovens em votar, resultando na eleição de representantes que canalizam os temores desses grupos por meio de uma narrativa de “nós” contra “eles”.
Segundo Norris e Inglehart (2019), os valores conservadores são mais fortes entre pessoas nascidas no período entre guerras, sem nível universitário, da classe operária, religiosas, brancas, do sexo masculino e residentes em zonas rurais. Conforme sejam substituídas pelas novas gerações com nível universitário e residentes em metrópoles etnicamente diversas, os efeitos eleitorais da sua reação cultural se desvaneceriam.
Em resumo, há uma discrepância clara no último grupo de autores destacados com relação a pelo menos quatro aspectos: 1) a explicação para a tendência de declínio da democracia; 2) o entendimento da ascensão de movimentos e líderes que ameaçam liberdades individuais como causa ou consequência do declínio; 3) a avaliação da tendência declinante como duradoura ou passageira; 4) o papel das gerações mais jovens no processo.
Os próximos tópicos se concentrarão em inserir a América Latina nesse debate para apresentar evidências e dar respostas, ao menos parciais, às discrepâncias enumeradas acima. De início, indicadores usuais da literatura serão aplicados ao contexto latino-americano, utilizando séries históricas completas de pesquisas de opinião com abrangência regional e fornecendo evidências para os pontos 1 e 3. Por sua vez, o tópico seguinte esclarecerá, em alguma medida, as questões em aberto nos itens 2 e 4, testando fatores extraídos da literatura para explicar o perfil autoritário na América Latina em quatro pontos no tempo.
O panorama de declínio da democracia na América Latina
Norris e Inglehart (2019) sugerem que uma avaliação sobre o declínio da democracia parta do entendimento de Linz e Stepan (1999) para a consolidação do regime e priorize a dimensão das atitudes individuais com relação à democracia, mais especificamente se a maioria da população a considera como a melhor forma de governo.1 Para Norris e Inglehart, também é necessário que a avaliação leve em conta aspectos como a satisfação com a democracia e a confiança nas instituições representativas, sobretudo parlamentos e partidos. A análise que se fará neste tópico aplica essas considerações ao contexto latino-americano e conclui que a democracia está em declínio na região. Os países enfocados são: Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
O Latinobarómetro tem séries históricas a partir de 1995 para as variáveis sugeridas por Norris e Inglehart (2019). Depois de ao menos três décadas desde as transições para a democracia em muitos países latino-americanos, o apoio e a satisfação com o regime e a confiança nas instituições, assim como o LDI, atingiram ou voltaram aos piores níveis das respectivas séries. Começando pelo LDI, que congrega os princípios eleitoral e liberal da democracia, com cinco componentes para o primeiro e três para o segundo e um total de 69 indicadores, o valor médio para os 17 países considerados foi de 0,49 em 2018, em uma escala que vai de 0, a pior situação, a 1, a melhor (ver Gráfico 1). Esse valor só não é pior do que os de 1990 a 1992, quando as transições para a democracia ainda não haviam se completado em alguns casos da região, e iguala os de 1993 e 1994. Logo, a América Latina teve, em 2018, o segundo pior LDI desde 1992. Ademais, foi a primeira vez que o valor médio ficou abaixo de 0,50 desde 1995. A trajetória dos dados apresenta variações pequenas entre os anos, com uma tendência ascendente de 1990 a 2004, estabilidade nos maiores níveis da série entre 2004 e 2006 e, a partir de então, uma queda até 2018. A variação entre os países foi grande em 2018, de 0,06 para a Nicarágua a 0,83 para a Costa Rica (para os dados de 2018 por país em todas as variáveis analisadas neste tópico, consultar o Apêndice A).
