Atuberculose (TB) é um problema de saúde pública persistente em todo o mundo, especialmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil 1-3. Com o objetivo de reduzir a morbimortalidade da doença, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) estimulam a descentralização das ações de controle da TB para os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), chamados de serviços de Atenção Básica (AB), no Brasil 4.
A dinâmica do funcionamento dos serviços de saúde depende da forma como são utilizados, tanto pelos indivíduos que procuram por cuidados de saúde, quanto pelos profissionais que os conduzem dentro do sistema de saúde. O uso desses serviços é determinado por fatores relacionados à forma como os serviços se organizam diante das necessidades de saúde, considerando aspectos relacionados aos usuários, aos prestadores de serviços e à política vigente 5.
Entretanto, passados quase trinta anos de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, apesar da ampliação da oferta de serviços, o acesso aos serviços da rede básica de saúde ainda representa um desafio 1.
Para avaliar os serviços de saúde em relação ao diagnóstico da TB, empregamos as terminologias acesso e/ou acessibilidade como referencial, considerando-as conceitos que se complementam.
O termo acesso pode ser considerado como a forma que a pessoa experimenta e percebe a conveniência das características do serviço de saúde relacionadas à localização, horários e dias de atendimento e ao grau de tolerância para consultas não agendadas 6. A acessibilidade se refere ao resultado de uma combinação de fatores de distintas dimensões, de ordem sociocultural, organizacional, geográfica e econômica 7.
Em relação à TB, por sua determinação social, econômica e cultural, tanto das pessoas, como dos serviços, é essencial o entendimento destes conceitos, considerando, dentre outros fatores, as evidências de que o diagnóstico da doença ainda é tardio 2,3,6,8-11.
Neste contexto, a TB é uma das doenças prioritárias no Brasil, sendo seu controle, responsabilidade principalmente dos serviços de APS, por meio de ações estratégicas mínimas, como busca ativa de casos, diagnóstico clínico e acesso a exames para diagnóstico, cadastramento dos portadores, tratamento e medidas preventivas 12,13.
Entretanto, o processo de incorporação das ações de controle da TB pelos serviços de APS vem enfrentando dificuldades de acesso agravadas pelo acolhimento inadequado e a baixa procura de sintomáticos respiratórios e de contatos intradomiciliares, além de problemas em suspeitar e diagnosticar a doença precocemente 2,3,10. O atraso do diagnóstico também pode ser influenciado pelo enfrentamento do doente, determinado pelo conhecimento, percepção, crenças e significados que este atribui à tuberculose 3,6,14,15.
A demora na realização do diagnóstico agrava a situação dos doentes, que acabam sendo encaminhados aos níveis secundários e terciários de atenção, já em estado avançado da doença, com sérios comprometimentos da saúde 15,16.
Diante das considerações apresentadas, este estudo teve como objetivo avaliar o acesso ao diagnóstico da TB, na perspectiva dos doentes, em um município de médio porte do interior do Estado de São Paulo, Brasil.
MÉTODO
Este artigo resulta do projeto multicêntrico 'Avaliação das dimensões organizacionais e de desempenho dos serviços de atenção básica no controle da tuberculose em centros urbanos de diferentes regiões do Brasil". Trata-se de um estudo transversal realizado em um município de médio porte do interior do Estado de São Paulo, em 2007. O município, com população estimada de 402 770 habitantes, foi classificado na 2a posição do ranking nacional de desenvolvimento das cidades.
A atenção à TB no município sempre foi centralizado no ambulatório de referência, que contava com equipes especializadas de Programa de Controle de Tuberculose. Apenas algumas ações eram desenvolvidas nos serviços de APS, tais como a busca ativa de sintomáticos respiratórios e Tratamento Supervisionado. A partir de 2009, o processo de descentralização tem se intensificado com a transferência, também, do diagnóstico e consultas médicas de controle.
