Dessa forma, espera-se esclarecer o processo de produção do espaço, com seus conflitos socioterritoriais, enfatizando a relação entre os atores e os bens patrimoniais e contribuindo para construir saídas aos dilemas que envolvem a produção do habitat, o ordenamento territorial e a gestão da conservação de parques histórico-ambientais habitados.
Introdução
O presente artigo busca contribuir com elementos conceituais e empíricos para alimentar o debate acerca da produção social do habitat em áreas de interesse histórico-cultural. Dessa forma, espera-se esclarecer o processo de produção do espaço, com seus conflitos socioterritoriais, enfatizando a relação entre os atores e os bens patrimoniais e contribuindo para construir saídas aos dilemas que envolvem a produção do habitat, o ordenamento territorial e a gestão da conservação de parques históri-co-ambientais habitados.
No Brasil, desde a década de 1970, algumas iniciativas de implantação de Parques Históricos foram empreendidas em áreas urbanas habitadas e de grandes dimensões. Em Pernambuco, podemos destacar o Parque Histórico Nacional dos Guararapes, em 1971, e o Parque Metropolitano Armando de Holanda Cavalcanti, em 1979. Da criação, fundamentada em diagnósticos, inventários, planos e instrumentos legais, até se chegar à gestão, diversos fatores têm influenciado para que os objetivos referentes à conservação desses espaços não tenham sido plenamente atingidos, culminando em resultados pouco expressivos para preservação dos bens naturais e construídos, assim como para a valorização e fortalecimento dos bens imateriais, como práticas, costumes, saberes, etc.
A conservação de parques histórico-ambientais tem sido tema recorrente nas agendas das políticas públicas, nas pesquisas científicas, nas discussões académicas, assim como nas organizações e movimentos sociais locais e internacionais. Dado um modelo de desenvolvimento económico local, que se utiliza da mercantilização do património cultural e ambiental, a temática tem ganhado destaque devido aos impactos sobre o meio ambiente, sobre a integridade dos processos culturais e sobre a deterioração dos bens edificados (Bezerra, 2011).
Além disto, de forma bem peculiar, a inserção destes lugares próximos às áreas urbanas, ou nela encravados, tem exigido da gestão pública mudanças na abordagem da conservação. A demanda que se apresenta não mais se limita à institucionalização legal e implantação de mecanismos de proteção como, por exemplo, reconhecimento da sua importância cultural, publicação de leis de tombamentos e definição de poligonais, mas envolve a gestão dos problemas e tensões urbanos das próprias localidades, ou seja, as constantes transformações às quais as cidades estão sujeitas. Quando tais parques são ocupados por comunidades, complexas barreiras interpõem-se à gestão da sua conservação. Os interesses de gestores, técnicos e residentes revelam-se em constante conflito, como resultado das diferentes formas segundo as quais esses atores valoram e apropriam-se do meio natural e dos bens edificados. A produção do habitat se dá num ambiente de tensão que põe gestores e residentes em lados opostos.
É nesse contexto que o presente artigo concentra sua análise. O Parque Metropolitano Armando de Holanda Cavalcanti-PMAHC compreende um promontório que se eleva na costa plana do litoral do Estado de Pernambuco. Detém um vasto acervo de bens culturais tangíveis e intangíveis que contam fatos históricos, relacionados à ocupação do território pelos portugueses, assim como as batalhas entre os luso-brasileiros e os holandeses. Sua formação geológica testemunha a divisão do megacontinente de Gondwana, apresentando as mesmas formações rochosas encontradas no atual continente Africano. Além disso, as paisagens naturais, de rara beleza cênica, são atrativos turísticos internacionais.
Apesar de ter sido objeto de diversos planos e projetos de intervenção, o território em questão vem assistindo à intensificação do conflito entre os atores envolvidos e um constante processo de degradação. No cerne do conflito, identifica-se a permanência dos residentes. A forma como se apropriam do lugar, constroem suas habitações e apropriam-se dos bens culturais é distinta da visão de técnicos e gestores sobre a conservação daquele espaço. Em consequência, as ações parecem não conciliar interesses, mostrando-se pouco eficientes e efetivas na proteção dos bens e na resolução dos conflitos.
