Introdução
A bioética não é restrita à área da saúde, mas encontra guarida na "socialização do atendimento médico" 1. Dentre as possíveis aplicações da bioética e as diversas teorias que a fundamentam, destaca-se a ideia de que se volta para o estudo interdisciplinar dos problemas advindos do progresso científico e para sua repercussão na sociedade 2.
Dessa forma, o caráter interdisciplinar da bioética é absolutamente relevante ao permitir a análise por diversas áreas do conhecimento, "buscando a convergência da relação ética de todos os saberes em torno do cuidado da vida" 2.
Trata-se de uma verdadeira ponte entre a ciência biológica e a ética, conforme ensinamentos do médico oncologista Van Rensselder Potter. O autor, expoente da bioética mundial, sempre se mostrou preocupado, de modo especial, com "as questões que envolvem o melhoramento da qualidade de vida" 3.
Integrando ciência e vida, importa refletir a respeito das diferenças técnicas entre o médico e o paciente. Sobretudo, há que se levar em conta que um paciente que apresente uma vulnerabilidade acentuada, como por exemplo, um paciente com deficiência, exige um olhar diferenciado, voltado para as suas peculiaridades. Trata-se de uma parcela da população que merece atenção especializada e cuidadosa, para que seja possível fornecer um serviço médico adequado.
Segundo a Organização Mundial de Saúde 4, com dados de 2011, um bilhão de pessoas viviam com alguma deficiência, o que significava uma em cada sete pessoas no mundo. Ainda com esse alto número, faltam estatísticas sobre pessoas com deficiência, o que contribui para a invisibilidade dessa população, bem como para o planejamento e implantação de desenvolvimentos voltados à melhoria dessas pessoas.
Segundo Vieira e Favoreto 5, as práticas de cuidado são visualizadas como "uma fusão de horizontes, entre expectativas e desejos dos pacientes e profissionais". Tais práticas são pautadas pela intersubjetividade e pelo diálogo entre o médico e o paciente, mas também entre eles, a equipe e os familiares. Além disso, envolvem "as perspectivas individuais de saúde, os recursos disponíveis, as adaptações necessárias e, ainda, quem irá atuar de forma transformadora para alcançar tal expectativa" 5.
Nesse contexto, "existe uma falsa impressão que os serviços e profissionais de saúde estariam atendendo às necessidades desse grupo de forma satisfatória". (61). Assim, os problemas encontrados na saúde brasileira se refletem em "desigualdades de várias ordens, fruto da distribuição desigual de riquezas e de oportunidades. Nossa sociedade é extremamente desigual. Poucos têm muitos direitos e muitos têm quase nenhum" 7.
Ao se verificarem a realidade da saúde brasileira e a desigualdade que assola diversos setores da sociedade, importa repensar as formas de inclusão das pessoas com deficiência. Para tanto, parte-se de sua vulnerabilidade social como a fragilidade do acesso às oportunidades oferecidas pelo ambiente, considerando, dentre outras condições, a saúde 8.
No Brasil, o Decreto 6.949 de 2009 promulgou a convenção de Nova York sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo. Tal documento reconhece o conceito de deficiência como evolução resultante da "interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas" 9.
As pessoas com deficiência, de certa forma, possuem sua autodeterminação limitada, em parte pela vulnerabilidade que as acompanha. Imperioso, portanto, superar essa lacuna, garantindo a tais indivíduos sua autonomia, sobretudo no que tange à sua própria saúde. Pretende-se buscar, portanto, a redução do nível de invisibilidade das pessoas com deficiência, por meio do acesso aos serviços de saúde adequados 8.
A legislação brasileira é receptiva ao assunto, como se pode observar pela entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, pela Lei 13.146 de 2015 10. Além disso, muito embora a Convenção de Nova York tenha sido recepcionada pelo Direito brasileiro pelo Decreto 6.949 de 2009, há "o instigante descompasso entre o trato normativo e este sofrimento humano experimentado cotidianamente pelas pessoas com deficiência" 11. As autoras ainda sugerem um paradoxo relacionado ao "avanço dos enunciados jurídicos em face do retrocesso sentido pelas existências concretas acompanha a reflexão desenvolvida a partir da proteção e da efetivação da dignidade humana da pessoa com deficiência" 11. Reforça-se, portanto, a imprescindibilidade da presente discussão no âmbito da bioética, posto que ter uma legislação que aborde o tema não se revela suficiente, muito embora a saúde seja um direito social fundamental, nos termos do artigo 6° da Constituição Federal.
Nesse contexto, analisar as produções científicas que versam sobre a saúde das pessoas com deficiência pode servir de base para compreender as dificuldades enfrentadas por esses indivíduos quando do acesso à saúde. Assim, tornase relevante usufruir da interdisciplinaridade da bioética, levar em conta os indivíduos com deficiência em sua totalidade e pensar na qualidade do atendimento prestado à sua saúde, e não apenas priorizar a sua deficiência.
Material e métodos
No presente artigo, realizou-se uma revisão integrativa sobre a saúde das pessoas com deficiência. A revisão integrativa foi escolhida como metodologia por ampliar as possibilidades de análise da literatura, à medida que permite a averiguação de produções acadêmicas oriundas de diferentes metodologias 12. Além disso, torna-se possível analisar as publicações acerca do tema sob a ótica de aspectos bioéticos que permeiam a saúde das pessoas com deficiência, o que enriquece a revisão do que foi publicado em diferentes periódicos e momentos.