População de estudo
O tamanho da amostra foi calculado considerando o erro amostral de 0,05; Z de 1,96 para um intervalo de confiança de 95,0% e P (proporção populacional) de 50,0%. O valor encontrado para o tamanho da amostra foi de 384 casos e, após correção para o tamanho da população, ob-teve-se 110 casos. Dos 110 casos entrevistados no período de 2006 a 2007, dois foram desconsiderados, por não obedecerem aos critérios de inclusão: maior de dezoito anos, residente no município e estar em tratamento há pelo menos um mês do período de coleta de dados.
Coleta de dados
A coleta de dados foi realizada por meio do instrumento Primary Care Assessment Tool (PCAT), elaborado por Starfield 5, validado para o Brasil por Macinko e Almeida 17 e adaptado para atenção à tuberculose por Villa e Ruffino-Netto 18.
O instrumento incluiu indicadores socioeconômicos e demográficos (sexo, escolaridade, condições de moradia e de vida), local da consulta médica de controle e do tratamento supervisionado e nove questões referentes aos indicadores de acesso ao diagnóstico, representados pelas variáveis V1 a V9 (Quadro 1).
Análise dos dados
Cada entrevistado respondeu aos itens do questionário numa escala de Likert com escala entre zero e cinco, sendo atribuído o valor zero para respostas não sei ou não se aplica e os valores de um a cinco para o grau de concordância das afirmações. As questões socioeconômicas e demográficas, local do diagnóstico e Tratamento Supervisionado, foram registradas segundo escalas variadas de respostas dicotômicas, qualitativas ordinais, dentre outras.
Cada indicador de acesso ao diagnóstico correspondeu ao valor médio obtido pela somatória das respostas para cada pergunta e dividido pelo total de respondentes.
O desempenho do acesso ao diagnóstico foi classificado como não satisfatório (valores dos indicadores próximos de um e dois), regular (próximos de três) e satisfatório (próximos de quatro e cinco). Para associação entre variáveis independentes foi utilizado o teste Qui-quadrado.
Respeitando as exigências formais contidas nas normas nacionais e internacionais regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, este estudo foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado em 21 de março de 2007, com o Parecer n.° 0762/2007.
RESULTADOS
Caracterização Socioeconómica e Demográfica
Dentre os entrevistados, 65,7% eram do sexo masculino; 6,5% sem escolaridade e 66,7% tinham de 1 a 8 anos de estudo. Em relação às condições de moradia e de vida, 55,5% possuíam residência própria, 98,1% de alvenaria, 75,0% com quatro cômodos ou mais, 97,2% com banheiro e água encanada dentro de casa, 99,0% energia elétrica; 94,4% possuíam geladeira, 65,7% telefone, 51,0% carro, 91,7% rádio, 95,4% televisão; 53,7% coabitavam com quatro ou mais pessoas, 63,9% relataram não haver maiores de 60 anos em seu domicílio e 75,0% não haver crianças menores de 12 anos.
Local de Diagnóstico
A Figura 1 apresenta os locais que diagnosticaram a TB, evidenciando a participação predominante dos Hospitais (52,8%), principalmente dos conveniados ao SUS (47,3%). Destes, destaca-se o Hospital Escola com 38,0%, contra 5,5% na rede hospitalar privada. A APS diagnosticou 21,3% dos casos. A rede privada foi responsável por 11,1% dos diagnósticos.
Indicadores de acesso ao diagnóstico
O valor médio, o desvio padrão e o intervalo de confiança dos indicadores de acesso ao diagnóstico estão apresentados na Tabela 1. O índice composto de acesso ao diagnóstico foi avaliado como regular.
Padrão de respostas dos indicadores: a: (1) - 5 ou mais vezes; (2) - 4 vezes; (3) - 3 vezes; (4) - 2 vezes; (5) - 1 vez. b: (1) - sempre; (2) - quase sempre; (3) - às vezes; (4) - quase nunca; (5) - nunca. c: (1) - nunca; (2) - quase nunca; (3) - às vezes; (4) - quase sempre; (5) - sempre
Conforme, os indicadores «Número de vezes que procurou a Unidade de Saúde para conseguir atendimento quando começou a ficar doente», «Teve dificuldade em se deslocar até a Unidade de Saúde», «Teve dificuldade para pedir informação por telefone», «Teve dificuldade para marcar consulta por telefone», «Deixou de trabalhar ou perdeu dia de trabalho ou compromisso para consultar», «Procurou a Unidade de Saúde mais próxima da sua casa», foram avaliados como regulares.
