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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530On-line version ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.19 no.39 Medellín July/Dec. 2020

https://doi.org/10.22395/ojum.v19n39a14 

Artigos

Graffiti e subcultura delinquente: similaridades e diferenças

El graffiti y la subcultura de la delincuencia: similitudes y diferencias

Graffiti and Delinquent Subculture: Similarities and Differences

Ana Paula Motta Costa* 
http://orcid.org/0000-0002-4512-1776

Gabriela Favretto Guimarães** 
http://orcid.org/0000-0002-1047-4248

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. anapaulamottacosta@gmail.com; anapaulamottacosta@berkeley.edu. https://orcid.org/0000-0002-4512-1776

** Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. gabrielafavrettoguimaraes@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-1047-4248


RESUMO

A prática do graffiti é objeto de variadas áreas do conhecimento que discutem seu valor artístico, seu potencial como meio de comunicação e expressão de grupos de indivíduos marginalizados e, principalmente, sua ilegalidade. Uma das construções teóricas mais adotadas ao se tratar do graffiti é a das subculturas delinquentes, porém faltam análises detalhadas acerca da adequação da classificação do graffiti como tal. Desse modo, confrontam-se as características classicamente definidas como pertencentes às subculturas delinquentes com informações sobre o graffiti vindas de áreas como Comunicação, Artes e Sociologia, a fim de identificar suas correspondências e afastamentos. Percebe-se que as correspondências entre o graffiti e a subcultura delinquente são menos numerosas que seus afastamentos, e ainda se referem a aspectos que não são eminentemente negativos, o que indica a necessidade de atenção especial quando se aborda o graffiti como uma prática subcultural delinquente.

Palavras-chave: graffiti; pichação; adolescência; subcultura delinquente

RESUMEN

La práctica del graffiti ha sido objeto de las más variadas consideraciones en las que se discute su valor artístico, su potencial como medio de comunicación de los grupos e individuos marginalizados y, especialmente, su ilegalidad. Una de las construcciones teóricas más empleadas a la hora de abordar el graffiti es la de las subculturas de la delincuencia, sin embargo, hay una falta de análisis detallado sobre la pertinencia de la ubicación del graffiti dentro de estos parámetros. Con lo anterior en mente, se confronta su pertenencia desde las características clásicamente definidas de la subcultura de la delincuencia frente a información suministrada sobre el graffiti desde disciplinas como la comunicación, las artes y la sociología; buscando identificar su correspondencia y distancia con dichas características. Puede verse cómo la correspondencia entre el graffiti y la subcultura de la delincuencia es muy baja y es más alta su distancia, así mismo, se refiere a aspectos que no son eminentemente negativos, lo cual indica la necesidad de una atención especial a la hora de abordar el graffiti como una práctica de la subcultura de la delincuencia.

Palabras clave: graffiti; adolescencia; subcultura de la delincuencia

ABSTRACT

The practice of graffiti is the object of the most varied considerations, which discuss its artistic value, its potential as a means of communication and expression of groups of marginalized individuals and, especially, its illegality. One of the theoretical constructions most adopted when dealing with graffiti is that of delinquent subcultures, however, there is a lack of detailed analysis about the adequacy of classificating graffiti as such. With that in mind, we confront the classically defined characteristics as belonging to delinquent subcultures with information about graffiti coming from areas such as communication, arts and sociology, seeking to identify their correspondences and distancings. It can be seen that the correspondences between graffiti and the delinquent subculture are less numerous than their distancings, and also refer to aspects that are not eminently negative, which indicates the need for special attention when graffiti is approached as a delinquente subcultural practice.

Keywords: graffiti; adolescence; delinquent subculture

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é resultado das discussões e investigações desenvolvidas durante o curso “Ciência conjunta do Direito Penal: adolescentes, Direitos Fundamentais e violência”, ministrado pela profa. dra. Ana Paula Motta Costa. Outrossim, as temáticas abordadas são também concernentes à pesquisa realizada no projeto de pesquisa de mestrado em Direito, em andamento, intitulado “Manifestações do Direito Penal do autor e do inimigo nas reações do campo de controle do crime ao graffiti”, financiado pela fundação de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, igualmente sob a orientação da profa. dra. Ana Paula Motta Costa. As temáticas que versam sobre o adolescente no Sistema Penal e sobre a prática do graffiti estão em constante diálogo, pois se trata de uma prática criminalizada protagonizada por adolescentes e jovens.

As paredes da cidade sustentam traços que figuram inúmeros nomes, caligrafias, estilos estéticos, formas de diálogo e tentativas de se expressar, de se fazer ver. Dia a dia, o graffiti sobrepõe-se, formando uma imagem geral de acúmulo, talvez por se tratar de uma das formas mais acessíveis de manifestação. Esse acúmulo é repetido quando se trata das reflexões sobre essa manifestação visual. A demonização, o enaltecimento e a indiferença quanto à prática convivem tanto no imaginário social quanto nas formulações teóricas a respeito da prática. Para alguns, é manifesto o caráter artístico do graffiti, enquanto para outros, a prática é vazia de qualquer intenção que não a de sujar a cidade. O que muitos encaram como uma ferramenta de comunicação e de luta por reconhecimento por parte de uma população que se vê marginalizada dos meios comunicacionais institucionais e da vida social plena, para uma grande parcela é nada mais do que uma prática ilícita e, como tal, deveria ser extirpada e seus realizadores, devidamente penalizados, independentemente de suas criações.

