A Política Nacional de Saúde Bucal completou dez anos de implementação e vem norteando ações dentro do Sistema Único de Saúde. Essa política tem enfatizado o financiamento para o fortalecimento das equipes de saúde bucal na atenção primária e para a atenção secundária. A concepção dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) deu melhores condições para o desenvolvimento do sistema de referência e contrarreferência na área da odontologia 1,2 que tencionou o princípio da integralidade da atenção 3.
Durante o planejamento de implantação dos CEOs os gestores municipais, estaduais e da federação pactuam compromissos de financiamento e de execução da política de saúde com vistas ao cumprimento das normatizações presentes nas Portarias expedidas pelo Ministério da Saúde 4,5. As Portarias que cadenciam as diretrizes para os CEOs estão em constantes atualizações corrigindo os valores para o financiamento e estabelecendo as metas de produção ambulatorial. Por exemplo, um CEO tipo I deve realizar 35 procedimentos de endodontia, 60 procedimentos periodontais e 80 procedimentos de atenção básica e de cirurgia oral menor 6,7.
Os CEOs já foram avaliados quanto ao desempenho no cumprimento de metas em âmbito estadual e nacional. Em uma avaliação no estado de Pernambuco 8 nenhum CEO cumpriu, na integra, as metas estabelecidas pelo Ministério. Em estudos de amplitude nacional a variação do desempenho de cumprimento de metas classificado com regular/ruim variou de 24 % 9 a 70 % 10. No entanto, com a presença dos CEOs verificou-se que houve aumento de procedimentos odontológicos na atenção secundária, principalmente na área da endodontia 11.
Muitos estudos 9,11,12 realizados sobre os CEOs investigaram fatores que pudessem estar associados ao cumprimento das metas com o intuito de apontar indicadores que podem potencializar o acesso e a integralidade da atenção do serviço de odontologia. Entretanto, não se conhece trabalho explorando fatores relacionados à organização dos processos de trabalho, incluindo características dos trabalhadores e dos serviços. Assim, o presente estudo teve como objetivo verificar o cumprimento das metas ambulatoriais dos Centros de Especialidades Odontológicas localizados na região sul do Brasil e fatores associados aos processos de trabalho.
MÉTODOS
O presente estudo foi do tipo exploratório e transversal. Como critério de inclusão foi estabelecido que os CEOs possuíssem pelo menos um ano de implantação após a data de habilitação. Conforme consulta realizada no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde-CNES/DATASUS, em março de 2010, verificou-se que existiam 103 CEOs na Região Sul do Brasil. Após a consulta ao CNES foram selecionados para o estudo 78 (75,7 %) dos CEO (s). A coleta de dados do trabalho ocorreu no período de março de 2010 a agosto de 2011. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da ULBRA-CANOAS (Protocolo: CEP-ULBRA 2010-512H).
A coleta de dados do estudo foi dividida em 3 fases. Primeiramente foi enviado um ofício para as Secretarias Estaduais da Saúde (SESs) dos respectivos estados da Região Sul para divulgar a realização do trabalho. Nesta oportunidade, as SESs foram informadas sobre o objetivo do estudo, bem como foi solicitado autorização para a realização do trabalho na área de abrangência de cada estado. Também foi solicitado que as Secretarias Estaduais da Saúde comunicassem oficialmente o objetivo da pesquisa às Secretarias Municipais da Saúde dos municípios sedes dos CEOs. No mesmo ofício constava a solicitação dos endereços eletrônicos das coordenações dos CEOs e/ou dos responsáveis pelas Secretarias Municipais da Saúde (SMS).