Objetivando compreender como as divergências referentes à valoração dos bens têm sido incorporadas pela gestão, assim como têm contribuído com os resultados, a pesquisa que dá insumo ao presente artigo adotou um caminho metodológico que se baseia na análise do conteúdo dos documentos que orientam a gestão, destacando-se os planos e projetos, assim como se baseia nas narrativas dos atores envolvidos. Após análise dos dados, foi possível identificar as divergências entre os interesses dos grupos envolvidos e as estratégias consolidadas nos planos e projetos.
O presente apoia-se no debate conceitual acerca do conflito presente na produção do espaço e dos valores patrimoniais que dão suporte à gestão da conservação. Tendo em vista que análise de dados da pesquisa se encontra em fase inicial, este artigo se atém ao Processo de Tombamento do Parque que, além de conter avaliações sobre seus valores culturais, definiu estratégias para sua gestão. Quanto às narrativas, re-corre-se às falas e depoimentos de alguns atores sociais envolvidos com o Parque.
Importa ressaltar que, apesar de parciais, os resultados apresentados permitiram certificar a pertinência dos conceitos e da metodologia construída para a pesquisa, assim como apontar alguns caminhos para resolução dos conflitos que envolvem a produção social do espaço e a Conservação Integrada.
Breve Histórico, Ocupação e Conflitos So-cioterritoriais
Com área de 270 hectares, o Parque Armando de Holanda Cavalcanti delimita-se ao norte pelas praias de Gaibu e Calhetas (Imagem 01), a leste pela praia de Nazaré, ao Sul pelas praias de Paraíso e Suape e, a Oeste, pelo continente, onde se situam áreas pertencentes ao Complexo Industrial e Portuário de Suape.
A ocupação do seu território confunde-se com a própria história da ocupação do país. No processo de tombamento do Cabo do Santo Agostinho, apresentado pelo órgão de preservação estadual1, há relatos de que entre 1501 e 1502, após o descobrimento oficial do Brasil por Pedro Álvares Cabral, a expedição comandada por Américo Vespúcio foi a primeira com objetivo específico de percorrer o litoral brasileiro e demarcar suas coordenadas geográficas. "Esse acidente geográfico determinava não o ponto mais saliente do continente sul-americano, porém o mais importante para os navegadores do século XVI, em suas rotas no Atlântico Sul" (Fundarpe, 1982, p. 53).
Em meados de 1630, boa parte do embarque do açúcar para Portugal, assim como o abastecimento da Capitania em armas e munições eram feitos pelo Porto de Suape. Tal fato fez com que a região do Cabo de Santo Agostinho se tornasse a segunda área mais fortificada de Pernambuco, perdendo apenas para o Recife. Com o objetivo de defender o continente, foram erguidas várias edificações militares na localidade que hoje corresponde ao Parque. A primeira edificação construída foi o Forte Castelo do Mar (Foto 2). Inicialmente, em 1630, configurava-se como baterias primitivas, com a finalidade de defesa do acesso ao Porto. Como apoio, na sua retaguarda, um pouco mais acima do promontório, foi construído o Quartel para guarda de material bélico e pólvora. Em meados de 1632, outras baterias foram erguidas: as de São Jorge, das quais permanecem apenas as ruínas de sua base, e a de Calhetas, em situação parecida (Fundarpe, 1982, p. 62). Em meados de 1633, "os portugueses iniciaram a construção do Forte do Pontal, concluído depois pelos holandeses, que o chamaram Van der Dussen" (Fundarpe, 1982, p. 63), ou 'Water Kasteel', traduzido como Forte Castelo do Mar.
No alto do promontório, destaca-se o conjunto edificado de Nazaré. Trata-se das construções mais antigas existentes no município. É formado pelo pequeno Vilarejo de Nazaré, as ruínas da Capela Velha, a Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, as ruínas do Convento Carmelita (Foto 3), o Farol Novo e a ruínas da Casa do Faroleiro. De acordo com a Fundarpe (1982), há registro sobre a data exata da construção da Igreja de Nazaré, tombada pelo Iphan[2]. Entretanto, há registro de navegadores espanhóis que fizeram referência à sua existência em meados de 1597.
Além do acervo edificado, o promontório representa a única região do Brasil onde afloram rochas graníticas de idade cretácea, quando ocorreu a cisão entre o continente sul-americano e o africano. "Há cerca de 102 milhões de anos, a região do Cabo de Santo Agostinho foi palco de um intenso magmatismo que deixou uma vasta exposição de rochas" (Cunha, 2017, p. 8).
