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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud
Print version ISSN 1692-715X
Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.14 no.1 Manizales Jan./June 2016
https://doi.org/10.11600/1692715x.14133120515
Segunda Sección: Estudios e Investigaciones
DOI: http://dx.doi.org/10.11600/1692715x.14133120515
Os significados do uso de álcool entre jovens quilombolas*
The meanings of alcohol use among young people from the Quilombola indigenous community
Significados sobre el consumo de alcohol entre los jóvenes quilombolas
Roseane Amorim da Silva1, Jaileila de Araújo Menezes2
1 Professora Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Professora Substituta do Centro de Educação da UFPE. Correio eletrônico: roseane_amorim6@hotmail.com
2 Professora Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFPE e do departamento de Psicologia e Orientações Educacionais da UFPE. Correio eletrônico: leilaufrj@hotmail.com
Artículo recibido en febrero 20 de 2015; artículo aceptado en mayo 12 de 2015 (Eds.)
Resumo (analítico):
Este estudo buscou investigar os significados do uso de álcool entre os jovens de duas comunidades quilombolas, Castainho e Estivas, localizadas em Garanhuns/PE. A pesquisa é qualitativa e foi desenvolvida em dois momentos. No primeiro realizamos observação participante nas comunidades, em seguida entrevistas semiestruturadas com homens e mulheres jovens. Os dados foram analisados com base na Interseccionalidade de gênero, classe social e raça/ etnia. Os jovens fazem uso de álcool em diferentes momentos e com diversas finalidades: enfrentar situações difíceis, lidar com estados emocionais desagradáveis, se divertirem, socializarem com os amigos e outras. Ressaltamos os efeitos dos marcadores sociais, gênero, classe e raça/etnia nas vivências dos jovens que repercutem no uso de álcool e a importância de considerar esses fatores nas práticas de prevenção e promoção de saúde na busca de contribuir a qualidade de vida da juventude.
Palavras-chave: jovens, quilombolas, álcool, interseccionalidade (Thesaurus de Ciências Sociais da Unesco).
Abstract (analytical):
This study aimed to investigate the meanings of alcohol use among young people two Quilombola communities, Castainho and Estivas, located in Garanhuns in the state of Pernambuco, Brazil. The research is qualitative and was developed over two stages. In the first stage the researchers conducted participant observation in communities, followed by semi-structured interviews with young men and women from the Quilombola community. Data was analyzed based on the theoretical concept of the intersectionality of social markers such as gender, race/ethnicity and social class. Young people consume alcohol at different times and for different reasons: to have fun, socialize with friends, confront difficult situations and/or deal with unpleasant emotional states, have fun, socialize with friends and others. The authors emphasize the effects that these social markers have on the lives of young people, which in turn affects their consumption of alcohol and the need to consider these factors in health prevention and promotion in order to contribute to quality of life of youth.
Key words: young, quilombolas, alcohol, intersectionality (Unesco Thesaurus Social Science).
Resumen (analítico):
Esta investigación tuvo como objetivo investigar los significados que tiene el consumo de alcohol entre los jóvenes de dos comunidades quilombolas, Castainho y Estivas, ubicadas en la ciudad de Garanhuns -PE (Brasil). La investigación fue de corte cualitativo y se desarrolló en dos etapas. En una primera etapa, se utilizó como técnica metodológica la observación participante durante nuestra inserción en las comunidades, y en la segunda etapa realizamos entrevistas semi-estructuradas a hombres y mujeres jóvenes. Para el análisis de los datos, se tomó como base teórica la interseccionalidad de los marcadores sociales de género, raza/etnia y clase social. Los jóvenes consumen alcohol en diferentes momentos y por diferentes razones: para divertirse, socializar entre pares, hacer frente a situaciones difíciles y/o enfrentar estados emocionales desagradables, entre otros. Es importante resaltar los efectos que estos marcadores sociales tienen en la vida de los jóvenes, lo cual también repercute en el consumo de alcohol y la necesidad de considerar estos factores en las prácticas de prevención y promoción de la salud para tratar de contribuir a la calidad de vida de la juventud.
Palabras clave: jóvenes, quilombolas; alcohol, interseccionalidad (Tesauro de Ciencias Sociales de la Unesco).
1. Introdução
No meio rural, os jovens vivenciam cotidianamente experiências individuais e coletivas. Há espaços, a exemplo da casa, da vizinhança, que diferem da cidade, pois na organização desses espaços se sobressaí à coletividade. E assim, os jovens constroem relações de amizades, namoram, casam, vivenciam o lazer, estabelecem relações com os meios de comunicação de massa, participam de manifestações culturais e religiosas, vivenciam a sexualidade, fazem uso de álcool e se constituem enquanto sujeitos.
Oliveira Jr. e Prado (2013) chamam atenção para o fato de que a categoria juventude rural tem se apresentado nas pesquisas a partir de duas dimensões, uma geográfica, onde é discutida a relação dos jovens com o lugar que moram/pertencem; e a outra dimensão tem considerado o jovem a partir de suas ocupações, a exemplo dos que trabalham na agricultura. Diante dessas óticas, com destaque para a das ocupações, a participação da juventude rural nas demais esferas sociais fica invisibilizada, e as tensões e rupturas que apontam para diferentes possibilidades de experiências vivenciadas têm sido pouco discutidas.