No caso do apoio à democracia, a série histórica do Latinobarómetro, iniciada em 1995, teve seu ponto mais baixo em 2001, com 47,38% que responderam, na média regional, que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo, enquanto o pico foi em 1997, com 62,65% (ver Gráfico 2). Na pesquisa relativa a 2018, 47,57% responderam que preferem a democracia, o segundo pior valor da série. Os percentuais de 2001 e 2018 são os únicos abaixo dos 50%. A trajetória dos dados é descendente a partir de 2010, com uma queda acentuada, ainda que não seja ininterrupta, que vai de 61,14% de apoio ao regime em 2010 a 47,57% em 2018. A variação entre os países em 2018 foi de 27,7% em El Salvador a 74,5% na Venezuela (consultar Apêndice A). O apoio à democracia entre os(as) venezuelanos(as) contrasta com a situação do país no LDI, a segunda pior entre os 17 casos considerados aqui, só à frente da Nicarágua.
A satisfação com a democracia teve uma trajetória semelhante à do apoio ao regime na série histórica, que também se inicia em 1995. A soma dos percentuais de “muito satisfeito” e “mais bem satisfeito” em 2018 foi de 24,5%, o menor valor no período (ver Gráfico 3). O ano em que se chegou mais perto disso foi 2001, com 24,73%. Os índices de 2001 e 2018 são os únicos abaixo de 25%. Na trajetória dos dados, a tendência é descendente a partir de 2010, com uma queda acentuada, ainda que não seja ininterrupta, que vai de 44,25% de satisfação com a democracia em 2010 a 24,5% em 2018. Assim como no apoio ao regime, a variação entre os países foi grande em 2018, de 8,7% no Brasil a 46,8% no Uruguai (consultar Apêndice A).
A confiança nas instituições democráticas é outra dimensão em que o declínio é evidente. Partidos políticos, Poder Legislativo e governos voltaram em 2018 aos níveis mais baixos de confiança das respectivas séries históricas, que se iniciam em 1995 (ver gráficos 4, 5 e 6). A soma de “muita” e “alguma” confiança nos partidos foi de 13,07% na média regional, o que só supera os 10,57% registrados em 2003. O maior valor do período foi de 27,32%, em 1997. A queda é acentuada e ininterrupta entre 2013 e 2018, com a confiança nos partidos passando de 23,06% para 13,07%. Na variação entre os países em 2018, a soma de “muita” e “alguma” confiança nos partidos foi de 6% em El Salvador a 21,2% no Uruguai (consultar Apêndice A).
Com relação ao Poder Legislativo, a situação é semelhante: os 20,73% de “muita” e “alguma” confiança registrados em 2018 são o segundo pior valor da série histórica, só superando os 16,36% de 2003. O pico do período foi em 1995, com 37,16%. A trajetória de confiança é descendente a partir de 2011, com uma queda acentuada e ininterrupta que vai de 33,23% a 20,73% em 2018. Na variação entre os países, o Peru, onde um presidente renunciou em 2018 para evitar a destituição pelo Legislativo, teve a pior avaliação desse poder naquele ano, com 8% somados de “muita” e “alguma” confiança, contra 33% no Uruguai (consultar Apêndice A).
A confiança no governo foi a que atingiu o pior valor da série histórica em 2018, de 22,27% na média regional. Os índices de 2003, em 23,40%, e 2018 foram os únicos abaixo de 25%. O pico do período foi em 2010, com 45,68%. A trajetória descendente da confiança no governo é acentuada e ininterrupta de 2010 a 2018, passando de 45,68% para 22,27%. O menor valor somado de “muita” e “alguma” confiança no governo em 2018 foi o de 7,1% registrado no Brasil, que também teve o segundo menor para os partidos (consultar Apêndice A). O Uruguai foi o país onde o governo inspirou a maior confiança na população, com 38,7%, repetindo a situação dos partidos e do Legislativo uruguaios na comparação com as contrapartes latino-americanas.
