Introdução
A denominada terminologia "síndrome de Münchhausen (SM)" foi empregada pela primeira vez em 1951, pelo britânico Richard Asher, que era endocrinologista e hematologista 1. Salientando suas interfaces com os aspectos bioéticos, refere-se a adultos que, por ventura, provocam intencionalmente sinais e sintomas a si próprios, com o propósito de receber cuidados e/ou assistência da equipe multiprofissional da saúde. Asher, na época, identificou episódios de mentiras patológicas (pseudologias fantásticas), ou seja, indivíduos supostamente com alguma patologia que contavam histórias inverídicas e, como consequência, eram submetidos a terapêuticas, tratamentos clínicos e cirúrgicos desnecessários 2,3.
Nesse contexto, a palavra "Münchhausen" faz alusão ao ilustre personagem barão de Münchhausen (Karl Friedrich Hieronymus Freiherr von Münchhausen, 1720-1797). Ele era popularmente conhecido por versar sobre histórias fictícias e exagerar nos relatos, principalmente em suas bravatas e em seus atos heroicos. Em 1977, o renomado pediatra Samuel Roy Meadow introduziu a síndrome na pediatria, adotando a terminologia "síndrome de Münchhausen por procuração" (SMPP) para possíveis situações de abuso infantil em que os pais, geralmente a mãe, induziam intencionalmente sinais e sintomas no lactente, a fim de chamar a atenção para si 4-7.
Segundo Ferrão e Neves 6, a SM, em decorrência do despreparo e/ou da ausência do aprofundamento do conhecimento por parte dos profissionais de saúde em sua formação, é subnotificada. Filho ET AL. 7 corroboram essa percepção, pois, de forma geral, a sm e a SMPP, embora observadas nas salas de emergência, nas clínicas e nas unidades cirúrgicas, suscitam enúmeras dúvidas, podendo ser diagnosticadas erroneamente. Sua assertiva dependerá de um olhar atento do profissional especialista, além do quadro clínico.
Na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), lançado em 2013 pela American Psychiatric Association, a terminologia "síndrome de Münchhausen imposto a si próprio" foi substituída por "transtorno factício autoimposto", bem como a "síndrome de Münchhausen por procuração" substituída por "transtorno factício imposto a outro" 7-9.
Diante do exposto, torna-se relevante que as equipes interdisciplinares, em específico a enfermagem, ampliem seus conhecimentos em saúde mental no subcampo associado com aspectos bioéticos. Dessa forma, podem obter subsídios para o possível reconhecimento do quadro clínico na sm e na SMPP, e assim promover intervenções assertivas e coordenadas. Nesse contexto, a presente revisão reflexiva tem o objetivo de compreender a sm a partir da descrição da sua diferenciação, das causas, dos critérios de identificação, dos sinais clínicos, do diagnóstico, do tratamento e das assistências realizadas pela equipe de enfermagem e pela multidisciplinar.
Metodologia
A matriz metodológica adotada trata-se de uma pesquisa de revisão bibliográfica narrativa, não sistemática da literatura, de cunho exploratório, com abordagem qualitativa e reflexiva, com vistas a identificar ou caracterizar as problemáticas enfrentadas pela equipe interdisciplinar, na abordagem de pesquisa proposta.
Nesse contexto, a revisão narrativa apresenta uma síntese pautada em diferentes tópicos, capazes de criar uma ampla compreensão sobre o conhecimento. O primeiro passo para construir o conhecimento científico surge por meio de novas teorias e da discussão do assunto de pesquisa, tendo em vista que a revisão da literatura não é uma espécie de sumarização, mas sim de reflexão acerca da temática 10.
Para obter os artigos/conteúdos explorados, elaborou-se a seguinte questão: quais aspectos envolvem a SM, a SMPP e a compreensão da equipe interdisciplinar, em específico a enfermagem assistencial na América do Sul? Foi utilizado o Descritor em Ciências da Saúde: "síndrome de Münchhausen", "síndrome de Münchhausen por procuração", "transtorno factício a outros", "transtorno factício autoimposto", "violência", "transtornos mentais", "bioética". Com isso, realizou-se uma revisão bibliográfica sobre o tema no banco de dados do Scientific Electronic Library Online e na Biblioteca Virtual em Saúde. Devido à escassez de literatura específica na temática, utilizou-se também do buscador Google Scholar.