Os indicadores «Utilizou transporte motorizado para ir até a Unidade de Saúde», «Gastou dinheiro com transporte para ir até a Unidade de Saúde quando começou a ficar doente» e «Conseguiu consulta para descobrir a doença no prazo de 24 horas na Unidade de Saúde quando começou a ficar doente (50,0% relataram que nunca conseguiram consultas no prazo de 24 horas)» foram avaliados como não satisfatórios.
Os locais de diagnóstico e o item «Procurou a unidade de saúde mais próxima da sua casa» apresentaram associação estatística (p=0,010). Na análise de resíduos, observou-se que a casela composta por doentes que sempre foram à Unidade de Saúde mais próxima do seu domicílio e foram diagnosticados no Hospital Escola (34,6%) apresentaram associação estatística.
DISCUSSÃO
O perfil socioeconômico e demográfico dos doentes de tuberculose entrevistados é compatível com achados de outros estudos nacionais e internacionais que também evidenciam o predomínio do sexo masculino e baixo nível de escolaridade entre doentes de TB 8,15,19.
O município deste estudo apresenta uma área urbana segmentada social e espacialmente, com concentração de pessoas de baixo nível de escolaridade nas regiões periféricas (norte e nordeste), que albergam populações com piores indicadores sociais, econômicos e habitacionais, apesar das condições de acesso a escola e a educação serem melhores do que a média nacional 20. Fatores sociais e econômicos desfavoráveis, como desemprego e, consequentemente, a pobreza, tendem a afetar o acesso aos serviços de saúde 1,2,6,9,14.
Ressalta-se que a baixa escolaridade é um importante indicador social como barreira sociocultural no acesso aos serviços de saúde devido à deficiência de conhecimento e percepção, pelo doente, dos sinais e sintomas da doença, retardando a busca pelo serviço de diagnóstico 1,9,14,15,21.
As adequadas condições de vida e moradia, também evidenciadas nos resultados, provavelmente são reflexos das políticas de desfavelamento e financiamento de casas populares para a população de baixa renda no município. Uma pequena maioria possui melhores condições de moradia, no entanto, é importante considerar a parcela da população não incluída nestas condições, prestando atenção às contradições existentes por trás dos números, dando maior visibilidade à pobreza, com o cuidado de não banalizar as desigualdades sociais que intensificam a exclusão social.
Apesar de o município investir nas condições de vida, de moradia, escolaridade e de saúde, ainda persistem barreiras geográficas, socioculturais e econômicas que dificultam o acesso dos doentes aos serviços, pois esta população continua nas áreas periféricas, menos favorecidas e vulneráveis ao risco de desenvolver TB 1,3,9,10,15,16.
Este estudo também apontou barreiras geográficas relacionadas à distância entre a moradia do doente e a Unidade de Saúde, reforçando a importância da organização dos serviços de atenção primária, como porta de entrada aos serviços de saúde, na lógica de territorialidade 9, considerando que a proximidade da residência com a unidade de saúde é fator positivo para a procura pelo serviço já no início da doença. 1-3,9,15.
O município tem trabalhado na reorganização da rede de AB, redefinindo as áreas de abrangência das unidades de saúde, em proximidade às residências dos usuários. Porém, a distância da moradia ao serviço de saúde representou, além de barreira geográfica ao diagnóstico, uma barreira econômica, pelo impacto financeiro nas atividades profissionais e pessoais do doente, que perde o dia de trabalho ou compromissos para comparecer à consulta na unidade de saúde, mesmo mediante atestado médico, o que implica em perda de rendimentos e gastos com transporte 14,22. Esta situação pode desestimular o retorno do doente à unidade de saúde, o que reforça a importância do vínculo e do preparo dos serviços e dos profissionais de saúde para o acolhimento do paciente com suspeita de TB 12,22.