Na segunda fase do estudo foram coletados dados sobre a produção individual mensal de cada CEO consultando o DATASUS. Os códigos dos procedimentos foram agrupados nos quatro conjuntos de procedimentos estabelecidos pelo Ministério de Saúde para cumprimento de metas: a) atenção básica, b) periodontia, c) endodontia e d) cirurgia. Ainda no DATASUS, constituindo as variáveis independentes do estudo, foram obtidos o tipo de CEOs (Tipo I, II e III), sua data de habilitação e localização (municípios/estados hospedeiros de CEOs). Já os dados sobre os municípios foram obtidos de diferentes bases de dados. Investimentos em saúde pública foram obtidos do Sistema de Informação em Orçamento Público em Saúde para o ano de 2010 (SIOPS), os últimos dados disponível do Produto Interno Bruto (PIB) municipal per capita (ano 2008) e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foram obtidos diretamente da área de downloads do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Numa terceira fase, foi enviado um questionário para os coordenadores dos CEOs com 14 perguntas fechadas modificadas de estudos prévios3,8,13. Para operacionalizar o acesso dos respondentes ao questionário foi utilizado o sistema de criação de Formulários Eletrônicos do SUS (FormSUS 3.0) que permitiu trabalhar com questionários através da Internet. Ao final da elaboração do questionário o sistema estabelece um endereço eletrônico (link) que permitiu acesso via Internet. O link e o conteúdo do questionário foram pré-testados com um gestor estadual, um municipal e uma professora de saúde bucal coletiva garantindo a objetividade e clareza das perguntas. O intervalo entre os pré-testes foi de uma semana. Após as adequações do questionário o link foi enviado ao público alvo do estudo por correio eletrônico, solicitando que as coordenações dos CEOs respondessem o questionário. Nos casos de não resposta foram realizadas ligações telefônicas (máximo de três vezes com intervalo semanal), com a intenção de viabilizar a participação dos respondentes. Na ausência das coordenações dos CEOs, a coordenação de saúde bucal do município foi contatada. Persistindo a ausência das autoridades citadas anteriormente o Secretário Municipal da Saúde foi eleito como respondente. Qualquer outra pessoa não poderia responder o questionário mesmo que tivesse envolvimento administrativo com a unidade de saúde estudada.
O questionário foi dividido em três grandes dimensões avaliativas 13. Na dimensão organização geral do trabalho foi perguntados aos gestores dos centros: tipo de gestão municipal; forma de contração dos cirurgiões-dentistas; média de carga horária, em horas trabalhadas, dos cirurgiões-dentistas do CEO; média de faixa salarial dos cirurgiões-dentistas do CEO em reais; existência de uma programação de avaliação do CEO.
Na dimensão acesso da população ao CEO foi constituída como segue: o município apresentava estratégias de territorialização, adscrição e mapeamento da área; quantas unidades básicas de saúde (UBS) referenciavam pacientes para o CEO; qual era a origem dos usuários do CEO.
Na dimensão organização do trabalho da equipe do CEO foi abordado: se os profissionais dos CEO foram capacitados para executarem o trabalho no centro; os cirurgiões-dentistas da atenção básica foram capacitados para fazerem os devidos encaminhamentos para o CEO; como era a estrutura física, instrumental e equipamentos do CEO; falta de estrutura física, instrumental clínico insuficiente, dificuldade de esterilização do instrumental, equipamentos modernos com central de marcação de consultas; com instrumental suficiente e equipamentos modernos, espaços humanizados, central de marcação de consultas. Os respondents ainda foram questionados sobre: a existência de um protocolo estabelecido pelo CEO após a realização do tratamento requisitado pela Unidade Básica de Saúde; como o município organiza a oferta dos exames complementares como: laudos de biópsias, exames hematológicos e radiografias extra-bucais.
Para o calculo da média de meses que os CEOs atingiram as metas em um ano foi multiplicado o número de CEOs para o estudo por 12. Também foi estabelecida a média de meses que os CEOs atingiram as metas para cada subgrupo de procedimento (periodontia, endodontia, cirurgia e procedimentos básicos) constituindo-se nas variáveis dependentes do estudo.
Para realizar a análise estatística as variáveis: gastos totais em saúde, PIB per capita, carga horária, salário dos cirurgiões-dentistas e o número de unidades que utilizam o CEO como referência foram categorizadas em quintis e o IDH pela mediana. O tempo de instalação e número de CEOs por município foram categorizados considerando a escala ordinal de tempo e de número. Os coordenadores de CEOs que não responderam o questionário e as respostas do tipo “não sei” constituíram a categoria sem informação para as variáveis independentes durante a análise.
