Introdução
O Sistema Socioeducativo representa a resposta do Estado brasileiro frente ao problema do adolescente envolvido com a criminalidade, inserindo-se no interior da doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro através do artigo 227 da Constituição Federal (Brasil, 1988) e reafirmada posteriormente pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990). Tal doutrina estabelece a criança e o adolescente como «pessoa em desenvolvimento» (Brasil, 1988, p. 133), inimputável enquanto menor de 18 anos, mas podendo responder pelo cometimento de ato infracional, definido como «conduta descrita como crime ou contravenção penal» (Brasil, 1990, p. 56), que garante a brevidade e a excepcionalidade em caso de privação de liberdade. Se verificada a prática infracional, o Artigo 112 do ECA prevê que a autoridade competente poderá aplicar, ao adolescente, as seguintes medidas: «I -advertência; II -obrigação de reparar o dano; III -prestação de serviços à comunidade; IV -liberdade assistida; V -inserção em regime de semiliberdade; VI -internação em estabelecimento educacional» (Brasil, 1990, p. 58).
A execução das Medidas Socioeducativas é regulamentada e operacionalizada pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) (Brasil, 2012b) que prevê o envolvimento de equipe multiprofissional funcionando em rede na construção metodológica do trabalho de responsabilização do adolescente face ao ato infracional. Para tanto, preconiza-se o envolvimento da família e da comunidade como coparticipes na garantia de direitos como educação, profissionalização, cultura, lazer e esporte. A equipe técnica interdisciplinar do sistema socioeducativo, composta por profissionais das áreas de saúde, educação e assistência social, com a participação efetiva do adolescente e de sua família, trabalha na construção do denominado Plano Individual de Atendimento (PIA), um «instrumento de previsão, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente» (Brasil, 2012b, p. 17).
Na cidade de Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, os adolescentes apreendidos pela polícia são conduzidos ao Centro Integrado de Atenção ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte (CIA/BH). O CIA/BH, visando oferecer um atendimento rápido e efetivo ao adolescente autor de ato infracional, congrega «Juízes de Direito, Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Delegados de Polícia, Polícia Militar e funcionários da Subsecretaria de Estado de Atendimento às Medidas Socioeducativas e da Prefeitura Municipal» (Prefeitura de Belo Horizonte, 2013, p. 37). Ou seja, trata-se de uma experiência na qual há uma integração das operações que compõem a apuração dos atos infracionais, assim como eventuais execuções de medidas socioeducativas ou protetivas, localizadas na Justiça da Infância e da Juventude.
Em parceria com o CIA/BH, foi desenvolvida a pesquisa «Curso de vida e trajetória delinquencial: um estudo exploratório dos eventos e narrativas de jovens em situação de vulnerabilidade» (Silva & Guerra, 2017), financiada pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinar da Universidade Federal de Minas Gerais e realizada por uma equipe transdisciplinar, composta por psicanalistas, sociólogos, educadores e assistentes sociais. Tal pesquisa consistiu na construção de um banco de dados com 373 PIAs, disponibilizados pelo CIA/BH, referentes à condução do processo judicial e institucional de adolescentes que se encontravam em cumprimento de medida socioeducativa no ano de 2016. Houve então uma busca ativa por estes adolescentes que, se localizados, eram convidados a narrar suas histórias de vida e a responder à uma entrevista semiestruturada.
Parte dos resultados desta pesquisa se refere ao caso de uma jovem que denominamos Cecilia, em homenagem à poetisa brasileira Cecilia Meireles. Nosso objetivo no presente artigo é o de apresentar e analisar, a partir da perspectiva psicanalítica, o caso de trajetória infracional desta jovem, uma vez considerada a escassez de trabalhos que tratam do envolvimento de meninas e mulheres com o crime e as dificuldades que estas enfrentam no cumprimento de medida socioeducativa. AcrediEm parceria com o CIA/BH, tamos que a análise crítica de sua trajetória infracional pode contribuir para o desenvolvimento qualitativo do atendimento socioeducativo às adolescentes.