Observamos essa questão abordada por Oliveira Jr. e Prado (2013) quando realizamos uma revisão da literatura sobre a juventude rural, em abril de 2015, na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - BDTD, e no repositório Scielo (Scientific Eletronic Library, online). Percebemos que muitas produções científicas têm como foco o eixo juventude-trabalhoeducação e a problemática sobre a saída do jovem do campo. Aspectos importantes quando se busca compreender essa condição juvenil, mas que chama nossa atenção para olharmos outros fatores que constituem os jovens. Como a dinâmica das desigualdades sociais, as formas de opressão, os efeitos que essas situações têm ocasionado e como estes têm enfrentado essas situações.
A juventude rural está inserido em um contexto que ao longo do tempo passa por importantes transformações. O desenvolvimento dos meios de transportes e das tecnologias de informação vem aumentando a interação cultural entre o meio rural e o urbano, e com isso as referências para construção das identidades e dos projetos de vida para o futuro vêm se complexificando. Apesar de que as desigualdades e dificuldades enfrentadas ainda sejam muitas.
Soares, Jesus e Silva (2010) observaram em um estudo realizado em Ouricuri, Pernambuco, a realidade de muitos contextos rurais. Os jovens precisam sair do campo para estudar, trabalhar, mesmo aqueles que desejam continuar morando no campo, precisam se deslocar para a cidade, devido às poucas oportunidades no meio rural. Esse trânsito campo-cidade não se realiza sem tensões. Quando se chega à cidade o que o jovem rural encontra? Como é recebido? Os que não vão para a cidade, o que fazem no campo? Quais as práticas de lazer, de sociabilidade? Como se relacionam com o uso de álcool? Como as relações de gênero, classe, raça/etnia repercutem na vida desses jovens? São questões pouco discutidas e que no presente estudo queremos chamar atenção para a importância de refletir sobre.
Investigando o uso de álcool no contexto rural, Monteiro, Dourado, Graça Junior e Freire (2011) observaram que o fato de geralmente as comunidades rurais possuírem muitos bares e poucos espaços onde os moradores possam se encontrar, favorece o uso de bebidas alcoólicas. O encontro nos bares, em que geralmente as pessoas vão para beber, funciona também como forma de socialização, descontração.
E não só nos bares, pois o uso é comum também entre os familiares. é importante ressaltar que dependendo do modo como o uso de álcool seja realizado pode ocasionar problemas ou não a vida dos sujeitos e da coletividade. Distanciamo-nos de uma postura moralizante com relação ao uso de álcool e consideramos os significados positivos atribuídos ao uso. Mas não deixamos de considerar também que por vezes, o uso pode estar relacionado às dificuldades vivenciadas cotidianamente no contexto rural.
Cardoso, Melo e Cesar (2015) realizaram o primeiro estudo de base populacional em comunidades rurais quilombolas do sudoeste da Bahia que avaliou o consumo de álcool e fatores associados. Participaram homens e mulheres na faixa etária dos 18 a 34 anos, compondo uma amostra de 750 quilombolas. Foi observado que 10,7% da amostra apresentaram um padrão de consumo considerado de risco para bebidas alcoólicas, incluindo nesta categoria os que consomem durante a semana uma quantidade excessiva de álcool, sem necessariamente fazer uso exagerado da substância em uma única ocasião. E aqueles que eventualmente utilizam o álcool em quantidade abusiva. Os autores perceberam também vários fatores que estão relacionados com o uso, aspectos socioeconômicos, práticas de sociabilidade, entre outros.
Os autores, já mencionados, Cardoso, Melo e Cesar (2015), chamam atenção para os dados que eles encontraram, pois no contexto rural quilombola outra dificuldade enfrentada é a ausência de serviços de saúde que possam realizar intervenções em relação as práticas de consumo abusivas, e que proporcionem a qualidade de vida da população. é importante lembrar ainda o quanto as questões étnicoraciais são pouco consideradas na saúde e as discriminações e opressões sofridas por efeito desses fatores.
Os jovens quilombolas que fizeram parte do presente estudo trabalhavam na agricultura, uns estudavam nas escolas das comunidades ou da cidade, outros abandonaram os estudos por diversos motivos, sobretudo pela necessidade de trabalhar para ajudar na renda familiar.
Para a construção deste estudo realizamos uma pesquisa qualitativa de inspiração feminista, subsidiada pelo construcionismo social. A investigação feminista ilustra uma consciência dos investigadores acerca do seu papel e envolvimento pessoal na investigação. A partir dessa perspectiva fizemos uso da interseccionalidade de gênero, classe social e raça/etnia.
A noção de interseccionalidade teve sua origem junto as feministas negras norteamericanas, que questionaram o universalismo da categoria "mulher", abrindo caminhos para se teorizarem várias outras formas de se pensar o lugar das mulheres e as diferenças entre as várias mulheres, rompendo com a falácia da universalidade (Almeida, 2013).
