O envolvimento de crianças e adolescentes com o bullying escolar é associado a problemas de saúde, que podem desencadear transtornos psicológicos ao longo do clico vital. Nesta direção, as consequências negativas deste tipo de comportamento aos envolvidos e à comunidade escolar, associadas ao aumento da sua prevalência e ocorrência, o converteram em um problema de saúde pública mundial 1-3. O termo bullying se refere a uma forma específica de comportamento agressivo e violento no contexto escolar entre pares. Sendo caracterizado a partir de três critérios: intencionalidade, repetitividade e desequilíbrio de poder 2,4,5.
Estudantes brasileiros são cada mais expostos ao bullying e a literatura indica taxas elevadas de prevalência no contexto escolar. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (peNSE), desenvolvida em 2012 com uma amostra de 109.104 estudantes brasileiros, identificou o envolvimento em situações de bullying, em algum nível, em 28% dos escolares 6. Em 2009, a PeNSE constatou que 30,8% de uma amostra de 60.973 estudantes haviam sofrido bullying no mês anterior à coleta de dados 7.
Internacionalmente, uma pesquisa transversal e trans-cultural realizada com 202.056 estudantes, comparando a prevalência de bullying em 40 países, revelou que, em média, 26% de escolares adolescentes estavam envolvidos nesse tipo de violência 8. Em Portugal, uma pesquisa desenvolvida com 360 alunos de escolas públicas identificou uma taxa média de envolvimento em situações de bullying de 27,5% 9. Na América Latina, concretamente na Nicarágua, uma investigação em amostra composta por 3.042 estudantes identificou que 50% deles estava envolvido em situações de bullying, desempenhando algum papel (agressor, vítima ou vítima/agressor) 10.
Estudos recentes já apontam para as interfaces existentes entre o fenômeno e as relações e contextos familiares. A literatura científica evidencia que a maneira como as relações familiares se desenvolvem podem se converter em fator de proteção ou de risco para a prática do bullying, a vitimização ou a construção de respostas para conflitos interpessoais e diferenças sociais 11-18.
Nesse sentido, esta apreciação contribui com a literatura existente, abordando o bullying e suas relações com a família a partir do referencial Bioecológico do Desenvolvimento. Esse paradigma é estruturado em cinco componentes/sistemas interconectados que norteiam a teoria e as pesquisas que o utilizam como referencial teórico: 1 individual, 2 microssistema, 3 mesossis-tema, 4 exossistema e 5 macrossistema. Esses sistemas são concebidos como encaixados e em interface, uns dentro dos outros 19.
O microssistema se refere ao ambiente dentro do qual as pessoas se relacionam num contexto imediato. O mesossistema é um conjunto de microssistemas, em interação, que influenciam no desenvolvimento e no comportamento das pessoas. Estes dois sistemas são considerados proximais, ao passo que os exossistemas, em que a pessoa em desenvolvimento não está inserida ativamente, mas aí podem ocorrer eventos que a afetam, e os macrossistemas, em que todos os outros ambientes formam uma rede de interconexões, são componentes mais distais do plano individual, como as atividades profissionais dos pais, o sistema de crenças e cultura, as atitudes sociais, as políticas públicas, entre outras 13,19,20.
Assim sendo, depreendem-se as seguintes questões: quais as contribuições da família para o envolvimento de estudantes com o bullying escolar? Existem evidências científicas que correlacionem essas variáveis (família e bullying)? O equacionamento dessas questões, a partir do referencial adotado, no campo da saúde, contribui com a compreensão dos processos de violência no território escolar e, consequentemente, com o surgimento de novas perspectivas intersetoriais no enfrentamento da problemática, uma vez que, na síntese das principais conclusões revisadas, ela é abordada de forma contextual e ampliada.
A partir dessa perspectiva, objetivou-se analisar as relações entre o contexto familiar e o envolvimento em situações de bullying escolar, examinando as associações estabelecidas na produção nacional e internacional.
MÉTODOS
Este estudo se caracteriza como uma revisão sistemática da literatura, implementada em sua modalidade qualitativa 21. A pesquisa foi operacionalizada mediante buscas nas bases de dados Web of Science, PsycoInfo, PubMed, Lilacs e na biblioteca virtual SCIELO. A questão norteadora da busca foi: Quais as relações entre o contexto familiar e o envolvimento de escolares em situações de bullying? As buscas foram operacionalizadas mediante os seguintes cruzamentos: 1. bullying and family; e 2. bullying and parents, e seus correlatos em português e espanhol. Os procedimentos de busca foram desenvolvidos em janeiro de 2014.
Estabeleceram-se com critérios prévios de inclusão na seleção um recorte temporal de cinco anos (2009-2013), relacionado ao ano de publicação, e a definição dos idiomas contemplados (inglês, português e espanhol). Também foram determinados como critérios de inclusão: a) modalidade de produção científica (estudos empíricos, relatos de casos, relato de pesquisa); b) produções cuja metodologia adotada permitia obter evidências claras sobre o tema em estudo (objetivo); c) artigos que ofereciam associações entre o bullying escolar e o contexto familiar; d) estudos pertinentes ao tema em estudo e sua questão norteadora.