Como critério de inclusão, utilizou-se de: pesquisas e artigos originais com a disponibilidade do texto completo em suporte eletrônico; relatos de casos e experiências; artigos de revisão e reflexão. Foi estabelecida a utilização de artigos publicados de 2009 a 2019, disponibilizados em português e espanhol, no critério país/região de assunto. Os critérios de exclusão foram: resumos; publicações cujo tema principal ou descritores não correspondia à pesquisa; artigos duplicados em termos de conteúdo nas diferentes bases de dados e artigos anteriores a 2009.
Assim, o material composto foi de 30 artigos, além de livros, manuais e leis normativas, que foram submetidos à técnica de avaliação e análise de conteúdo, constituída por três etapas: pré-análise, exploração do material e interpretação dos resultados/conteúdos. A primeira etapa possibilitou a visão geral do conteúdo dos artigos, por meio da leitura dos resumos e de seu fichamento. Em seguida, os textos classificados foram lidos na íntegra. A etapa de exploração do material foi desenvolvida a partir da releitura dos textos, culminando na construção de categorias temáticas de análise. Posteriormente, na etapa de interpretação dos resultados, foram observadas as colocações existentes sob a ótica de diferentes autores.
Resultado e discussões
Fundamentação teórica:aspectos clínicos e conceito
A Organização Mundial da Saúde 11, em 1993, incluiu a sm na décima edição da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), no v capítulo de classificação "na categoria produção intencional, ou imitação de sintomas ou disfunções, tanto física ou [sic] psicológicas (transtornos factícios)" 7,8,12.
Desse modo, o código que identifica a patologia/síndrome é F68.1. Este tem como descrição a produção deliberada ou a simulação de sistemas ou de incapacidade, físicas ou psicológicas (transtorno fictício) 13. Essa identificação pode também ser denominada como: "vício hospitalar", "vício policirúrgico", "síndrome do paciente profissional e do paciente itinerante", o que evidencia associação de aspectos bioéticos entre o paciente e a equipe 7,14.
Contudo, a CID-1O inclui o SMPP no código T74.8 (Outras síndromes especificadas de maus-tratos), em que lactentes/crianças, pessoas idosas, indivíduos com deficiência ou adultos dependentes são vítimas de atos de violência por parte do adulto portador do transtorno. Nesse sentido, tanto o adulto com o Münchhausen imposto a si próprio quanto o adulto com Münchhausen imposto a outro terão como diagnóstico o CID F68.1 13,15. Os quadros abaixo indicam os critérios dos diagnósticos utilizados pelo DSM-5 para os dois transtornos.
Falsificação de sinais ou de sintomas físicos ou psicológicos, indução ou doenças associadas à fraude identificada. |
Apresentação do indivíduo a outros como doente, incapacitado ou lesionado. |
Comportamento fraudulento evidente, mesmo na ausência de recompensas externas óbvias. |
Comportamento não explicado por outro transtorno mental, como transtorno delirante, ou por outra condição psicótica. |
Fonte: adaptado de American Psychiatric Association (8, p. 325) e Filho, Kanomata, Feldman e Neto 7.
Falsificação de sinais ou de sintomas físicos ou psicológicos, indução de lesão ou doença em outro associada à fraude identificada. |
Apresentação do outro (vítima) a terceiros como doente, incapacitado ou lesionado por parte do indivíduo com o transtorno. |
Comportamento fraudulento evidente, até mesmo na ausência de recompensas externas óbvias. |
Comportamento não explicado por outro transtorno mental, como transtornos delirantes. |
Fonte: adaptado do DSM-5 (8, p. 325) e Filho ET AL. 7.