A importância de votar é mais um indicador em que a situação no último ano para o qual há dado disponível foi a pior da série histórica. Esse indicador é relevante porque ajuda a estimar o quanto se valoriza o voto como um instrumento de mudança social. A série, nesse caso, tem menos pontos, já que os intervalos de um ano a outro em que se fez a pergunta são maiores, e vai até 2016. Naquele ano, os 52,01% que responderam na média regional que “a maneira como alguém vota pode fazer com que as coisas sejam melhores no futuro” foram o menor percentual da série histórica, iniciada em 1995 (ver Gráfico 7). Só há mais um ano com valor abaixo dos 53%, que foi 1996, com 52,98%. O pico foi em 2009, com 66,62%. Apesar da limitação de pontos no tempo, nota-se uma queda acentuada entre 2009, com 66,62%, e 2016, com 52,01%. A variação entre os países que dão importância ao voto foi grande em 2016, sendo 36,50% em Honduras e 78,70% na Venezuela (consultar Apêndice A).
Há ainda um indicador que é ilustrativo do cenário atual na América Latina, em que relações de promiscuidade entre os poderes econômico e político são expostas em escândalos de corrupção. A pergunta, incluída desde 2004 nas rodadas do Latinobarómetro, apura a opinião sobre se o país é governado por grupos poderosos em próprio benefício ou para o bem de toda a população. O percentual de quem escolheu a primeira opção em 2018 foi o maior da série histórica, atingindo 78,45% (ver Gráfico 8). Foi a primeira vez que superou os 78%, após ter registrado seu valor mais baixo em 2009, com 63,36%. A trajetória dos dados, então, é ascendente de 2009 a 2018, com uma elevação acentuada entre os dois anos; mas a oscilação no período também foi significativa. A variação entre os países em 2018 que consideram que grupos poderosos governam o país em próprio benefício foi de 60,4% na Bolívia a 90% no Brasil (consultar Apêndice A).
A fim de organizar os resultados e as tendências para cada indicador analisado, o Tabela 1 sintetiza as informações.
Acusações de corrupção e/ou desvio de conduta, com mais ou menos provas e respeito às regras conforme o caso, levaram à destituição ou à renúncia de cinco presidentes latino-americanos nos anos 2010, que foram Fernando Lugo, em 2012, no Paraguai; Otto Pérez Molina, em 2015, na Guatemala; Dilma Rousseff, em 2016, no Brasil; Pedro Pablo Kuczynski, em 2018, no Peru; e Evo Morales, em 2019, na Bolívia. Esses acontecimentos se refletem nas avaliações sobre o sistema político e nas preocupações da população. No Latinobarómetro de 2018, situação política e corrupção estão entre os cincos problemas mais importantes do país citados pelos respondentes, na média regional, antecedidos por segurança pública, desemprego e situação econômica. Os percentuais somados de situação política e corrupção só ficam atrás da segurança pública entre os problemas mais importantes. Considerando a corrupção isoladamente, ela é o principal problema na Colômbia e o segundo em Bolívia, Brasil, México, Paraguai e Peru.
Para sobreviver a condições adversas, a democracia teve de se domesticar na América Latina (Smith 2005). Essa versão domesticada significou que a democracia foi adquirindo capacidade de se sustentar à medida que a punição de violações aos direitos humanos ocorridas nos regimes autoritários prévios e a realização de reformas que pudessem afetar interesses poderosos foram limitadas inicialmente (Levine e Molina 2007). Aos poucos, diferentes governos adotaram medidas para promover estabilização econômica e redução de pobreza e desigualdade, alimentando as expectativas da população. Porém, essas expectativas têm sido frustradas, como mostram os dados sobre satisfação com a democracia e confiança nas instituições.
As crises políticas alimentam a descrença nas instituições representativas, de legislativos a partidos e políticos, frequentemente envolvidos em corrupção e relações de promiscuidade com o poder econômico, e culminam em instabilidade de governos e destituições ou renúncias de presidentes. Ao mesmo tempo, o desempenho econômico tem sido insuficiente para promover uma redução maior das desigualdades. Há ainda políticas de inclusão adotadas por diferentes governos para beneficiar setores historicamente vulneráveis que, por outro lado, estimulam uma reação à diversificação de espaços sociais até então restritos a certos grupos.