Assim, Silveira e Nardi (2014) ressaltam que a interseccionalidade busca compreender as consequências da interrelação dos eixos de poder: gênero, classe, raça/etnia na constituição das estruturas e dinâmicas sociais. E ressaltam a importância de priorizar a experiência na forma como as pessoas vão se constituindo no jogo de forças a que estão expostas. Neste estudo o olhar interseccional nos convocou a considerarmos a diversidade de tramas que os marcadores sociais de diferenciação vão engendrando, e a repercussão no uso de álcool.
A presente pesquisa busca contribuir para a visibilidade da condição juvenil quilombola que mesmo sendo nas políticas públicas da juventude, considerada "população alvo", a exemplo do disposto pela Secretaria Nacional de Juventude-SNJ (2013) a existência do Programa Juventude Rural, de Inclusão Produtiva, Formação Cidadã e Capacitação para Geração de Renda para os jovens rurais, em especial, ribeirinhos, indígenas e quilombolas, temos visto que a efetivação das políticas ainda está longe de garantir uma existência digna para essa população.
É ressaltado por Leite, Macedo, Dimenstein e Dantas (2013) que a Psicologia ao longo dos anos voltou seu olhar quase que exclusivamente para as demandas da área urbana. Os moradores urbanos têm sido público de intervenção e de realização de pesquisas. Com as transformações que vêm ocorrendo no meio rural torna-se cada vez mais necessário a atuação do profissional de Psicologia nesse meio, as demandas são muitas: dificuldade de acesso à educação, aos serviços de saúde, violência, entre outras questões que chamam atenção para a importância do psicólogo se capacitar para atuar e realizar estudos nas áreas rurais, a fim de ter subsídios para intervir nesse meio. Nesse sentido, o presente estudo busca também contribuir a Psicologia, discutindo uma questão que se faz presente no meio rural, o uso de álcool, e que é um aspecto importante na compreensão da condição juvenil.
2. O uso de álcool nas comunidades quilombolas
Quando pensamos sobre o uso do álcool realizado entre os jovens quilombolas, população que faz parte deste estudo, consideramos importante recorrer à história para compreendermos como o álcool passou a ser utilizado nas comunidades quilombolas.
Os quilombos, como eram chamados antigamente, são uma das formas mais antigas de organização social brasileira, símbolo de resistência ao colonialismo. Hoje são chamados de comunidades remanescentes de quilombos. Pensar nos quilombos é lembrar de uma parcela da população que sofreu muito devido à condição de raça-etnia e classe social. é refletir também sobre um modo de vivência pautado no isolamento e na fuga. Embora, atualmente as comunidades remanescentes apresentem como principais características: a resistência e a autonomia. No entanto, ainda são invisibilizadas na sociedade de modo geral, e sofrem com o preconceito e discriminação que têm perdurado ao longo dos anos (Fernandes & Munhoz, 2013).
é relatado por Carlos Guimarães (2005) que a aguardente de cana e outros tipos de bebidas alcóolicas esteve presente integrando tanto a realidade dos quilombos quanto sendo responsável por sua inserção na dinâmica social. Isso se deu não só no âmbito interno, mas também nos seus mecanismos externos de reprodução, como o tráfico de escravos.
Ao lado de outros produtos utilizados como moeda na aquisição de escravos no continente africano, a aguardente teve importância fundamental, principalmente a partir da segunda metade do século XVIII. Os interesses conflitantes entre os produtores de vinhos destilados e os brasileiros (de aguardente) levaram a Coroa, em 1649, a proibir a venda de aguardente no Brasil, mas com duas exceções: a proibição não se aplicava a Pernambuco e o uso da bebida ficava restrito à população escrava, sendo permitida a produção apenas para consumo próprio. No entanto, essa medida não teve efeito, dada à impossibilidade de fiscalização (Guimarães, 2005).
Na realidade, a aguardente foi o produto que intermediou um amplo movimento, que tinha em sua extremidade a captura de povos inteiros para serem escravizados e, na outra, a exploração destes (já na condição de escravos). Assim, o produto teve um conteúdo político que remetia à intensa estrutura de dominação e exploração que se expressou tanto na empresa do tráfico quanto na sociedade escravista colonial (Guimarães, 2005). Podemos perceber como a questão social foi responsável pelo uso de álcool no contexto quilombola e continua sendo, a partir dos problemas que atualmente se fazem presentes nesse contexto e que podem repercutir no uso dessa substância, a exemplo de como já mencionamos aqui os fatores socioeconômicos.
Em relação à produção científica sobre jovens quilombolas e uso de álcool, realizamos uma busca no Portal da Capes, no Scielo (Scientific Eletronic Library, online) e na Biblioteca Virtual de Saúde-BVS, utilizado os descritores: jovens quilombolas e uso de álcool; juventude quilombola e uso de álcool e só encontramos o artigo referente à pesquisa já mencionada no presente estudo (Cardoso, Melo & Cesar, 2015), que foi realizada nas comunidades quilombolas da Bahia, abordando homens e mulheres entre 18 e 34 anos. Esse fato chama atenção para a importância de um olhar ampliado para juventude quilombola, visto que esta população muitas vezes não é considerada nas discussões sobre juventude rural. E aspectos como o uso de álcool é um fator importante na compreensão da juventude, pois é nesse momento da vida que geralmente ocorrem às primeiras experiências de consumo.