Foram realizadas as análises bivariadas, com o teste não paramétrico de Kruskal Wallis, para verificar as associações entre as variáveis independentes 1) características gerais dos municípios hospedeiros de CEOs; 2 organização geral do trabalho de CEOs; 3 acesso da população e 4) organização da equipe de trabalho do CEOs com a variável dependente: média de meses em que os CEOs cumpriram com meta dentro de cada subgrupo de procedimento. O programa STATA 11.2 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos) foi utilizado para as análises.
RESULTADOS
Após a consulta aos coordenadores ou responsáveis municipais pelos 78 CEOs, obteve-se resposta de 53, resultando numa taxa de resposta de 68 %. Ainda verificou-se que dos 936 meses de produção ambulatorial avaliados 10,1 % (n=95) dos CEOs atingiram as metas para os procedimentos endodônticos, 24,9 % (n=233) para os periodontais, 27,9 % (n=261) para os cirúrgicos e 60 % (n=562) para os procedimentos básicos, sendo que a média anual foi respectivamente: 1,2 (±2,7); 2,9 (±4); 3,3 (±3,8) e 7,2 (±4,7).
Considerando as características gerais dos municípios evidenciadas na Tabela 1, observou-se que as variáveis estado do PR [3,81], CEOs localizados nos municípios do quarto quintil das variáveis gastos totais em saúde [5,06] e PIB per capita [5,62], ainda para CEOs em municípios de porte populacional de até 50 mil/hab [5,88] apresentaram associação (p≤0,05) com o cumprimento de metas dos procedimentos periodontais. Para os demais procedimentos não ocorreram associações.
1- Média do número de meses que o CEOs atingiram as metas dos procedimentos: Perio=Periodontal; Endo= Endodônticos; Cirurgia= Cirurgia Oral Menor; Básico=Básicos; 2-valor de p - Teste de Kruskal Wallis.
Na dimensão organização do trabalho (Tabela 2) tendo como exemplo a forma de contratação através de concurso público 2,12 não demonstrou associação (p>0,05) com o cumprimento de metas para os procedimentos periodontais.
1 Legenda da Tabela 1; CLT=Consolidação das Leis Trabalhistas; Salário em R$=Salário em reais (Salário Mínimo=R$622,00); SI=Sem Informação
Na Tabela 3 verifica-se que a variável Tipo de CEO foi associada com as com metas atingidas de procedimentos básicos estabelecendo gradiente de concentração crescente entre os tipos de CEO (Tipo I =6,51; Tipo II=7 e Tipo III=11,42) com significância estatística (p<0,05). Os resultados para a dimensão organização do trabalho, descritos na Tabela 4, não foram encontradas associações significativas, por exemplo: estrutura física, instrumental e equipamentos do CEOs (p>0,05).
1- Média do número de meses que o CEOs atingiram as metas dos procedimentos: Perio=Periodontal; Endo= Endodônticos; Cirurgia= Cirurgia Oral Menor; Básico=Básicos; 2-valor de p - Teste de Kruskal Wallis. + SI= Sem Informação; Outros (hospital, pronto socorro ou cirurgião-dentista particular).
DISCUSSÃO
O presente estudo apontou para um baixo cumprimento de metas ambulatoriais dos CEOs da Região Sul do Brasil, principalmente de procedimentos endodônticos onde a media anual foi de 1,2 mês. O estudo ainda verificou que fatores importantes como: maiores gastos totais com a saúde, PIB per capita (quarto quintil) e municípios com porte populacional até 50 mil/hab contribuíram com maior média de meses de metas cumpridas para os procedimentos de periodontia. Também, indicou que capacitada instalada (Tipo de CEO I, II e III) foi capaz de contribuir o cumprimento das metas de procedimentos básicos. Logo, são fatores que podem contribuir para o aumento das taxas de procedimentos especializados no Brasil 11. Além disso, exigindo forte organização no sistema de regulação entre APS e a Atenção Secundária permitindo maior acesso dos usuários aos serviços disponibilizados nos CEOs 14.