A beleza cénica do litoral constitui o principal atra-tivo turístico no perímetro do Parque. As praias de Calhetas, Gaibu, Santo Agostinho e Paraíso exercem considerável fascínio sobre seus visitantes devido à rara beleza paisagística dos lugares. A atividade turística tem provocado transformações recentes no lugar. Bares, pousadas e outros imóveis foram construídos, informalmente, de maneira dissimulada, ao mesmo tempo em que o poder público local implantou infraes-truturas como pavimentação, iluminação e sinalização.
A criação do Parque aconteceu em 1978, pelo Governo do Estado de Pernambuco em resposta às pressões exercidas por organizações sociais que alertavam para os impactos ambientais, sociais e culturais sobre o património cultural do Cabo de Santo Agostinho, em consequéncia da instalação do Porto de Suape. Académicos e ativistas ambientais, interessados na defesa do meio ambiente natural, do património edificado e das comunidades tradicionais que ocupavam a área, liderados pelo economista Clóvis Cavalcanti, lançaram, em 1975, um manifesto contra o Complexo. Denominado 'A propósito de SUAPE', o documento foi um marco referencial para a atuação organizada da sociedade civil e ainda hoje a instituição Suape Global, criada a partir dos encontros do grupo, é uma referéncia na defesa dos direitos humanos para moradores da região.
Um Espaço Repleto de Conflitos
Devido ao processo de adensamento e expansão nas praias de Gaibu e Suape, nos últimos anos o número de novas moradias no Parque multiplicou-se rapidamente. Ao se transitar pelo Parque, não é difícil perceber construções sendo iniciadas. A necessidade dos ocupantes por moradia e serviços tem transformado a paisagem e, ao mesmo tempo, condicionado a percepção dos moradores sobre o próprio lugar. Para muitos residentes, o Parque lhes oferece a própria sobrevivência, na forma de habitação e atividade económica.
Dessa realidade decorre um intenso conflito: enquanto órgãos de preservação empenham-se na vigilância e retirada das ocupações, com vistas à preservação do espaço e dos bens edificados, os moradores insistem em ocupar o território e construir novas moradias. Além disso, algumas atividades de apoio ao Turismo têm causado desgastes na relação entre comunidade e órgãos de preservação.
Assim foi o caso da tirolesa[3] da Praia de Calhetas. O equipamento foi implantado em meados de 2010, por inciativa de um empresário local, descendente de antigos pescadores, com apoio e colaboração de outros residentes que trabalham na prestação de serviços. A tirolesa vinha sendo considerada um atrativo de destaque pelas agências de turismo. Apesar dos apelos dos moradores da praia, recentemente, em meados 2018, o equipamento foi interditado pelos órgãos de controle de uso e ocupação do solo, uma vez que não obteve obter as licenças necessárias. Posteriormente, foi desativado por força dos pareceres contrários, emitidos pelos órgãos de preservação.
Na condição de ente estatal proprietário da área, o Complexo Industrial e Portuário Governador Eraldo Gueiros-Suape tem a responsabilidade de assegurar o controle e vigilância do local, com o apoio de agentes armados e motorizados que fiscalizam constantemente os limites do território.
Em 2016, com o objetivo de preservar o patrimônio edificado, a empresa Suape resolveu cercar uma área de 130 hectares do Parque Metropolitano Armando de Holanda Cavalcanti. A iniciativa delimitou, com 6 km de cercas, uma parte da área do Parque na qual estão situados os bens edificados, além de uma ocupação esparsa. A esse perímetro deu-se o nome de 'Polígono de Proteção Rigorosa do Parque'. Na visão do Complexo Industrial Portuário de Suape, o cerca-mento foi uma ação fundamental para evitar novas ocupações e conter a depredação dos bens edificados e a degradação do meio ambiente (Suape, 2016).
Se, para os órgãos públicos, os bens que compõem o patrimônio natural e edificado devem ser cercados e protegidos, para os residentes o espaço deve ser ocupado e explorado. Nesse contexto, as ações do poder público não têm conseguido conciliar os interesses de residentes e gestores. Ao contrário disso, o conflito in-tensifica-se a cada dia.