Considerando a discussão teórica e os dados apresentados, o declínio da democracia na América Latina se insere em um cenário de liberalismo antidemocrático, que, conforme Mounk (2019), é característico de regimes que, por um lado, respeitam o Estado de direito e protegem minorias e, por outro, falham em traduzir preferências populares em políticas públicas. A insatisfação com esse tipo de regime se reflete nos indicadores de declínio apresentados e, ao mesmo tempo, estimula a ascensão de movimentos e líderes que, uma vez eleitos, ameaçam liberdades individuais, agravando o quadro de erosão democrática.
Para operacionalizar o teste de hipóteses, são utilizados indicadores da percepção cidadã sobre instituições democráticas e políticas públicas. Além dos controles para sexo e escolaridade, as variáveis de nível individual selecionadas foram: confiança nas instituições, satisfação com a democracia e experiências com corrupção e violência. Essas variáveis foram utilizadas na análise sobre o declínio democrático ou, no caso de corrupção e violência, estão entre os problemas mais importantes para a população no Latinobarómetro de 2018. Também se testa para o contexto latino-americano o achado de Foa e Mounk (2016) de que, em países ocidentais desenvolvidos, jovens são mais propensos a ter posições políticas radicais e apoiar opções autoritárias.
Desse modo, é possível formular as seguintes hipóteses:
H1 |
cidadãos(ãs) que desconfiam das instituições são mais propensos(as) a apresentar perfil político ambivalente ou autoritário; |
H2 |
cidadãos(ãs) que estão insatisfeitos(as) com a democracia são mais propensos(as) a ter perfil ambivalente ou autoritário; |
H3 |
cidadãos(ãs) que têm experiência com violência e/ou corrupção são mais propensos(as) a apresentar perfil ambivalente ou autoritário |
H4 |
jovens são mais propensos a apresentar perfil ambivalente ou autoritário. |
Aspectos metodológicos9
Para testar as hipóteses, foram utilizadas as rodadas do Latinobarómetro de 2002, 2009, 2016 e 2018. Esses anos foram selecionados por dois motivos: 1) as perguntas para as variáveis de interesse foram replicadas nas quatro rodadas; 2) são anos que, conforme o caso, coincidem com a virada à esquerda (Levitsky e Roberts 2011) ou onda rosa (Remmer 2012), caracterizada pela difusão de governos esquerdistas na América Latina, com o movimento atual de reação, na forma de uma ascensão de líderes direitistas na região, e com o processo de desconsolidação da democracia em países ocidentais desenvolvidos que foi descrito por Foa e Mounk (2016). A Tabela 2 apresenta as informações sobre as rodadas do Latinobarómetro que foram utilizadas.
A variável dependente a ser explicada se baseia na tipologia de Moisés (2008), que definiu três perfis de adesão à democracia: democratas, ambivalentes e autoritários. Esses perfis foram construídos pela junção de duas perguntas que são comumente realizadas em pesquisas de opinião. A primeira indaga se o(a) entrevistado(a) concorda com que a democracia é o melhor sistema de governo, enquanto a segunda é aquela com que se avalia a adesão ao regime. A Tabela 3 apresenta as descrições dos três perfis.
Considerando que a variável dependente tem três categorias e natureza qualitativa, utiliza-se o teste de regressão logística, que fornece informações sobre a razão de chance de associação entre determinada categoria de uma variável ou uma variável per se do conjunto de fatores explicativos com as duas categorias de interação da variável dependente. O teste de regressão tem dois níveis, o individual e o agregado, e dois modelos para cada rodada. No modelo 1, a categoria de interação é o perfil político ambivalente; no modelo 2, o perfil autoritário. Em ambos os modelos, a categoria de referência é o perfil democrático. A Tabela 4 apresenta o coeficiente de correlação intraclasse (CCI) para todos os modelos.