Salienta-se, ainda, que a metodologia de revisão integrativa de Souza et al,12 foi utilizada de forma adaptada, pois, devido à quantidade reduzida de artigos localizados, fez-se uso de outras revisões da literatura, desde que não versassem especificamente sobre o tema proposto.
Para buscar os trabalhos utilizados na revisão integrativa, realizou-se pesquisa em maio de 2018 nas bases de dados Portal de Periódicos Capes, Lilacs e scíelo Brasil, com a associação dos descritores: "saúde", "pessoa" e "deficiência".
Os critérios de inclusão para todas as bases de dados foram: a) publicações em formato de artigos; b) pesquisas que versassem sobre a saúde das pessoas com deficiência (maiores de idade, independentemente do tipo de deficiência); c) publicações em português ou outro idioma; d) no período de publicação de 2009 a 2018.
Para a filtragem dos dados, utilizou-se como marco inicial o ano de 2009, por ser o ano em que o Brasil interiorizou a Convenção de Nova York, pois o Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Além disso, o Decreto, no artigo 25, reconhece o direito das pessoas com deficiência "de gozar do estado de saúde mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência" 9.
Os critérios de exclusão foram: artigos que versassem sobre crianças e/ou adolescentes incapazes, por se entender que haveria outros aspectos a serem analisados, voltados especificamente para a realidade dessas pessoas; produções que não tratassem especificamente da realidade brasileira; artigos que tratassem de acesso a outros direitos que não a saúde; artigos repetidos.
Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi avaliar as produções científicas acerca dos aspectos gerais advindos do acesso à saúde por parte das pessoas com deficiência, sob o olhar da bioética, por meio de uma revisão integrativa de literatura.
Resultados e discussão
Após a purificação dos dados por meio da análise dos títulos e dos resumos de todos os artigos encontrados, foram selecionados 29 artigos para a leitura integral, pois se adequavam aos critérios de inclusão deste estudo.
Chegou-se a tal resultado da seguinte maneira: no Portal de Periódicos Capes, localizaram-se 920 artigos, dos quais seis foram selecionados para a leitura integral. Na base de dados Lilacs, o número de artigos encontrados foi 813, dos quais 18 foram lidos em sua integralidade. Na base de dados SciELO Brasil, o total de artigos encontrados foi de 88, sendo cinco utilizados no presente estudo.
Os 29 artigos selecionados para a composição deste estudo abordam de alguma forma a saúde das pessoas com deficiência, sob a ótica de recortes específicos, tais como deficiência visual, auditiva, intelectual (18 dos 29 artigos). Outros abordam o tema de modo genérico, sem a filiação a uma ou outra forma de deficiência (11 dos 29 artigos), o que enriqueceu a análise. O quadro a seguir ilustra os resultados.
Autor(es) | Título | Breve consideração 1 |
---|---|---|
Neves DB, Felipe IMA, Nunes SPH 13 | Atendimento aos surdos nos serviços de saúde: acessibilidade e obstáculos | Pacientes surdos entrevistados com o auxílio de intérprete sobre o acesso à saúde. |
Holanda CMA, Andrade FLJPA, Bezerra MA, Nascimento JPS, Neves RF, Alves SB, Ribeiro KSQS 14 | Redes de apoio e pessoas com deficiência física: inserção social e acesso aos serviços de saúde | Identificação de redes de apoio social às pessoas com deficiência física. |
Souza MFNSS, Araújo AMBA, Sandes LFF, Freitas DA, Soares WD, Vianna RSM, Souza ÁADS 15 | Principais dificuldades e obstáculos enfrentados pela comunidade surda no acesso à saúde: uma revisão integrativa de literatura | Identificação de obstáculos no processo de saúde-doença entre equipe multiprofissional e paciente surdo. |
Tomaz RVV, Rosa TL, Van DB, Melo DG 16 | Políticas públicas de saúde para deficientes intelectuais no Brasil: uma revisão integrativa | Análise de políticas públicas e legislação voltadas para deficientes intelectuais brasileiros. |
Oliveira YCA, Celino SDM, França ISX, Pagliuca LMF, Costa GMC 17 | Conhecimento e fonte de informações de pessoas surdas sobre saúde e doença | Pacientes surdos entrevistados em língua de sinais sobre conhecimentos e fontes de informação sobre saúde e doença. |
Lima NC, Baptista TWF, Vargas EP 18 | Ensaio sobre "cegueiras": itinerário terapêutico e barreiras de acesso em assistência oftalmológica | Barreiras de acesso a serviços especializados em oftalmologia, a partir do itinerário terapêutico. |
Girondi JBR, Santos SMA, Hammerschmidt KSA, Tristão FR 19 | Acessibilidade de idosos com deficiência física na atenção primária | A acessibilidade de idosos com deficiência física na atenção primária, na perspectiva de usuários, profissionais e gestores. |
Amaral FLJS, Holanda CMA, Quirino MAB, Nascimento JP, Neves RF, Ribeiro KSQS, Alves SB 20 | Acessibilidade de pessoas com deficiência ou restrição permanente de mobilidade ao SUS | Avaliação da acessibilidade de pessoas com deficiência e restrição de mobilidade permanente ao Sistema Único de Saúde. |
Lawrence H, Sousa LPS, Gonçalves FL, Saintrain MVL, Vieira APGF 21 | Acesso à saúde bucal pública pelo paciente especial: a ótica do cirurgião-dentista | Acesso dos pacientes especiais à saúde bucal no Sistema Único de Saúde, sob a ótica dos cirurgiões-dentistas. |
Carvalho CFS, Brito RS, Medeiros SM 22 | Análise contextual do atendimento ginecológico da mulher com deficiência física | Análise dos contextos associados ao atendimento ginecológico da mulher com deficiência física. |