Numa primeira etapa, todos os resultados possíveis foram considerados para o primeiro refinamento dos achados (leitura de títulos e resumos). Posteriormente, foram recuperados e lidos na íntegra os artigos originais selecionados, delimitando o corpus de análise. Os artigos selecionados foram avaliados quanto à qualidade metodológica a partir de dois instrumentos: Critical Appraisal Skills Programe (CASP) 22 e uma tabela adaptada dos itens de avaliação de qualidade metodológica indicada pela Cochrane Collaboration23. O CASP inclui 10 dimensões de avaliação e, após a análise, cada estudo foi classificado em 2 categorias (A e B), sendo que a categoria a reúne os estudos avaliados com baixo risco de viés e na categoria B são incluídos os estudos que apresentam um risco de viés moderado 22. Na avaliação segundo os critérios definidos pela pela Cochrane Collaboration23 cada artigo foi verificado e se concedeu uma pontuação sendo considerados artigos de alta qualidade os que obtiveram nota de 7 a 8 pontos, os de moderada qualidade obtiveram nota de 4 a 6, e os avaliados como de baixa qualidade os que apresentaram nota de 1 a 3 pontos.
A análise dos dados seguiu os pressupostos da metassíntese 24. As informações revisadas ainda foram agrupadas considerando o referencial teórico adotado por este estudo (Bioecológico).
RESULTADOS
Na primeira etapa do estudo todos os resultados possíveis e encontrados foram considerados totalizando 937 artigos, eliminadas as repetições entre os cruzamentos ou entre as bases e a biblioteca. O fluxo do processo de construção do corpus do estudo, detalhando os achados entre as bases e o processo de exclusão de artigos, está sintetizado na Figura 1.
Constituíram o corpus desta revisão 61 estudos (n-61). Deste total, 54 possuíam original em inglês, cinco em espanhol e dois em português. Considerando a produção por ano se observou a seguinte indexação, com maior incidência de estudos compreendidos pela revisão em 2012. No que se refere ao contexto das pesquisas publicadas, destaca-se o predomínio dos Estados Unidos, com maior percentual de artigos produzidos no período revisado, seguido por estudos multicêntricos realizados na Europa e América do Norte.
Grande parte dos estudos desenvolveu questões que relacionavam a ocorrência de bullying a fatores familiares. Alguns apresentaram perspectivas comportamentais, outras dentro de concepções mais interacionistas do desenvolvimento, porém, 44 não definiram o referencial teórico adotado. Nos estudos que apresentaram suas posições teóricas, destacam-se a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento, a Teoria do Apego, a Teoria da Aprendizagem Social, a General Strain Theory, e a PARTheory - Parental Acceptance-Rejection Theory.
Os principais resultados arregimentados sobre a relação entre bullying e família foram analisados seguindo o modelo teórico adotado por este estudo e seus principais conceitos. Assim sendo, a caracterização segundo os fatores familiares que se relacionam ao envolvimento dos estudantes com o bullying escolar está apresentada na Tabela 1, e se adotou como princípio de organização e categorização quatro componentes do paradigma bioecológico - micro, meso, exo e macrossistema.
Percebe-se que a maioria dos estudos possuía foco no nível do microssistema familiar, sendo que nos demais níveis, principalmente no mesossistema, em que se explora o fenômeno a partir da interação entre microssistemas (família, escola, grupo de amigos, por exemplo) nos quais os estudantes estão inseridos, há um número menor de pesquisas.
Sobre o delineamento metodológico, estudos de natureza quantitativa foram predominantes, pois apenas um estudo qualitativo foi identificado. A avaliação da qualidade metodológica dos estudos está apresentada na Tabela 2.
Na avaliação com o instrumento CASP, metade dos estudos foram classificados como de nível a. O mesmo ocorreu na avaliação do risco de viés segundo os itens de avaliação de qualidade metodológica, formulados a partir das orientações da Cochrane Collaboration. Os estudos avaliados como de nível b ou de qualidade moderada apresentaram fragilidades no que se refere, principalmente, ao detalhamento dos procedimentos de coleta de dados, ao exame crítico do pesquisador sobre a definição do passo a passo do estudo, à menção aos aspectos éticos e aos procedimentos de definição de amostras. Dois estudos 16,25 apresentaram viés plausível (baixa qualidade) relacionado à definição de desfecho, ausência de viés na seleção da amostra e indicações de limitações e contribuições do estudo, o que seriamente enfraquece a confiança em seus resultados.
Os dois estudos brasileiros revisados foram avaliados como de boa qualidade, porém se identificou fragilidades que comprometem seus resultados. Nesses casos, a ausência de justificativas para o tamanho ou a definição de amostras, a presença de viés de seleção 11,49, a falta de detalhamento de todos os procedimentos de coleta de dados e da sumarização das limitações e contribuições do estudo 11 foram os elementos avaliados como ausentes ou frágeis na produção nacional revisada.