Fonte: elaboração própria com base em dados de Latinobarómetro, V-DEM e The Polity Project - Center for Systemic Peace (CSP).
Sommet e Morselli (2017) destacam que o CCI mede o grau de homogeneidade dos resultados entre os países (casos de segundo nível), ou seja, o quanto da variância nas razões de chance de cada modelo pode ser atribuído às variáveis contextuais. O CCI é calculado a partir do modelo nulo10 (u0), dado pela fórmula apresentada ao fim deste parágrafo.11 Segundo Lee (2008), é recomendável adotar a regressão de dois níveis quando os valores do CCI atingem patamar próximo ou superior a 0,10. Como esse requisito é satisfeito para a maior parte dos casos e se visa a homogeneizar a técnica empregada para todas as rodadas e modelos, optou-se pela realização das regressões logísticas binarias de dois níveis.
A Tabela 5 apresenta os testes que permitem verificar a heterogeneidade das variáveis preditoras entre os países. É feita a comparação entre a razão de verossimilhança dos modelos intermediários restritos (MIR) e intermediários aumentados (MIA), dada pela diferença entre os desvios dos dois modelos, por meio de um teste de Chi quadrado (Sommet e Morselli 2017). Os resultados significativos indicam a inexistência de homogeneidade, permitindo que se prossiga com os modelos de interação. Foi testada só a variável satisfação com a democracia em cada modelo. Em todos os casos, as variáveis independentes se mostraram heterogêneas entre os grupos (países), o que autoriza que se realize a análise da interação entre as variáveis individuais e dos grupos.
No nível individual da análise de dados foram inseridos quatro conjuntos de variáveis. Um primeiro se refere à atuação dos governos para a efetivação da ordem social. Parte-se da consideração de que governos íntegros e capazes de pacificar os conflitos sociais tendem a ser mais bem avaliados pela população (Barry 1978). São utilizadas duas variáveis para mensurar essa dimensão: a experiência do(a) entrevistado(a) ou de algum ente da sua família com violência e a indicação de conhecimento por parte do(a) entrevistado(a) de algum ato de corrupção. Para ambos os temas, pede-se que o(a) entrevistado(a) responda com base nas suas recordações dos 12 meses anteriores à realização da pesquisa. As variáveis foram recodificadas como binárias, com a categoria de referência para ambas sendo a não experiência/conhecimento. A expectativa é que a experiência com corrupção e/ou violência aumente a propensão à aceitação de um regime autoritário.
A confiança nas instituições define um segundo conjunto, que se compõe de quatro variáveis: confiança nos poderes Legislativo e Judiciário, nos partidos políticos e no governo. Cada uma é mensurada por uma escala Likert de quatro pontos, com as seguintes variações: nenhuma, pouca, alguma e muita confiança. Criou-se, com essas quatro variáveis, um índice de confiança nas instituições,12 que tem uma natureza linear que varia de 0 a 12 pontos. Elemento clássico em estudos culturalistas, a confiança é internalizada durante o processo de socialização política e atua no sentido de mediar a relação dos cidadãos com a vida pública (Moisés 2008). Aqueles(as) que apresentam maiores níveis de confiança nas instituições democráticas tenderiam a apoiar o regime. Por outro lado, autores como Norris (1999) avaliam que “cidadãos críticos”, um perfil típico das democracias ocidentais desenvolvidas, são fortes apoiadores do regime, mas rechaçam instituições e mecanismos tradicionais de representação. Em consequência, resultaria em um comportamento com, ao mesmo tempo, baixa confiança nas instituições e forte apoio a princípios democráticos e ao regime.