Castro SS, Carandina L, Barros MBA, Goldbaum M, Cesar CLG 23 | Associação entre deficiências físicas e hospitalizações na população da cidade de São Paulo, Brasil | Verificação da associação entre presença de deficiências físicas e hospitalizações na cidade de São Paulo, Brasil. |
Nóbrega JD, Munguba MC, Pontes RJS 24 | Atenção à saúde e surdez: desafios para implantação da rede de cuidados à pessoa com deficiência | Conhecimento da assistência à saúde prestada às pessoas surdas, usuárias da Língua Brasileira de Sinais (Libras), a partir da sua perspectiva. |
Pereira LM, Mardero E, Ferreira SH, Kramer PF, Cogo RB 25 | Atenção odontológica em pacientes com deficiências: a experiência do curso de Odontologia da ulbra Canoas-Rs | Avaliação do perfil dos pacientes com deficiência atendidos pelo curso. |
França ISX, Oliveira C F, Cruz GKP, Coura AS, Enders BC 26 | Conhecimento de mulheres com deficiencia física sobre câncer mamário e autoexame: estratégia educativa | Identificação do conhecimento de mulheres com deficiência física sobre o câncer mamário e autoexame. |
Munguba MCS, Vieira ACVC, Porto CMV 8 | Da invisibilidade à participação social: promoção da saúde em pessoas com deficiência | Promoção da saúde em pessoas com deficiência no cenário brasileiro. |
França EG, Pontes MA, Costa GMC, França ISX 27 | Dificuldades de profissionais na atenção à saúde da pessoa com surdez severa | Dificuldades de profissionais da saúde para a realização da consulta com a pessoa com surdez severa. |
Costa LSM 28 | Educação médica e atenção integral à saúde da pessoa com deficiência | Defesa dos interesses das pessoas com deficiência. |
Nicolau SM, Schraiber LB, Ayres JRCM 29 | Mulheres com deficiência e sua dupla vulnerabilidade: contribuições para a construção da integralidade em saúde | Dimensões da dupla vulnerabilidade de mulheres com diferentes tipos e graus de deficiência. |
Othero MB, Ayres JRCM 30 | Necessidades de saúde da pessoa com deficiência: a perspectiva dos sujeitos por meio de histórias de vida | Identificação das necessidades de saúde das pessoas com deficiência, pela ótica dos sujeitos. |
Vieira GI, Mendes BCA, Zupelari MM, Pereira IMTB 31 | Saúde auditiva no Brasil: análise quantitativa do período de vigência da Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva | Rede de atenção à saúde auditiva no Brasil. |
Guia ACOM, Neto RO, Escarce AG, Lemos SMA 32 | Rede de Atenção à Saúde Auditiva: perspectiva do usuário | Satisfação dos usuários da Rede de Atenção à Saúde Auditiva quanto às condições de assistência, ao acesso aos serviços e sua utilização. |
Bentes IMS, Vidal ECF, Maia ER 33 | Percepção da pessoa surda acerca da assistência à saúde em um município de médio porte: estudo descritivo-exploratório | Percepção da pessoa surda acerca da assistência à saúde, das dificuldades e facilidades na busca de assistência. |
Othero MB, Dalmaso ASW 34 | Pessoas com deficiência na atenção primária: discurso e prática de profissionais em um centro de saúde-escola | Compreensão de qual é a representação de profissionais sobre a deficiência e o papel da atenção primária no cuidado. |
Pereira RM, Monteiro LPA, Monteiro ACC, Costa ICC 35 | Percepção das pessoas surdas sobre a comunicação no atendimento odontológico | Percepção das pessoas com deficiencia auditiva sobre o processo de comunicação no atendimento por cirurgiões-dentistas. |
Castro SS, Lefèvre F, Lefèvre AMC, Cesar CLG 36 | Acessibilidade aos serviços de saúde por pessoas com deficiência | Pacientes com deficiência física, auditiva e visual entrevistadas sobre o processo de inclusão social e atuação de enfermeiros reabilitadores. |
França ISX, Pagliuca LMF 37 | Inclusão social da pessoa com deficiência: conquistas, desafios e implicações para a enfermagem | Intervenção grupal com familiares a fim de promover conhecimento sobre deficiencia visual. |
Ursine BL, Pereira EL, Carneiro FF 39 | Saúde da pessoa com deficiência que vive no campo: o que dizem os trabalhadores da Atenção Básica? | Análise das percepções dos trabalhadores da Estratégia Saúde da Família sobre a saúde da pessoa com deficiência que vive no campo. |
Campos MF, Souza LAP, Mendes VLF 40 | A rede de cuidados do Sistema Único de Saúde à saúde das pessoas com deficiência | Análise de políticas públicas sobre a saúde das pessoas com deficiência. |
Fonte: elaboração própria.
Aspecto relevante observado foi a formação profissional dos autores dos artigos. Muito embora nem todos os artigos tenham mencionado tal formação, notou-se que as profissões que mais publicaram a respeito da saúde das pessoas com deficiência foram fisioterapeutas e enfermeiros. Trata-se de informação importante, já que o atendimento é feito por equipes multi e interdisciplinares, razão pela qual todos devem estar aptos a proporcionar aos pacientes cuidados especializados. Portanto, o assunto ora analisado merece atenção de outros profissionais.
Dentre os artigos que compuseram esta revisão não foram localizados trabalhos que versassem sobre a saúde privada das pessoas com deficiência. Abordou-se o Sistema Único de Saúde (SUS) unicamente, o que revela uma lacuna nas pesquisas sobre o assunto voltadas ao atendimento privado. Isso porque se considera que poderia haver contribuições com relação aos atendimentos de saúde prestados via plano de saúde, mas que não foram observadas até a realização desta pesquisa.