Indivíduos com distúrbio factício tendem a buscar, inúmeras vezes, tratamentos para si mesmo ou para outros, depois da indução da lesão ou do adoecimento da vítima. Em linhas gerais, os meios de adulterações das patologias inexistentes podem acarretar um exagero comportamental, bem como a fabricação de sinais, a simulação e a indução clínica similares às reais. Os indivíduos portadores dos transtornos relatam, de modo melodramático ou teatral, o seu estado de saúde ou o da vítima. Muitos deles acabam sendo contraditórios e vagos, com histórias inconsistentes 8,16,17. Com frequência, restringem-se a temáticas específicas, tendem a compreender bem as terminologias médicas e buscam, cada vez mais, conhecimento em rotinas hospitalares associadas com princípios bioéticos. Apresentam-se de modo bem-visto socialmente e evidenciam compulsão em mentir, sem benefícios externos. Esses pacientes se relacionam muito bem com os profissionais da assistência, os enfermeiros e os médicos, sugerindo-lhes procedimentos e tratamentos 8,17-19.
Para Telles ET AL. 12, casos em que as pessoas fabricam patologias em seus filhos (transtorno factício a outros) são quase sempre induzidos por indivíduos do sexo feminino. Essas mulheres, em alguns casos, têm vínculo com a área de saúde, como estudantes ou profissionais, o que evidencia interface com a bioética. São poucos os casos em que o pai é o perpetrador principal. De forma geral, pais de crianças/lactentes vítimas de patologias induzidas ou fabricadas não têm a ciência do ocorrido. Muitas vezes, esses indivíduos acreditam nas alegações fictícias da mãe; outras, os pais podem suspeitar da atitude da perpetradora e até tentam afrontá-la, mas sem êxito 18,20-24.
As motivações para que um indivíduo portador do transtorno factício realize as ações são diversas. Por exemplo, ansiedade impulsiva que leva a um demasiado exagero de sinais e sintomas, induzindo doenças em si mesmo ou passando falsas crenças sobre a saúde debilitada da criança para obter atenção. Esses aspectos são similares a outros transtornos mentais. Quanto à epidemiologia da temática, o número total de casos existentes nessa determinada população portadora dos transtornos é eminentemente desconhecido, em virtude da dificuldade de identificação e compreensão clínica dessa fraude 12,25,26.
Estima-se que cerca de 1% dos indivíduos que estão em ambientes hospitalares tenham apresentações que satisfazem os critérios de transtorno factício. As diversidades de episódios comuns tendem a ser mais constantes em pessoas com outros transtornos mentais e comorbidades preexistentes, em mulheres solteiras e em pessoas com exposição à área médica assistencial, como, por exemplo, ser filho(a) de um(a) profissional da saúde. O subtipo do transtorno factício parece ser frequente em homens solteiros 15,23-28.
Diagnóstico diferencial: sinais e sintomas físicos e psicológicos na interdisciplinaridade
Com base na história simulada, os transtornos podem ser agrupados em dois subgrupos: a) manifesto por sinais e sintomas psicológicos e b) manifesto por sinais e sintomas físicos. Ambos podem ocorrer em conjunto, o que demonstra associação com a bioética 12,16,29. Para Fiusa ET AL. 30, em um estudo direcionado a profissionais de fisioterapia, evidencia-se a importância do equilíbrio corporal entre o homem e o ambiente, o qual é possível devido à integração de sistemas, às sensibilidades proprioceptivas, ao aparelho vestibular e ao sentido da visão, além da influência de fatores físicos e fisiológicos.
Para Cherobin ET AL. 31, um exemplo de alterações fisiológicas é no momento do parto. Nesse processo, a dor é um dos importantes sinais, e os métodos não farmacológicos - como a acupuntura e a auriculoterapia - podem atuar no seu alívio. Portanto, independentemente da patologia ou das situações do indivíduo, as opções do manejo por meio de ações interdisciplinares, com vistas a controlar sinais e sintomas, físicos e psicológicos, devem ser corretamente identificadas e diagnosticadas, com a aplicação de terapêuticas adequadas.