Os Centros de Especialidades Odontológicas tem na sua essência o cumprimento do princípio da integralidade da saúde conquistado na década de 70 com a Reforma Sanitária. Portanto, é fundamental o monitoramento da produção ambulatorial para reduzir a iniquidades de acesso aos serviços de saúde bucal de médica complexidade 12. Considerando a importância de monitorar a Política Nacional de Saúde Bucal com a participação dos atores sociais verificou-se que em nosso estudo houve 58 participações das coordenações dos CEOs que responderam o questionário do FORMSUS atingindo, em torno de, 68 % de respostas. Acredita-se que o processo metodológico envolvendo SES, SMS e a realização dos contatos através do telefone possam ter contribuído para um bom percentual de respostas 15.
Durante a análise, com a inserção da categoria sem informação possibilitou a comparação de discrepâncias entre respondentes e não respondentes o que possivelmente não interferiu nos resultados. Nosso estudo trabalhou com as bases de dados oficiais (CNES, DATASUS, SIOPS e IBGE) utilizadas por pesquisadores 9,16 e gestores 17 para o planejamento de ações programáticas na área da saúde bucal e demais áreas do conhecimento. Foram analisadas variáveis compondo as características gerais do município, como exemplo os Gastos com Saúde, e as dimensões de organização geral do trabalho, acesso da população e organização do trabalho da equipe do CEO possibilitando a identificação de potencialidades e de limitações da atenção secundária em saúde bucal na Região Sul do Brasil.
Como limitações o estudo apresenta análise de dados secundários factíveis de subnotificações 18. Do ponto de vista metodológico não foram analisados os quantitativos de CEOs que não estavam recebendo o financiamento de custeio mensal em função do não cumprimento de metas. Também não foi incluída a participação dos cirurgiões-dentistas dos CEOs, não possibilitando a análise dos argumentos dos profissionais da ponta do serviço que podem influenciar no cumprimento das metas de produção.
O presente estudo utilizou o número de meses que os CEOs cumpriram as metas como variável dependente, ou seja, foi verificado mês a mês se cada tipo de CEO atingiu a meta dentro das quatro especialidades/subgrupos de procedimentos. O cumprimento das metas deve ser de forma mensal para garantir a continuidade do direito do CEO receber o financiamento de custeio 5. O maior percentual de meses de metas atingidas foi para os procedimentos básicos (60 %) e houve associação com Tipo de CEO. Logo, verifica-se que a Atenção Primária em Saúde (APS) pode não estar dando conta da sua missão, sendo que estes procedimentos são típicos da APS 16. Resultados similares foram encontrados para os CEOs do estado de Pernambuco 8 e do Brasil 9. No presente trabalho o menor percentual de meses com metas atingidas foi para os procedimentos endodônticos (10,1 %). A falta de controle dos procedimentos/encaminhamentos realizados pelos níveis de atenção primário e secundário pode estar contribuindo para esta situação, como encontrado em um do processo de referência e contrarreferência da área da Odontologia de uma Coordenadoria Regional da Saúde do Rio Grande do Sul 19.
Nosso estudo materializa o baixo percentual de cumprimento de metas apresentado pelos CEOs da Região Sul do Brasil suscitando aos gestores do três entes da federação (municipais, estaduais e federais) revisar as ações de planejamento explorando o desafio da gestão no que diz respeito à interface/regulação entre os dois níveis de atenção14,20. O tema de estudo cumprimento de metas dos CEOs, ainda apresenta como lacuna investigar “como” e “quanto” os municípios hospedeiros de CEOs estão utilizando de seus orçamentos para saúde bucal e se esses investimentos estão sendo proporcionais ao cumprimento de metas normatizados pela Portaria 1.464 de 24 de junho de 2011.