Introdução
A questão da violência contra a pessoa idosa é uma temática relevante e vislumbra a importância de conscientizar não apenas os idosos, mas também sua família, a sociedade e o Estado sobre a responsabilidade ética nesse processo. Não há como ignorar tal temática, especialmente levando em consideração o alarmante aumento da violência contra os idosos.
Durante a pandemia da COVID-19 no ano de 2020, os idosos enfrentaram vários desafios no cumprimento das recomendações relacionadas aos cuidados de distanciamento social e de higiene dadas pelo Ministério da Saúde no Brasil. Nesse período, esse público foi considerado o mais afetado e desenvolveu a COVID-19 na sua forma mais grave, elevando consideravelmente as taxas de mortalidade 1. Além disso, a ampliação do distanciamento social durante a pandemia da COVID-19 também tornou evidente o problema da violência contra o idoso.
É irônico que o lar, que deveria ser o local mais seguro para os idosos, seja o cenário onde grande parte da violência ocorre, principalmente nas mãos de membros da própria família. No Brasil, houve um aumento significativo no número de denúncias de violência contra o idoso, pois ocorreram três mil denúncias em março, oito mil em abril e dezessete mil em maio (meses com elevada taxa de isolamento social). Além disso, o número de denúncias referentes ao período de isolamento social até o mês de junho de 2020, ultrapassou 60% do total registrado no ano de 2019, sendo os familiares responsáveis por 83% das agressões 2.
Corroborando com a afirmação acima, é oportuno destacar que em nosso meio social e em certas políticas de saúde, o ageísmo revelou-se por completo na pandemia de COVID-19, especialmente na maneira como o idoso é tratado como grupo de risco nos protocolos de destinação de recursos. Nesse sentido, é necessário aprofundar a discussão e o conhecimento sobre a pessoa idosa e suas especificidades, a fim de proteger seu direito à dignidade e considerar suas múltiplas interfaces 3.
Neste aspecto, a lei do Estatuto do Idoso assegura, através do artigo 4°, que: “Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei” 4.
Essa violência pode ocorrer de diversas formas, incluindo a física, sexual (em sua maior parte vivida por mulheres idosas), psicológica (que envolve xingamentos e ofensas), o abandono (uma forma de negligência que envolve a privação do cuidado), violência institucional, estrutural (que deveria ser combatida pelo Estado), financeira/patrimonial, e desrespeita dignidade humana em diversas instâncias legais. Ou seja, trata-se de um universo amplo de identificação da violência, e o profissional da saúde deve denunciar tais situações para as intervenções adequadas de acordo com cada caso.
Na capital brasileira, foi desenvolvido um estudo em que foram detectados alguns dos motivos que geraram violência, como a elevada sobrecarga de cuidados em relação aos cuidadores (77,4%). Em muitos aspectos, os filhos acreditavam que seus pais idosos eram capazes de cuidar de si mesmos (27%), e sentimentos negativos dos filhos em relação ao idoso vítima de violência também foram identificados em 24,3% dos casos. Além disso, constatou-se que, em 14,4% dos casos, havia falta de informação sobre a saúde do próprio idoso 5.
É fundamental destacar que o processo de envelhecimento, como fase da vida de qualquer pessoa, não deve ser ignorado, e as leis e diretrizes brasileiras estabelecem os direitos dos idosos como universais. Dessa forma, para que ocorra um ambiente propício ao envelhecimento saudável, com vista ao respeito à vida e aos valores da pessoa idosa, deve-se levar em consideração a importância da autonomia na preservação dos direitos dessa população 6.
Sendo um fenômeno com múltiplas dimensões, a violência no contexto brasileiro possui características complexas e, em muitos casos, é subnotificada. O idoso vítima de violência muitas vezes desconhece as leis referentes aos seus direitos e, por vergonha e medo, torna a ocorrência invisível nas esferas de registros governamentais. Essa invisibilidade dos casos de violência contra o idoso também se estende aos filhos, que em muitos casos são seus próprios agressores. Isso denota a dificuldade em denunciar e até mesmo em reconhecer essa problemática.