Nesse contexto, segundo o DSM-5, para a sm e a SMPP, os critérios ao diagnóstico enfatizam-se na obtenção de informação com amigos e membros da família do paciente, com o intuito de obter uma revelação da doença falsa. Essa entrevista deve ser elaborada cuidadosamente com pessoas confiáveis. Toda essa investigação a respeito de internamentos e tratamentos médicos anteriores é primordial para se obter um diagnóstico precoce 8,29. Em cerca de 50% dos casos, a avaliação por profissional especializado (psiquiátrica) é necessária para confirmar o diagnóstico de transtorno factício, após a suspeita da doença simulada. Nesse momento, é importante que haja um sábio manejo da situação com esses pacientes para que ocorra a minimização do risco à evasão ou à fuga do ambiente hospitalar 24,29.
Estudos de Macêdo ET AL. 32 evidenciaram que a prática formativa acadêmica dos profissionais de psicologia é voltada para a atuação clínica individualizante, com limitado suporte teórico-metodológico na proteção social básica das políticas públicas de assistência social e saúde. Isso dificulta a realização do trabalho do psicólogo, o qual necessita avançar na sua formação, e a consolidação de um sistema de garantias, o que fomenta um melhor manejo interdiciplinar. Essas falhas na formação multiprofissional são evidentes em estudos de diversas profissões da área de saúde em muitas temáticas e práticas específicas 7,12,18,21,33. O Quadro 3 mostra indícios que devem despertar suspeita da equipe de saúde quanto à simulação ou à indução de doenças e agravos.
Sinais e sintomas |
---|
Apresentação dramática incomum de sintomas que desafiam a compreensão clínica ou psiquiátrica convencional. |
Os sintomas não respondem apropriadamente a tratamento e medicamentos habituais. |
Emergências de sintomas novos e incomuns quando outros sintomas se resolvem. |
Avidez para se submeter a procedimentos ou testes ou para relatar os sintomas. |
Relutância em permitir acesso a fontes colaterais de informações (recusa em assinar a liberação de informações ou em dar informações de contato para a família e amigos). |
Extensa história médica ou evidência de múltiplas cirurgias. |
Alergias a muitos medicamentos. |
Profissão médica. |
Não recebimento de muitas visitas. |
Capacidade de prever a progressão incomum dos sintomas ou a resposta incomum ao tratamento. |
Fonte: adaptado de Sadock, Sadock e Ruiz (29, p. 490).
Qualquer possível transtorno no qual sinais e sintomas predominantemente físicos sejam relevantes deve ser considerado como diagnóstico diferencial e observada a possibilidade de uma patologia física realmente autêntica ou coexistente. Embora nenhum exame ou teste laboratorial seja base para o diagnóstico de transtorno factício, pode ajudar a confirmar ou excluir distúrbios clínicos físicos específicos e transtornos mentais 23,25,26,29,34. O quadro abaixo apresenta sinais e sintomas físicos que podem ser confundidos com uma patologia genuína e lista, tanto meios de simulação quanto possíveis métodos de identificação.
Fonte: adaptado de Sadock, Sadock e Ruiz (29, p. 494).
Alguns pacientes exibem sinais e sintomas psiquiátricos considerados simulados, tais como depressão, alucinação, sintomas dissociativos (também conhecido como "conversivo") e comportamento bizarro anormal e incomum. Além disso, apresenta-se de forma deprimida e usa histórias falsas, como a morte recente de um companheiro ou colega para justificar seu comportamento depressivo. Contudo, há indivíduos que incluem, em suas histórias falsas, óbitos violentos ou sangrentos, em situações dramáticas que envolveram crianças e adultos jovens 18-29,35. O Quadro 5 lista várias síndromes simuladas por pacientes que querem ser vistos como portadores de doença mental.
Sinais e sintomas predominantemente psicológicos |
---|
Luto |
Depressão |
Transtorno de estresse pós-traumático |
Transtorno doloroso |
Psicose |
Transtorno bipolar i |
Transtorno dissociativo de identidade |
Transtornos alimentares |
Amnésia |
Transtorno relacionado ao uso de substâncias |
Parafilias |
Hipersonia |
Transexualidade |
Fonte: adaptado de Sadock, Sadock e Ruiz (29, p. 491).