A teoria da produção do espaço, desenvolvida por Henri Lefebvre, em 1973, ajuda-nos a compreender como o espaço é socialmente construído e como o conflito é um fator inerente ao processo de sua construção. Para Lapa e Zancheti (2012, p. 28), a Conservação Integrada consiste, sobretudo, na gestão de conflitos. Considerar o próprio conflito como pressuposto da produção do espaço pode fornecer subsídios para a melhor compreensão dos problemas.
Para apreensão do território do Parque, é necessário atentar às três dimensões do espaço teorizadas por Lefebvre: o percebido, cujo aspecto pode ser apreendido por meio dos sentidos. Trata-se do espaço como se apresenta a todos, residentes e visitantes, em seu aspecto físico-natural, suas edificações e sua infraes-trutura; o concebido, que se refere ao planejado, pois, afinal, o espaço não pode ser percebido enquanto tal sem ter sido concebido previamente em pensamento; e por fim, o vivido, muito mais que percebido, repleto de simbolismos que a história de um grupo social pode legar (Schmid, 2012).
As alterações do espaço se processam num ambiente de conflitos, pois atendem a distintos interesses. Da mesma maneira, ocorre a produção social do habitat. Os sujeitos, com conhecimento e ideologia, planejam e modificam o espaço. O espaço percebido decorre dia-leticamente e em conflito com as alterações do espaço, provocadas pelos sujeitos que as executam. Inclusive, essa é uma observação constante na explicação de Le-febvre sobre a interface entre as dimensões.
A prática social material tomada como ponto de partida da vida e da análise constitui o primeiro momento. Ela permanece em contradição com o segundo momento: conhecimento, compreendido por Lefebvre como abstração, como poder concreto e como compulsão ou constrangimento. (Schmid, 2012, p. 95)
É interessante perceber que o próprio Lefebvre já colocava como pressuposto o conflito entre essas dimensões, prevendo que, cedo ou tarde, as contradições apareceriam. No Parque, os planos e ações do poder público parecem não refletir os interesses dos residentes. Ao ser planejado, o espaço traz consigo uma lógica política que consolida os interesses de um grupo em detrimento de outro.
As representações do espaço seriam penetradas de saber (conhecimento e ideologia misturados) sempre relativo e em transformação. Elas seriam, portanto, objetivas, embora possam ser revistas. Verdadeiras ou Falsas? Abstratas, com certeza, as representações do espaço entram na prática social e política, as relações estabelecidas entre os objetos e as pessoas no espaço representado dependendo de uma lógica que o faz, cedo ou tarde, explodir incoerente (Lefebvre, 2000/2006, p. 69).
Por fim, a análise não faria sentido se não considerássemos os aspectos culturais e afetivos que envolvem a prática social. Todo processo, por meio do qual o espaço é percebido e modificado, é entranhado de simbolismos e aspectos culturais que o influenciam, ao mesmo tempo em que transformam os sujeitos, individual e coletivamente.
Nesse contexto, a apreensão das memórias contribui para compreensão do processo de valoração dos bens por parte dos residentes e criar subsídios ao planejamento das ações, em áreas históricas como a do Parque. Aspectos culturais que envolvem o espaço vivido podem ser determinantes para a forma como os sujeitos percebem e transformam o lugar por meio de ações de planejamento e gestão.
A Significância Cultural como Instrumento para Tomada de Decisão
Desde a década de 1960, o termo ‘significância’ cultural tem aparecido nas discussões e documentos a respeito da Conservação do Patrimônio Histórico. Após as resoluções da 5.ª Assembleia Geral do Conselho Internacional para os Monumentos e Sítios (Icomos), realizada em 1978, em Moscou, o Icomos adotou a Carta de Burra que definiu a significância cultural como o conjunto dos valores estético, histórico, científico, social ou espiritual, para as gerações passadas, presentes ou futuras, os quais estão consubstanciados nos lugares, tecidos, assentamentos, usos, associações, registros, objetos e lugares relacionados (Austrália Icomos, 1999). Essa definição foi base para a com preensão da significância pelos países gestores.
Para Zancheti & Hidaka (2010, p. 2), de acordo com o que está definido no documento, pode-se compreender a “significância cultural como sinônimo de valor do património". Mesmo que seja atribuído num ambiente conflituoso, o valor será uma construção social que deve ser considerada como representativa de um desejo coletivo.