O graffiti, então, é visto em meio a tensões que o classificam como forma cultural ou subcultural, na literatura dos campos artístico, jurídico, sociológico e comunicacional. Fortes são as vozes que o classificam como uma forma de subcultura, especialmente subcultura delinquente ou desviante, sendo comum encontrar abordagens teóricas a respeito dele a partir de tal ótica, sem, no entanto, que se detenham mais longamente a ponderações quanto à adequação dessa classificação.

Considerando que a chamada “subcultura” não foi tema de estudo em profundidade, especialmente em comparação com outras subculturas, e que o auge da pesquisa em torno do tema tenha ocorrido há mais de 20 anos (Lannert, 2015), neste artigo, por meio de pesquisa bibliográfica nessas diversas áreas, procura-se confrontar as formulações clássicas a respeito da subcultura delinquente com os achados acadêmicos sobre o graffiti, a fim de identificar suas aproximações e distanciamentos. Em um primeiro momento, elucidam-se pontos fundamentais para a compreensão do tema, como o conceito de graffiti e uma breve abordagem histórica, bem como o significado da adolescência, pois este é o público geral envolvido na prática. Em seguida, abordam-se as teorias da subcultura e subcultura delinquente, passando-se, por fim, a confrontar as características apontadas para as subculturas delinquentes com as informações acerca do graffiti vindas de diversas áreas, como Comunicação, Artes, Educação e Sociologia, dando atenção principal ao suposto não utilitarismo que deveria marcar as atividades subculturais delinquentes.

1. GRAFFITI E ADOLESCÊNCIA

Neste artigo, faremos uso do termo original “graffiti”, com sua grafia italiana, em concordância com Gitahy (1999), para designar de maneira genérica a prática de todas as formas de expressão escrita ou desenhada que utiliza como suporte paredes, muros, placas, portas e demais componentes da paisagem urbana, tomando os termos empregados pela lei brasileira, “grafite” e “pichação” (“pichar”), espécies do gênero graffiti.

O graffiti é uma prática tão antiga quanto o homem, sendo as pinturas rupestres seus primeiros exemplos (Gitahy, 1999). Desde seu surgimento, a prática nunca foi deixada de lado, estando presente tanto em Pompeia, antes da erupção do Vesúvio de 79, na forma de xingamentos, poesias, anúncios, propagandas, quanto na Idade Média, sendo praticada por padres que escreviam com piche nas paredes dos conventos rivais (Souza, 2008). Durante o salto da industrialização no período após as guerras mundiais, foram criadas novas técnicas e produtos, como as tintas em spray, que possibilitaram a disseminação do graffiti como hoje o conhecemos. Em Paris, durante as manifestações de 1968, o graffiti foi utilizado como estratégia de intervenção política que repercutiu fortemente pelo mundo (Ramos, 1994); enquanto isso, em Nova York, o graffiti começou a tomar as ruas, denunciando a necessidade de alternativas de criação artística autônoma no espaço urbano, legitimando a rua como espaço vital para a liberdade de expressão (Viana e Bagnariol, 2004). Em São Paulo, por volta de 1976, a pichação deixou suas marcas iniciais em pleno Regime Militar; na Alemanha, nos anos 1980 foi possível visualizar as primeiras as primeiras pichações no muro de Berlim (Ramos, 1994).

De início, faz-se necessária uma definição terminológica, dada a peculiaridade da legislação penal brasileira em estabelecer distinção entre “pichação” e “grafite”, criminalizando apenas a primeira. Graffiti é uma palavra italiana, plural de graffito, que designa inscrições ou desenhos riscados a ponta ou a carvão em superfícies como paredes e rochas (Gitahy, 1999). A tentativa de diferenciar “grafite” e “pichação” é extensa. Ambas as práticas fazem uso do mesmo suporte e dos mesmos materiais, como rolos, spray, tintas e pincéis, e ocupam os espaços públicos que se desenvolvem com a urbanização (Valenzuela, 1999). No entanto, numerosos autores afirmam que o primeiro advém das artes plásticas e privilegia a imagem, enquanto o segundo vem da escrita e privilegia a letra; assim, a pichação é usualmente associada a vandalismo, poluição visual e delinquência, enquanto o grafite, a uma possibilidade de salvação através da arte (Gitahy, 1999; Souza, 2008; Sales, 2007). Essa forma de associação está em harmonia com o texto da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), que tipifica o ato de “pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano”, enquanto expressa não ser crime a prática autorizada de “grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística” (Lei 9.605/1998, art. 65, caput e § 2º).

Entretanto, na análise do graffiti participam indivíduos, teóricos e praticantes, que expressam opiniões divergentes, o que indica que essa divisão entre grafite e pichação não é pacífica. O renomado grafiteiro brasileiro Zezão entende que grafite e pichação são uma coisa só (Souza, 2008); já para Sales, há diferenças de linguagem entre grafite e pichação, mas ambos são a arte das ruas (Sales, 2007). Outros autores afirmam o valor artístico da pichação (Barchi, 2007), rejeitam a dicotomia grafite-pichação, criando a categoria “apropriações visuais do espaço da cidade” (Kessler, 2008, p. 45), entendem não haver diferença entre grafite e pichação quanto à sua produção e finalidade (Testa, 2004), ou mesmo definem a prática do graffiti exclusivamente a partir da subjetividade de seus praticantes: “membros da cultura graffiti fazem graffiti” (Campos, 2010, p. 108). Assim, percebemos uma dificuldade em estabelecer uma divisão entre pichação e grafite de maneira estanque, tendo em vista as colocações dos autores referidos autores que enfatizam as similaridades e as raízes comuns das práticas.