Foram identificados alguns assuntos comuns entre os artigos analisados, os quais merecem destaque pela aproximação que possuem. Desse modo, emergiram categorias relacionadas ao tema da pesquisa. A categorização dos resultados permite analisar os pontos convergentes entre os estudos, bem como refletir acerca de eventuais divergências.
Assim, as categorias foram: a) preparação profissional para o atendimento de pacientes com deficiência; b) barreiras à acessibilidade; c) comunicação entre paciente com deficiência e médico/equipe; e d) dupla vulnerabilidade da mulher com deficiência.
Preparação profissional para o atendimento de pacientes com deficiência
Nesta categoria, foram correlacionados os artigos que abordassem de alguma forma a preparação profissional para o atendimento de pacientes com deficiência. Dentre os 29 artigos analisados, em 12 foi possível identificar tal temática (o que representa 41% dos artigos).
Recorde-se que o Decreto brasileiro 6.949 de 2009, que promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de Nova York, estabelece, no artigo 25, item d, que os Estados-Partes (dentre os quais o Brasil é signatário): "exigirão dos profissionais de saúde que dispensem às pessoas com deficiência a mesma qualidade de serviços dispensada às demais pessoas" 9.
Na prática, dentre as publicações analisadas, verificaram-se dificuldades dos profissionais de saúde no trato com pacientes com deficiência devido à falta de preparação para tal atendimento no curso de sua formação.
Constatou-se a falta de esclarecimento aos familiares sobre as possibilidades de desenvolvimento da deficiência, além do desconhecimento dos médicos quanto às particularidades que diferenciam um corpo com e sem deficiência, o que dificulta a redução de riscos, conforme evidenciado por Costa 28. A autora alerta para a importância da capacidade técnica somada ao diálogo e à abertura para a negociação quanto ao cuidado, por parte dos profissionais para com os pacientes com deficiência e seus familiares. E, ainda, destaca a importância da "redução do tempo e da energia despendidos pelas pcd (pessoas com deficiência) para receber atendimento médico" 28, o que evitaria vulnerabilizar ainda mais os pacientes.
Além disso, o conhecimento médico sobre o atendimento aos pacientes com deficiência encontra barreiras na escassez de recursos materiais e de infraestrutura inadequada das unidades de saúde, segundo França et al.27. Os autores ainda apontam a falta de capacitação em Libras (Língua Brasileira de Sinais), para o caso de pacientes com deficiência auditiva ou surdos, como uma lacuna na preparação profissional.
A equipe médica, devido à sua pluralidade, pode e deve aprimorar o atendimento prestado às pessoas com deficiência, pois "as ações devem ser multipro-fissionais, interdisciplinares e intersetoriais, para que sejam possíveis respostas mais efetivas às necessidades de saúde das pessoas" 30.
Dentre os artigos que compuseram a revisão integrativa e indicaram a área de formação dos autores, notou-se a prevalência de fisioterapeutas e enfermeiros, muito embora as equipes de saúde também sejam compostas por outros profissionais (médicos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas). Assim, considerando que o atendimento é multidisciplinar, outras áreas de atuação em saúde precisam ter acesso às pesquisas e desenvolver o assunto, cada qual em sua área de trabalho, a fim de proporcionar atendimentos globais às pessoas com deficiência.
Outro aspecto está relacionado à presença de familiares durante o atendimento dos pacientes com deficiência, indicada pela doutrina como uma estratégia para reduzir erros diagnósticos e de tratamento. Contudo, podem afastar o diálogo direto com os pacientes, o que traz "implicações ao processo assistencial porque dificultam o empode-ramento do indivíduo para tomar suas próprias decisões e usufruir os seus direitos de cidadania" 27. Dessa forma, a preparação profissional adequada propiciaria atendimentos adaptados, com ou sem familiares, a depender da realidade específica dos pacientes.
De outra parte, o papel da família dos pacientes com deficiência é destacado por Pereira et al.25 como uma forma de contribuir para o desenvolvimento das habilidades dos profissionais de saúde bucal no tratamento dos pacientes. Porém, quando observados os pacientes surdos, Nóbrega et al.24 ressaltam que o ente familiar pode acabar por invadir o espaço da consulta, interferindo na relação médico-paciente. O profissional capacitado, portanto, estaria apto a demonstrar a diferença entre o papel de mediador do familiar e a ajuda que ele proporciona no momento da comunicação, sem deixar de lado a autodeterminação do paciente.
Note-se que a preparação para o atendimento de pacientes com deficiência não é assunto restrito a uma área específica da Medicina. Dentre os artigos analisados, foi possível verificar especial preocupação dos profissionais de saúde bucal para a prestação de serviços direcionados aos pacientes com algum tipo de deficiência 21,25,35.
Ainda que personalizar o atendimento e estar aberto a atender pacientes com deficiência de forma descontraída e tranquila colaborem para reduzir a ansiedade e permitam que a comunicação seja mais efetiva, Pereira et al.35 consideram que os profissionais não estão capacitados para tratar e acolher os surdos.
No tocante ao atendimento odontológico, ainda, comentam Pereira et al.25 a respeito da falta de abordagem generalista nos currículos de odontologia, o que deixa de formar o cirurgião-dentista para o atendimento de pessoas com deficiência. Portanto, os profissionais saem da graduação sem uma visão de atendimento adaptada, o que pode trazer complicações para os pacientes.