3. Interseccionalidade, juventude e uso de álcool
Refletindo sobre interseccionalidade Rodrigo e Ordaz (2012, p. 87) consideram a "la interseccionalidad como el efecto multidimensional de la confluencia de las formas de estratificación del género, raza, etnia, clase y otras categorias, y cuyas intersecciones se basan en relaciones de poder y que pueden dar como resultado relaciones de desigualdad".
As autoras referidas acima (Rodrigo & Ordaz, 2012) fazem uso da noção de interseccionalidade para debaterem sobre o uso de álcool e outras drogas, e ressaltam que essa perspectiva oferece uma base multidimensional para dar conta da complexidade desse fenômeno.
La aplicación de este enfoque interseccional al ámbito del estudio de los usos de drogas supone también analizar cómo los mecanismos de subordinación como el androcentrismo, el sexismo, el heterosexismo, el clasismo, el etnicismo, el racismo, entre otros, interactúan generando efectos únicos en las experiencias de los usuarios y usuarias de drogas. En esta dinámica, son especialmente decisivos la (re) producción y el reforzamiento de prejuicios y estereotipos sobre las personas y los grupos que usan drogas, generando nuevos procesos y relaciones de desigualdad. (…) Se considera igualmente los puntos de vista referentes a la familia, la salud o la moralidad asociados a los usuarios y usuarias de drogas, legitimando la criminalización y la medicalización de tales prácticas y de quienes las llevan a cabo (Rodrigo & Ordaz, 2012, p. 89).
Considerando os marcadores que produzem opressão e desigualdade, e como mencionado acima os efeitos destes na vida dos usuários de álcool, e assumindo a teoria da interseccionalidade como perspectiva para a compreensão deste fenômeno entre os jovens quilombolas, é possível pensarmos nos jovens e suas relações com o uso de álcool a partir das experiências vivenciadas. Considerando a heterogeneidade juvenil nas comunidades quilombolas, e as desigualdades sociais enfrentadas por eles.
Refletindo sobre a proposta de interseccionar categorias sociais para compreender a experiência da juventude, Mayorga e Pinto (2013, p. 106) chamam atenção para o fato de que
Interseccionar categorias (…) consiste em um exercício que não pode ser, como dito, uma simples somatória de elementos identitários como ser jovem + ser mulher + ser negra + ser favelada, como se tal movimento fosse suficiente para entender a juventude no plural. (…) devese considerar as tensões e hierarquias dentro do próprio campo da juventude. Pluralizar o olhar consiste, sim, em reconhecer diferenças, mas, sobretudo em identificar desigualdades entre os jovens, atentando e evitando dinâmicas estritamente diferencialistas que impediriam pensar a juventude como uma categoria transversal mais ampla. Isso também se faz importante, pois dentro do campo da juventude encontramos experiências que se antagonizam.
Compreender as experiências da juventude a partir de sua pluralidade é considerar as especificidades vivenciadas pelos jovens, e como as categorias gênero, classe, raça/etnia e outras, se articulam e definem experiências de ser jovem que são distintas (Mayorga & Pinto, 2013). E são justamente essas experiências que possibilita compreendermos porque jovens quilombolas do mesmo contexto têm práticas relacionadas ao uso do álcool diferentes. E também compreendermos os efeitos que os marcadores sociais incidem sobre os jovens que repercutem nos modos de se relacionar com o álcool. A seguir abordaremos os caminhos percorridos para a realização deste estudo.
4. Metodologia
O presente estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa, que foi construída através de dois momentos, em um período de três meses, de maio a junho de 2013. Faz parte de uma pesquisa realizada para a construção de uma dissertação na área de conhecimento da Psicologia. Realizamos o estudo junto aos homens e mulheres jovens rurais moradores de duas comunidades quilombolas, Castainho e Estivas, localizadas em Garanhuns/PE. E buscamos conhecer os significados do uso de álcool entre os mesmos.
As comunidades localizam-se na área rural do município de Garanhuns, interior de Pernambuco. A primeira comunidade Castainho, fica a 8 km da cidade, a via de acesso entre a cidade e a comunidade é uma estrada de barro, transitável por qualquer tipo de veículo. A comunidade Estivas fica próxima a Castainho. E existem mais quatro comunidades quilombolas que são mais distantes da cidade. Não há serviço de transporte público para as mesmas. Estas dispõem de alguns poucos equipamentos que não atendem ao quantitativo da demanda existente, escolas que funcionam só o ensino fundamental e uma Unidade de Saúde para as seis comunidades.
Na primeira etapa do estudo, realizamos observação participante nas comunidades. Estivemos em diferentes momentos com os quilombolas: nos bares, nas escolas, na Unidade de Saúde da Família, nas casas dos moradores, nas festas que ocorreram na localidade, o que nos possibilitou desenvolver a pesquisa a partir de uma orientação etnográfica.