Entende-se, em conformidade com autores que realizaram etnografias e estudos na área, que a análise do graffiti está intrinsecamente ligada à análise da juventude, pois tal prática social radica em modos de vida juvenis e sua própria linguagem visual emerge de uma imagética tipicamente juvenil. O apelo do graffiti aos adolescentes é explicado em parte pela sua “condição extraordinariamente conectada com a imagem e a visualidade, altamente performativa e estetizada, que encontra nos exercícios lúdicos refúgios comunicacionais que escapam às lógicas do mundo dominante e dos adultos” (Campos, 2010, p. 26).

O Brasil foi pioneiro na América Latina e um dos primeiros países do mundo a implementar um ordenamento jurídico nacional relativo a crianças e adolescente em conformidade às diretrizes e regras da ONU, na forma do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Tal lei introduziu no continente a doutrina da proteção integral, que visa eliminar a discricionariedade judicial e a supressão de garantias processuais, especialmente no âmbito da Justiça Juvenil (Andrade e Machado, 2019). Assim, no Brasil, o instrumento normativo que delimita a categoria adolescência é o ECA, que preconiza que adolescente é a pessoa entre 12 e 18 anos de idade. Mesmo seguindo diretrizes internacionais, essa delimitação legal não pode ser tomada como universal, nem os limites etários apresentam correspondência direta com a condição das pessoas, havendo um aspecto social inerente à adolescência; mais do que sua proximidade em termos de idade, os adolescentes partilham características socioculturais distintivas, determinada posição econômica e modo de vida que se afasta tanto do modo infantil quanto do adulto (Campos, 2010). Conforme a psicanálise, o período de duração da adolescência é tão variado quanto são variadas as formas de reconhecimento da condição adulta. A característica própria desse processo é o abandono da autoimagem infantil e a projeção no futuro de uma imagem adulta, processo que obriga o adolescente a reformular seus conceitos sobre si mesmo. Vive-se, então, a chamada “síndrome da adolescência normal”, que tem como sintomas, entre outros, a busca de si mesmo e da identidade, a tendência grupal e a atitude social reivindicatória com tendências antissociais ou associais de diversas intensidades (Aberastury e Knobel, 1981).

2. AS TEORIAS DA SUBCULTURA DELINQUENTE

As teorias das subculturas delinquentes são variadas tentativas de se explicar a delinquência em geral, e a delinquência juvenil em especial. Conforme Figueiredo Dias e Andrade (2013), a tarefa de se definir o conceito de subcultura é árdua. A compreensão de Cohen (1963) de que subcultura é uma cultura dentro de uma cultura esbarra nas dificuldades inerentes à conceituação da cultura em si. Os autores utilizam um conceito sociológico de cultura - “todos os modelos colectivos de acção, identificáveis nas palavras e na conduta dos membros de uma dada comunidade, dinamicamente transmitidos de geração para geração e dotados de certa durabilidade” (Dias e Andrade, 2013, p. 290-291) - para identificar o conceito de subcultura. Segundo os autores, a existência de uma subcultura implica a presença de padrões normativos opostos ou divergentes com relação aos que regem a cultura dominante, que, por vezes, emerge em razão de uma situação coletiva de conflito e frustração no interior de uma certa cultura (Dias e Andrade, 2013). Subculturas “desviantes” são, com frequência, vistas como formas simbólicas de resistência que desafiam a hegemonia, valendo-se das experiências e costumes particulares de sua comunidade, grupo étnico ou etário, para demonstrar a possibilidade de vivências divergentes das concepções dominantes (Lachmann, 1988).

Nas teorias das subculturas delinquentes, o crime é resultado da interiorização e da obediência a um determinado código cultural ou moral que torna a delinquência imperativa; assim, do mesmo modo que a adoção de comportamentos conforme a lei, a delinquência também implica a tomada de ações a partir de um sistema de crenças e valores (Dias e Andrade, 2013):

Com efeito, ao obedecer às normas subculturais, o delinquente mais não pretende do que corresponder à expectativa dos outros significantes que definem o seu meio cultural e funcionam como grupo de referência para efeitos de status e sucesso. [...] A explicação do crime atinge, assim, um nível tendencialmente coincidente com o próprio sistema. Em vez da ideia de desorganização social, partese da ideia aparentemente paradoxal da integração nos valores últimos do sistema cultural dominante, ou seja, na procura de sucesso e status. (Dias e Andrade, 2013, p. 291-292, grifo dos autores)

Para Campos, o graffiti pode ser entendido enquanto cultura - pois compreende um grupo de pessoas que partilham identidade, sentimento de comunidade, vocabulários, formas de expressão, conjuntos de normas e valores, e condutas que o distingue ante outros grupos - e, em certo sentido, também enquanto subcultura, já que representa um grupo de pessoas marginalizadas, de posição subordinada ou subalterna dentro de um sistema; o graffiti, como simbolicamente associado ao gueto, à transgressão, a minorias étnicas e à discriminação racial, à pobreza e à rua, é encoberto por uma identidade subcultural (Campos, 2010).