Como aponta relatório do Conselho Nacional de Justiça (Brasil, 2015), acerca das adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa:
Sabemos pouco ou quase nada de quem elas são porque não há sistema de informação nacional (…), sabemos pouco porque os relatórios sobre sistema socioeducativo costumam não particularizar a experiência delas e, por fim, porque as pesquisas acadêmicas ainda são bastante centradas nos adolescentes em conflito com a lei, proporcionando pouco recorte de gênero. (Brasil, 2015, p. 207)
Ainda segundo o relatório, existem poucas unidades de internação feminina, sendo a maioria localizada nas capitais brasileiras, o que aumenta a distância entre as adolescentes e suas famílias e torna as visitas mais caras e raras. Os dados socioeconômicos reforçam o que ocorre no sistema penal, demonstrando um perfil de adolescentes pobres, predominantemente negras e periféricas. A maioria recebe medida por envolvimento com o tráfico de drogas, não possui passagens anteriores e aponta o desejo de exercer profissões de nível superior. Além disso, «é importante ressaltar que existem internações indevidas, pois decorrentes da prática de atos infracionais que não ensejam a privação liberdade. Em Pernambuco, há adolescente internada por desacato e ameaça» (Brasil, 2015, p. 19).
Ao tecer uma análise crítica do relatório mencionado acima, Souza (2018) destaca o despreparo das unidades em que as adolescentes estão inseridas, evidenciando a negligência do Estado diante das políticas públicas com recorte de gênero. Para a autora, as «meninas invisíveis» sofrem com o racismo e o preconceito advindos tanto da sociedade, quanto do próprio aparelho legislativo, «evidenciando que o cometimento de atos infracionais pelas adolescentes e as medidas socioeducativas aplicadas, sobrepujam os limites impostos pelas leis aplicadas pelo judiciário» (Souza, 2018, p. 160).
Oliveira et al. (2018) chegam a resultados semelhantes a partir de uma pesquisa-intervenção que procurou investigar os efeitos valorativos da questão de gênero no sistema socioeducativo. Paira sobre as adolescentes um duplo estigma: como adolescentes infratoras e como indivíduos do sexo feminino, o que se torna fonte de preconceito e discriminação de gênero. Assim, suas perspectivas e necessidades próprias são inviabilizadas diante de objetivos repressivos e sexistas, que se transformam em barreiras para a igualdade de oportunidades de desenvolvimento.
Na análise do caso de Cecilia foi possível destacar três elementos cruciais no seu movimento de vinculação e desvinculação com a criminalidade, a saber, a experiência de um abuso sexual, a convivência com a morte de parceiros e o enlaçamento à uma religião afrodescendente. Optamos pela análise de seu caso por considerar que este pode contribuir com o campo das medidas socioeducativas, em especial, ao atendimento às adolescentes, que demandam um recorte de gênero muitas vezes desconsiderado, seja nas políticas públicas, seja na produção acadêmica.
Aspectos metodológicos
Este artigo apresenta e desenvolve uma análise de caso de trajetória infracional de uma adolescente, extraída do escopo da pesquisa «Curso de vida e trajetória delinquencial: um estudo exploratório dos eventos e narrativas de jovens em situação de vulnerabilidade » (Silva & Guerra, 2017), financiada pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinar da Universidade Federal de Minas Gerais. Tal pesquisa teve início a partir da construção de um banco de dados, cedido pelo CIA/BH e constituído por 373 PIAs, de adolescentes que se encontravam em cumprimento de medida socioeducativa no ano de 2016.
A partir das informações cadastrais destes adolescentes, houve a tentativa de localização de seus endereços pessoais, a fim de convidá-los a compartilhar conosco suas histórias de vida, assim como a responder à uma entrevista semiestruturada. A escolha pelos endereços a serem visitados se deu através de amostra intencional (não probabilística), feita a partir da distribuição destes pelas regionais de Belo Horizonte, optando-se por localidades que congregassem o maior número de endereços, com menor distância entre estes. Ao total foram realizadas 109 visitas, entre os anos de 2018 e 2019, totalizando 200 horas de ida a campo, com uma média de 5 endereços visitados por dia de trabalho, distribuídos por 6 regionais.