Trad (2012) discute sobre o tempo de permanência do pesquisador no campo quando se utiliza de técnicas de observação e busca-se realizar uma etnografia. Diferente dos estudos clássicos de etnografias, atualmente algumas dificuldades de permanecer longo tempo realizando um estudo, a exemplo dos prazos das agências de fomento, prazos para conclusão das dissertações e teses, têm feito com que haja outro olhar para trabalhos que utilizam a técnica da observação. Assim a referida autora ressalta que o tempo para construção de resultados é algo relativo, que depende da intensidade e consistência das interações processadas entre pesquisador e informantes.
A partir dessa reflexão consideramos que as relações que estabelecemos com os participantes, a participação em diferentes momentos e espaços mencionados acima, nos possibilitou através desse período de permanência (3 meses), descrever e compreender o contexto das comunidades quilombolas que estavam sendo estudadas e realizar algumas reflexões sobre o uso de álcool entre os jovens.
Nesse processo de interações em campo é importante ressaltarmos algumas questões que Trad (2012) chama atenção e que consideramos nesse estudo. A interação no campo não é neutra, a presença do pesquisador interfere na vida dos participantes, daí a importância de estarmos atentos às contradições nas informações fornecidas por esses. Também estivemos atentas as nossas impressões e interpretações nas experiências e situações compartilhadas entre os quilombolas.
Na segunda etapa da pesquisa, que ocorreu no 3° mês que estávamos no campo, realizamos 20 entrevistas semiestruturadas com os jovens. O critério de inclusão para os participantes foi: jovens de ambos os sexos, morador de uma das comunidades estudadas (Castainho ou Estivas), ter idade entre 18 e 24 anos, podendo ser usuário ou não de álcool, que aceitasse que a entrevista fosse gravada e assinasse o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido-TCLE.
O critério de exclusão: jovem quilombola de outras comunidades, jovens fora da faixa etária especificada.
Os dados construídos através da observação participante que foram registrados em diário de campo e das entrevistas semiestruturadas, transcritas pelas pesquisadoras na íntegra, foram analisados a partir da interseccionalidade de gênero, geração, classe social e raça/etnia. Nessa perspectiva analítica buscamos observar nas vivências acompanhadas e nos discursos dos jovens como esses são constituídos em meio ao jogo de forças a que estão expostos. Como os marcadores sociais de modo relacional constituem os jovens e como repercutem no uso de álcool entre os quilombolas.
O estudo seguiu os procedimentos adotados para a realização de pesquisas com seres humanos. Foi aprovado pelo Comitê de ética em pesquisa, da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Número do parecer -CAAE- 13367213.0.0000.5208. As lideranças das comunidades quilombolas que constituíram o estudo, Castainho e Estivas, autorizaram nossa participação nas atividades das comunidades através da assinatura da Carta de anuência, e os jovens participantes através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido -TCLE.
Neste estudo, temos o intuito de não reproduzir concepções arraigadas e, por vezes, que estigmatizam as juventudes que fazem uso das substâncias psicoativas. Apresentaremos a seguir alguns dos significados do uso de álcool atribuídos pelos participantes do estudo.
5. Resultados e discussão
Em um estudo realizado por Fachini e Furtado (2012), os autores analisaram 32 artigos sobre as expectativas em relação ao uso de álcool entre homens e mulheres, jovens e adultos. Foi visto que uma das principais expectativas é o álcool funcionar como facilitador as práticas de sociabilidade, pois os efeitos produzidos pode desinibir, deixar as pessoas mais relaxadas, mais abertas as relações sociais. Os autores destacaram também que entre os homens existe uma maior diversidade de expectativas relacionadas ao uso de álcool do que entre as mulheres. O que podemos inferir que esse resultado pode ser decorrente de questões culturais, pois não é considerado um comportamento "adequado" para as mulheres em vários contextos fazerem uso de álcool.
Nas comunidades quilombolas estudadas vimos que várias situações motivam os jovens ao uso de bebidas alcoólicas: o uso relacionado à alegria, coragem, para se refugiar dos problemas, esquecê-los, lidar com sentimentos como o de raiva, de apaixonamento; como algo que facilitou mudanças na vida consideradas pelos jovens positivas; o uso devido à falta de outras possibilidades de diversão, entre outras situações, conforme o relato a seguir: "Bebo, a bebida dá alegria, que a pessoa não tem outra coisa pra se divertir, aí a bebida dá alegria" (Ghali1, M, 18 anos).
Esses dados nos remetem ao estudo realizado por Cavariani, de Oliveira, Kerr- Corrêa e Lima (2012) em que foi visto as expectativas positivas relacionadas ao uso de álcool entre jovens e adultos, e quanto mais expectativas existiam maior a frequência e o padrão de uso.
Observamos que o uso de álcool não acontece só no tempo livre dos jovens, quando estes não estão trabalhando ou estudando, mas que alguns fazem uso durante o trabalho, inclusive nos parece que até como um modo de encorajar-se para desempenhar atividades em locais que podem ocasionar algum risco à vida, como no relato a seguir em que o jovem diz beber antes de ir trabalhar em um mato cheio de cobra e escorpião:
- o caba que bebe se sente feliz, ô se sente feliz! Uma alegria só. Se tivesse uma grade de cerveja eu tava tomando aqui alegre, dançando. Sempre tem que tomar aquelas caninhas. Se o cara para morre se não para morre também, é assim, eu tenho que tomar uma dose, duas doses, quando eu vô trabalhar no matagal que tem ali, é sapo, escorpião, cobra, aí tem que tomar um pouquinho de cana antes de sair, e num frio desse, oxe! a cana tem que ir de lado (…) (Tedros, M, 22 anos).