Na literatura jurídica, sociológica e antropológica, o graffiti é seguidamente abordado como um exemplo de subcultura delinquente (MacDonald, 2001; Lannert, 2015; Ferrell, 1998; Lachmann, 1988; MacDiarmid e Downing, 2012; Lasley, 1995). Na seguinte seção, no espírito da afirmação de MacDiarmid e Downing de que essencializar o graffiti como subcultura de desvio é um desserviço (MacDiarmid e Downing, 2012), confrontam-se produções teóricas sobre a subcultura delinquente com estudos sobre o graffiti a fim de identificar suas correspondências e afastamentos.

2.1. As tendências grupais na subcultura delinquente e no graffiti

Uma das características mais marcantes da subcultura delinquente seria o fato de que, em geral, o sujeito se torna delinquente a partir do grupo de delinquentes e passa a frequentar quase exclusivamente tais grupos antissociais, que compartilham da mesma percepção da realidade. Por parte dos teóricos da subcultura delinquente, essa tendência grupal é vista sob uma perspectiva negativa, sendo relacionada a defeitos das instituições como a família e a escola (Costa, 1974). Outros autores colocam que os jovens procuram unir-se em grupos, muitos dos quais subculturais, em um processo de construção de sua identidade em segundo sentido: a identidade como semelhança que aproxima pessoas (Shecaira, 2014).

A tendência grupal é confirmada tanto pela literatura sobre os adolescentes quanto pela do graffiti, entretanto essa visão negativa é confrontada por diversos teóricos que ressaltam os aspectos naturais e positivos da tendência grupal. Na busca pela sua identidade, o adolescente recorre à uniformidade como um comportamento defensivo que pode proporcionar segurança e estima, surgindo, então, a inclinação aos grupos. Esse fenômeno é de grande importância, na medida em que grande parte da dependência anteriormente familiar se transfere ao grupo, perfazendo uma transição necessária para o alcance da individualização adulta (Aberastury e Knobel, 1981).

Autores destacam o grande papel desempenhado pelo fator “coletividade” na prática. Os grupos de graffiti, também conhecidos como “crews”, têm posição central nesse universo, já que, para muitos praticantes, se assemelham a uma família e, como tal, implicam a constituição de laços fortes e inquebráveis de confiança e apoio mútuo (Zimovski, 2017; Campos, 2010; Lannert, 2015; Carvalho, 2011.

Os grupos subculturais delinquentes, consoante à teoria, são marcados pela autonomia grupal e pela intolerância a pressões advindas externas, sendo os membros do grupo extraordinariamente resistentes às tentativas de regulação da escola, da casa e de outras agências sobre sua vida, e à competição de tais agências com a atividade delinquente em nome do tempo e de outros recursos de seus membros (Cohen, 1963). Por um lado, manifesta a autonomia grupal no que tange à avaliação dos graffiti enquanto produto cultural, na medida em que somente os praticantes do graffiti formam o chamado “público especializado” com capacidade única de avaliação dos méritos dos seus pares (Campos, 2010). Por outro lado, autores indicam que a prática do graffiti ocupa apenas uma porção do quotidiano dos praticantes e, em termos cronológicos, um período relativamente curto da sua vida.

Simultaneamente ao graffiti, os demais círculos sociais e instituições, como família, amigos de fora do graffiti, trabalho e escola são forças que influenciam os hábitos e o gerenciamento de tempo e espaço por parte do adolescente - o graffiti é apenas um dos campos pelos quais o jovem transita, e que não faz necessário abdicar dos demais (Campos, 2010). No mesmo sentido, Lachmann destaca a brevidade do período de prática do graffiti na vida da maioria dos jovens envolvidos nessa subcultura e traz o depoimento de um conselheiro escolar cujos registros demonstravam que grande parte dos praticantes retornava à escola e tinha mais probabilidade de aprovação no ano escolar do que o “estudante médio” (Lachmann, 1988). Tanto Lachmann (1988) quanto Lasley (1995) apontam o período de oito meses como o tempo de permanência média em atividade dos taggers1. Também Souza, consonantemente, indica que, ao contrário de atividades como o tráfico de drogas, o graffiti não constitui uma “âncora social” impeditiva de mobilidade para seus praticantes ou ex-praticantes, sendo ainda recorrente a conciliação da prática com vidas escolares ou profissionais bem-sucedidas (2007, p. 102).

2.2. O suposto não ultilitarismo do graffiti

Conforme Cohen, a subcultura delinquente é não utilitária, maliciosa e negativista. Ao falar do não utilitarismo, usando principalmente o exemplo do furto, o autor coloca que tendemos a pensar que delitos são cometidos por motivos econômicos ou mesmo são motivados porque os objetos delitivos “em um nível simbólico profundo substituem ou representam algo inconscientemente desejado mas proibido” (1963, p. 26); dessa forma, contam com um fulcro racional e utilitário. Conforme o teórico, entretanto, isso não se verifica nas subculturas delinquentes, cujas práticas não podem ser justificadas de maneira racional ou utilitária, e sim como uma forma de recreação, brincadeira ou esporte, e nas quais os sujeitos comentem delitos apenas “por cometer”2 (Cohen, 1963, p. 26).