Consequências e complicações: fatores de riscos e causas
Para o DSM-5, "é importante destacar que indivíduos com transtorno factício autoimposto ou transtorno factício imposto a outro correm o risco de sofrer grande sofrimento psicológico ou prejuízo funcional ao causar danos a si mesmos e a outros", assim como outros transtornos que possam apresentar riscos psicológicos e físicos 8,36-47. Para Filho ET AL. 7, o comportamento desses pacientes aumenta a probabilidade de terem realmente uma doença física e até mesmo morrerem, devido ao excesso de uso de medicações e aos diversos procedimentos invasivos, pois há um grande número de procedimentos cirúrgicos realizados por indução e pretensões falsas, o que revela interface com a bioética.
Em geral, esses indivíduos tendem a ter um comportamento impulsivo, imprevisível e geralmente são instáveis em relacionamentos interpessoais 5,6,14-18. Crianças vítimas de adultos perpetradores com transtorno factício, com o intuito de chamar a atenção para si, podem ficar ansiosas a respeito do real estado de sua saúde; muitas vezes, sentem-se confusas por não se perceberem doentes e estarem submetidas, com frequência, a internações hospitalares e a exames potencialmente perigosos e desnecessários 7,12,15,41.
Desse modo, as crianças poderiam desenvolver o transtorno factício ou somatoforme no futuro em decorrência da experiência, com a fabricação de sinais similares aos dos seus responsáveis. Além disso, para as vítimas de transtorno factício imposto a outro, é comum a apresentação de problemáticas de cunho emocional e distúrbios comportamentais, sugestivamente correlacionados de forma direta com a indução e a fabricação de patologias, resultante de uma interação mãe-filho problemática 12,16,19,20.
Devido ao difícil diagnóstico desses transtornos, estes são considerados como condições raras, e a causa exata é desconhecida. Os pesquisadores argumentam que os fatores psicológicos e biológicos podem estar envolvidos. Alguns pacientes com transtorno factício cresceram em um ambiente familiar em que estar doente ou ferido era um método de obter atenção, cuidado, afeto e amor 12,17,26,41. Acredita-se que o estresse pode estar associado ao desenvolvimento do distúrbio factício. Esse estresse pode ser por um evento traumático anterior, problemas conjugais ou até doenças graves 21-26,35,42-47.
Muitos indivíduos diagnosticados com o transtorno têm um histórico de maus-tratos na infância e podem ter sido emocional ou fisicamente abusados quando crianças. Esses abusos podem ser divididos em: negligência e violência física, sexual, emocional e psicológica. A negligência é a forma mais comum de maus-tratos, podendo apresentar subcategorias: negligência médica, educacional e emocional; além disso, ocorre quando não há satisfação humana das necessidades básicas da criança em termos de alimentação, higiene, saúde, segurança e supervisão adequada à sua idade e desenvolvimento. A violência física ocorre quando alguém causa ou tenta causar dano a outro, podendo ser associada a aspectos físicos (queimaduras de áreas etiológicas, lesões abdominais, afogamento, sufocação e intoxicação intencionais), emocionais ou psicológicos (criança abandonada), além de causar morbimortalidade pediátrica e graves problemas de saúde, físicos e mentais, que podem se estender à vida adulta 1,12,14-16,36. Por sua vez, a violência sexual é todo ato no qual a pessoa abusa do seu poder e, por meio de força física, obriga a outra ao ato sexual. Independentemente do sexo, mas vitimiza com mais frequência meninas, o que evidencia associação com aspectos bioéticos. Violência emocional ou psicológica, maus-tratos emocionais ou psicológicos englobam toda ação ou omissão que tende a causar danos à autoestima e ao desenvolvimento da pessoa, dos quais efeitos adversos no desenvolvimento físico e psicossocial e, por consequência, diminuição de sua autoestima 6,12,15,34,35,41.
De acordo com Toy e Klamen 36, o transtorno borderline costuma ocorrer de forma comórbida ao transtorno factício. Reforçam ainda que pacientes com os dois transtornos costumam apresentar maus-tratos na infância, o que demonstra interface com a bioética. A síndrome de borderline é um transtorno de personalidade grave que se caracteriza por uma instabilidade de comportamento e humor e de sua autoimagem, que pode preceder aos abusos de substâncias psicoativas, aos atos autodestrutivos e às táticas manipuladoras 29.