As visitas aos endereços informados no PIA pelos adolescentes eram realizadas por uma dupla de pesquisadores, que informavam aos residentes que haviam sido guiados por um banco de dados e que gostariam de convidar o jovem a participar de nosso estudo, que tinha o objetivo de refletir acerca da relação adolescente com o crime. Caso aceitassem participar, eram localizados todos os procedimentos éticos necessários à realização de pesquisas com seres humanos, incluindo a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a não divulgação de nenhuma informação pessoal que pudesse identificá-los. Sendo importante destacar a aprovação de nossa pela pesquisa pelo Comitê de pesquisa e Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, o que pode ser averiguado pelo registro Caae: 89451118.3.1001.5149.
Nessa primeira visita, o jovem era convidado a construir uma Narrativa Memorialística, método que consiste na aplicação da seguinte pergunta disparadora: conte-me sua história de vida (Guerra et al., 2017). A resposta à essa pergunta era então gravada em formato de áudio, para posterior análise, tomando o cuidado para que sua fala não fosse interrompida ou direcionada de acordo com as expectativas da pesquisa. Esse primeiro momento tinha a intenção de uma fala livre, para que o jovem pudesse expressar as particularidades que o constituem.
Optamos pela utilização das Narrativas Memorialísticas, tributárias da literatura, pois partimos da perspectiva psicanalítica de que uma história não se constrói linearmente quando advinda da fala livre, a exemplo do método clínico freudiano. Em outros termos, apostamos que as Narrativas Memorialísticas se constituem enquanto um método suficientemente aberto para permitir o acesso às histórias dos sujeitos, incluindo seus pontos de ficção e de fixação, que enlaçam discurso e corpo na construção de uma narrativa que não é linear, mas segue as movimentações de cada subjetividade. Como apresentam Guerra et al. (2017), entendemos que a verdade tem a estrutura de uma ficção e, por isso, congrega em si as dimensões do real e do traumático, que não são passíveis de serem representadas como categoriais de pesquisa.
Numa segunda visita, realizada pela mesma dupla de pesquisadores, era realizada a aplicação de uma entrevista semiestruturada, com o objetivo de levantamento de dados mais objetivos acerca das diferentes trajetórias do jovem, quais sejam: trajetória familiar, escolar, dos pares, de trabalho, comunitária, infracional e judicial. Além disso, buscou-se também informações acerca das dimensões corporais de autoestima e afetos, da dimensão comportamental e de cultura digital/virtualidades. Para tanto, cada questão era lida por um dos pesquisadores, respondida pelo jovem, e anotada em espaço específico para tal pelo pesquisador. A partir deste recurso, procuramos fortalecer o caráter retrospectivo da investigação ao qualificar melhor os eventos, transições e rupturas que marcam as trajetórias dos jovens e adolescentes ao longo do seu ciclo de vida, desvelando seus nexos, movimentos e fatores condicionantes.
Entre aqueles que residiam no mesmo endereço e que se encontravam em casa no momento de nossa visita localizamos o caso que iremos tratar no presente artigo, de uma jovem que denominamos Cecilia. Tal jovem teve sua narrativa e entrevista semiestruturada conduzida por dois dos autores do presente artigo, sendo este material posteriormente analisado, em conjunto, por todos os autores. Mulher parda, solteira, com 21 anos no momento da pesquisa, que possui uma filha de 5 anos. Parou de estudar aos 15 anos, quando do nascimento de sua filha, mas retornou aos 16 e se formou no Ensino Médio. Mora atualmente com os pais, a filha e uma irmã mais nova. Seu pai, de 44 anos, estudou até a quinta série do Ensino Fundamental e atualmente trabalha com manuseio de escavadeiras. Sua mãe, de 47 anos, possui Ensino Técnico em Enfermagem e atualmente trabalha como cuidadora de idosos.