Embora enfatize o não utilitarismo da conduta, o próprio Cohen argumenta que não há nada mais óbvio que, em muitos casos da subcultura delinquente, as práticas visem à conquista de reconhecimento e à evitação de isolamento e de humilhação, porém pouco esforço é dedicado a esse ponto enquanto retorno utilitário ao praticante do graffiti, focando o autor em compreender por que tal forma de reivindicar reconhecimento interessa determinados sujeitos. Conforme o estudioso, as subculturas delinquentes oferecem soluções a problemas de status. Nossa habilidade em alcançar status depende das normas utilizadas dentro da sociedade para avaliar pessoas, ou seja, do critério aplicado por nossos companheiros, que é um aspecto do quadro cultural vigente. Se não apresentamos as características que dão status positivo segundo tal critério, sofremos com problemas de ajuste, para os quais uma possível solução seja a aproximação dos sujeitos desajustados e o estabelecimento conjunto de novos critérios que valorizem características que eles efetivamente apresentam. Assim, a subcultura delinquente é uma forma de lidar com esses desajustes derivados da negação de status aos sujeitos por parte da “sociedade respeitável”, pois todos sofremos com uma crônica motivação de elevar nossa posição (Cohen, 1963). A essas construções teóricas que enfatizam o caráter não utilitário das práticas subculturais, contrapõem-se as alternativas que o graffiti abre para a conquista de reconhecimento social e para a comunicação.

2.2.1. O graffiti como luta pelo reconhecimento

Apesar da consagração do não utilitarismo como elemento clássico da subcultura delinquente, há criminólogos que apontam a constituição dessas subculturas como reação necessária de minorias altamente desfavorecidas ante a exigência de sobreviver e de se orientar em uma estrutura social (Shecaira, 2014). Em sentido parecido, Honneth compreende que e reconhecimento dentro dos grupos interessa ao adolescente de modo especial em razão de ter seu status de sujeito de direito frequentemente negado na consciência pública, o que lhe conduz a recorrer a uma espécie de respeito compensatório garantido pelos grupos sociais, formas de “contraculturas do respeito” (2013, p. 68). Ou seja, adolescentes, por não serem reconhecidos dentro do pacto social, tentam alcançar o reconhecimento fora dele. São numerosos os autores que, em consonância, classificam a prática do graffiti como uma busca do jovem pelo reconhecimento (Kessler, 2008; Ventura, 2012; Carvalho, 2011; Souza, 2012; Sales, 2007; Valenzuela, 1999; Soares, MV Bill e Athayde, 2005; Silva, 2010). Assim, embora sabidamente ausente qualquer compensação de ordem material na mera prática do graffiti - não se adentrando aqui no terreno de uma possível profissionalização -, autores sinalizam por meio dela a busca e efetiva conquista de uma carreira moral e de dividendos de ordem simbólica, social e afetiva, resultantes do reconhecimento dos méritos pessoais dos membros e do acolhimento e estima pública no grupo (MacDonald, 2001; Campos, 2010).

Longe de ter um papel secundário ou de pouca expressão ou utilidade, o reconhecimento, compreendido como visibilidade da condição de pessoa do outro diferente, manifesta-se como uma necessidade que se impõe ante as impossibilidades geradas pelas relações humanas construídas no nosso espaço cultural (Costa, 2016). O ser humano tem uma dependência fundamental com relação ao reconhecimento, pois somente ele possibilita uma condição positiva de liberdade, sendo penoso afirmar-se ou seguir seu projeto de vida quando se é ignorado ou se recebe dos demais uma imagem negativa de si (Iser, 2013). Para Fraser (2008), o reconhecimento não é mera questão de autorrealização, e sim uma questão de justiça, pois é injusto que alguns indivíduos tenham seu status de participantes plenos da vida social negado e sejam constituídos como atores inferiores dentro da sociedade, devido a padrões de valor cultural institucionalizados de cuja construção eles não participaram em igualdade. Esse não reconhecimento não somente se restringe a danos psicológicos causados por atitudes preconceituosas contra tais indivíduos, como também impede sua igual participação na vida social (Fraser, 2008).

Os três níveis de reconhecimento traçados por Honneth, correspondentes às etapas de internalização dos valores sociais pelo indivíduo, são pertinentes nas reflexões sobre o graffiti. O primeiro nível, das relações primárias, diz respeito ao amor como toda forma de ligação emotiva forte entre poucas pessoas, na qual há reconhecimento mútuo de suas carências. Em um segundo nível, figura o reconhecimento jurídico, o pertencimento dos indivíduos ao Estado de Direito enquanto iguais, livres e racionais. Aqui, o reconhecimento advém das propriedades universais que fazem do indivíduo uma pessoa, sendo necessário atentar para o fato de que tais propriedades podem variar conforme o pacto social e marginalizar os indivíduos que não as possuem. Para o autor, inclusive, só se pode esperar o respeito às normas por parte dos indivíduos que podem assentir a elas como livres e iguais. A terceira forma de reconhecimento, fundamental para a formação da autorrealização, é atingida por meio da solidariedade e da estima social, com a valorização das propriedades particulares que caracterizam uma pessoa como diferente das outras (Honneth, 2009).