Imperioso destacar que a preparação diferenciada dos profissionais de saúde bucal precisa considerar que tais pacientes "geralmente não têm habilidade para promover uma higiene oral satisfatória e, muitas vezes, não permitem que outras pessoas a façam de maneira adequada" 21. Nesse contexto, leva-se em conta o desconforto do ambiente de um consultório, a presença de pessoas diferentes das que o paciente está acostumado, por exemplo.
Nesse sentido, Carvalho et al.22 destacam uma proposta de educação continuada com a capacitação dos profissionais de saúde, atendimento holístico, escuta ativa, afastamento do paradigma biomédico, valorização do autocuidado. Desse modo, paciência, habilidade e carinho 21 são necessários para proporcionar aos pacientes com deficiência atendimentos humanos, seguros e eficazes.
Diante de tal contexto, é possível aproximar o assunto abordado com o princípio da autonomia da bioética principialista. A autonomia carrega consigo a ideia de liberdade para escolhas relacionadas à saúde, como a privacidade e a pertencimento a si mesmo. Considera a liberdade e a qualidade de agente, no sentido de ser o paciente o protagonista de sua saúde 41.
Note-se que a expressão é elencada pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco como um princípio a ser respeitado e levado em consideração nas tomadas de decisão. Conceitua, portanto, o artigo 5° da Declaração: "a autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada" 42.
Considerar a autonomia dos pacientes com deficiência importa em enaltecer sua humanidade e sua essência enquanto pessoas. Assim, "as necessidades não se resumem à doença; a prevenção e a assistência devem estar articuladas, os problemas são complexos e envolvem o contexto sociocultu-ral, o usuário é um sujeito (com história, valores, desejos)" 30. Nesse sentido, a preparação profissional precisa ser diferenciada.
A articulação sugerida pelos autores é ressaltada ainda por Bentes et al.33, à medida que "a ausência de capacitação e sensibilidade profissional aparece como causas principais das dificuldades enfrentadas pelos surdos ao procurar os serviços de saúde, que leva à dependência".
Busca-se, nesse contexto, trazer efetivamente a pessoa com deficiência para dentro do sistema de saúde, para que ela possa exercer e reivindicar, enquanto pessoa, cidadão e paciente, os direitos que lhe competem. Nesse passo, "no âmbito da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência, parece promissor produzir saúde na alteridade, isto é, na relação com as diferenças, colocando-as em contato com as dinâmicas e desafios do sus" 40.
A educação médica não voltada à atenção de pacientes com deficiência auditiva demonstra a falta de preparo dos médicos para o atendimento dessa população, pois "poucos conhecem a língua de sinais e as peculiaridades da cultura surda, e um quantitativo ainda menor se comunica por essa língua" 24. Dessa forma, no cotidiano, a comunicação entre médico e paciente com deficiência, além da equipe e da família, pode ficar prejudicada.
A falta de treinamento dos profissionais se revela como uma barreira linguística, mas não apenas isso. Há também o reflexo em decorrência de dificuldades financeiras para contratar intérpretes e para capacitar os profissionais para o atendimento adaptado às pessoas com deficiência. Para os autores, a presença de acompanhante ou tradutor em consultas médicas torna o atendimento "menos integral, menos sigiloso, menos humanizado" 15.
O despreparo dos profissionais para o atendimento de pacientes com deficiência, segundo os autores, se dá devido à prática da sociedade em segregar tais pessoas, por considerá-las inválidas. Nesse sentido, uma forma de romper com tal lacuna seria a inclusão de estágios assistenciais a pessoas com deficiência na matriz curricular dos cursos de saúde (salientando a Enfermagem, segundo o texto analisado) 37.
As lacunas na formação dos estudantes brasileiros não podem se sobrepor ao direito à saúde e ao atendimento de qualidade. Dessa forma, a autonomia dos pacientes, considerada pela bioética como princípio e enaltecida pelos autores que compuseram a presente revisão, constitui uma vertente para o atendimento de qualidade e voltado às especificidades dos pacientes com deficiência, o que permite, no contexto ora em análise, sua autodeterminação.
Barreiras à acessibilidade
Outro aspecto evidenciado com a revisão dos artigos selecionados foi quanto às barreiras ao acesso à saúde pela população. Foi possível observar tal temática em 11 dos 29 artigos (37% dos artigos se-lecionados para a leitura integral).
Nos termos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a acessibilidade é conceituada como "possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias" 10, além de outros serviços e instalações em zona urbana ou rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, conforme consta no artigo 3°, inciso I.
As barreiras à acessibilidade estão definidas no mesmo artigo, inciso IV, como qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação, o gozo, a fruição e os exercícios de direitos "à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros" 10. São ainda classificadas em urbanísticas, arquitetônicas, nos transportes, nas comunicações, atitudinais e tecnológicas.
Conforme apontam Castro et al.36, "entre a necessidade de serviços e sua satisfação há a questão da acessibilidade aos serviços, que se não for adequadamente trabalhada pode fazer com que a pessoa com deficiência enfrente obstáculos que inviabilizem o seu acesso aos serviços de saúde. Os autores ainda apontam dificuldades com vagas em estacionamento, falta de cadeiras de rodas nos serviços de saúde, inadequação de sanitários destinados aos pacientes com deficiência, entre outras.
Diante das diversas formas de barreiras que implicam dificuldade de acesso, as questões éticas e de justiça buscam se voltar para a equidade, na medida em que direcionam ações e recursos aos indivíduos mais vulneráveis e com maiores necessidades 16. Demonstra-se, assim, a interligação dos resultados localizados nos artigos com a bioética.
