É possível afirmar que as manifestações políticas tendem à busca de 'seus centros', ou seja, as pautas e os perfis se expressam de acordo com o centro urbano elencado, gerando as distinções políticas e representando os respectivos habitus de classe e sentipensamientos
Introdução
Em fevereiro de 2013, na cidade de Porto Alegre (RS), iniciou-se um movimento contra o aumento da passagem do transporte público, liderado por um coletivo denominado Bloco de Lutas. Em junho, as manifestações passaram a ser organizadas pelo Movimento Passe Livre[1], a partir de São Paulo, e tomaram corpo, atingindo a marca de 1 milhão de pessoas, presentes em 228 cidades brasileiras (Pinto, 2019). A pauta, que era municipalizada - a passagem de ônibus, foi substituída pelo combate à corrupção na cobertura feita pela grande mídia e, em especial, o Jornal Nacional (Souza, 2016). Nos anos de 2015 e 2016, a população voltou a sair maciçamente às ruas, assentindo a deposição da Presidenta Dilma Rousseff[2] em 2016, acusada de cometer "pedaladas fiscais"[3].
Desde então, a palavra rua, no Brasil, ganhou outro alcance e passou a ocupar as manchetes dos meios de comunicação a partir de seu uso como espaço de manifestação política.
De curioso, na ocupação desses espaços, estava a percepção de que as áreas centrais das grandes cidades, seus centros históricos, recepcionavam os grupos contra o impeachment, ao passo de que as orlas e os espaços mais valorizados pelo mercado imobiliário eram ocupados pelos grupos a favor do impeachment.
Restou a indagação: por que um lugar, e não outro, foi escolhido para as manifestações? Para responder ao questionamento, investigou-se até que ponto os processos de estruturação do espaço intraurbano das 26 capitais brasileiras e do Distrito Federal foram fundamentais para a associação do uso do centro principal pelas manifestações contra o impeachment em detrimento do uso dos espaços mais valorizados pelo mercado imobiliário nas manifestações a favor do impeachment.
A partir da produção de mapas[4], tendo como base os setores censitários das capitais, representados pela renda per capita domiciliar (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010), analisaram-se os pontos de concentração, bem como as rotas e destinos dos grupos a favor e contra a deposição da Presidenta Dilma Rousseff, em 10 dias diferentes, ilustrando os protestos pró (dias 15/03/15; 12/04/15; 16/08/15; 13/12/15; 13/03/16) e contra o impeachment (13/03/15; 15/04/15; 20/08/15; 16/12/15; 18/03/16). A coleta das informações sobre dia, horário e local de encontro foi cotejada em jornais[5] de grande circulação: Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e o Globo (Becker et al, 2019) e nas redes sociais da Frente Brasil Popular[6], que trazia as informações sobre os protestos contra o impeachment, e dos grupos Vem pra Rua e MBL (Movimento Brasil Livre),[7] que organizavam o movimento a favor do impeachment.
Ainda considerando uma sequência desse cenário, foram analisadas as manifestações ocorridas no ano de 2020, dessa vez, tendo como pauta o pedido de impeachment [ 8] do atual presidente da República, Jair Bolsonaro.
Além dessa introdução, o artigo está estruturado em mais quatro partes. A primeira traz considerações sobre o processo de estruturação do espaço intraurbano; a segunda busca compreender a natureza simbólica do espaço público; a terceira traz um balanço do uso dos espaços públicos pelos movimentos sociais para, nas considerações finais, trazer reflexões sobre o significado simbólico do uso dos espaços públicos durante as manifestações.
A estruturação do espaço urbano brasileiro
A estruturação das cidades brasileiras possui traços definidores a partir do conflito de classes que é dominado pelas bases econômica, social e política que se manifestam por meio da segregação, que, por sua vez, é produzida pela classe dominante. Em países periféricos como o Brasil, a imposição da agenda neoliberal, notadamente nos anos 1990, acabou por impulsionar a especulação e o acúmulo de capital, acentuando a divisão de classes (Bresser Pereira, 2014).