O nível de reconhecimento primário, raiz da autoconfiança, é verificado dentro das crews do graffiti, pela presença de fortes laços de afetividade e pela compreensão acerca do grupo como uma família por parte de seus membros. Em um segundo nível, considera-se a posição dos adolescentes enquanto historicamente subalternos no nosso ambiente sociocultural; vê-se que seu reconhecimento jurídico é incompleto ou deficitário, o que dá margem para que essas pessoas, por sua vez, também não reconheçam a ordem jurídica plenamente. Igualmente a forma de reconhecimento ligada à estima social tem presença forte na prática do graffiti, com valorização mútua pelos membros dos grupos das habilidades particulares de seus companheiros. De certa forma, os praticantes do graffiti parecem abrir mão da esfera do reconhecimento jurídico, não se importando ou relegando pouca importância à ilegalidade de seus atos, em nome da conquista de reconhecimento nos níveis de amor e de solidariedade social que são atingidos pela interação dos grupos e pela estima social derivada de suas práticas. Não contando com as propriedades que lhes confiram pleno e efetivo reconhecimento jurídico, e não podendo assentir às normas enquanto livres e iguais, os jovens e os adolescentes desconsideram as implicações legais de suas atitudes, focando suas atenções nas outras formas de reconhecimento que podem obter por meio do graffiti, isto é, os laços de afetividade e uma estima social que lhes permitam formar uma visão positiva acerca de suas próprias capacidades.

Ventura (2012) coloca o graffiti como prática que forma a identidade, a autorrelação e a autoestima dos envolvidos. Pode-se tratar de uma reivindicação subcultural por reconhecimento que denuncia a ideologia do desempenho individual diferenciado, princípio fundamental do capitalismo segundo o qual a valorização dos talentos diferenciados regula o acesso aos recursos e pode perpetuar a desigualdade. O autor de um graffiti ambicionaria alcançar o respeito no interior do seu grupo; não a estima social pela sociedade em geral, mas o reconhecimento de sua individualidade, numa reação contra os meios institucionais de reconhecimento e de expressão. A partir das intervenções visuais nos espaços da cidade, os praticantes do graffiti vão se reconhecendo e sendo reconhecidos com relação ao grupo, e uma rede de pertencimento e troca entre os membros do grupo toma forma (Kessler, 2008). Em um contexto de discrepância entre as normas e os fins culturais, e as possibilidades sociais de se atuar conforme tais normas e fins, certas dinâmicas coletivas juvenis - de inovação, apatia, e rebelião - “parecem demarcar a busca de meios alternativos para a concreção dos ideários próprios dos jovens” (Botero e Muñoz, 2005, p. 116)3. Tais dinâmicas são respondidas com o etiquetamento de determinados grupos de jovens como “deliquentes”, no sentido de subculturas marginais que, com intento de atingir os fins culturais da sociedade de consumo, atentam contra a ordem social (Botero e Muñoz, 2005).

A própria participação nos grupos de graffiti, já identificada como uma das características mais proeminentes da prática, provoca desdobramentos essenciais na vida do jovem. Para Honneth, o grupo deve ser compreendido como um “mecanismo social fundado na necessidade ou no interesse psíquico do indivíduo, porque o auxilia na estabilidade e ampliação pessoais” (2013, p. 61). Um dos motivos centrais na formação de grupos é a busca por uma estima passível de ser experimentada no círculo das pessoas afins, o que ganhou ênfase com a atual pluralização de valores e inexistência de um padrão de avaliação que seja válido para toda a sociedade. Dessa forma, haveria um entrelaçamento entre individualização e socialização que por si só indicaria a importância dos grupos sociais no amadurecimento do indivíduo. Para manter e desenvolver as formas de autorrelação, o sujeito necessita participar de grupos em que a experiência de ser considerado importante seja renovada constantemente (Honneth, 2013). Desenvolvendo a teoria de Honneth, Roselfield e Saavedra apresentam os grupos sociais como comunidades culturais de valores e tradições comuns, cuja participação nelas favorece a construção de uma identidade individual e dos elementos constitutivos de uma autorrelação positiva apontados por Honneth. O papel benéfico dos grupos reside na oportunização de uma partilha de valores entre os membros, elemento fundamental da constituição do sujeito (Rosenfield e Saavedra, 2013).

2.2.2. O graffiti como forma de folkcomunicação

Ainda tratando do não utilitarismo da conduta das subculturas delinquentes, podese contrapor a essa dita ausência de fulcro utilitário a possibilidade comunicacional aberta pelo graffiti. Diversos são os autores que apontam a prática como um exemplo de folkcomunicação, a manifestação de grupos sociais que não contam com acesso aos meios de comunicação de massa, alternativa de comunicação popular que reflete algumas das tensões da sociedade e propicia visibilidade aos anseios de grupos marginalizados relativamente à mídia institucionalizada (Beltrão, 1980; Machado et al., 2005; Testa, 2004). Conforme Beltrão (1980), a folkcomunicação é, sobretudo, resultado de uma atividade artesanal do agente-comunicador, com processo de difusão horizontal e linguagem e canais familiares à audiência, que exerce funções de informar, opinar, educar e divertir. Para Silveira (2009), a prática cumpriria função de fala contestatória dirigida simultaneamente a todos, a ninguém e aos próprios pares. Por essa ótica, os graffiti como discursos, no sentido de práticas sociais inseridas em determinados contextos.

Ainda, o graffiti tornou-se uma forma de comunicação social daquilo que não pode sair pelos canais institucionais da comunicação social, dotados de limites de permissividade. O diálogo do graffiti é anti-institucional e transgride os limites dessa permissividade em conteúdo e linguagem (Collazos, 1989), por desobedecer ao normativo do universo comunicacional controlado pelos poderes públicos e privados (Campos, 2010), por burlar a repressão e a censura, é um recurso utilizado por setores cuja mensagem não tem acesso na grande imprensa (Ortega, 1989).