Com o objetivo de preservar a dignidade dos idosos, sugere-se a mediação de conflitos com intervenções direcionadas ao cuidador principal, visando a promoção de saúde física e mental. Além disso, percebe-se a necessidade de maiores informações sobre as questões relacionadas ao envelhecimento e às doenças que podem estar associadas ao idoso, destacando a relevância de capacitações das pessoas envolvidas no cuidado, como uma maneira de prevenir as formas de violência decorrentes de negligência. Buscando a efetividade dessas questões, a visibilidade da equipe multidisciplinar é essencial na atenção à pessoa idosa vítima de violência 5.
No que concerne ao respeito pelos direitos dos idosos, vemos que os profissionais da saúde têm um papel determinante ao identificar a violência, já que, ao desenvolver a assistência, acabam estabelecendo vínculos com as vítimas. Desta forma, os profissionais de saúde possuem um papel facilitador ao encaminhar os idosos vitimados para a assistência adequada 7.
Para uma identificação adequada das situações de violência, é preciso haver uma articulação entre a equipe de saúde e o estabelecimento de fluxos e serviços de referência ao idoso, visando o acolhimento e estrutura para receber o idoso vitimado. Isso requer a desburocratização das intervenções entre a equipe de saúde, uma vez que os idosos vítimas de violência necessitam de uma assistência dinâmica, com encaminhamentos individualizados de acordo com a situação de violência 7.
Acredita-se na importância da discussão sobre a violência contra o idoso com enfoque bioético, especialmente em decorrência na pandemia da COVID-19. Essa questão se configura em diversas interfaces, incluindo aspectos institucionais e sociopolíticos que se interligam no cotidiano brasileiro. Com essas observações, o respeito à dignidade humana deve ser garantido, superando os obstáculos políticos e estruturais vigentes e, considerando pontos críticos, como a autonomia e a importância de um planejamento de atuação 8.
Observou-se a ausência de políticas públicas voltadas aos idosos, objetivando o enfrentamento dos impactos da pandemia, o que contribuiu para a sensação de abandono e negligência governamental, caracterizando-se como um tipo de violência estrutural. Outro aspecto relevante foi a crise econômica decorrente da pandemia e o reduzido alcance das políticas sociais de apoio aos trabalhadores que perderam seus empregos devido ao isolamento, o que agrava ainda mais as situações de violência 9.
Diante dessas considerações, o objetivo deste artigo é analisar a violência contra o idoso no contexto pandêmico da COVID-19, sob a perspectiva da Bioética.
Método
Este artigo de reflexão possui uma abordagem qualitativa do tipo descritiva sobre a questão da violência contra o idoso no contexto pandêmico da COVID-19, na perspectiva da Bioética, com foco no princípio ético da autonomia. A Bioética, em constante reflexão e diálogo com os conflitos relacionados a ética da vida, orienta discussões relevantes sobre a violência contra o idoso durante a Pandemia da COVID-19 através dos seus princípios de beneficência, autonomia e justiça.
Destaca-se a relevância do desenvolvimento deste artigo, que se originou no Núcleo de Estudos de Saúde do Adulto e do Idoso em Tecnologias Educacionais (NESAITED). Com o propósito de promover oportunidades de aprendizagem, discussões relevantes e troca de conhecimentos, verificou-se a possibilidade de ampliar de suas atividades para abordar a questão do idoso que sofre violência do ponto de vista da Bioéticos, para uma gestão da formação e qualificação profissional voltados para a educação e saúde, bem como para o ensino acadêmico.
Não há a pretensão de esgotar a discussão sobre a violência contra o idoso no contexto pandêmico, mas sim de proporcionar reflexões e resultados provenientes de estudos acadêmicos que tragam proposições positivas na área da saúde do idoso. A abordagem da Bioética nos permite uma análise fluente dos seus princípios éticos em relação ao contexto brasileiro e às práticas cotidianas de cuidado ao idoso.
Este artigo está fundamentado em uma narrativa que explora os seguintes aspectos relevantes: movimento de conscientização sobre o idoso, a importância da Educação em Saúde voltada para os idosos nas mídias sociais e a Bioética em relação ao respeito à autonomia do idoso.
Movimento de conscientização sobre o idoso
Para uma melhor elucidação dos riscos de violência, é preciso identificá-los por meio dos procedimentos de avaliação e assistência registrados por profissionais de saúde, tanto em ambientes de atendimento de saúde como na própria residência do idoso. Essa identificação cria oportunidades de acolhimento e intervenção, com vista a integrar o acesso à justiça. Quando há recebimento da denúncia, as informações relacionadas ao acolhimento assistencial do serviço de saúde são necessárias para os trâmites legais da ocorrência 10.