Apesar de não haver clareza sobre as causas, os acometidos pelo borderline relatam experiências traumáticas como: abuso, abandono, exposição a relacionamentos instáveis e conflitos hostis. Para o tratamento do borderline, é utilizada terapêutica medicamentosa por meio de antidepressivos, estabilizadores de humor, calmantes prescritos por profissional psiquiatra, acompanhamento psicológico, psicoterapia, a fim de aliviar alguns sintomas, aprender a entender melhor suas emoções e a interagir socialmente 29,36,45.
Prevenção, tratamento e assistência de Enfermagem
Compreender sinais do quadro clínico é a primeira iniciativa para identificar qualquer patologia que acometa o indivíduo e, assim, prever e planejar ações de manejo (iniciativa secundária) tanto de problemas físicos quanto mentais. Em específico ao transtorno factício imposto a outro, é de extrema importância a identificação precoce, o que minimiza o agravamento maior acerca da saúde dessas crianças aos SMPP, acometidas pelos maus-tratos desses indivíduos perpetradores com SM 9,29,38,42-47.
O uso da mídia e da tecnologia é indispensável para a divulgação sobre o tema e contribui para prevenir o transtorno factício. Desse modo, é preciso sensibilizar e conscientizar a equipe multiprofissional de saúde sobre o tipo de manjo. É fundamental que os casos sejam registrados com a finalidade de pesquisas e medidas preventivas com abordagens terapêuticas que promovam a saúde pública 39,41.
É importante que se realize uma avaliação multidisciplinar dos casos, com uma cuidadosa avaliação médica e psicossocial, além do acionamento de serviços de proteção à criança sempre que necessário, com o intuito de prevenir as altas taxas de morbidade e mortalidade, pois o diagnóstico precoce por parte dos profissionais de saúde contribuirá para amenizar as diversas complicações médicas, psicológicas e sociais relacionadas ao transtorno. Qualquer doença física ou ferimento existente e induzido deve ser tratado em conformidade. Tanto a pessoa causadora da fraude quanto a vítima podem precisar de tratamento, devido às complicações físicas e aos traumas psicológicos 6-12,33-37.
O paciente portador do transtorno deve ser acompanhado por um médico de atenção primária, que coordenará os cuidados médicos. Deve-se evitar buscar tratamento com vários profissionais da saúde, principalmente em hospitais, o que evidencia interface com a bioética. Por sua vez, os profissionais da saúde devem falar de forma clara com o paciente, enfatizando que se preocupam com o seu bem-estar e que continuarão proporcionando cuidados médicos, mas somente os cuidados que forem necessários 7,12,16-18,39,40-46.
Nesse contexto, o tratamento para a sm tende a ser complexo. Quando o transtorno factício é infantil, a intervenção deve envolver tanto a criança quanto o responsável. Embora o paciente esteja em uma posição de doente ou colocando outros nessa condição, não se reconhece como um portador de transtorno mental. Em 2008, uma investigação científica 39 reuniu estudos relevantes sobre os distúrbios factícios 32 relatos de caso e 13 séries), no qual se identificaram evidências insuficientes para avaliar o efeito de qualquer técnica de gerenciamento para o distúrbio factício 5-12,33-36,43-47.
De acordo com o Compêndio de Psiquiatria, até o momento, nenhuma terapia específica de fato foi eficaz para tratar os transtornos factícios, pois muitos pacientes fogem da terapia, deixando o hospital de repente ou não comparecendo às consultas de acompanhamento. É um paradoxo clínico que pessoas com os transtornos factícios simulem doenças graves e se submetam a procedimentos desnecessários, ao mesmo tempo que negam, tanto a outros quanto a si mesmos, a verdadeira causa do sofrimento, evitando o tratamento psiquiátrico possível 29.
O tratamento deve se concentrar mais no manejo do que na cura. Talvez o fator mais importante para se ter uma abordagem bem-sucedida seja o reconhecimento precoce do transtorno, o que evitaria procedimentos médicos desnecessários, conforme já abordado na prevenção. É importante enfatizar que esses pacientes consomem recursos e tempo das equipes da saúde - de todos em geral -, que se manifestam descontentes, insatisfeitas e com sentimento de raiva. Uma intervenção psiquiátrica apropriada é sugerir às equipes formas de permanecer cientes de que, apesar de ser uma doença factícia, o paciente está doente 12-29.