O relato nos leva a refletir como a interseccionalidade de classe e gênero pode repercutir no uso de álcool. As condições de situações que são um risco a vida e que ele as enfrenta com o uso da bebida. Lima (2014) faz uma reflexão sobre os efeitos que as situações de classe ocasionam nos jovens brasileiros no mercado de trabalho. Alguns jovens de famílias de classes favorecidas economicamente podem retardar a entrada no mercado de trabalho, preparando-se em cursos de diferentes níveis. Já, os jovens pobres geralmente precisam trabalhar mais cedo ocupando empregos considerados ruins e mal pagos.
Outra questão é que beber é símbolo também de masculinidade, principalmente quando se é resistente à bebida. O homem que não sabe beber, que fica embriagado pode ser motivo de chacota, e sua masculinidade é também posta em jogo (Alves & Cantarelli, 2010). Assim, observamos que o jovem no relato acima afirma que vai trabalhar com a bebida de lado, e essa não impede de realizar suas atividades, ou seja, esse também pode ser um modo de falar sobre sua masculinidade, ao afirmar que sabe beber.
Na pesquisa realizada com mulheres rurais, por Monteiro et al. (2011), os autores também perceberam a relação do uso de álcool com as condições de trabalho. As participantes relacionaram a bebida como atenuante para as dificuldades diárias. O tipo de trabalho que desenvolvem, a prostituição e a quebra de coco, e os problemas no cotidiano familiar. E aqui podemos refletir mais uma vez sobre o quanto as questões de gênero e socioeconômicas têm efeitos no uso de álcool.
Alguns jovens afirmaram fazer uso de álcool para lidar com sentimentos como raiva, paixão, esquecer os problemas, como pode ser observado no relato a seguir: "Quando eu tô com raiva, eu bebo mesmo, bebo, bebo até esquecer tudo" (Randa, F, 21 anos). Sobre esse assunto, Silva, Santos, Silva, Leonidio, Araújo e Freitas (2014) ressaltam que o consumo de substâncias psicoativas como o álcool pode ser usado como uma busca de inibir sensações negativas através das sensações prazerosas que resolvem mesmo que temporariamente o mal-estar.
A situação relatada acima nos chama atenção, embora o relato apresente o uso de álcool com uma finalidade que ajuda lidar com algumas situações, não podemos deixar de ter um olhar cuidadoso para essas práticas. Visto sabermos que dependendo de como o uso é feito pode ocasionar repercussões negativas nas vidas dos jovens, a exemplo de adoecimento, dificuldade de conseguir emprego, se manter nos estudos, entre outras.
A influência cultural e social pode despertar o desejo de experienciar práticas como o consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas (Silva et al., 2014). O contexto cultural também está relacionado com os padrões em que o uso de álcool é feito e as diferenças desses padrões ou não entre homens e mulheres (Lima, 2014). Essas reflexões abordadas pelos referidos autores corroboram com os resultados encontrados no presente estudo.
Vimos que uma motivação para o uso de álcool é também o contexto favorável ao uso. Nas comunidades, beber é considerado pelos moradores uma prática comum, realizada por pessoas de diferentes idades, e em momentos diversos, a exemplo de como vimos acima, o uso no trabalho, também nas festas, em casa, em comemorações de nascimento, casamento, fim do plantio ou da colheita, em momentos de tristeza nos velórios à noite, entre outras questões.
Destacamos ainda, a existência de muitos bares na localidade, o que facilita o acesso às bebidas, como pode ser visto a seguir: "Bebo só pra me distrair mesmo, pra passar o tempo, pra relaxar, esquecer os problemas, essas coisas, não tem outro lugar pra ir, tem muito bar aqui, a cidade é distante aí é por isso, todo mundo bebe aqui" (Thembi, M, 19 anos).
A restrição de opções de lazer denuncia uma situação precária dessas comunidades e a invisibilização das mesmas na sociedade. A existência de outras opções poderia interferir na frequência de consumo. Evidencia também como as situações de classe social podem estar relacionadas com o uso, haja vista ser o modo de diversão acessível para os mesmos, ainda que precisem ter gastos financeiros com a bebida, esses são menores do que ir à cidade buscar outras formas de lazer e desenvolver meios de diversão nas próprias comunidades. Destacamos também a localização geográfica das comunidades, como um fator que dificulta o acesso dos jovens a possibilidades que a área urbana oferece. E a discriminação que os jovens afirmaram sofrer quando vão à cidade por serem negros e quilombolas.
é discutido por Cardoso, Melo e Cesar (2015) que a população negra é a que ocupa os piores cargos no mercado de trabalho. Residem, geralmente, em áreas com ausência ou baixa disponibilidade de serviços de infraestrutura básica e sofrem maiores restrições no acesso aos serviços de saúde e educação que quando ofertados são de menor qualidade e pouca resolutividade.