Escolhemos Cecilia por entendermos seu envolvimento infracional como um processo secundário, efeito dos atravessamentos realizados pela morte e pelo abuso sexual em sua vida, e não de uma vinculação direta aos ideais do crime, como dinheiro, busca por respeito dos pares e por independência financeira. Acreditamos que as particularidades de sua trajetória infracional podem contribuir para o desenvolvimento qualitativo do atendimento socioeducativo às adolescentes.
Diante disso, apresentaremos e analisaremos, a seguir, o caso de Cecilia, congregando os resultados obtidos a partir dos diferentes instrumentos utilizados: PIA, Narrativa Memorialística e entrevista semiestruturada. Por direcionarmos nossa análise a partir da perspectiva psicanalítica, daremos ênfase à narrativa e à compilação de trechos de fala da jovem, mas sem desconsiderar as influências sociais, políticas e contingenciais que intervêm em sua trajetória infracional. Podemos localizar, em sua trajetória, três elementos importantes: o trauma do abuso sexual na infância, o testemunho da morte dos jovens parceiros e a busca de novas conexões através da religiosidade. Elementos que nortearão nossa análise do caso.
Descrição do Caso
Cecilia e o abuso sexual: um traumático persistente
Nossa jovem Cecilia, em um momento posterior à gravação da Narrativa Memorialística, confidencia à dupla de pesquisadores presentes uma experiência de abuso sexual na infância. Diante disso, somos capazes de relacionar tal acontecimento com os demais eventos significativos de sua história de vida, assim como às indagações realizadas durante a gravação da narrativa: «Nossa, nem sei como é que eu falo, como é que eu vou falar… Muitas pessoas vão ouvir?»
Cecilia é uma jovem que sofreu abuso sexual quando criança, mas não revelou o fato ocorrido aos pais ou familiares, pois não sentia a segurança necessária da família e não dispunha de uma rede de apoio para ampará-la. Somente após a morte de seu algoz ela foi capaz de tornar público, entre os pais, os abusos sofridos. Diante de tal revelação, estes decidem se mudar de estado, optando por uma vida em Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, para recomeçar.
Segundo Assis e Constantino (2001), é comum nas narrativas das meninas envolvidas com a criminalidade o relato de abuso sexual, abandono e violência familiar. Assim, um elemento recorrente no caso das meninas envolvidas com a criminalidade parece ser a vulnerabilidade dos laços de apoio. Almeida (2006) nos oferece um elemento interessante para pensar a vulnerabilidade, pois considera como um fator índice a fragilização dos vínculos afetivo-relacionais e de pertencimento social. Assim como Castel (1997), que apresenta a possibilidade de pensar a vulnerabilidade a partir da fragilidade do vínculo social antes de sua ruptura. O autor usa o termo desfiliação para pensar no indivíduo que deixa de pertencer a alguma rede social, o que nos remete a algo rompe com o pacto social e rasga o tecido social de acolhimento do sujeito, produzindo, pois, uma dificuldade na identificação de referências.
Essa ruptura materializada pelo abuso sexual pode produzir, na menina abusada, comportamentos que denotam a presença de uma situação traumática, violadora de direitos e desejos, como isolamento, retraimento e medos. É o que demonstram Arpini et al. (2012), que coletaram e analisaram o olhar das adolescentes para com o trauma do abuso sexual. Segundo os autores, tal situação de abuso será sempre traumática, sendo importante destacar como o silêncio contribui para sua manutenção, uma vez que este intensifica a relação ameaçadora e culpabilizadora entre autor e vítima. O adulto que deveria estar na posição de protetor, coloca a criança no lugar de objeto. Por isso é tão difícil falar sobre o abuso sexual. Como apontam Arredondo et al. (2016), quanto maior a complexidade do abuso (intrafamiliar, crônico, com penetração e/ou parte de uma polivitimização), menos frequente e de maior latência é a divulgação.