A estratégia metodológica que se destacou nos estudos foi o questionário, utilizado exclusivamente por 35 dos trabalhos analisados. O uso combinado de instrumentos também foi significativo e assinalou em alguns dos casos a associação de questionários com escalas, entrevistas ou formulários. Entrevistas, análise de dados secundários (originários de estudos maiores), uso de escalas, grupo focal, inquérito e inventários de saúde foram outros procedimentos utilizados na coleta de dados.
DISCUSSÃO
Os resultados desta pesquisa revelam que as experiências dos estudantes em situações de bullying escolar são multifacetadas e possuem relações com o contexto familiar. Percebue-se que a organização familiar e a maneira como os membros deste grupo se relacionam em termos de comportamento, sentimentos e afetos, oferecem ou não oportunidades para a construção de habilidades e respostas sociais, que diminuem a vulnerabilidade em relação ao fenômeno.
Observou-se que os aspectos do microssistema foram os mais expressivos e associados ao bullying. Nessa dimensão, verificou-se que o envolvimento positivo na família é traduzido pela supervisão parental, estabelecimento de regras, acompanhamento e comunicação positiva, fatores que são compreendidos como de proteção em relação à violência entre pares na escola 20,25,26,28,30,38,41,62. Por outro lado, quando crianças e adolescentes são expostos à violência no ambiente familiar se favorece a experiência de um mundo pouco seguro, em que os únicos papéis sociais a serem desempenhados é o de agressor e o de vítima 38,39,45-47,49,51.
No que tange a questão da monoparentalidade, apontada pelos estudos como forte fator de vulnerabilidade ao bullying, percebe-se que ela é associada ao aumento do estresse familiar e, também, a situações disfuncionais que influenciam de forma adversa no comportamento e desenvolvimento dos filhos 33,43,53-56. Além disso, esse tipo de arranjo influencia no clima familiar que é entendido como um elemento básico na origem de comportamentos de bullying na escola, pois tão importante como a estrutura da família são seus aspectos qualitativos (estilos parentais e clima familiar) 57,58,71,79. Assim, o bullying pode ser entendido como resposta que traduz um padrão global de interações negativas na família.
No âmbito dos níveis exo e macrossistemas, percebeu-se que, no conjunto, os baixos status educacional e socioeconômico dos pais, assim como as condições de trabalho, indicavam um aumento da vulnerabilidade ao bullying e a vitimização. Contudo, esses fatores, muitas vezes, coincidiram com outros fatores de risco variável, tais como o estresse familiar, conflitos, interação pai-filho e práticas parentais autoritárias, e devem ser considerados dentro de suas relações com estas outras variáveis, além daquelas que se referem às condições macroestruturais de vida e sociedade. Os níveis de violência da comunidade e da vizinhança também se referem a estes campos da análise.
Além disso, destaca-se que as questões macroeconômicas tendem a explicar em alguns países a prevalência de exposição ao bullying, como foi verificado por um estudo multicêntrico 77. Neste sentido, a desigualdade social termina oferecendo impactos à exposição e/ou envolvimento no fenômeno, pois estudantes em maior desvantagem socioeconômica têm maior risco de vitimização, assim como aqueles que frequentam escolas e vivem em países onde as diferenças socioeconômicas são maiores, características presentes na sociedade brasileira.
É importante ressaltar que essas características são produtos ocidentais e da organização econômica, bem como da história da desigualdade social presentes principalmente nas economias em desenvolvimento, caso do Brasil. Essas questões afetam a vida familiar e comprometem o envolvimento dos pais com os filhos. Bronffenbrenner 16 contribui com esta reflexão ao sentenciar que no âmbito doméstico, na família, muitas vezes, os pais não são eficazes no cuidado com os filhos não por negligência, mas por que as questões ecológicas se sobrepõem e não permitem maior carinho, proximidade e envolvimento.
No que se refere à avaliação da qualidade dos artigos, percebe-se que foi possível explorar as temáticas abordadas a partir de estudos com excelentes níveis de rigor metodológico. Ao mesmo tempo, pondera-se que o delineamento quantitativo da maioria dos estudos e o uso predominante de questionários na coleta de dados podem oferecer uma ilustração insuficiente acerca do tema, pois faltam análises sobre percepções, significados e sentidos produzidos sobre o bullying em relação à família, por exemplo. Além disso, verificou-se que pesquisas com definição de um referencial analítico, mesmo quantitativas, conseguiram problematizar questões mais amplas relacionadas às suas investigações.
Por fim, três importantes limitações devem ser consideradas na interpretação dos resultados revisados. Primeiramente, os estudos apresentaram grande heterogeneidade entre si e se originaram de diferentes países e contextos culturais, sendo pequena a produção nacional, o que dificulta uma compreensão fundamentada na realidade brasileira. Em segundo lugar, houve uma centralidade das influências do microssistema familiar no bullying e poucos dados sobre influências de níveis mais amplos. Em terceiro lugar, a predominância de pesquisas com delineamento trasnversal limita a compreensão de certos aspectos sobre o bullying, principalmente no que se refere aos seus aspectos causais e contextuais. Novas pesquisas sobre as temáticas abordadas são estimuladas ♦