Para Connor (1992/1994), o valor está presente em toda experiência humana. Ele é inescapável. O ato de valorar, modificar ou até mesmo negar valor é como uma espécie de lei da natureza. Para Prats (1997 apud Silva, 2000), a valoração de um bem, tornando-o património, é uma construção social, pois constitui uma idealização construída por um grupo de indivíduos.
Dada a importância que a significância cultural do património vem ganhando para o desenvolvimento de mecanismos de gestão da conservação de bens patrimoniais, a compreensão das questões sociocultu-rais, relacionadas ao fenómeno de atribuição de valor, tornou-se imprescindível.
Os postulados de Alois Riegl, na publicação Der Moderne Denkmalkultus, de 1903, foram pioneiros na análise sobre o valor. Refletindo sobre o culto aos monumentos, Riegl afirmou não existir o valor artístico absoluto, mas sim um valor atribuído, no presente, pelo sujeito contemporâneo (Riegl, 1903/2014). Com tal afirmação, Riegl considerou o valor como uma qualidade atribuída pelos sujeitos e não um atributo do objeto.
Muñoz Viñas (2004) também trouxe uma contribuição importante para a compreensão da significância cultural e quebra do paradigma do valor como atributo inerente ao objeto. O autor rompeu com a ideia de que os objetos dignos de preservação são aqueles cujos tradicionais valores históricos e artísticos podem ser constatados através da inteireza de seus elementos físicos. Ele argumentou que os objetos são dignos de conservação quando representam os significados sociais e sentimentais de um grupo social. Para Viñas, um objeto de conservação somente deve ser considerado como tal, quando sujeitos, a princípio individualmente e posteriormente de forma coletiva, atribuem valores conferindo-lhe significância cultural (Viñas, 2004).
Zancheti & Hidaka (2010, p. 24) comungam da mesma linha de pensamento. Para eles, "os valores não são coisas nem elementos das coisas, são uma qualidade, um adjetivo". O sujeito interage com o objeto em determinados contextos sociais e os valores são determinados por essa relação de interação, do passado e do presente.
A compreensão de que o valor é algo atribuído aos objetos assim como o seu caráter dinâmico, em virtude do contexto e do tempo em que se encontram os sujeitos, contribuiu para o entendimento de que a significância cultural, como instrumento de conservação, deve ser revista periodicamente. Randal Mason (2004), em seu trabalho Fixing Historic Preservation: A Constructive Critical Significance criticou o processo de identificação da significância e questionou o julgamento que prioriza os valores canónicos da história da arte, da arquitetura e suas associações. O autor também ressaltou a importância de ampliar a participação dos sujeitos, incorporando outros atores envolvidos além dos técnicos e especialistas.
A dinamicidade que caracteriza a significância cultural dos bens patrimoniais coaduna-se com os argumentos apresentados por Lefebvre ao construir sua teoria da produção do espaço. O que se concebe para o Parque, ao longo do tempo pode revelar-se contraditório em relação aos valores atuais. Em virtude dessas constatações, cabe aos gestores da conservação avaliar permanentemente as estratégias formuladas e confrontá-las com as narrativas presentes.
O que pode ser revelado com base no Processo de Tombamento do PMAHC
A coleta de dados da pesquisa compreende dois momentos: o primeiro, com a finalidade de identificar a significância cultural com base nos instrumentos de gestão; e o segundo, durante o qual a significância é interpretada a partir dos valores atribuídos pelos sujeitos envolvidos.
Ainda que a coleta de dados se encontre na fase inicial, alguns dados já oferecem certos indicativos, os quais são expostos adiante. O documento analisado foi o Processo de Tombamento do Cabo de Santo Agostinho pelo Governo do Estado de Pernambuco, por meio da Fundação de Arte e Cultura, a Fundarpe. Dentre os documentos que compõem o referido processo, o primeiro que faz alguma referéncia ao valor do lugar é a Proposta de Tombamento, que exalta valores históricos e paisagísticos naturais.