Quanto ao diagnóstico, o tratamento inicia-se com a psicoterapia individualizada, a qual geralmente se concentra em mudar o pensamento e o comportamento do indivíduo. A terapia familiar também pode ser útil para ensinar os membros da família a não recompensarem ou reforçarem o comportamento da pessoa com o tratamento. A farmacoterapia do transtorno factício é de uso limitado, voltada a tratar problemas psicológicos como depressão e ansiedade, com a finalidade de permitir que o paciente compreenda as causas do problema, por meio da bioética 14-29,33-39.
Além de tratamentos medicamentosos, podem ser necessários antidepressivos, antipsicóticos e ansiolíticos, administrados de forma cuidadosa devido ao potencial de abuso. De acordo com o Compêndio de Psiquiatria, os inibidores seletivos da receptação de serotonina podem ser úteis para diminuir o comportamento impulsivo quando este é um dos principais componentes do comportamento factício 29.
Em casos de SMPP, as ações intervencionistas legais tendem a ser necessárias devido às diversidades de situações que envolvem crianças. Desse modo, a ausência eminente do conhecimento acerca do sm e a convicta afirmação dos responsáveis pelas crianças em relação à patologia fictícia tornam-se barreira ao tratamento assertivo e à obtenção de provas conclusivas. Ao enfrentamento do paciente com SM, o profissional deve ter treinamento e estar capacitado, com o intuito de conduzir o indivíduo portador do transtorno factício a um tratamento mais eficaz e aceitável 5-12,29,41.
De acordo com o Ministério Público do Estado do Paraná, é importante acionar os órgãos responsáveis, uma vez que a proteção à vítima de maus-tratos é garantida institucionalmente pelo Estatuto da Criança e adolescente - ECA 48. Isso deve ser feito para que sejam tomadas providências - caso se prove que a criança sofra maus-tratos -, como o monitoramento constante da sua saúde, a sua remoção dos cuidados do perpetrador para tentar combater esse tipo de situação, entre outras. Os artigos 13 e 56, inciso i, da Lei 8.069/1990 do eca enfatizam que os profissionais de saúde e da educação são obrigados a comunicar ao Conselho Tutelar os casos em que há suspeita da ocorrência de maus-tratos ou outras formas de violência física e psicológica contra crianças e adolescentes 39. A partir das consequências do quadro induzido, o tratamento, os cuidados de enfermagem e os cuidados relacionados ao quadro psiquiátrico propriamente dito serão planejados, tendo em vista o arcabouço bioético.
Sabe-se que, dentre os profissionais da área da saúde, a equipe de enfermagem é aquela que mais tempo permanece ao lado do paciente. Isso tem vantagem em todos os sentidos: desde a criação de um vínculo com o paciente até a conquista da sua confiança. Embora a abordagem de uma equipe multidisciplinar seja de extrema importância, o profissional de enfermagem é um dos personagens principais na detecção do transtorno factício. Ainda, no ambiente hospitalar, o paciente inicia o tratamento com medidas adequadas, principalmente no caso de abuso de crianças 7, 18-28,33-36,47.
Tanto o transtorno factício autoimposto quanto o transtorno factício imposto a outro são transtornos pouco conhecidos por parte dos profissionais de saúde, os quais têm, em geral, uma cega crença dos dados informados pela família a respeito do histórico do paciente. É necessário que os profissionais da saúde observem os antecedentes hospitalares, pois o paciente portador do transtorno factício tem como características um extenso histórico de viagens pelo país à busca de um novo hospital para ser internado. É importante observar que se trata de hospitalizações curtas, devido à não compreensão dos profissionais 7,12,18,41-44.