Em seu estudo sobre as localizações intraurbanas nas metrópoles brasileiras, que envolve basicamente o fator tempo como determinante para o deslocamento de pessoas na sua rotina diária: percurso casa - trabalho, casa - lazer, casa - escola, Villaça (2001) parte da constatação de que, em oposição a uma área central bem atendida por equipamentos urbanos e onde moram as camadas de alta renda, há uma enorme periferia, onde vive a maioria da população.
Nesse sentido, os elementos da estrutura territorial que compõem as cidades brasileiras partem do reconhecimento de um centro principal, tido como a maior aglomeração diversificada de empregos ou a maior aglomeração de comércio e serviços. A partir deste, a expansão urbana será ditada pelas classes sociais de alta renda, sempre associadas à incorporação imobiliária, que escolhem as melhores localizações (e menor distância do centro) para se instalarem. Quando essas classes se deslocam para 'longe' do centro, levam consigo seus serviços e equipamentos, criando, assim, subcentros da elite. E, quando o centro principal deixa de ser ocupado por sua elite devido à dinâmica de acumulação do capital que permitiu a expansão urbana, ele passa a ser chamado de 'centro velho'. É nesse momento que se dá a sua ocupação pelas camadas populares, seja em moradia, seja porque o comércio vira 'popular'.
Como o espaço é único, a disputa em torno da localização é intensa nos centros urbanos, e os bairros com melhores condições de infraestrutura são mais valorizados. Via de regra, as classes médias e altas tendem a se reunir numa única região geral da cidade, o que facilita o trabalho do Estado na provisão de infraestrutura, levando o mercado imobiliário a produzir localização com maior capacidade de aglomeração do ponto e, portanto, com valor de troca superior[9]. Se as camadas de alta renda se dispersam para todos os quadrantes da cidade, o Estado precisaria construir uma infraestrutura equivalente, produzindo um sistema viário eficaz que atendesse a toda a cidade. A segregação, por sua vez, permite a economia nas infraestruturas, conferindo-as com maior qualidade, inclusive, a 'pedaços' da cidade (Villaça, 2001).
Há uma íntima relação entre a natureza simbólica do capital e seu rebatimento na estruturação do espaço intraurbano, cabendo às classes mais privilegiadas, detentoras de capital econômico e cultural, terem acesso aos melhores espaços na dinâmica intraurba-na em detrimento das classes menos privilegiadas, relegadas às periferias longínquas e às áreas centrais abandonadas. O uso dos espaços públicos pelas recentes manifestações políticas, ao nosso ver, também expressaram essa dimensão simbólica do uso dos espaços, ora identificados com os movimentos a favor do impeachment (e ocupando, portanto, os espaços públicos que os representam), ora identificados contra o impeachment, fazendo uso dos centros das cidades, uma vez que, para o centro, conflui o sistema de transportes e, simbolicamente, representaria o lugar de (fácil acesso para) todos.
A natureza simbólica do espaço
Para Lefebvre (2008), o espaço público é um espaço público-político: constitui a soma do território geográfico, de seus artefatos, de seus habitantes, sua história e as ideologias de seu tempo. Como o espaço é político, ele tem sua representação povoada de ideologia. Para Montañez-Gomez (2016), a expressão sentipensamiento define a inseparabilidade entre pensamento, emoção e ação, que demarca a diferença entre os territórios para a vida e aqueles direcionados ao capital. O espaço modificado, seja ele público ou privado, funciona também como símbolo de status ou pertencimento social.
Status e pertencimento social também são tratados por Bourdieu (2015), que, ao capital econômico, acrescentaria os capitais social (referente às relações interpessoais) e cultural (referente à origem familiar e ao capital educacional), dando conta, assim, de outro aspecto da reprodução do capital: a dominação simbólica. É ela quem máscara e torna opacas as relações de desigualdade.