Nesse sentido, é relevante que a sociedade brasileira tenha uma conscientização sobre as questões relacionadas à saúde do idoso, especialmente no que tange os princípios éticos da beneficência e da justiça. Isso deve se refletir no contexto educacional e na formação básica da sociedade, para que haja reflexos positivos na coletividade. O objetivo é promover um movimento social voltado para a educação e a saúde do idoso, visando à interação entre a família e o cuidador, contribuindo assim para a diminuição dos maus-tratos em relação aos idosos.
No que diz respeito à especificação da estratégia em termos de planejamento para lidar com a violência contra o idoso, é importante que se pense em ações para prevenir o abuso, que podem ser divididas em dois grupos: intervenções de âmbito primário e intervenções de nível secundário. Para tanto, a educação em saúde através de grupos de convivência de idosos e cuidados de saúde mental são aspectos importantes para prevenção em ambos os grupos de intervenção. Essas medidas devem ser implementadas na prática assistencial dos profissionais de saúde, baseadas na promoção da saúde e na prevenção da violência 11.
Essas intervenções podem abordar questões relevantes sobre o acesso aos direitos do idoso, sempre utilizando uma linguagem acessível que proporcione a reflexão e o entendimento de que o aspecto da violência deve ser denunciado e tratado com seriedade, respeitando a complexidade das situações, que podem envolver constrangimento, medo e muito sofrimento decorrentes da violência. Essas questões são relevantes porque podem promover a saúde, a prevenção da violência e o respeito à dignidade do idoso.
Uma realidade na assistência à saúde do idoso nas unidades de saúde é a inexistência de uma integração nos serviços de acolhimento, bem como a falta de informação e solução nos encaminhamentos das notificações de violência recebidas pela equipe. Tais fatores limitam a qualidade do serviço oferecido, o que se soma à falta de conhecimento tanto por parte dos idosos quanto por parte dos profissionais de saúde 12.
No sul de um estado brasileiro, foi desenvolvida uma pesquisa na qual foram detectadas três áreas de análise voltadas aos idosos vítimas de violência. A primeira abordou a vulnerabilidade e as necessidades de cuidado dos idosos; a segunda tratou do sofrimento e da negação da família; e a terceira analisou a situação de violência familiar, destacando aspectos positivos no acolhimento realizado. O destaque desse estudo foi a organização estratégica da assistência, com enfoque multidisciplinar, para diminuir os riscos e possíveis danos à vida e saúde dos idosos 13.
Além desses aspectos, também é importante identificar a compreensão sobre como as instituições (públicas e privadas) têm atuado frente aos direitos das pessoas idosas. Sabe-se que as pessoas idosas têm contato frequente com determinadas instituições, como serviços de saúde, bancos, entre outras. Existem leis e normas que deveriam garantir a prioridade, a escuta qualificada e o atendimento integral a essas pessoas, no entanto, nem sempre isso ocorre, constituindo-se como práticas de violência institucional. Outra questão a ser analisada é como o atendimento aos casos de violência contra pessoas idosas tem funcionado. Os serviços que atendem as pessoas idosas em situação de violência precisam ter profissionais capacitados para realizar o acolhimento, a escuta qualificada, o diagnóstico e o registro do caso suspeito ou confirmado, bem como encaminhamentos para acionar as redes de atenção e de proteção. É importante investigar se os serviços atuam em rede e se o atendimento realizado é integral, entre outras questões 14.
É relevante também analisar e identificar quais políticas públicas podem prevenir e reduzir as situações de violências, além de verificar quais abordam o tema da violência como uma questão importante para a saúde da população idosa, com qual abrangência abordam esse tema e se essas políticas têm sido avaliadas para verificar como estão respondendo às necessidades dessa população frente às experiências de violências e quais têm sido os resultados alcançados 14.
As instâncias governamentais têm o dever, previsto na Constituição Federal Brasileira, de estabelecer políticas e diretrizes de ações efetivas para diminuir os impactos causados pela COVID-19 na violência contra o idoso. Da mesma maneira, é necessário implementar ações sanitárias e epidemiológicas de proteção social que possam ter impactos positivos no sistema de saúde 15.