Apesar de o diagnóstico ser difícil de obter, há alguns dados que devem ser observados, entre eles estão: sintomas compatíveis entre si; diversos quadros alérgicos; doenças multissistêmicas; quando pai ou mãe são muito próximos de seus filhos, de modo que os impossibilitam de se expressarem; resultados laboratoriais incompatíveis com o estado de saúde do paciente; no caso do paciente vítima da simulação, pode apresentar piora quando a mãe está presente. Recomenda-se prestar maior atenção em mães que não ficam aliviadas quando o resultado de exames não demonstra problemas médicos, parecem gostar do ambiente hospitalar e aparentam uma calma incomum a respeito da saúde debilitada do seu filho. Em geral, essas perpetradoras aceitam sem pestanejar procedimentos invasivos que colocam a saúde da criança em risco 6-9,12-17,41-43.
A equipe de enfermagem deve estar atenta a sinais e sintomas para que ocorra uma intervenção precisa, e o portador do transtorno factício seja enquadrado dentro das normas do CID-10 e do DSM-5. O papel do enfermeio é importante na identificação precoce, a qual leva a um tratamento adequado e, por consequência, à obtenção cada vez maior de um desfecho satisfatório 6-10,41-43. Os quadros a seguir apresentam planos de cuidados para os indivíduos perpetradores e para as vítimas de maus-tratos.
Diagnóstico de Enfermagem | Resultados esperados | Intervenções de Enfermagem |
---|---|---|
Falta de adesão ao tratamento evidenciado por comportamento indicativo de falta de aderência; falha em progredir ao tratamento e evidências de complicação, relacionada com a baixa adesão ao tratamento de Transtorno de Personalidade Borderline; evolução para a SMPP. |
|
|
Maternidade prejudicada evidenciada por doenças frequentes da filha; abuso infantil; cuidado inconsistente da criança e habilidades impróprias para o cuidado; traumas que influenciam a SMPP. |
|
|
Risco de automutilação relacionado com o transtorno de Personalidade Borderline; história de comportamento autolesivo; abuso sexual na infância em relação à mãe. Risco de suicídio da mãe relacionado com o comportamento de armazenar medicamentos; história de tentativa de suicídio anterior; impulsividade e transtorno psiquiátrico |
|
|
Fonte: adaptado de Ferrão e Neves (6, p. 183).
Fonte: adaptado de Ferrão e Neves (6, p. 183).
Conclusão
O transtorno factício autoimposto e o transtorno factício imposto a outro são distúrbios fictícios de difícil identificação e diagnóstico por parte dos profissionais de saúde, o que demonstra interface com a bioética. Esses transtornos são criados pelos indivíduos que, em geral, têm grandes conhecimentos sobre uma doença mental a ponto de convencerem - ou enganarem - a equipe médica a realizar exames e testes desnecessários. Como tratamento, podem ser utilizados a psicoterapia e os antipsicóticos, porém ainda não são os mais efetivos.
A ausência de princípios bioéticos e o transtorno factício fazem o indivíduo provocar danos à saúde dele mesmo, além de provocar sinais e sintomas em crianças, idosos, pessoas com deficiência ou adultos dependentes. As crianças são as vítimas mais frequentes desses agressores, com mães que provocam e induzem sinais e sintomas em seus filhos com o intuito de receber cuidados e atenção dos profissionais de saúde, sendo considerado o transtorno imposto a outro como um ato de maus-tratos contra essas vítimas.
Dependendo da história simulada, os transtornos podem ser divididos em dois subgrupos: um manifesto por sinais e sintomas psicológicos e outro, por sinais e sintomas físicos. Ambos podem ocorrer em conjunto. É importante que a equipe multidisciplinar e a equipe de enfermagem estejam em alerta para o diagnóstico do transtorno factício, pois esses pacientes se expõem a graves complicações de procedimentos clínicos e cirúrgicos desnecessários. Mesmo com tantos avanços tecnológicos criados até o momento, esse transtorno fictício desafia a medicina por o paciente não apresentar sintomas claros para maior identificação e tratamento, o que evidencia associação com aspectos da bioética.
Por último, a principal limitação desta pesquisa é a escassez de literatura específica de estudos quantitativos. Sugerem-se novos estudos principalmente de cunho epidemiológico da síndrome para um melhor manejo do transtorno.