Em sua teoria dos capitais (Bourdieu, 2015), o conceito de habitus ajuda a rediscutir a antinomia indivíduo/sociedade no ambiente público que provoca uma relação entre habitus individual e a sua relação no espaço urbano. Para o autor, existe uma estreita relação entre habitus e estilo de vida, sendo este o produto sistemático daquele. Desse modo, é possível identificar a partir da análise do habitus e da conjuntura exterior, qual o propenso estilo de vida de determinado indivíduo ou grupo.
O habitus se apresenta no contexto espacial a partir da ligação entre espaço social e espaço físico, resultando no espaço social reificado ou fisicamente concretizado. Ou seja, é a partir dessa relação entre a distribuição das pessoas e a distribuição dos bens no espaço que é definido o valor de cada lugar e de cada objeto. Dentro deste contexto, as resistências e as disputas pela apropriação do espaço se desenvolvem com reflexos no âmbito simbólico (Bourdieu, 2011). Os locais do espaço social reificado e os benefícios que eles proporcionam são resultantes de lutas dentro dos diferentes campos. Estes benefícios podem representar ganhos de localização associados à proximidade com agentes ou bens raros e cobiçados ou ganhos de posição associados aos ganhos simbólicos de distinção. Nesta batalha travada entre diferentes agrupamentos sociais pela apropriação do espaço, o sucesso depende do capital acumulado em suas diferentes espécies.
No cenário brasileiro, Souza (2018) traz à tona a peculiaridade da sociedade brasileira que é a de uma desigualdade social abissal. Em nossa sociedade, a herança escravista ainda se faz presente e está na constituição do que o autor denominaria de 'subcidadãos', a quem a dignidade não lhe é conferida: basta observar, como exemplo, a naturalização das mortes por policiais em favelas nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, que nem sempre são noticiadas, mas que faz parte da realidade de quem lá vive (Bueno, Marques & Pacheco, 2021).
A essa base da pirâmide social brasileira, contrapõe-se uma classe média, cujo lócus privilegiado é o acesso ao capital cultural, desde a origem familiar até a oportunidade de estudar nos melhores colégios e, portanto, ter acesso aos melhores postos no mercado de trabalho. A materialização desse embate pôde ser vista a partir dos resultados do projeto nacional de expansão dos institutos federais e universidades públicas pelo país, realizado durante governos considerados de esquerda (Lula e Dilma, de 2003 a 2016) que aumentou em 23 vezes a chance de ingresso dos 20% mais pobres na universidade (Campello, 2017). Esse movimento suscitou uma ameaça, ainda que velada, à classe média e média-alta enquanto detentoras do capital simbólico - que lhe era natural - por oportunizar o acesso ao capital cultural a classes mais vulneráveis.
Como é inerente ao plano simbólico, o plano das ideias não é visível a olho nu. E, por isso, é possível inferir, inicialmente, que as motivações da classe média (nas suas mais diversas frações[10]), para terem comparecido às ruas, a fim de, em sua maioria, protestar a favor do impeachment, resumem-se à defesa de seus privilégios, logo, a seu acesso exclusivo ao capital cultural. Para Souza (2018a), a falta da construção de um projeto articulado alternativo ao elitista e cuja narrativa desse suporte às políticas distributivas dos governos de Lula e Dilma, somada à ausência de uma TV pública com conteúdo plural, fez com que a grande mídia - braço da elite econômica - explicasse a luta política de acordo com o seu crivo e desse o tom e a pauta das manifestações: a luta contra a corrupção. TVs com cobertura em tempo real, os grandes jornais impressos e as rádios influenciaram diretamente a população para comparecer às ruas nas manifestações. E assim aconteceu.
É nesse sentido que a disputa pelo espaço público expressou o modus operandi das manifestações, fomentando a ideia de essencialmente sair à rua e ocupar um espaço público que seja visível para o maior número de pessoas possível.