Carvalho 43, ao tratar de questões éticas na saúde, destaca a relevância da aplicação do princípio da equidade na elaboração de políticas públicas, sobretudo no que tange aos "conflitos relacionados ao acesso, ou seja, quando parte da população está descoberta".
Nesse tocante, o princípio da justiça corrobora com o entendimento da autora citada, que aproxima as questões éticas da saúde aos direitos humanos. Acerca de tal princípio, pode-se analisar a temática sob o viés jurídico, em que se destaca a legislação sobre os direitos da pessoa com deficiência e a busca por sua efetivação no âmbito da saúde.
Sob o viés bioético, a utilização de uma bioética de intervenção se justifica em um mundo desigual, "no qual uns têm a possibilidade de sentir prazer enquanto a outros resta a probabilidade do sofrimento" 44. Nessa perspectiva e considerando o contexto ora em análise, é possível a intervenção estatal por meio da adaptação de políticas públicas ou legislações voltadas para as pessoas com deficiência com vistas à equidade entre os seguimentos da sociedade.
Dentre os artigos analisados, identificou-se a existência de serviços com complexidades variadas à disposição dos idosos com deficiência física (população que mais consome serviços de saúde), para otimizar os atendimentos e dar resolutivida-de. Porém, ressaltam que há exclusão dos pacientes, mesmo havendo legislação específica sobre o assunto: "o acesso ao sistema de saúde e às suas tecnologias não ocorre de forma equitativa, ainda que isto esteja presente na constituição do Sistema Único de Saúde" 19.
No tocante à acessibilidade de pessoas com deficiência ou restrição permanente de mobilidade ao sus, notou-se que a precariedade no serviço de saúde se revela como uma dificuldade em categorizar as necessidades e construir indicadores sobre o desempenho desse órgão na área, conforme aduzem Amaral et al.20.
Além disso, há uma relação entre baixa escolaridade e dependência de recursos financeiros do governo para o atendimento especializado em deficiência. A hipossuficiência económica também é determinante para o estudo das causas da deficiência, pois "grande parcela dos entrevistados desconhecia a causa da sua deficiência, revelando fragilidades no acesso do usuário às informações acerca do seu quadro de saúde" 20.
Nesse sentido, valorizar as necessidades de cada grupo que utiliza a saúde, considerando suas particularidades, "permite a elaboração de estratégias para aprimoramento dos serviços prestados, por meio do cuidado compartilhado entre o usuário e o profissional, visando assim o bem-estar da população" 32.
Outra análise relevante são as contribuições de Ursine et al.39, que compreendem a vulnerabilidade como um "conjunto de fragilidades individuais e precariedades sociais que atingem um sujeito cujas condições de vida e saúde são influenciadas ou determinadas por aspectos sócio-históricos".
Dessa forma, recortam a análise da vulnerabilidade para as pessoas com deficiência que vivem no campo, fomentando que há, nesses casos, dupla vulnerabilidade, o que justificaria a necessidade de "políticas públicas que contemplem a diversidade dos sujeitos com deficiência, e não apenas aqueles que sofrem restrição de participação social na vida cotidiana" 39.
Apesar de as pessoas que moram no campo enfrentarem, por vezes, os mesmos problemas de acesso à saúde que as pessoas que vivem em cidades, a desvantagem é maior no que tange ao número de profissionais disponíveis para o atendimento no campo, ao não conhecimento a respeito das deficiências, à falta de transporte público acessível devido às distâncias, à dificuldade de acesso à energia elétrica e à telefonia, o que cria um abismo entre os profissionais de saúde e essa população 39.
Observou-se que muitas são as barreiras à acessibilidade que impedem os pacientes lidarem com diferentes aspectos relacionados ao acesso à saúde digna e de qualidade. Dentre as diversas formas de acessibilidade, há, nos artigos selecio-nados para a presente revisão, uma tendência em destacar a comunicação, razão pela qual foi considerada como uma categoria.
Comunicação entre paciente com deficiência e médico/equipe
A comunicação entre paciente com deficiência e médico/equipe foi considerada uma categoria, pois, 10 dos 29 artigos utilizados nesta revisão integrativa (34% dos artigos), abordaram de alguma maneira tal assunto.
Conforme expõe o artigo 9 do Decreto 6.949 de 2009 9, que promulga a Convenção de Nova York, cabe aos Estados-Partes assegurar a informação e a comunicação, para fins de promover formas apropriadas de assistência e fazer uso de tecnologia.
As barreiras da comunicação podem se apresentar de formas diferentes no contexto da saúde. Dessa forma, "a falta de protagonismo quanto ao autocuidado de saúde, falta de informações pela dificuldade em acessar fontes de informações, e a dependência de ouvintes, familiares, amigos e intérpretes de Libras" 17 são algumas das situações que demonstram essa realidade.
Na prática, a assimetria técnica detectada entre médicos e pacientes possui reflexos quando analisada a troca de informações entre esses sujeitos. Para que o paciente compreenda a linguagem, o procedimento, o tratamento, pode ser necessário que o médico "desça alguns degraus" para estabelecer um diálogo proveitoso. De outra parte, a comunicação deficitária gera o descontentamento dos pacientes, por não serem informados a respeito dos procedimentos, sobre as possibilidades de tratamento e a tomada de decisões 13.