Sendo uma das características da folkcomunicação a capacidade de codificar informações em uma linguagem inteligível para um público específico à margem da sociedade, o graffiti se encaixaria nesse conceito, pois é produzido para expressar informações participantes de um determinado grupo urbano marginalizado, capazes de entender seus códigos, uma vez que são integrantes da sua cultura. Aqui, a definição do grupo como marginalizado deve-se ao seu acesso limitado às oportunidades e a sua exclusão do sistema político e da comunicação social. Através do graffiti, esse grupo interage com o meio que vem negligenciando suas necessidades, inclusive comunicativas, e o utiliza como espaço de discussão paralelo (Testa, 2004).

2.3. A malícia e o negativismo no graffiti

Quanto às demais qualidades da conduta das subculturais delinquentes traçadas por Cohen (1963), a malícia diz respeito à satisfação com o desconforto alheio, no desafio dos tabus em si mesmo e na hostilidade gratuita que esses grupos exibem quanto a sujeitos de fora do grupo. Já o negativismo, segundo Cohen, significa que a subcultura delinquente não tem normas meramente diferentes das normas da “sociedade adulta respeitável”, e sim normas que são definidas pela sua polaridade negativa com relação às dominantes; a conduta do membro da subcultura está certa conforme os padrões da subcultura justamente porque está errada conforme as normas da cultura maior. A marca fundamental da subcultura delinquente é a rejeição explícita dos padrões da classe média e a adoção de sua antítese; sua polaridade negativa relativa ao “sistema de status respeitável” é o que confere status dentro do grupo (Cohen, 1963).

Aproximando-se a essas ideias, principalmente ao negativismo, por vezes encontramos o graffiti referido como resistência manifestada na forma de rejeição dos valores morais dominantes e de adoção de uma postura amoral quanto a comportamentos pessoais e de grupo, de modo que seus praticantes geralmente encaram a prática como inofensiva ou a deixam de fora de considerações morais (MacDiarmid e Downing, 2012). Com frequência, integrantes de grupos de graffiti expressam compreender que se trata de uma prática invasiva, obter satisfação pela ciência de ter rompido um sistema de vigilância, ou não se importar como a legalidade ou ilegalidade do ato (Silva, 2010), porém, para além disso, não foram encontrados dados no sentido de que a malícia ou o negativismo sejam aspectos centrais da prática ou das motivações dos participantes, sendo os aspectos de reconhecimento e comunicacionais muito mais presentes e destacados. Além destas, outra motivação recorrentemente encontrada na literatura é a busca pela apropriação do espaço (Carvalho, 2011; Silva, 2010; Souza, 2008). Fazendo uma referência à expressão empregada por Cohen (1963), a pesquisa não apontou que os membros dos grupos de graffiti realizem suas práticas apenas “for the hell of it”, ou com simples intenção de conspurcar a cidade.

2.4. O graffiti e a progressão da criminalidade

Outra característica das subculturas delinquentes trazida por Cohen (1963) é a da versatilidade, segundo a qual tais grupos não se “especializam” como muitos grupos criminosos adultos ou delinquentes que agem sozinhos, mas praticam uma variedade de ilícitos. Ainda, argumenta-se que as funções básicas de todas as subculturas delinquentes são as mesmas e envolvem a aprendizagem do jovem na preparação para sua carreira delitiva futura (Shecaira, 2014).

Distanciando-se dessas elaborações teóricas, verifica-se que, apesar de o graffiti conservar diversas semelhanças com “gangues delinquentes”, como a composição primariamente por jovens, a alienação dos membros com relação à sociedade e a rotulação de sua conduta como desviante, suas similaridades não vão além disso. Praticantes do graffiti não são violentos nem usam a prática como meio de obter retorno financeiro ou material (Lannert, 2015). No começo da década de 1980, Lachmann (1988) entrevistou policiais, promotores e conselheiros escolares dos Estados Unidos a respeito da prática, e obteve como resposta a descrença de que o graffiti fosse um precursor de outras formas delitivas mais graves, concluindo que é o rótulo de “desviante” aplicado ao graffiti que destaca sua ilegalidade e falsamente o liga ao crime violento. O autor coloca que pouquíssimos praticantes do graffiti pertencem a gangues e, quando o fazem, tomam a posição de “não membros” ou de “empreiteiros” que proporcionam seu graffiti como um serviço em troca de benefícios (Lachmann, 1988). A progressão do graffiti para delitos mais sérios também não foi encontrada na pesquisa de Lasley (1995), que demonstrou que, além do graffiti, a atividade ilegal dos membros limitava-se a pequenos furtos e ao uso ocasional de álcool e maconha. Souza (2012) também aponta que a rotina desses jovens, salvo exceções, não inclui práticas de violência física, que é redirecionada para a competição pela fama, havendo uma estetização ou sublimação da violência.

2.5. O imediatismo no graffiti

Por fim, a subcultura delinquente é marcada pelo hedonismo de curto prazo, significando haver pouco interesse por parte dos participantes em metas de longo prazo, no planejamento de atividades e do tempo, ou em atividades que envolvam conhecimento e habilidades adquiridas somente por meio da prática e do estudo (Cohen, 1963).