Balanço do uso dos espaços públicos pelos movimentos sociais
Em diversos momentos da vida social, no Brasil e no mundo, os movimentos sociais urbanos, principalmente nas grandes cidades, ocuparam as avenidas, praças e ruas, a fim de ecoar suas ideias. Por outro lado, esse espaço segregador impõe limites e muros invisíveis na cidade, dividindo e classificando quais grupos ou classes são pertencentes ao território específico. É possível afirmar que as manifestações políticas tendem à busca de 'seus centros', ou seja, as pautas e os perfis se expressam de acordo com o centro urbano elencado, gerando as distinções políticas e representando os respectivos habitus de classe e sentipensamientos.
Adiante, vamos analisar o contexto das manifestações sociais brasileiras recentes, a partir de 2015, quando a população deixa de ir à rua de maneira unificada (como ocorreu em 2013, apesar da pluralidade de pautas presentes), e passa a se desenhar um cenário polarizado em dois posicionamentos conflitantes, quando os protestos se dão em locais, com públicos e datas distintos. Após isso, veremos o rebatimento dessa movimentação nas eleições de 2018 e nos protestos recentes realizados durante a pandemia de COVID-19.
Os anos de 2015 e 2016 em análise
Os protestos ocorridos a partir de 2015 tiveram um teor diferente daqueles iniciados em 2013, ainda que muitos dos agentes presentes fossem os mesmos. A partir da eleição e posse de Dilma Rousseff, em 2014, a disputa acirrada expressa nas urnas também passou a se expressar nas ruas, com grupos favoráveis e contrários ao impeachment da então presidenta da República11.
A partir de março de 2015, ocorreu uma idealização completa das manifestações, celebradas como rebelião pacífica, democrática e popular. (...), A televisão explicava que as manifestações contra o governo eram espontâneas e apartidárias, enquanto as manifestações a favor do governo eram organizadas por militantes partidários. (Souza, 2016, p.125)
A análise das convocações demonstrou que todas as capitais, sem exceção, tiveram o centro principal como palco das manifestações contrárias ao impeachment, reafirmando a importância do centro como referência simbólica, lugar do emprego, comércio e serviços. Em contrapartida, todas as capitais do Norte e Nordeste com orla marítima (Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju, Salvador), fluvial (Manaus, Macapá, Belém, Porto Velho, Teresina) ou lacustre (São Luiz) tiveram, nesse espaço, as manifestações favoráveis ao impeachment, seguindo a lógica da segregação e distinção espacial (Bourdieu, 2015), ocupando porções da orla onde o capital imobiliário se reproduz a favor das camadas de alta renda[12], compreendendo os territórios direcionados ao capital (Montañez-Gomez, 2016). Pode-se inferir que a junção de habitus de classe e sentipensamiento pode ter sido determinante para a escolha dos lugares das manifestações pró e contra o impeachment.
A Figura 1 exemplifica, para a cidade do Recife, a assertiva acima, tornada evidente pela espacialização da renda per capita (IBGE, 2010).
Nas capitais com menor densidade populacional (IBGE, 2010) e onde as classes de alta renda se localizam no entorno do centro, como as da região Centro Oeste, ambas as manifestações fizeram uso do centro principal como ponto de partida, tendo, no percurso, o caminho em direção às avenidas ou às ruas principais que conduzem aos bairros de alta renda (a favor do impeachment) ou se circunscrevendo nas ruas do centro (contra o impeachment). A Figura 2, representada por Cuiabá, ilustra esse grupo.
Em Brasília, as manifestações contrárias foram convocadas tendo como ponto de encontro a estação rodoviária, para recepcionar os manifestantes das cidades satélites. As manifestações a favor ocorreram na Esplanada dos Ministérios. Mas o dia mais simbólico em Brasília, certamente, foi 17 de abril de 2016, dia da votação do impeachment contra a Presidenta Dilma no Congresso Nacional, quando um muro separou os manifestantes: do lado direito da Esplanada, ficaram os manifestantes que pediam o impeachment de Dilma, e, do lado esquerdo, estavam aqueles que defendiam a continuidade do governo.