Diante dessa realidade, é preciso aumentar a oferta de serviços para os idosos, com ações voltadas para a vigilância dos fatores de risco para violência, a capacitação dos profissionais de saúde c e sensibilização da sociedade. A construção de políticas de saúde no Brasil e no mundo pode garantir um cuidado especial aos idosos mais vulneráveis.
A importância da educação em saúde sobre os idosos nas mídias sociais
Seja em período pandêmico ou não, os idosos são caracterizados como um grupo vulnerável em virtude de diversos fatores, como a discriminação social e a insuficiência de políticas públicas que efetivam os seus direitos. A dependência de terceiros para suas atividades instrumentais e básicas de vida diária representa uma fragilidade relevante, frequentemente associada à saúde e ao bem-estar 9.
As medidas de isolamento social adotadas em virtude da pandemia da COVID-19 tiveram impactos negativos em todo o mundo. No entanto, as situações de violência nesse período tiveram um aumento significativo no âmbito doméstico. Observou-se que os idosos foram um dos grupos mais afetados pela diminuição de atenção dos serviços públicos em relação ao acesso aos seus direitos, a dependência de outros para realização de suas atividades e a diminuição do poder financeiro de muitas famílias devido à crise econômica causada pela pandemia da COVID-19 16.
A família deve ser acompanhada por políticas públicas de suporte aos idosos. Ademais, as unidades assistenciais devem capacitar seus profissionais de saúde levando em consideração as especificidades das situações de violência nas unidades de saúde e na visita domiciliar 10. É importante que haja, maneira contínua, informações e campanhas de conscientização nas mídias sociais como uma forma coletiva de proteção aos idosos vítimas de violência durante a Pandemia da COVID-19.
É fundamental envolver os jovens (crianças, adolescentes e adultos) como elos coletivos entre as gerações, pois, embora os jovens geralmente sejam mais fortes fisicamente, os idosos detêm sabedoria de vida. Essa união é capaz de promover uma relação simbiótica que pode emancipar a todos e conduzir à dignidade humana 17.
Estratégias que possam prevenir a violência, através da resolução de conflitos onde o estresse e sobrecarga são elevados, são igualmente importantes. No entanto, considerando as particularidades de cada situação, as estratégias de promoção de saúde mental e física devem estar em consonância com os demais cuidados de bem-estar aos idosos e de seus cuidadores 9.
Apesar de o período pandêmico ter apresentado desafios nas relações humanas, ele também ofereceu oportunidades para uma reflexão profunda sobre os problemas enfrentados. Isso nos convida a repensar a necessária reconstrução das relações vivenciadas. Essas reflexões não se separam do contexto global, mas devem situar o idoso dentro desse contexto, reconhecendo sua condição humana e fortalecendo valores como dignidade, solidariedade, cidadania e fraternidade 17.
Outra realidade que requer atenção é a situação das mulheres, que estão mais expostas às situações de violência, sendo o gênero um fator de risco significativo para esse tipo de ocorrência. Essa vulnerabilidade é agravada pelas desigualdades de gênero, visualizadas socialmente em situações onde as mulheres são subjugadas e oprimidas, independentemente da faixa etária, inclusive durante o envelhecimento. Somado a estas questões, há a presença de várias morbidades, diminuição da capacidade funcional, sintomas depressivos, redução da qualidade de vida e baixa satisfação com a vida, bem como dependência nas atividades de vida diárias, estão associados ao risco de violência contra mulheres idosas 18.
Uma pesquisa desenvolvida no sudeste brasileiro apontou uma frequência de violência de repetição em 50,1 % dos casos. Outro aspecto relevante é que a violência teve maior incidência em idosos de 80 anos ou mais, que tinham deficiências ou transtornos, e que a violência era geralmente perpetrada por parceiros(as) ou filhos(as), com esses fatores associados em ambos os sexos. Além disso, em homens idosos, a violência era mais frequentemente realizada por dois ou mais agressores e ocorria durante o dia, enquanto as mulheres idosas eram mais frequentemente agredidas em zonas urbanas 19.
Existe outro estudo epidemiológico que confirma a maior incidência de violência contra o gênero feminino no estado de São Paulo, mais especificamente no município de Campinas. Nesse estudo, uma amostragem de 1.217 idosos que sofreram algum tipo de violência mostra que 69,5% dos casos eram do sexo feminino. A faixa etária mais afetada estava entre 60 a 69 anos, representando 35,8% dos casos, sendo que 37,7% dessas mulheres eram viúvas e 64,4% de cor branca. O tipo mais prevalente de violência foi a negligência, correspondendo a 33,1% dos casos, sendo o âmbito domiciliar (92.9%) o local de maior incidência. No perfil dos agressores, entre os autores da violência contra o idoso, 55,6% eram do sexo masculino, e a força corporal foi utilizada em 24,4% das ocorrências 20.