Maldonado e Cardoso (2009) retomam, na lógica das narrativas, sua dimensão de obstáculo ao tudo narrar, o que constitui um paradoxo, dado que as narrativas se mostram necessárias, porém impossíveis. A dimensão da necessária impossibilidade está associada à experiência traumática, que se refere à um acontecimento caracterizado por uma intensidade exacerbada de excitações psíquicas, que excede a tolerância do indivíduo, assim como sua capacidade de elaboração psíquica. Como explicitado por Azevedo e Brandão (2019), trata-se de «uma vivência que, no espaço de pouco tempo, aumenta demasiadamente a excitação da vida psíquica, de tal modo que a sua liquidação ou a sua elaboração pelos meios habituais fracassa, acarretando perturbações duradouras no funcionamento energético» (p. 9). Ou seja, podemos dizer de um acontecimento que deixa marcas indeléveis na memória, mas que possui um estatuto próprio, uma vez que ultrapassa a capacidade de apropriação-representação do vivido. Além disso, com a segunda tópica freudiana, vemos como o trauma envolve ainda a reedição da experiência desprazerosa enquanto pulsão de morte, na qual o excesso traumático, não sendo traduzido pela linguagem, produz a sensação de estranhamento no retorno engendrado pela repetição, dado que irrepresentável (Freud, 1920/1996b).
Diante disso, podemos pensar na dificuldade do sujeito em falar sobre o abuso sexual que sofreu, como pode ser visto na ideia de narrativas «simultaneamente impossíveis e necessárias, nas quais a memória traumática, apesar de tudo, tenta se dizer» (Gagnebin, 2006, citado por Maldonado & Cardoso, 2009, p. 46). Existe uma condição de literalidade própria da rememoração do momento traumático, que resulta de seu excesso de realidade, tornando inviável a tentativa de representá-lo por meio de metáforas (Seligmann-Silva, 2000). Coloca-se, assim, para aquele que viveu a experiência traumática, o paradoxal trabalho de narrar o intransmissível.
A partir da perspectiva psicanalítica, não podemos dizer de algo que seja «verdadeiro » simplesmente a partir da noção de uma consciência que deduz a realidade a partir dos dados resultantes de sua sensibilidade. Como demonstram Lagoas e Chatelard (2019), o aparelho psíquico, desde o seu surgimento no bebê, possui um funcionamento alucinatório, o que o impede de estabelecer um critério que permita reconhecer a irrealidade de algumas percepções, mas que, por outro lado, é o que permite a presença do desejo, da intencionalidade. Assim, pode-se concluir que o que se recorda não corresponde exatamente aos acontecimentos, a lembrança é consequência de um intrincado processo de inúmeras retranscrições, entendendo que o passado é ressignificado a partir das vivências atuais. «A verdade» não estaria então localizada num oculto que aguarda por ser desvelado, mas enlaçada no discurso, no momento de narrar (Maldonado & Cardoso, 2009, p. 51).
Quando pensamos na memória traumática, estamos diante de uma dimensão que se repete, não se modifica e não pode ser inscrita. Na lógica freudiana, retomada por Maldonado e Cardoso (2009), a intensidade ganha uma apresentação -e não representação psíquica- que não se retranscreve, permanecendo isolada. A experiência posterior, representada como lembrança, ativa essa primeira apresentação como impressão psíquica -no sentido de se imprimir, fazer uma marca-. Com isso, o momento do trauma estaria localizado no entrecruzamento de vivências, mas que não se equivaleria ao mero traço de memória. O trauma apresenta uma relação de exterioridade com a linguagem, ele não se inscreve como marca simbólica, mas sim como uma experiência real que invade o sujeito como uma revivência, uma repetição da cena.
Segundo Reis (2004), as cicatrizes do evento traumático instalam um eterno presente, dificultam a movimentação no tempo. Assim, a temporalidade do trauma acentua o sentimento de urgência, o imediatismo, uma presentificação dolorosa. Ou seja, um acontecimento que não se inscreve como passado, posto que não pode ser esquecido, mas retorna sob a forma de repetição dolorosa. O que pode ser notado na narrativa de Cecilia a partir da repetição de falas que demonstram uma necessidade de se dizer algo que não se sabe como dizer: «-Não sei como falar da minha história de vida.» «-É uma coisa complicada, não sei como falar.» «-Eu não sei como que eu vou contar a minha história ». «-A gente passa por tanta coisa né? Que a gente não tá preparada pra contar a verdade.» «-Nossa, nem sei como é que eu falo. Como é que eu vou falar?»