Jurema Werneck (2014) chama atenção para o cenário de desvantagens e subordinações que o racismo patriarcal produz e que as mulheres negras estão sujeitas. A autora aborda as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no que se refere às esferas da educação, do trabalho e das várias violências sofridas. E também chama atenção para a capacidade de agenciamento para a superação de barreiras que algumas mulheres negras têm se engajado na luta pela transformação social.
As desvantagens socioeconômicas, as relações de gênero, as questões raciais associadas a fatores individuais aumentam a probabilidade de início precoce do consumo de bebidas alcoólicas e de mudanças do padrão de consumo do álcool, bem como de iniciação ao consumo de outras substâncias psicoativas. Isso porque o álcool e as outras drogas são usadas com diferentes finalidades (Cardoso, Cesar & Melo, 2015). Conforme é possível observar nas discussões que estamos abordando neste estudo.
Encontramos jovens que consideram que a bebida proporcionou mudanças positivas em suas vidas como podemos observar a seguir:
- Melhorou um bocado minha vida depois que eu comecei a beber (risos) porque antes eu só ficava em casa, aí depois que eu comecei a beber, nós saí, vamos pra uma festa, pro bar, se diverte, ficou mais animada minha vida, pra mim é bom (Deka, 24 anos, F, casada).
Esse relato da vida ter mudado para melhor depois do uso de álcool é algo mais presente nos discursos das jovens, por mais que os jovens digam que beber é bom, que traz alegria, que se divertem, mas quando algumas jovens se referem às mudanças é como se o álcool funcionasse como um elemento favorecedor a saída do privado para o público. Cavariani et al. (2012) ao realizarem uma revisão da literatura sobre o tema em discussão observaram que o uso de álcool acontece de modo diferenciado entre homens e mulheres, pois o uso de bebidas pelas mulheres ainda é julgado de forma negativa e mais severa. Embora,
Cavariani et al. (2012) perceberam também que isso tem sido transformado, principalmente entre as mulheres jovens, devido às posições sociais que essas têm ocupado, trabalhando fora de casa e exercendo diversas funções.
Nas comunidades estudadas percebemos que existe uma diferença na percepção das jovens em relação às práticas de consumo realizadas entre homens e mulheres jovens, principalmente no discurso dos homens jovens quando o consumo de álcool é realizado pelas mulheres. O uso realizado por essas é aceito com restrições. Porque nos parece que, para alguns jovens, a questão não é as mulheres beberem, mas o lugar em que o uso de álcool é feito. Não acham "certo" mulher estar em bar bebendo. Vimos também que algumas mulheres, as que não fazem uso, não consideram que seja um comportamento adequado para as mesmas, que seja algo correto as mulheres frequentarem os bares.
No relato a seguir o jovem é casado, faz uso de álcool, mas quando se refere a sua companheira afirma:
Não, quero mulher minha no bar não, a mulher tem que ficar em casa, né lugar de mulher o bar não, cheio de homem. Eu não acho muito certo não mulher tá em bar bebendo. Porque os homens é normal né, aqui todo mundo bebe, trabalha e depois vai se divertir no bar (Tedros, M, 22 anos).
Em uma pesquisa realizada com os jovens em um munícipio da Zona da Mata de Pernambuco, Alves e Cantarelli (2010) encontraram nos discursos dos participantes, que o casamento representa uma significativa mudança na vida dos homens, pois há o aumento da responsabilidade, principalmente financeira, e uma diminuição na liberdade de ir e vir (precisam ficar mais caseiros).
Nas comunidades quilombolas temos observado que no que diz respeito à liberdade do homem de ir e vir, isso não é muito afetado com o casamento, como pôde ser visto no relato acima, o jovem é casado e afirma que não quer sua mulher no bar, mas os homens podem frequentar os bares e fazer uso de álcool onde querem. Percebemos assim, o quanto as desigualdades de gênero se potencializam nas práticas cotidianas. Podendo, inclusive as mulheres sofrerem violência caso não sigam os códigos de moralidade vigentes nas comunidades, a exemplo de ser casada e ir para os bares.
Esse posicionamento do jovem casado, que existem comportamentos para a mulher e para o homem diferenciados, também foi encontrado entre os jovens solteiros, como pode ser visto neste relato: "Já é feio um homem beber, e uma mulher, aí assim já é mal falada, aí você vê uma mulher bêbada assim como eu mesmo já vi, o que vão pensar dela" (Yerodin, M, 22 anos).
Essas questões remetem ainda ao fato de que algumas mulheres sempre fizeram uso de álcool na esfera privada justamente para não serem estigmatizadas e sofrerem violência por apresentarem alguns comportamentos em público. Prática que segundo o estudo realizado por Silva (2013) durante muitos anos ficou "escondida" no espaço do lar e que dependendo de como era realizado não produzia incômodos.
Na pesquisa realizada por Monteiro et al. (2011) algumas mulheres relataram que preferiam beber em família ou sozinhas, demostrando uma preocupação quanto à exposição social e preservação da autoimagem. Evitando assim, as críticas e julgamentos da comunidade.