[...] Tanto o acidente geográfico propriamente dito como as áreas que lhe são imediatamente adjacentes constituem, sabidamente, um sítio histórico e uma paisagem natural, além de repositório de edificações de valor, de inegável importância para Pernambuco e para o País [...]. (Fundarpe, 1982, p. 2)
Outro documento, o Exame Técnico 166/1982, de carácter avaliativo, trata da homologação definitiva do tombamento. O Exame descreveu detalhadamente as características naturais da região, o histórico da ocupação do território e as edificações existentes. Além desses aspectos, a preocupação com os possíveis impactos do Porto de Suape demonstrou que havia uma mobilização para proteger a paisagem natural e as edificações.
[...] A importância do Sítio Histórico do Cabo de St. Agostinho é indiscutível como se pode ver pela documentação anexada a este processo. Não apenas pelos acontecimentos que ali ocorreram, mas igualmente pelas construções e ruínas de caráter excepcional existentes na área [...] A paisagem natural que se percebia do alto do Cabo em direção ao sul era, até poucos anos, de extraordinária beleza [...] Deleitar-se hoje com essa visão excepcional, lamentavelmente não é mais possível [...] Única em Pernambuco, está comprometida desde o início da década de 70, com as obras de um porto industrial (Fundarpe, 1982, p. 135, grifos nossos).
Levando-se em conta os motivos expostos neste processo e reconhecendo ainda o dever de defender o que há de mais digno de preservar, que são as realizações do povo e o direito deste de transmitir sua experiência aos vindouros, considerando-se os danos irremediáveis que comprometeram essa paisagem, a FUNDARPE é de Parecer Favorável ao Tombamento do Cabo de Sto. Agostinho e da Baia de Suape os quais interferem drasticamente no conjunto (Fundarpe, 1982, p. 136, grifos nossos).
Integrando o processo de Tombamento, a Resolução 2/1993 do Conselho Estadual de Cultura deu destaque ao julgamento dos valores históricos, artísticos e paisagísticos.
[...] conjunto de inegável valor histórico, artístico e paisagístico, não só pelo fato da área em questão ter sido palco - a exemplo do Parque dos Guararapes, na primeira metade do Século XVII, das lutas empreendidas pelos luso-brasileiros contra o invasor holandés - o que, sem exagero, eleva-a, também, à condição de berço da nacionalidade, como, ainda, pelos inúmeros monumentos remanescentes daquela época [... ] Diante de tudo isso, seja, do indiscutível valor histórico artístico e paisagístico - ousemos acrescentar: também arqueológico - da área, e da inafastável regularidade da corrente procedimental, opinamos pelo tombamento proposto. [...] (Fundarpe, 1982, p. 145, grifos nossos).
A análise inicial dos documentos mostrou que a iniciativa do tombamento do Cabo de St. Agostinhoteve origem após as primeiras ações de implantação do complexo de Suape. A preocupação voltou-se para a proteção dos bens edificados e da paisagem natural, avaliada pelos técnicos como 'excepcional' e cujo valor foi adjetivado como 'inegável'. Não obstante, não foi possível encontrar qualquer menção à participação da comunidade, seja na avaliação dos bens edificados, seja na utilização do espaço como atividade produtiva, na habitação ou no lazer. A única citação referente aos residentes limitou-se à identificação de algumas moradias e à avaliação para indenização de algumas.
A Memória como Lastro para Atribuição de Valor
Para melhor compreender os motivos que levam os sujeitos a apropriar-se dos objetos, adotando-os como património, o conceito de Memória, sobre o qual se pautam os estudos antropológicos, é de grande valia. Segundo Halbwachs (1950/1990), as memórias, apesar de individuais, são formadas nas relações sociais, conformando a memória coletiva de um grupo. Para conformar a memória coletiva, é necessário 'que haja bastantes pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos recordam possa ser construída sobre um fundamento comum' (Halbwachs, 1950/1990, p. 34).
Silva (2000) relacionou o fenômeno das escolhas com a própria noção de património. Para a autora, 'aquilo que é ou não é património, depende do que, para um determinado coletivo humano, num determinado lapso de tempo, se considera socialmente digno de ser legado a gerações futuras' (Silva, 2000, p. 218).
Tendo em vista que existe um período temporal durante o qual um coletivo humano, baseado em suas memórias, realiza seus julgamentos e escolhe o que deve ser legado às futuras gerações, questiona-se se as memórias que conferiram ao Parque Armando de Holanda Cavalcanti o status de património, ainda permanecem satisfazendo os interesses atuais. Em outras palavras, trata-se de saber se os valores históricos e artísticos que motivaram as iniciativas protecionistas permanecem inalterados entre gestores e residentes.