Cabe destacar que a alta frequência de violência repetida vivenciada por idosos, bem como as características das vítimas e dos agressores, pode tornar o idoso mais vulnerável a vivenciar episódios de repetição da violência. Essas descobertas destacam a necessidade de atendimento a essa população idosa e a importância de ações que visem a detecção precoce da violência, bem como o atendimento adequado às vítimas e familiares agressores, a fim de evitar a perpetuação das agressões no cotidiano dos idosos e, consequentemente, sua cronicidade, além de fornecer o suporte necessário para que as famílias cuidem adequadamente dos idosos 19.
Também fica evidente a necessidade de atentar para alguns pontos importantes que envolvem os idosos, como o fortalecimento dos laços familiares e das interações, bem como a criação de redes de apoio para os idosos adultos. A pandemia de COVID-19 trouxe à tona a necessidade de aprimorar os cuidados prestados aos idosos na sociedade e é fundamental reexaminar os entendimentos socioculturais das pessoas mais velhas, bem como a importância de reformular o pensamento e transformar a sociedade em relação à conjuntura que envolve os idosos. Devemos buscar mudanças e aprender como as experiências de pandemia, integrando aprendizado e reflexão nos contextos complexos e multidimensionais 17.
A conscientização da população e a ampla divulgação nas mídias sociais sobre a violência contra o idoso começam com informações e a preparação das escolas, disseminando conhecimento aos alunos e pais sobre os cuidados necessários com os idosos que residem com eles. A promoção de uma educação popular voltada para a família tem o propósito, a longo prazo, de promover a qualidade de vida e desestimular a violência contra o idoso, fornecendo orientações sobre os seus direitos, além do estímulo ao diálogo contínuo.
A bioética e o respeito à autonomia do idoso
O conflito de valores entre o benefício coletivo, representado pela adoção de medidas de distanciamento social, e a restrição das liberdades individuais, abrem espaço para a reflexão bioética e criam um ambiente propício para discutir e aperfeiçoar as práticas de cuidado. Riscos, erros e acertos são inerentes ao processo decisório em tempos de pandemia. Não existe uma resposta absolutamente correta para o problema, sendo a abordagem mais viável aquela que seja compreendida e aceita pela população 15.
Uma questão relevante que se faz presente é a sensibilidade na assistência ao idoso em relação à sua vulnerabilidade e à preservação de sua autonomia. A vulnerabilidade é importante na reflexão crítica, sendo um componente relevante da autonomia, ao lado do respeito à decisão e à proteção 21.
Nesse sentido, destaca-se que as pessoas idosas vítimas de abuso têm uma elevada incidência nas unidades de emergência, que recebem esse grupo populacional, permitindo a identificação dos abusos. É sugerido que a assistência seja realizada de forma precoce, melhorando a qualidade de vida do idoso e resultando em economias na saúde. Geralmente, nessas circunstâncias, ocorrem internação, onde são identificados posteriormente casos de abuso psicológico, exploração financeira e negligência nos cuidados 22. Nesse aspecto, o fator internação é ainda mais preocupante quando há essa ocorrência em virtude do perigo de o idoso adquirir o vírus da COVID-19 durante o período de internação, ampliando ainda mais as preocupações.
No contexto da pandemia, a aplicação dos quatro princípios (beneficência, não maleficência, autonomia e justiça) depende ainda mais das virtudes e da capacidade de discernimento dos atores. Essa dependência “flexibiliza” esses preceitos, que não podem ser aplicados de maneira cega e independente do contexto 23-24.
Se é razoável impor o distanciamento social em detrimento da liberdade individual para controlar a pandemia de COVID-19, é uma questão que não se esgota no campo da bioética e envolve também a saúde coletiva, pois o poder somente pode ser exercido legalmente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade para evitar danos a outros. Ou seja, cada indivíduo deve ser livre para decidir o próprio destino, desde que não prejudique a terceiros 15.