Uma terceira dimensão se compõe de uma única variável, referente à satisfação com a democracia existente. Essa variável também é medida por uma escala Likert de quatro pontos, com as seguintes categorias: nada, pouco, algo e muito satisfeito(a). Embora possa ser encarada como proxy de apoio à democracia, muitos estudos, como o de Rose (2002), destacam que a variável se associa mais à satisfação com o desempenho corrente de governos inseridos em uma ordem democrática. Assim, ao contrário da variável utilizada aqui como dependente, sua natureza seria mais volátil e relacionada com o desempenho.
Por fim, tem-se um quarto grupo, composto de variáveis que mensuram características socioeconômicas dos(as) entrevistados(as). A variável para idade é explicativa. As demais, para sexo e escolaridade, são utilizadas como variáveis de controle. Idade e escolaridade são contínuas e medidas, respectivamente, com base na quantidade de anos de vida e de anos de estudo completados, enquanto sexo é uma variável binária.
No nível dos países são utilizadas duas variáveis. A primeira é uma medida de qualidade da democracia do projeto V-DEM, o LDI. Trata-se de um indicador construído com base na compilação de uma série de dados e nas consultas com especialistas locais e composto de medidas para integridade das eleições, liberdade de expressão, Estado de direito e existência de pesos e contrapesos, entre outras.13 A segunda variável se refere à durabilidade democrática. Coletada na base de dados do projeto Polity IV, essa medida representa os anos de vigência de um dado regime. Aqui, só as democracias foram consideradas. Regimes não democráticos foram codificados como 0; as democracias, com os anos de sua duração. Esse procedimento visa a controlar possíveis erros de estimação na probabilidade de cada perfil de adesão à democracia em países não democráticos.
Os fatores explicativos do perfil político autoritário na América Latina
A interpretação dos resultados apresentados a partir de agora se guia pelo diálogo com as hipóteses construídas. O Gráfico 9 apresenta as razões de chance dos modelos 1 (situados à esquerda) e 2 (à direita) de regressão logística binária de dois níveis (nível 1 = indivíduos; nível 2 = indicadores agregados para os países). Esses modelos contêm os efeitos fixos das variáveis do nível individual e considera apenas os efeitos aleatórios dos países, sem estimar a interação entre as variáveis dos níveis 1 e 2.
Analisando as variáveis de características socioeconômicas, a educação tem associação estatisticamente significativa com a variável independente em todos os modelos gerados, para todas as rodadas, assim como chance negativa para a associação com os perfis políticos ambivalente e autoritário. Isso significa que, quanto maior a escolaridade do(a) entrevistado(a), menores são as chances de apresentar um perfil ambivalente ou autoritário. Há de se ressaltar que a magnitude é baixa em todos os modelos. Isso se deve à natureza da variável independente, medida de natureza quantitativa e contínua, com de 15 a 17 níveis de escolaridade em cada uma das rodadas de entrevistas. Logo, a chance se mostra reduzida porque se expressa a partir do aumento de cada um dos níveis de escolaridade. Os resultados encontrados para a variável de educação não são uma surpresa, já que a literatura da área de cultura política, tendo o trabalho seminal de Almond e Verba (1963) como exemplo, aponta que maiores níveis de escolaridade se relacionam com uma cultura política cívica.
A idade também se mostrou significativa e com efeitos negativos em todos os anos, ou seja, quanto maior é a idade do(a) entrevistado(a), menores são as chances de apresentar um perfil político ambivalente ou autoritário. A magnitude da chance também é baixa em razão da mesma especificidade explicada para a variável de educação. Os resultados para a variável de idade estão em sintonia com Foa e Mounk (2016), que notaram que, em países ocidentais desenvolvidos, jovens são mais propensos a ter posições políticas radicais e a apoiar opções autoritárias. A tendência verificada nos testes aplicados ao contexto latino-americano autoriza a interpretação de que a hipótese 4 está corroborada.
Quanto ao índice de confiança nas instituições, composto de variáveis de confiança nos poderes Legislativo e Judiciário, nos partidos políticos e no governo, os resultados são estatisticamente significativos e de associação negativa para todos os modelos, em todas as rodadas. Isso significa que confiar nas instituições reduz as chances de o perfil político ser ambivalente ou autoritário. Esses achados corroboram a hipótese 1.