A literatura aponta o despreparo dos serviços de saúde e dos profissionais em relação a suspeita clínica e solicitação de exames como fator comum para o retardo do diagnóstico da doença 12,13,23.
É importante ressaltar que a média encontrada neste estudo, de três procuras para conseguir atendimento no serviço para o diagnóstico da TB, retrata barreiras organizacionais que podem retardar o diagnóstico da doença, tais como a burocracia do sistema de agendamento de consultas devido à demanda reprimida, que gera filas de espera ou procura por serviço de Pronto Atendimento 1-3,6,9,26.
As dificuldades dos profissionais das Unidades Básicas de Saúde em diagnosticar a doença, resultam em encaminhamentos ou na procura espontânea do doente pelos serviços de Pronto Atendimento que, por sua vez, não estão preparados para atender estes doentes e acabam por encaminhá-los para hospitais conveniados ao SUS, ainda sem diagnóstico 25.
Os resultados encontrados neste estudo são compatíveis com estas proposições, visto que muitos dos doentes estudados sempre frequentaram a Unidade de Saúde mais próxima do seu domicílio e tiveram o diagnóstico de TB no Hospital Escola do município. Este resultado reforça que o processo de descentralização das ações de controle da TB, inclusive o diagnóstico precoce, deve considerar a sensibilização e capacitação das pessoas, do nível local ao central, além da organização dos serviços e profissionais pautadas na realidade e necessidades reais da população.
Embora o diagnóstico e tratamento precoces da TB sejam considerados responsabilidade da AB, a literatura sugere que o âmbito hospitalar é o nível de atenção mais preparado para esse fim.
Um estudo realizado no município de São Paulo também constatou que os hospitais e serviços de Pronto-atendimentos foram os locais que mais descobriram a TB naquele município, sugerindo que estes sejam os locais prioritários para «se investir na agilidade e qualidade do diagnóstico precoce, bem como na orientação adequada para o tratamento» 26.
Os autores ainda destacam que é importante e necessária a efetivação do fluxo de referência e contra referência entre os serviços de emergência e as Unidades Básicas de Saúde, para garantir a sistematização e continuidade do tratamento na AB 26.
Neste contexto, concordamos com a gradualidade da transferência das ações de controle para a AB, ressaltando a necessidade de investimentos também neste âmbito de atenção, tanto em suficiência e competência de recursos humanos, como na organização dos serviços, para o acolhimento adequado das pessoas 27.
Todavia, cabe salientar que este estudo apresenta algumas limitações, das quais destacamos: o longo período de coleta; as dificuldades de contato com o doente; a memória do doente quando questionado do passado; os resultados refletem a realidade de um município.
Os resultados deste estudo evidenciaram que, em relação ao acesso ao diagnóstico da TB, o desempenho dos serviços de atenção primária à saúde no município do estudo foi avaliado como regular e não satisfatório. Esta avaliação reforça a complexidade do acesso ao diagnóstico de TB nos serviços de APS, influenciado por diversos fatores inerentes ao doente e ao serviço, que se configuram em barreiras socioculturais, organizacionais, geográficas e econômicas.
Embora o município invista no fortalecimento da APS como porta de entrada aos outros serviços, e exista o vínculo dos usuários com esses serviços de saúde, a maioria dos diagnósticos ocorreu nos serviços hospitalares, indicando a falta de resolubilidade da APS. Há, portanto, uma barreira organizacional, provavelmente caracterizada pela falta de preparo dos profissionais e do serviço no manejo da TB. Os resultados também apontam o ônus financeiro e de tempo que afetam os doentes de tuberculose, retardando o diagnóstico e dificultando, mais uma vez, o controle da doença.
Assim, é possível concluir que o diagnóstico precoce da TB na atenção primária à saúde ainda apresenta fragilidades. São muitos os desafios a serem enfrentados para o fortalecimento deste nível de atenção, com capacidade organizacional para a superação das deficiências relacionadas ao doente e ao serviço que dificultam o acesso ao diagnóstico da TB.