Essa discussão envolve também as diferentes formas de discriminação e estigma sofridas por pessoas idosas, devido aos estereótipos atrelados à construção social que se faz em relação à esse grupo. Por vezes, eles são vistos como ‘peso’ financeiro e emocional para suas famílias ou sociedade, e como pessoas com baixa competência para tomar decisões acerca de suas vidas, o que mina sua própria autonomia 25-26.
Os profissionais de saúde precisam considerar os fatos científicos para a tomada de decisão, assumindo o propósito de cuidar bem de todos. O cuidado prestado pelos profissionais da atenção primária à saúde deve orientar os casos suspeitos quanto ao distanciamento social e ao reconhecimento dos sinais de alerta, monitorando a evolução clínica de tais casos. É importante evitar interpretações bioéticas reducionistas que induzam a deliberação a partir de um único princípio 15.
Na sociedade brasileira, há uma dificuldade em entender a individualidade dos idosos e não se leva em consideração a sua autonomia. Há uma ausência de reconhecimento do envelhecimento, que divide a vida em fases cronológicas (infância, adolescência, idade adulta e velhice), estabelecendo estereótipos econômicos, culturais e sociais 6. Ademais, a atribuição de características negativas aos indivíduos idosos pode levar ao desrespeito de sua autonomia, atribuindo-lhes a ideia de que a idade retirou sua capacidade de discernimento ou a habilidade indispensável para tomadas de decisões, o que fere frontalmente sua dignidade 25.
Nesse sentido, é importante buscar o conforto pautado na bioética, visando um acolhimento que possa favorecer mudança de pensamento e ações, levando à reflexão sobre práticas holísticas confortadoras e humanizadas aos idosos. Sob essa ótica, os princípios bioéticos podem orientar os profissionais de saúde a decidir e agir corretamente, com base no idoso em sua totalidade 27. A naturalização da violência contra o idoso não pode prevalecer sob a restrição da autonomia diante de uma sociedade com amplos avanços tecnológicos que facilitam o acesso à informação e contemplam a assunção dos direitos constantemente. Para além das reflexões bioéticas, a inserção do idoso no contexto da pandemia nos leva a pensar sobre o direito à autonomia em decidir por si próprio, já que muitas vezes são os detentores do maior capital que sustenta a sua família. Essa realidade é tangível na sociedade brasileira 28.
Com base no reconhecimento dos direitos e princípios que regem as diretrizes brasileiras, é estabelecido o dever de garantir a autonomia do idoso. Portanto, em tempos de pandemia da COVID-19, deficiência de recursos e falta de infraestrutura, é importante proteger em especial os idosos. Além disso, é preciso exigir da sociedade e do Estado o cumprimento desse direito à autonomia e estar atentos às vulnerabilidades que emergem nesse contexto de violência 7.
Através do princípio da Bioética da justiça, verifica-se que o acolhimento do idoso no seu processo de isolamento da Pandemia da COVID-19 é uma tônica relevante, através de visitas domiciliares realizadas por uma equipe multidisciplinar. O entendimento do acolhimento diante da fragilidade do idoso precisa ser trabalhada com afeto e amor pelo profissional de saúde, para atender o idoso vítima de violência que se encontra fragilizado no seu mundo. Nesse momento, sua unidade de saúde é utilizada para conquistar e agilizar os trâmites legais que dizem respeito ao direito e ao acesso às políticas públicas de saúde que evitarão qualquer possibilidade de agressão futura por parte dos familiares, promovendo assim a sua prevenção 29-30.
No nível macroestrutural, estratégias e políticas sociais que promovam a sensibilização da sociedade para os direitos e as necessidades da pessoa idosa, além daquelas que facilitem o acesso aos serviços de saúde, assistência e previdência social, e à rede de proteção, são urgentes. Políticas voltadas ao apoio econômico às famílias de baixa renda para reduzir as desigualdades sociais, que tendem a aumentar ainda mais durante e após a pandemia, e à garantia dos direitos da pessoa idosa também são fundamentais 10.
É preciso incentivar, no âmbito familiar e social, a autonomia relacional do idoso para promover um diálogo contínuo e estimular suas escolhas no mundo atual pluralista. Para que isso transcorra, é preciso também fornecer aos cuidadores uma rede de suporte centrada nas realidades econômicas e gerenciais para que sejam evitados os conflitos geradores de possíveis casos de violência 31-32. O planejamento cotidiano do idoso é fundamental e deve ser permeado por suas escolhas, opções e preferências, a fim de promover novas formas de convivência social saudáveis e oportunas 32-33.