Os resultados para a variável de satisfação com a democracia são evidentes: em todos os modelos, de todas as rodadas, há significância estatística e direção de associação positiva, o que indica que cidadãos(ãs) satisfeitos(as) com a democracia são menos propensos(as) a apresentar um perfil político ambivalente ou autoritário. Com isso, se corrobora a hipótese 2.
Para as variáveis de efetivação da ordem social, não existe uma tendência definida. A variável sobre experiência com violência apresenta associação positiva, mas com significância estatística em só um modelo de uma das rodadas, com os perfis ambivalente e autoritário em 2002 e 2018. Contudo, para as rodadas de 2009 e 2016, variam a validade estatística e o sentido de associação entre os dois modelos. Já a variável sobre conhecimento de ato corrupto apresenta associação positiva, mas com significância estatística em só um modelo de uma das rodadas, com os perfis ambivalente e autoritário em 2002 e 2016. Porém, para as rodadas de 2009 e 2018, há variação tanto em validade estatística quanto em direção da associação. Com esses resultados, se interpreta que não é possível refutar nem corroborar a hipótese 3.
Quanto às variáveis de segundo nível, não se identificou qualquer tendência. Em todos os casos, não há um padrão de associação, tampouco presença de significância estatística nos dois modelos das quatro rodadas.
Depois da interpretação dos dados, pode-se afirmar que os fatores mais relevantes para explicar a manifestação de um perfil político ambivalente ou autoritário na América Latina são escolaridade, idade, confiança nas instituições e satisfação com a democracia. Portanto, o(a) cidadão(ã) com perfil político tipicamente identificado como ambivalente ou autoritário é jovem, tem pouca escolaridade, desconfia das instituições e está insatisfeito(a) com o regime. O Tabela 6 sistematiza os resultados dos testes de hipótese.
A etapa seguinte da análise de dados se concentra na interação entre as variáveis dos dois níveis, o primeiro (individual) e o segundo (dos países). Os testes realizados permitem visualizar a mediação do contexto dos países (nível 2) sobre o comportamento individual com relação à democracia (perfis políticos no nível 1), a partir de uma interação com uma variável do nível 1.
No Gráfico 10 é possível observar a probabilidade de se ter um perfil ambivalente ou autoritário a partir da interação entre os diferentes patamares de qualidade da democracia nos países e os níveis de satisfação com a democracia dos(as) cidadãos(ãs) para as rodadas de 2002 e 2018.14 O que se observa com os resultados é:
1) a probabilidade de se ter um perfil político ambivalente ou autoritário diminui à medida que aumenta o nível de satisfação do indivíduo com a democracia, entre todos os países;
2) a força da redução dessa probabilidade se intensifica em contextos de maior qualidade da democracia. A probabilidade de rechaço a formas autoritárias de regime cresce entre cidadãos que têm maiores níveis de satisfação com a democracia. Essa relação é ainda mais forte em países com maiores níveis de qualidade democrática. Ou seja, cidadãos mais satisfeitos com a democracia em países com maior qualidade democrática são menos propensos a apoiar formas autoritárias de regime do que cidadãos mais satisfeitos com a democracia imersos em um contexto de menor qualidade democrática.
O Gráfico 11 apresenta a probabilidade de se ter um perfil ambivalente ou autoritário a partir da interação entre anos de democracia, um atributo dos países, e confiança institucional, um atributo individual. As tendências identificadas são:
1) a probabilidade de se ter um perfil político ambivalente ou autoritário diminui à medida que aumenta o nível de confiança do indivíduo nas instituições, entre todos os países;
2) a força da diminuição dessa probabilidade se intensifica em contextos de mais anos de convivência com a democracia. A probabilidade de rechaço a formas autoritárias de regime cresce entre cidadãos que apresentam maiores níveis de confiança nas instituições. Essa relação é ainda mais forte em países com maior longevidade democrática. Ou seja, cidadãos que confiam mais nas instituições em países com maior longevidade democrática são menos propensos a apoiar formas autoritárias do que cidadãos que confiam mais nas instituições em um contexto de menor longevidade democrática.