Na região Sul do País, em Curitiba, como os bairros de alta renda se localizam no entorno do centro (IBGE, 2010), as manifestações contra e a favor ocuparam os mesmos espaços para se concentrarem, mudando os dias e horas para cada grupo. Em Florianópolis, a exemplo das outras cidades litorâneas, a Avenida Beira-mar Norte foi ocupada pelos grupos a favor e o centro histórico, pelos grupos contrários ao impeachment. E, por fim, Porto Alegre, que tem, historicamente, na Esquina Democrática, área central da cidade, o ponto de encontro dos movimentos de esquerda, ao passo que a região dos Moinhos de Vento, bairro valorizado da cidade (IBGE, 2010), abrigou os movimentos a favor da destituição.
Mas foi a região Sudeste, notadamente Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, que protagonizou as maiores manifestações e os holofotes da grande mídia. Em Belo Horizonte, a tradicional Praça da Liberdade, na área central da cidade e que concentra a população de alta renda (IBGE, 2010), foi palco das manifestações a favor do impeachment, ao passo que os manifestantes contrários ocuparam espaços mais próximos ao poder político, como a Assembleia Legislativa do Estado e as praças Afonso Arinos, Sete de Setembro e da Estação, espaços tradicionais dos movimentos de esquerda da cidade. Em Vitória, foi curioso o movimento contrário ao impeachment, onde a fração da classe média progressista assumiu como ponto de partida a Universidade Federal do Espírito Santo (e não o centro histórico), num gesto simbólico do capital cultural.
Na cidade do Rio de Janeiro, é nítida a segregação espacial da cidade, e ali se consolidaram as manifestações na Avenida Atlântica, no bairro de Copacabana, contra o governo de Dilma Rousseff, enquanto os grupos a favor de Dilma continuaram a ocupar seu antigo centro (Figura 3). Os Arcos da Lapa ou a Cinelàndia, na região central, continuaram sendo espaços dos movimentos ligados aos direitos humanos, aos sindicatos e às bandeiras conectadas às pautas de esquerda.
Em São Paulo, o maior ato foi registrado no dia 13 de março de 2016, na Avenida Paulista, em frente ao prédio da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), local que representa o poder econômico do país. Cerca de 500 mil pessoas, de acordo com o Instituto Datafolha, participaram das manifestações na Paulista. A Polícia Militar calcula público de 1,4 milhão (Folha de SP, 2016). As bandeiras se concentraram sob o tema do combate à corrupção, em defesa da operação Lava Jato e contra o Partido dos Trabalhadores. Outras causas, como grupos a favor da intervenção militar, foram protagonistas das cenas transmitidas ao vivo pelos principais canais de televisão nacional. O Instituto Datafolha demonstra que os grupos pró-impeachment tinham o perfil de alta renda: a manifestação do dia 13/03/2016 repetiu as outras quatro antecessoras com percentuais altos de escolaridade, renda e idade[13]. A Figura 4 demonstra a narrativa produzida pelos principais jornais do país, cujas manchetes ocupavam a primeira página e sinalizavam que o Brasil estava nas ruas, seja pela imagem ou pelo escrito na manchete.