É importante destacar que, apesar de os estudos relacionados à violência contra idosos serem cada vez mais numerosos, principalmente nos últimos anos, ainda é necessário aprofundar e divulgar as análises para auxiliar no entendimento dos fatores associados à cronicidade desse problema, para que seja possível prevenir e enfrentar, de maneira adequada, a violência contra os idosos 19.
Sem dúvida, é necessário que haja uma transformação no modo de cuidado em saúde, tanto em seu aspecto físico quanto mental, bem como o desenvolvimento de legislação e campanhas de conscientização sobre o envelhecimento, com enfoque em compreender o envelhecimento como parte fundamental da experiência humana. Devemos destacar que os direitos à saúde, autonomia, dignidade, qualidade de vida, inserção social, entre outros, devem ser promovidos pelo Estado e pela sociedade 25.
A Bioética, em seu campo epistemológico, norteia essas reflexões necessárias e promove condições profícuas para dialogar com a realidade social e cultural. Isso demanda uma análise educacional que deve vir nos alicerces estruturais brasileiras, em prol de uma luta que nos remete ao futuro, no qual nós seremos o(a) idoso(a) do amanhã. O processo de envelhecimento é algo natural na vida do ser humano e não pode ser ignorado, portanto, é uma fase da vida que não pode ser pautada na violência 34.
A violência contra o idoso muitas vezes ocorre no cenário hospitalar, e em algumas ocasiões, há dificuldades na constatação e compreensão dos fatos. No entanto, é notório na visão dos profissionais de saúde que a violência é fonte geradora de diversos malefícios, podendo trazer consequências importantes a vítima idosa, como a perda da sua autonomia, independência e até mesmo da qualidade de vida 35.
Foi notório também constatar que o intenso convívio em virtude do período pandêmico evidenciou a eclosão de muitos conflitos latentes no convívio familiar, que aconteciam com maior facilidade. Além disso, questões já latentes no contexto social brasileiro também foram foco de análise, envolvendo temas polêmicos relacionados aos valores sociais, políticos e econômicos 36.
A prevenção e a mediação de conflitos surgem como uma forma dinâmica e oportuna para combater a violência voltada aos idosos. Para isso, é necessária uma estrutura com estratégias montadas por equipes multidisciplinares, que possuam conhecimento e capacitação para avançar nos parâmetros legais previstos na legislação brasileira, encarando as limitações existentes em nossa sociedade 37-38. Essas limitações são encontradas em um contexto de vida complexo na atualidade, e muitas situações estão além das atividades de cuidados. Muitos profissionais de saúde têm medo e insegurança na realização da denúncia, além do acesso precário aos serviços saúde pública disponíveis 8.
Isso nos leva a atentar sobre as ações ou omissões que podem prejudicar a integridade física e emocional da pessoa idosa, como previsto pela Organização Mundial da Saúde 39. Com o aumento da população idosa no Brasil, as projeções demográficas determinam que, até 2060, a população acima de 65 anos será aproximadamente 25% do total de habitantes 40. Nesse sentido, a crescente população idosa assume lugar de importância nas políticas públicas e na sociedade, uma vez que, ao se tornarem mais vulneráveis a alterações no estado de saúde e a dependência para as atividades da vida diária, tornam-se mais predispostos a situações de violência, com elevada probabilidade de internação 41-42.
As políticas públicas de saúde para os idosos apresentam o propósito de promover a recuperação, manutenção e a promoção da autonomia e independência relacionadas ao envelhecimento ativo e saudável, bem como a manutenção e reabilitação da capacidade funcional da população idosa e o apoio ao desenvolvimento de cuidados informais 43.
Nesse cenário, as Diretrizes do Pacto pela Saúde, estabelecidas em 2006 no cenário brasileiro, nos permite vislumbrar as prioridades e viabilizar as ações de combate à violência doméstica e institucional, principalmente na Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, conforme previsto na Portaria N° 2.528 de 2006 Além disso, a Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde (ANPPS), no seu eixo 12 (Saúde do Idoso) e subitem 12.5 (Análise da Gestão e das Práticas das Equipes no cuidado às especificidades em saúde da pessoa idosa) 44-45, desempenha um papel relevante nesse contexto.