Para afastar o bloqueio na comunicação e permitir o atendimento apropriado, a linguagem para o atendimento de pacientes surdos, por exemplo, deve ser adaptada. O acolhimento se revela quando esses pacientes encontram profissionais que conseguem se expressar e se comunicar com eles 13. Nesse sentido, o acolhimento se aproxima da inclusão e da acessibilidade das pessoas com deficiência nas tomadas de decisão que envolvem seu corpo. A humanização do atendimento pareceu atrelada, nos artigos analisados, à compreensão do médico acerca das especificidades que exigem um paciente com deficiência, seja ela qual for.
Com relação aos pacientes com deficiência auditiva ou completamente surdos, como forma de reduzir as diferenças entre médicos e pacientes, foram apontadas: a capacitação dos médicos com formação em Libras e a disponibilização de intérpretes nas unidades de saúde 13.
Trata-se de entendimento em harmonia com o que é preconizado pelo artigo 3° da Lei 10.436 de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras 45, acerca da garantia de atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor.
A comunicação entre paciente e médico não é assunto restrito aos indivíduos que possuem deficiência relacionada com a surdez, muito embora a maioria dos artigos que abordam sobre a troca de informações e a relevância da comunicação esteja voltada aos pacientes surdos.
Dentre os artigos analisados, um abordou a deficiência visual e revelou importante observação acerca da demora na procura por atendimento médico. A busca tardia por atendimento especializado oftalmológico (em média, o primeiro atendimento oftalmológico ocorreu na faixa etária entre 40 e 65 anos) e a ausência de cuidados na juventude são um reflexo da falta de comunicação entre pacientes e médicos sobre a importância dos tratamentos preventivos 18. Além disso, a falta de continuidade de tratamento é um dado importante, já que o paciente oftalmológico, com frequência, demora a buscar atendimento médico 18.
Dessa forma, a comunicação está atrelada à inserção social das pessoas com deficiência, o que revela um potencial das redes de apoio na melhoria da atenção básica para "retirar esses sujeitos da condição de isolamento em que se encontram e diminuir a sobrecarga familiar" 14.
Além disso, "sobre a aquisição e administração correta de medicamentos, o grupo também não demonstrou autonomia, mas evidenciou interesse de independência caso houvesse possibilidade de comunicação" 12.
Diante do cenário de desigualdade, a falha na comunicação torna o paciente com deficiência ainda mais vulnerável. Segundo Kottow (446), "o vulnerável sofre de necessidades não atendidas, o que o torna frágil, predisposto a sofrer danos". O autor é conhecido por abordar a bioética de proteção, que, para Schramm 47, é uma ferramenta para entender os problemas de saúde pública que se pretendem universalistas (como é o caso do Brasil), além de buscar resolver conflitos que afetam a qualidade de vida dos indivíduos.
Portanto, a barreira instituída pela comunicação deficitária entre profissionais de saúde e pacientes, sobretudo os pacientes com deficiência, lhes tolhem a autodeterminação e a equidade.
Conforme o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em seu artigo 18, parágrafos 1° e 4°, VIII, a comunicação como forma de conferir aos pacientes autonomia está relacionada com a participação da pessoa com deficiência na elaboração de políticas públicas destinadas aos seus anseios e com a "informação adequada e acessível à pessoa com deficiência e a seus familiares sobre sua condição de saúde" 10.
A dependência dos recursos financeiros apontada no item sobre barreiras à acessibilidade implica longas esperas por atendimento e exaustivos deslocamentos em busca deste. Nesse sentido, ob-serva-se que "muitos pacientes, inclusive, vêm ao Estado de São Paulo em busca de tratamentos e percorrem grandes distâncias por não terem informações suficientes da existência de serviços mais próximos à sua residência" 31. Portanto, a valorização da comunicação aliada a políticas públicas adequadas permitiria acessibilidade a serviços de saúde próximos dos pacientes, sobretudo os que precisam de atendimento especializado devido à alguma deficiência.
Para Nóbrega et al.24, uma estratégia comunicativa que, na prática, pode não ser tão viável para pacientes surdos é o uso da escrita. Isso porque "a língua portuguesa escrita é segunda língua, podendo haver dificuldades em seu domínio, ao passo que eles também enfrentam dificuldade de acesso ao sistema educacional".
Portanto, os reflexos da abordagem da saúde dos pacientes com deficiência, em verdade, possuem implicações para outros direitos sociais, o que enaltece a interdisciplinaridade do tema. Dessa forma, a bioética permite analisar a vulnerabilidade dos pacientes com deficiência sob uma ótica direcionada aos direitos humanos, conforme aponta Cini et al.48, ao considerarem que "a bioética permite a mediação de problemas relacionados à vida". Para os autores, a qualidade de vida é uma política pública de saúde, visto que se mostra como um "dever ético de ajuda aos que necessitam superar sua condição de fragilidade" 48.
A valorização dos pacientes enquanto indivíduos é relevante, pois, na rotina de saúde, "o usuário pouco aparece como sujeito capaz de agir no contexto em que vive" 34, razão pela qual é imperioso dar voz ao paciente com deficiência com vistas a promover sua autodeterminação e dignidade. Diante disso, a bioética permite diálogos voltados ao ser humano em sua totalidade.
Dupla vulnerabilidade da mulher com deficiência
Dentre os artigos analisados, foi possível identificar ressalvas importantes a respeito da saúde da mulher com deficiência (3 dos 29 artigos estudados, o que representa 10% dos artigos), de modo que é considerada duplamente vulnerável, impondo sua análise como uma categoria que compõe a presente revisão integrativa.
O Decreto brasileiro 6.949 de 2009 9, que in-ternalizou a Convenção de Nova York sobre Direitos da Pessoa com Deficiência, elenca, no artigo 3°, o princípio da igualdade entre homem e mulher, além de reconhecer como especialmente vulneráveis as mulheres e meninas com deficiência. Ressal-ta-se que o "tratamento diferenciado não deve ser considerado discriminatório e, sim, protetivo" 49.