Já as manifestações do dia 18 de março de 2016 foram convocadas como Dia Nacional de Mobilização contra o Golpe e tiveram três eixos que unificaram os grupos: defesa da democracia, rejeição ao ajuste fiscal e contrariedade à reforma previdenciária. Em regra, as manifestações contra o impeachment foram coordenadas por entidades como a CUT (Central Única dos Trabalhadores), o MST (Movimento Sem Terra) e a UNE (União Nacional dos Estudantes), as quais sustentavam a importância dos atos nos dias de semana no final do expediente para aproveitar o trabalhador ou estudante na saída do trabalho ou escola/ faculdade. A movimentação começou por volta das 16 horas, na Praça da Sé. Cerca de 30 movimentos sociais reuniram 40 mil pessoas, segundo o Datafolha (Folha de SP, 2016). Além da Praça da Sé, os manifestantes tomaram a Rua Benjamin Constant, também na área central. Por volta das 19 horas, o Metrô fechou a entrada próxima ao Poupatempo da Estação Sé, da Linha 1-Azul, em movimento oposto ao ocorrido no domingo anterior, pró-impeachment, quando as catracas foram liberadas. Também ocupando a primeira página dos jornais de grande circulação, percebe-se que não há a mesma ênfase no tratamento da notícia, seja pelo enquadramento das imagens, seja pela manchete (Figura 5).
O Rebatimento em 2018
A interrupção do mandato da presidenta eleita, em 2016, trouxe para o debate público personagens antes escanteados pela esfera pública comum. Um dos principais foi o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro, que simbolizava o extremo oposto das ideias que o governo e os movimentos sociais que o acompanhavam defendiam. Seus valores se voltavam a um ideal conservador, que pregava a defesa da instituição 'família' de maneira tradicional (casal heterossexual e filhos), o fim das políticas afirmativas, logo, a meritocracia, a liberação do porte de armas, entre outras pautas dessa vertente. Por uma perspectiva econômica, Bolsonaro e seus aliados se aproximavam do libertarianismo, expresso por uma corrente econômica ultraliberal que prega um radicalismo do mercado e enxerga o Estado como um inimigo do povo, pelo seu aparelhamento, burocracia e suscetibilidade à corrupção (Rocha, 2021; Miguel, 2018).
Após outra eleição marcada pela polarização, dessa vez o partido de esquerda, o Partido dos Trabalhadores (PT), representado na figura do candidato Fernando Haddad, não foi capaz de vencer nas urnas seu concorrente, Jair Bolsonaro, que assumiu a presidência da República para um mandato de quatro anos a partir de 2019.
Desde o anúncio da candidatura de Jair Bolsonaro até o presente momento, movimentos sociais se reorganizaram para ter como pauta única a saída do presidente, concretizada na bandeira 'Fora Bolsonaro'. Esse movimento foi iniciado pelos movimentos feministas, que, durante as suas passeatas, levantaram como mote principal a frase 'Ele não', simbolizando a rejeição ao candidato (Brasil De Fato, 2018). No ato #EleNão de São Paulo, o grupo se caracterizava por se identificar majoritariamente sendo de esquerda (80%), nada conservador (76%) e muito feminista (69%). Das 470 pessoas entrevistadas, 62% se declararam mulheres, 62% se declararam brancas, e 31% responderam ter renda familiar de cinco a dez salários--mínimos (R$ 4.770 a R$ 9.540) (Instituto Humanitas Unisinos [IHU], 2018).
Movimentos em apoio ao presidente também foram realizados, principalmente em forma de carreatas e 'motociatas', nas quais os manifestantes participavam de carro ou moto, várias vezes contando com a participação de Jair Bolsonaro. Mesmo após a vitória nas urnas, as manifestações em apoio ao presidente eleito continuaram, muitas vezes em resposta aos protestos contrários a ele. As pautas dos grupos contrários variam de acordo com a pauta específica dos agentes e das instituições, sejam estudantes devido à redução do investimento na Educação, sejam servidores públicos por conta da redução de direitos, sejam pessoas que ocupam casas antes inabitadas, devido ao aumento do déficit habitacional com a escalada da crise econômica, ainda que, por vezes, ocorressem manifestações que uniram essas pautas sob a bandeira 'Fora Bolsonaro'. O que esses agentes não esperavam é que um novo desafio surgiria nesse processo já desafiador de sensibilização das massas e ocupação das ruas: a pandemia de COVID-19 deflagrada a partir de março de 2020.