O entendimento da questão da violência contra a pessoa idosa vai muito além das políticas públicas de proteção e seu enfrentamento, principalmente no âmbito da família. É necessário que haja uma precisa articulação de ações intersetoriais e multiprofissionais. Isso implica que o poder público crie espaços de convivência e de cuidado para a permanência diurna do idoso e para as famílias, bem como a implementação de ações de apoio que ampliem a rede de cuidados, para que a sobrecarga e os conflitos sejam minimizados 46.
Essas possibilidades são relevantes para alcançar pessoas que vivem isoladamente, em localidades distantes, que têm dificuldades de locomoção e que estão em situação de extrema vulnerabilidade emocional, social e econômica. A criação de alternativas tecnológicas e científicas fortalece a saúde mental, os aspectos gerais de saúde e favorece a prevenção de complicações e os tratamentos das principais demandas 47.
A violência é uma preocupação social global que afeta a saúde e os direitos humanos de milhões de idosos no mundo inteiro 48. É considerada um problema de saúde pública que merece a atenção da comunidade internacional e brasileira, pois contribui para o aumento da morbidade, mortalidade, institucionalização e admissão hospitalar, com impacto negativo na família e na sociedade 49.
Por fim, ressalta-se o Plano de Enfrentamento da Violência contra Pessoa Idosa como outra ferramenta que busca auxiliar nessa temática. Foi desenvolvido em 2005, com o propósito de determinar estratégias de ação para combater os maus-tratos direcionados aos indivíduos com 60 anos ou mais de idade 50.
Conclusão
Ao analisar a violência contra o idoso no contexto pandêmico da COVID-19 sob a perspectiva da Bioética, percebe-se que há o compromisso dos profissionais em garantir os direitos dos idosos, focando na intervenção individual, considerando-os sujeitos de direitos, com autonomia e detentores de uma história que busca a sua independência.
Contudo, é notório que a principal limitação reside na escassez de discussões e pesquisas relacionadas à Bioética, especialmente no que tange às questões de acessibilidade em suas diversas interfaces sociais. É crucial um aprofundamento de temas como autonomia e vulnerabilidade, bem como dos dilemas éticos, sobretudo no contexto dos direitos da população idosa.
A promoção de estratégias que mitiguem os danos causados às pessoas idosas que sofrem de violência deve incluir ações de apoio à família, incentivando práticas sociais que possibilitem o acesso às políticas públicas em suas diversas instâncias. Tanto a sociedade quanto o governo devem criar condições para rastrear os agressores e as vítimas, fornecendo ajuda aos idosos que sofreram violência. Também é oportuno considerar a criação de instituições que possam receber esse idoso vítima de agressão.
É importante observar que os profissionais de saúde frequentemente vivenciam conflitos ao verificar o contexto em que se dá a denúncia visibilizada por uma situação de violência. Essa decisão traz consigo as características e particularidades da ocorrência, que deve ser bem registrada e notificada, para que as instâncias posteriores de acolhimento possam ter sucesso no trâmite de ação legal.
Outrossim, é importante estabelecer uma rede de apoio à família, abrangendo cuidados, medicamentos, assistência financeira, previdenciária, bem como a ideia pertinente de criação de bairros amigáveis para idosos, com o intuito de prover o auxílio necessário no cotidiano.
Torna-se evidente a necessidade de os setores públicos e privados direcionarem sua atenção à saúde dos idosos, que são vítimas de violência, garantindo a aplicação eficaz das políticas públicas de saúde em favor do idoso, especialmente através do Sistema Único de Saúde (SUS), no processo de acolhimento desses idosos. É importante a realização de investigações nessa temática, contribuindo para o preparo dos profissionais de saúde que atuam, não só nos serviços de urgência, mas em toda a rede que pratica o cuidado à saúde do idoso.
À medida que discussões referentes ao campo da Bioética vêm aumentando, é imperativo que essas questões se tornem uma prioridade em pesquisas epidemiológicas e no diagnóstico situacional, especialmente no contexto da crescente preocupação com a violência contra o idoso, particularmente no contexto da pandemia da COVID-19.
Recomenda-se, portanto, a realização de estudos que enfatizem a importância da Bioética intervencionista na proteção dos direitos dos idosos por meio de políticas públicas de acessibilidade à saúde, visando à promoção da qualidade de vida dessa população tão vulnerável.