Os julgamentos e as consequências que recaem sobre as mulheres usuárias de álcool em alguns contextos e dependendo também da posição que a mulher ocupe neste, ainda são muito presentes, conforme podemos observar nos relato abaixo o que um jovem afirmou: "Se fosse irmã minha eu não deixava não, porque uma moça que bebe, fica bêbada no chão, aí os meninos se aproveita, no outro dia saí à fama dela, porque os homem engravida não tem nada não" (Ayubu, M, 19 anos).
Além da reprovação ao uso de álcool realizado pelas mulheres, o jovem apresenta o posicionamento machista presente nas comunidades, através da manutenção de uma cultura androcêntrica que constrói papéis diferenciados para homens e mulheres, em que o homem tem autoridade sobre a mulher e a família.
6. Considerações finais
Observamos que os significados atribuídos ao uso de álcool são diversos e estão relacionados com as experiências dos jovens e os efeitos dos marcadores sociais, gênero, classe, raça/ etnia na constituição dos mesmos. Assim vimos jovens que fazem uso para enfrentar situações difíceis de trabalho, outros para lidar com estados emocionais desagradáveis. Há aqueles que para se divertir em encontro com os amigos devido às poucas possibilidades de diversão, entre outros.
Os jovens fazem uso de álcool em casa, nos bares nas comunidades, na área urbana (periferia) de Garanhuns, sozinhos, acompanhados pelos familiares e amigos, em diferentes momentos: festas, jogos, trabalho. Não negamos os aspectos culturais que circunstanciam o uso de álcool entre os jovens das comunidades estudadas. Por outro lado, consideramos que uma compreensão cultural separada de uma análise sobre seus efeitos sociais pode contribuir para a reificação das desigualdades que têm marcado a existência dos quilombolas.
O uso de álcool é uma prática cultural nas comunidades, mas não deixa de ser preocupante quando tomada como justificativa para a desassistência ou assistência moralista e autoritária a essa população, o que tem repercussão para a execução de projetos coletivos e individuais dos quilombolas.
A compreensão sobre o uso de álcool por jovens, em geral, tem favorecido programas preventivistas e moralizantes como forma de enfrentamento aos "perigos" dessa relação (juventude/álcool). Não se pode pensar em prevenção ao uso abusivo de álcool sem considerar o contexto no qual os jovens estão imersos, e para os quilombolas, em especial, a análise interseccional contribuiu para visualizarmos suas condições de existência marcadas pela ausência de atividades diversificadas de lazer, dificuldade em arranjar emprego, o preconceito sofrido por serem negros e/ou quilombolas, por morarem na área rural, em comunidades que são estigmatizadas, enfim, situações que repercutem no uso de álcool, e que revelam a importância de vários fatores estarem presentes nos programas de prevenção e promoção de saúde.
Buscamos com este estudo contribuir a construção de estratégias de assistência aos usuários de álcool e outras drogas, na elaboração e condução de um cuidado mais direcionado, abordando as necessidades dos usuários.
Outra questão que consideramos importante chamar atenção é que o uso de álcool durante muito tempo esteve obscurecido entre as mulheres e em alguns contextos ainda permanece, visto este ser considerado um comportamento masculino. No presente estudo observamos que muitas jovens fazem uso de álcool, algumas alegando que a vida inclusive melhorou depois do início do uso. Mas vimos também o quanto às mulheres que fazem uso são estigmatizadas nas comunidades, podendo sofrer violência de todos os tipos por apresentarem essa prática. Aqui consideramos uma das limitações do presente estudo, pois não chegamos a refletir junto as jovens o que faz com que essas façam uso de álcool nos bares, mesmo sabendo todas as consequências a que estão sujeitas, entre outras experiências silenciadas que o estudo não deu conta de visibilizar.
Consideramos que pesquisas que abordem o uso de álcool entre as mulheres são relevantes para compreender como acontecem as práticas de consumo entre as mesmas, quais os fatores relacionados, no intuito de contribuir a qualidade de vida dessas, uma vez que as condições culturais, socioeconômicas e de gêneros fazem parte da constituição do ser mulher.
Ressaltamos também a importância de estudos sobre a temática abordada serem desenvolvidos em comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas para que possamos ter dados para subsidiar novas pesquisas e a atuação prática de profissionais de diversas áreas do conhecimento, pois uma das limitações também do presente estudo, foi o pequeno quantitativo de produções científicas abordando a realidade dos jovens quilombolas e o uso de álcool para dialogar com nossos dados.
Notas
* Este artigo curto é baseado na pesquisa realizada para construção da dissertação de mestrado no programa de pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, realizada entre maio a julho de 2013. A pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal do Ensino Superior-Capes. área: Psicologia; subárea: Temas Sociais. "Você tem sede de que?" é um trecho da música Comida, do grupo de Rock brasileiro Titãs.
1 Ressaltamos que os nomes utilizados neste estudo são fictícios, a fim de assegurar o anonimato dos participantes.
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Referencia para citar este artículo: Amorim da Silva, R. & de Araújo Menezes, J. (2016). Os significados do uso de álcool entre jovens quilombolas. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 14 (1), pp. 493-504.