"Fica em casa": os Desafios de Ocupar a rua em meio a uma Pandemia
A nova realidade imposta pela pandemia de CO-VID-19 fez com que qualquer agenda pensada pelos movimentos sociais em 2020 fosse suspensa, assim como o mundo se encontrava: em suspensão, ainda sem saber o que aconteceria em um futuro próximo. Até a adaptação a essa nova realidade (com o uso de máscaras, distanciamento social e uso de álcool 70% nas mãos) ser absorvida pela população, ocupar as ruas com um aglomerado de pessoas se tornou inviável, o que dificultou as mobilizações que estavam acontecendo. Outro fator importante foi o fechamento das Universidades, um importante lugar de consolidação da consciência política de jovens cidadãos e, muitas vezes, de início da vida política militante.
Um marco que rompe com essa desocupação das ruas foi o movimento Black Lives Matter, retomado nos Estados Unidos em 2020, devido à morte de George Floyd, um homem negro estrangulado por um policial, mesmo sem apresentar ameaças ou riscos a ele (Sudre, 2020). Esse fato inflou o debate sobre raça e as graves consequências do racismo, fazendo com que os movimentos de rua de massa voltassem a acontecer não somente nos Estados Unidos, mas em outros lugares do mundo.
Os protestos contrários e a favor do governo voltaram, ainda que de maneira não tão potente como antes. As carreatas e 'motociatas' continuaram, mais uma vez, percorrendo importantes ruas e avenidas das capitais brasileiras por onde circula o capital financeiro e/ou onde mora suas respectivas elites. Já os movimentos contrários, além de realizar atos unificados, mantiveram os protestos de pautas específicas, reunindo-se, dessa vez, em torno do mote 'vacina no braço, comida no prato'. As áreas centrais continuaram sendo escolhidas para essas manifestações, com exceção de São Paulo, onde a avenida Paulista passou a protagonizar a manifestação.
Os resultados do levantamento realizado por Ribeiro e Ortellado (2021) apontam algumas características do perfil do público presente na Avenida Paulista. O grupo a favor, que se manifestou no dia 7 de setembro[14], teve como principais motivações a defesa da liberdade de expressão (75%) e o impeachment dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) (67%). A maioria era composta por homens (61%), brancos (60%), católicos (37%) e evangélicos (36%), com ensino superior completo (48%). O grupo contrário (que se manifestou no dia 12 de setembro) concorda, em sua maioria (85%), que, para o impeachment de Bolsonaro, é necessária uma ampla aliança que vai da esquerda à direita, considera-se de centro (33% - e, desses, a maioria, 14%, considera-se mais de direita) e não sabia (31%) em quem iria votar em 2022. A maioria era branca (67%), composta por homens (58%), não tinha religião (40%) e possuía ensino superior completo (64%).
Esse ciclo de grandes manifestações continua se reproduzindo nas ruas e avenidas do país, entretanto, o momento atual é outro. A democracia está combalida, e as estruturas do poder, mais próximas de um comportamento fascista, com o Legislativo ignorando os pedidos de impeachment [ 15 ] e apoiando-se em uma pequena parcela de manifestantes que ainda saem para legitimar o atual governo. O desfecho dessa cena ainda está por acontecer e promete, para as eleições de 2022, mais momentos de manifestação e tensão nos espaços públicos brasileiros.
Considerações Finais
Ao analisar as ocupações dos espaços públicos durante o ano de 2015 e 2016 que precederam a deposição da Presidenta Dilma Rousseff, foi possível identificar porque um lugar (e não outro) foi escolhido para as manifestações à luz da ideologia do espaço urbano expressa pelo capital simbólico e pelo sentimento de pertencimento ao lugar: grupos contrários ao impeachment permaneceram nos centros antigos que se identificavam com o trabalho, o deslocamento do transporte público e o histórico de protestos passados; já os grupos a favor do impeachment buscaram locais que se identificassem com o capital econômico. Assim, o levantamento realizado aponta que todas as capitais fizeram o uso do centro principal como lócus para as manifestações organizadas pela Frente Brasil Popular, ao passo que as orlas e as áreas mais valorizadas das cidades foram cenário para os protestos a favor do impeachment.