Os resultados das interações entre variáveis apontam que a solidez democrática é um importante recurso para barrar o ímpeto autoritário, formando um escudo institucional que media tanto os efeitos da satisfação com a democracia quanto da confiança nas instituições. A convivência com o regime e sua qualidade são atributos que tornam menos provável o colapso da democracia em decorrência do apoio popular a alternativas antidemocráticas.
Considerações finais
O debate sobre um suposto declínio da democracia no mundo tem sido intenso, com uma série de lançamentos recentes, como os livros de Levitsky e Ziblatt (2018) e de Mounk (2019). Este artigo se concentrou em inserir a América Latina nessa discussão, priorizando o campo de comportamento político e opinião pública, embasando-se em uma série de bancos de dados e apresentando evidências robustas e contribuições ao debate.
A análise longitudinal de indicadores selecionados com base na literatura e no cenário regional mostra que a democracia está em declínio na América Latina. Variáveis como o apoio e a satisfação com o regime, a confiança nas instituições e o LDI, do projeto V-DEM, atingiram ou voltaram a apresentar na região em 2018 os piores valores das suas séries históricas. Não se trata de uma situação circunstancial e isolada no tempo. Tampouco é um dado específico negativo, combinado a outros tantos positivos. O que se observou e apresentou foi um conjunto de indicadores em trajetória descendente.
O artigo também contribui em discutir e testar explicações para essa tendência, buscando fatores individuais e agregadas que se associem aos perfis políticos ambivalente e autoritário da população latino-americana. Esses perfis se compõem de pessoas jovens, com escolaridade baixa, desconfiadas das instituições e insatisfeitas com a democracia. Assim, se identifica que há tanto um componente sociodemográfico quanto de avaliação do desempenho do regime moldando o comportamento avesso à democracia.
Os achados são consoantes a outros estudos recentes sobre o declínio da democracia no mundo em, ao menos, dois pontos. Foa e Mounk (2016) também encontraram que o perfil autoritário em países ocidentais desenvolvidos se compõe de jovens. Ao mesmo tempo, outros dois aspectos dos perfis políticos ambivalente e autoritário da população latino-americana, a desconfiança das instituições e a insatisfação com a democracia, se alinham à explicação de Mounk (2019) para o declínio, que refletiria a insatisfação com uma situação de liberalismo antidemocrático em que o regime falha em traduzir preferências populares em políticas públicas. A insatisfação com esse tipo de regime se reflete nos indicadores de declínio da democracia na América Latina e estimula a ascensão de movimentos e líderes que ameaçam liberdades individuais, agravando o quadro de erosão democrática. Com isso, ganham força argumentos a respeito da necessidade de se aprimorar as respostas dos governos às demandas populares, a fim de que o regime e suas instituições tenham mais crédito, em especial com os “perdedores” do sistema, que estão identificados nos perfis políticos ambivalente e autoritário da população latino-americana nas características referentes à idade e à escolaridade.
No âmbito contextual dos países, o que se verificou é que a longevidade e a qualidade da democracia medeiam relações de nível individual, potencializando a aversão a formas autoritárias de regime. O terreno mais fértil à legitimidade democrática é aquele em que há uma convivência longeva com uma democracia de qualidade.
Ao fim e ao cabo, não existe tanta diferença entre Europa, Estados Unidos e América Latina quanto aos fenômenos por trás do declínio da democracia e aos perfis sociais afinados com opções políticas autoritárias. O artigo contribui em situar a América Latina nesse cenário e estimular a continuidade dos estudos, para que seja possível aprimorar a compreensão e oferecer respostas ao comportamento avesso à democracia na região.