Campos (2010), em sentido oposto ao colocado na teoria das subculturas delinquente, afirma que as recompensas advindas do graffiti não são imediatas, e sim resultado de persistência e devoção; já Souza (2012) coloca que construir um nome de prestígio nesse círculo é tão ou mais trabalhoso do que em qualquer outra área de atuação juvenil. Ademais, o graffiti é apontado como uma forma de colaboração entre muitas pessoas que trabalham juntas para se tornarem artistas melhores, pintando juntas e discutindo a arte de cada uma, o que evidencia um esforço contínuo e coletivo com intuito de desenvolvimento dos membros dentro do grupo. Como forma de arte, ele requer a mesma dedicação exigida para o domínio de qualquer outra forma, sendo a prática crucial para o desenvolvimento das habilidades e da técnica (Lannert, 2015).

Kessler (2008), por sua vez, em etnografia realizada em Porto Alegre, aponta que os praticantes do graffiti trabalham ou buscam trabalho e profissionalização a partir dessa prática, bem como deslocar-se no espaço social e acessar outra posição relativa à distribuição de capital econômico e simbólico. No mesmo sentido, é apontado que o graffiti como linguagem estética abre oportunidades para a inserção de seus praticantes no mercado e nas instituições artísticas (Ventura, 2012).

CONCLUSÕES

O universo do graffiti apresenta correspondências relevantes com o teorizado nas subculturas delinquentes. Entre elas, destaca-se a tendência grupal, apontada como característica tanto de grupos subculturais delinquentes quanto dos grupos de graffiti, além da categoria dos adolescentes em geral. Outra correspondência evidente é a subcultura delinquente e a prática do graffiti como possibilidades de solução a problemas de status ou oportunidades para a luta pelo reconhecimento. Ainda, há certa correspondência no tocante ao negativismo e à malícia colocados por Cohen (1963) como típicos das atividades subculturais delinquentes, porém isso foi verificado apenas de maneira residual ou coadjuvante nas motivações para a realização do graffiti, cujo verdadeiro protagonismo reside na busca pelo reconhecimento nos níveis das relações primárias e da solidariedade social, e nos intentos comunicacionais e de apropriação do espaço.

Dessa forma, verifica-se que as correspondências entre o graffiti e a subcultura delinquente não dizem respeito a aspectos eminentemente negativos ou desviantes, e sim a processos comuns e fundamentais a todas as pessoas em seu processo de individualização. Tanto a conquista do reconhecimento quanto a realização de comunicação são encontradas como saldos proporcionados pela prática do graffiti, o que leva a entender que o aspecto do não utilitarismo, para Coehn emblemático das práticas subculturais delinquentes, não se verifica nessa subcultura em particular. É certo que, enquanto não se adentra no campo da profissionalização, o graffiti não oferece retornos financeiros ou materiais, porém o não utilitarismo referido não abarca apenas questões materiais, mas também simbólicas e implica uma total ausência de racionalidade na conduta, o que não é presente nos grupos de graffiti.

Por sua vez, aspectos com carga negativa como o hedonismo de curto prazo, a prática de outros delitos ou a preparação para a carreira criminosa e a interferência da prática nas outras esferas da vida jovem não foram verificados. Pelo contrário, a literatura sobre o tema indica a dedicação que o graffiti demanda, o não cometimento de outros delitos e o não prosseguimento em práticas ilegais, além da conciliação do graffiti com os demais campos pelos quais o adolescente transita.

Conforme Campos, em razão do escasso domínio que os jovens apresentam sobre variados setores de sua vida, as culturas juvenis geralmente são tratadas como culturas subalternas, e os jovens, como agentes em transição relativamente passivos e aculturais. A eles, é relegado um “estatuto periférico”, uma posição subalterna, em razão da distância que os separa da cultura da comunidade, a cultura adulta, aquela transmitida pelos “agentes com autoridade”, majoritariamente adultos do sexo masculino (2010, p. 50). Ao mesmo tempo, verificados que, dada sua vulnerabilidade especial em assimilar as projeções da sociedade em geral, os jovens e adolescentes acabam se tornando receptáculos propícios para os conflitos e aspectos negativos da sociedade, que projeta sobre eles as falhas sociais disfarçadas como “excessos da juventude” (Aberastury e Knobel, 1981, p. 11).

Isso auxilia a compreender como uma prática cultural típica da juventude é rebaixada ao status de subcultura e, ainda, de subcultura delinquente ou desviante, à qual são atribuídos diversos aspectos negativos sem que haja uma análise mais profunda quanto à efetiva verificação de tais aspectos na prática. De certo modo, há uma vinculação automática das manifestações culturais adolescentes a um desvalor que reside em maior parte na sua não correspondência com as manifestações culturais julgadas apropriadas pela sociedade adulta. Os diversos distanciamentos aqui identificados nos apontam para a necessidade de atenção quando se refere ao graffiti enquanto subcultura delinquente ou desviante, de modo a se evitar que uma atividade tipicamente adolescente que visa ao reconhecimento, à comunicação e à apropriação do espaço seja automaticamente vinculada a ideias de irracionalidade, violência e rejeição de todos os valores importantes para a sociedade em geral.

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1Taggers são os praticantes do graffiti que realizam o tagging, a inscrição repetida do nome adotado pelo praticante, ou tag, pela cidade.

2No original: “In homelier language, stealing ‘for the hell of it’.

3No original: “parecen demarcar la búsqueda de medios alternativos para la concreción de los idearios propios de los jóvenes”.

Recebido: 27 de Janeiro de 2020; Aceito: 02 de Março de 2020

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