A Convenção ainda segue, no artigo 6°, afirmando que as mulheres com deficiência estão sujeitas a múltiplas formas de discriminação. O diploma legal ainda determina como função dos Estados-partes signatários a tomada de medidas para assegurar todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.
Segundo Carvalho et al.22, o modelo atual de atenção à saúde ginecológica não permite a promoção da capacidade de autocuidado da usuária, tampouco com relação à tomada de decisões.
Porém, as dificuldades vão além: verificam-se barreiras com relação à estrutura de clínicas e hospitais; ao espaço físico do consultório para trocar de roupa e se movimentar com cadeira de rodas, por exemplo; aos equipamentos que não são ajustáveis; à localização, pois mulheres residentes em locais mais afastados não chegam aos grandes centros para o atendimento médico.
Recorda-se o princípio da igualdade estabelecido na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos 42, que dispõe no artigo 10°: "A igualdade fundamental de todos os seres humanos em dignidade e em direitos deve ser respeitada para que eles sejam tratados de forma justa e equitativa".
O artigo 14° da Declaração ainda é expresso no tocante a proporcionar a melhor saúde que se possa alcançar com vistas à promoção dos direitos fundamentais, deve-se fomentar "o acesso a cuidados de saúde de qualidade e aos medicamentos essenciais, nomeadamente no interesse da saúde das mulheres e das crianças, porque a saúde é essencial à própria vida e deve ser considerada um bem social e humano" 42.
Na prática, nota-se uma falta de conhecimento dos profissionais para atender especificamente essas pacientes, o que acentua a vulnerabilidade dessas mulheres. Ademais, por vezes, o foco é a deficiência da paciente e não o atendimento ginecológico. Portanto, percebe-se um afastamento da igualdade nos casos concretos.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146 de 2015, em seu artigo 5° 10, reconhece a importância em se proteger a mulher de forma diferenciada, por considerá-la como especialmente vulnerável. Nota-se que o legislador brasileiro não está inerte às questões que envolvem a vulnerabilidade dessa população.
Em trabalho voltado ao conhecimento de mulheres com deficiência física sobre câncer ma-mário e autoexame, verificou-se que a assistência atualmente praticada em contexto de fragilidade, desarticulação e descontinuidade, de modo que é importante falar sobre questões relacionadas à saúde das mulheres com deficiência. Constatou-se que, "apesar do Ministério da Saúde ter criado programas e desenvolver campanhas específicas para a detecção precoce do câncer de mama, algumas participantes deste estudo desconhecem a temática" 26.
A falta de conhecimento dessa população sobre políticas públicas e direitos fundamentais se reflete em falta de autocuidado, por não ter informações a respeito do assunto e por estar previamente influenciada pelas convicções culturais e pessoais. Portanto, a educação popular é um caminho para a conscientização de direitos para possibilitar à população, sobretudo às mulheres com deficiência, melhor qualidade de vida.
Para Nicolau et al.29, a dimensão social da vulnerabilidade no Brasil impacta a integralidade da saúde das mulheres com deficiência. Os autores ainda apontam exemplos de aspectos que ficam aquém das necessidades das pacientes: falta de sensibilização dos profissionais, falta de reconhecimento nos serviços dos direitos humanos das mulheres com deficiência, falta de políticas assistenciais que contemplem as especificidades das mulheres.
Nesse passo, a distinção feita por Sanches et al.50 entre vulnerabilidade existencial ou intrínseca (condição comum a todos os seres humanos) e vulnerabilidade social (grupos específicos são vulneráveis devido às circunstâncias) é relevante. Assim, "trata-se de problema ético, pois é perpetuada pelas estruturas humanas e pode ser superada, mas isso não depende apenas da boa vontade dos indivíduos" 50. Dessa forma, a injustiça social traz implicações no âmbito econômico e ideológico, o que justifica o engajamento político na temática.
Conclusão
A saúde das pessoas com deficiência tem sido relatada sob a ótica de diversos profissionais de saúde, conforme se verifica nos artigos que compuseram a presente revisão. A bioética, nesse contexto, pode ser usada para repensar a forma de cuidar e as reais necessidades desses pacientes ao permitir um olhar único para as diferentes necessidades dessa população. Desse modo, torna-se imprescindível compreender o cenário atual da saúde das pessoas com deficiência para identificar quais fatores as vulnerabilizam ainda mais.
Verificou-se que a preparação profissional para o atendimento de pacientes com deficiência precisa ser adaptada e fortalecida, a fim de contribuir para a garantia da autodeterminação desses pacientes. Ademais, as barreiras à acessibilidade refletem na dificuldade de acesso, afrontando os princípios da equidade e da justiça, o que justifica uma bioética de intervenção. Dentre as barreiras, a comunicação entre profissionais e pacientes se revelou a mais urgente e necessária para a proteção dos indivíduos vulneráveis e a amenização das desigualdades. Por fim, notou-se a dupla vulnerabilidade da mulher com deficiência, o que merece atenção e cuidado por parte dos profissionais e de toda a sociedade.
Dessa forma, permite-se refletir a respeito de possíveis melhorias, como modificações na atuação médica, capacitação dos profissionais e aprimoramento de políticas públicas. Tal medida, na prática, objetiva a redução da vulnerabilidade (ou, na prática, sua amenização), propiciando atendimentos de saúde humanizados e voltados às reais necessidades dos pacientes com deficiência.