As manifestações de 2015 e 2016, ao fim e ao cabo, levaram a classe média para as ruas: a fração crítica e parte da expressivista lutaram a favor da manutenção da ordem constitucional, e as demais frações (protofascista, liberal e parte da expressivista), vendo-se em vias de ter que disputar o capital cultural com as classes emergentes, atenderam prontamente ao chamado da elite detentora do capital econômico por meio de seu braço midiático: a TV Globo, a rádio Jovem Pan, os jornais Estado de São Paulo, o Globo e Folha de São Paulo, para citar os principais. As manifestações do ano de 2021, no geral, seguiram o mesmo perfil de classe das manifestações anteriores, entretanto, é possível ver que parte do estrato da classe média também está presente nos atos contrários ao presidente Bolsonaro.
São Paulo é, sem dúvida, o caso mais paradigmático da disputa pelo uso do espaço público como espaço de manifestação política. Embora as manifestações contrárias tenham ocorrido boa parte no centro histórico, por conta dos ânimos acirrados nesse período, ambos os grupos, a favor e contra o impeachment, tinham na Avenida Paulista o objetivo a ser alcançado, pois esta representa tanto o capital econômico, tendo o prédio da FIESP como seu ícone, quanto o cultural, representando pelo MASP (Museu de Arte de São Paulo).
Para além da disputa pela narrativa no espaço público, as manifestações contra e a favor do impeachment estabeleceram distinções claras dos grupos presentes, ora pela renda, mas também pelo habitus presente na formação do povo brasileiro, destacando-se, por exemplo, a cor de pele, orientação sexual, profissão, status, origem social, como pode ser demonstrado ao se avaliar o perfil dos manifestantes.
As manifestações de março de 2015 deslocaram as concentrações para locais e bairros de classe média alta: Avenida Paulista e seu entorno em São Paulo, Copacabana no Rio de Janeiro, Moinhos de Ventos em Porto Alegre, para citar apenas alguns exemplos em grandes capitais. Esse deslocamento não é um detalhe, espelha o tipo de pessoa que era esperado nas manifestações. O deslocamento no domingo (dia das manifestações) dos moradores da periferia para os locais onde as manifestações ocorreriam seria de grande dificuldade. Isso não implica dizer que havia a intenção de não haver setores populares nas manifestações, mas sim de que não era para esses setores que estavam sendo dirigidas as convocações. A convocação era para a classe média, para que ela saísse às ruas e defendesse o seu capital (cultural) e o capital (econômico) da elite, mesmo que de forma irreflexiva, sem se dar conta efetivamente do papel a que estava se prestando. Em 2021, a disposição dos locais de manifestação seguiu o mesmo padrão das anteriores, ainda que com pautas diferentes. É possível perceber, mesmo que inicialmente, que o grupo que antes apoiou as pautas pró-impeachment não necessariamente se deslocou para o grupo de apoio ao presidente Bolsonaro, estando presente também nas manifestações contrárias a ele.
Por fim, entende-se que, de fato, a ocupação dos espaços públicos tem relação intrínseca com a apropriação dos capitais. O retrato das desigualdades territoriais existentes no Brasil pode também ser visto nos momentos de manifestação política pela acessibilidade e simbolismo dos locais escolhidos. Apesar disso, a ausência da massa trabalhadora ainda é marcante em ambos os lados do jogo político, já que as pesquisas mostram que os atos são compostos majoritariamente pela classe média com ensino superior. Isso acende o alerta para uma leitura mais criteriosa sobre quais grupos sociais hoje podem se apropriar dos espaços públicos e como a classe trabalhadora está exercendo sua cidadania e defendendo seus interesses políticos perante a realidade imposta.