Para Pierre Nora (1984/1993), nos dias atuais existe uma obsessão em arquivar o que marca nossa contemporaneidade. Na busca por registros imutáveis da memória, para serem lembrados no presente, os 'lugares de memória' transformam-se em 'lugares de história'. Quando fatos históricos e monumentos se tornam objetos de um processo de Conservação, uma memória coletiva se consolida e, num determinado período, torna-se hegemónica. Nesse caso, não são mais lugares de memória, mas de história.
Tudo o que é chamado hoje de memória, não é, portanto, memória, mas já história [...] a memória, transformada por sua passagem em história, que é quase o contrário: voluntária e deliberada, vivida como um dever e não mais espontânea: psicológica, individual e subjetiva e não mais social, coletiva, globalizante. (Nora, 1984/1993, p. 14).
Em geral, a História se impõe de forma hegemónica, representando a memória oficial de grupos distintos, por meio de um processo intelectual e crítico que homogeneíza os fatos. Essa homogeneização é criticada por Lefebvre na construção da sua Tríade Dia-lética. Para o autor, as transformações planejadas no ambiente são padronizações de interesses distintos e, portanto, cedo ou tarde se revelarão conflituosas (Lefebvre, 2000/2006).
Sobre esse aspecto, o trabalho de Pollak (1989), a respeito das memórias em disputa, ajudanos a compreender o conflito entre o espaço concebido e os interesses dos diversos atores. Para ele, ao se estabelecer uma história oficial, algumas memórias são resguardadas. Na busca por fortalecimento, tendem a se recolher, aguardando o momento propício para aflorar novamente. Isso significa dizer que a memória não se apaga, ou morre, pelo contrário, poderíamos dizer que tem outra história para contar (Pollak, 1989).
Com base nesse pensamento, pode-se refletir sobre a existência de uma nova realidade socioespacial propícia à disputa. As memórias afloram conforme os interesses dos distintos grupos sociais. Poder-se-ia pensar na construção de uma nova história para o Parque? Nora (1984/1993) aponta para a possibilidade de revitalização da memória.
[...] A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações [...] (Nora, 1984/1993, p. 9).
Com base na afirmação acima, Nora (1984/1993) oferece um arcabouço teórico que nos permite acreditar numa possível ressignificação dos bens e atribuição de novos valores.
Essa é uma possibilidade ainda não cogitada para o Parque Armando de Holanda Cavalcanti. Diante da realidade socioeconómica, política e urbana na qual o Parque está inserido, diferente daquela na época da sua institucionalização, indaga-se se os valores atuais ainda são os mesmo da significância cultural que se tenta preservar. Com base nas reflexões de Nora (1984/1993), indaga-se também se seria possível ressignificar os objetos e construir uma nova história a preservar?
O que as Narrativas podem dizer
Além de demonstrar o clima de tensão, alguns discursos apontam a possibilidade de desencontros entre os valores apropriados nos documentos de gestão e os que atribuídos pelos residentes.
Em 29 de maio de 2019, houve uma audiência pública na Câmara de Vereadores do Município do Cabo de St. Agostinho, cujo intuito foi discutir as ações voltadas à conservação do Parque. A motivação principal foram as ações de controle urbano. Nos discursos dos gestores, é possível perceber a valorização do Parque enquanto registro da história, da beleza cénica e paisagística, assim como do rico acervo de bens edificados. De modo diferente, no discurso das entidades e dos moradores, a preocupação com a permanéncia local é evidente. Essa preocupação aflora nos relatos de violéncia durante as ações de controle urbano. Sérgio Belo, morador da Vila Gaibu, pronunciou-se da seguinte forma:
Minha pauta é de construção, e pra isso temos que aprender a tratar os problemas sociais que estão ali dentro. As pessoas precisam ser tratadas com dignidade, precisam participar da construção das propostas e ter a visão do futuro do Parque (Belo, 2019).
Em 01 de agosto de 2019, na reunião do Conselho Gestor do Parque, Gercino Rocha, residente de Sua-pe, proprietário de um pequeno restaurante, relatou a recente operação de controle urbano na área: "precisamos ser tratados com mais dignidade, com mais respeito. Peço que acabe com essas ações. Vamos conversar? Parecia mais que era o qué? Bandido! " (Rocha, 2019).
Esses relatos revelam a preocupação urgente dos moradores com a permanéncia em seus locais de moradia. A discussão a respeito das ações de controle urbano tem envolvido órgãos públicos responsáveis pela gestão do solo (Prefeitura do Cabo de Santo Agostinho, Suape, CPRH), Ministério Público, Polícia Militar e entidades de defesa dos direitos sociais como o Fórum Suape e a DHesca[4].
Outro aspecto relevante é a preocupação com a integridade dos bens existentes. Entretanto, diferentemente do que se póde perceber no processo de tombamento, nas narrativas transparece o interesse de explorá-los, principalmente por meio da ativida-de turística. Na citada reunião do Conselho Gestor, o presidente da associação de pescadores de Gaibú, conhecido por 'Nau', relatou a preocupação com um antigo canhão, submerso nas águas em frente ao Forte de Nazaré. Para ele, o canhão deveria ser retirado do mar e exibido aos visitantes.
Além da violência durante ações de controle urbano, o presidente da Associação de Moradores de Nazaré referiu-se à eliminação de oportunidades de trabalho como no caso da interdição da tirolesa, na Praia de Suape. Para Alfredo Menezes (2019), o 'Fu-lia', a tirolesa, além de empregar alguns moradores, atraía turistas para a região.
Considerações Finais
Apontada como importante instrumento para a construção de políticas públicas, ao compreender o conjunto de valores atribuídos a um bem, a significância cultural traz consigo aspectos relacionados aos interesses dos diversos atores envolvidos com a gestão do sítio patrimonial. O ato de valorar os bens está diretamente associado ao momento político e aos interesses dos grupos sociais.
Em casos como o do Parque Metropolitano Armando de Holanda Cavalcanti, no qual a produção social do habitat se dá num ambiente de intenso controle urbano e ambiental, a tensão entre residentes e gestores da conservação apresenta-se como mais um componente a ser considerado na busca pela utilização sustentável do ambiente natural e dos bens edificados.
A valoração atribuída tanto pelos técnicos quanto pelos residentes aos bens patrimoniais exerce influência sobre a forma de apropriação de cada um dos grupos. Os resultados encontrados apontam para um desencontro entre os valores destacados no processo de tombamento e os que relatados pelos residentes.
Se, por um lado, a história, a paisagem natural e as antigas edificações despertaram o interesse dos técnicos por sua proteção, os mesmos atributos são destacados de outra forma pelos moradores. Para eles, o meio ambiente encontra-se disponível para ampliação das moradias e construção de equipamentos que promovam a utilização do espaço com vistas à geração de renda.
Nesse ambiente de disputas, as memórias que transparecem nos relatos mostram-se dinâmicas e susceptíveis a constantes revitalizações. Modificam-se conforme o espaço, o tempo e as conexões sociais. No caso do Parque, repleto de conflitos inerentes ao uso e gestão do solo, especialmente quanto à habitação e atividades produtivas, o ambiente mostra-se propício a tais revitalizações. Os valores, atribuídos à época de sua institucionalização, ou não são os mesmos ou exacerbaram apenas a visão de técnicos em detrimento da visão dos residentes.
O desafio contemporâneo da Conservação Urbana Integrada confronta-se com o desafio da produção social do habitat, demandando a conciliação dos interesses dos diferentes grupos, a saber, por um lado, a proteção do ambiente natural e dos bens edificados, imanente ao campo técnico, científico e académico, e o provimento de moradia para os residentes, assim como o desenvolvimento da economia local. Significa dizer que a Conservação do Parque deve buscar o equilíbrio entre a percepção dos técnicos e dos gestores em relação aos valores sociais, históricos, artísticos e paisagísticos locais, e a percepção dos residentes acerca dos bens patrimoniais, de sua valoração e sua utilização.
Nos dias atuais, a significância cultural mostra-se como instrumento indispensável para a tomada de decisões referentes às ações de Conservação. Para tal, impõe-se a necessidade de identificar os valores atribuídos pelos diversos atores envolvidos na gestão do espaço. Considerar a conservação um processo de produção do espaço conflituoso em sua essência e dinâmico nos leva a adotar uma postura de permanente monitoramento dos valores, elevando a possibilidade de éxito das ações.