A noção paradoxal, portanto, de uma narrativa impossível, mas necessária, recai sobre a importância da função do outro no método das narrativas memorialísticas. Ao ser deslocada em direção ao interlocutor, o impossível encontra escuta, o que abre a possibilidade de mobilização desse afeto retido na impressão, na marca. Trata-se da abertura do inominável, acolhendo o silêncio e a interrogação que o circuito da palavra provoca. Desta forma, o trauma coloca o paradoxo da impossibilidade de representar, por ser uma força viva, e de outro lado, a necessidade de circunscrever alguma representação através da narrativa memorialística.
A violência sexual pode ser de difícil detecção, pois pode não apresentar vestígios físicos passíveis de serem constatados em exames de corpo de delito, além do fato de crianças pequenas não serem capazes de relatar as violências sofridas. Lembramos que o trauma é construído no ato da lembrança, quando o desenvolvimento afetivo-sexual do sujeito permite-lhe compreender a vivência do abuso sofrido na infância ou na adolescência. Nesse sentido, a Lei Federal Brasileira 12.650 de 17 de maio de 2012, Lei Joanna Maranhão (Brasil, 2012a), pela capacidade perceptiva dos legisladores, alterou o Código Penal (Brasil, 1940) ao estabelecer que o tempo de 20 anos para a prescrição do crime de abuso sexual começará a ser contado a partir da data em que o abusado completar 18 anos, presumindo-se que houve a compreensão da violência sofrida num momento posterior. Nas palavras de Cecilia:
Eu, desde pequena, desde muito pequena, eu passei por muita coisa, muita coisa que precisava de muita aprovação, e que precisava... precisava que eu pudesse perdoar e me perdoar ao mesmo tempo, mas eu não sei se eu tô preparada pra contar isso… é complicado...
Segundo Boletim Epidemiológico (2018), da Secretaria de Vigilância em Saúde, no período de 2011 a 2017, foram notificados 184 524 casos de violência sexual, sendo 31.5% contra crianças e 45% contra adolescentes, totalizando 76.5% de todos os casos notificados.
Além disso, ainda considerando o período de 2011 a 2017, observou-se «um aumento de 64.6% e 83.2 % nas notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, respectivamente » (p. 3). Entre as vítimas, encontramos que 74.2% eram do sexo feminino, 51.2% tinham idades entre 1 e 5 anos, 45.5% eram negros e 3.3 % possuíam algum transtorno ou deficiência. Sendo importante destacar que estes são dados de notificações, ou seja, são condicionados à procura pelos estabelecimentos de saúde.
Tais dados estatísticos, apesar de englobarem apenas casos notificados, já demonstram a importância de trazer à tona um assunto que ainda se apresenta enquanto um tabu social, o que dificulta, sobremaneira, a construção de narrativas impossíveis, mas necessárias, por parte daqueles que foram violados. No caso de Cecilia este contexto não foi diferente, o que pudemos notar a partir de uma pergunta da entrevista semiestruturada, na qual ela diz da visão que a família tem sobre ela: «Acho que eles me veem como louca». Nesse sentido, nos questionamos como construir um laço possível, para além do estigma social, que seja capaz de acolher o silêncio do não-dito que se presentifica no traumático?
Aqui se faz ímpar a percepção de como Cecilia constrói sua narrativa de maneira a evitar e, até mesmo, a bordejar, o trauma. Ou seja, enquanto o gravador está ligado e Cecilia narra a partir da tentativa de contar sua história de vida, o ponto do abuso sexual sofrido na infância não é mencionado. Porém, este se presentifica gerando um vazio que se manifesta na fala de Cecilia a partir da repetição de que não sabe como contar sua história: «-Eu não sei se eu tô preparada pra contar isso.» «-Eu não sei, como que eu vou contar a minha história?» «-Eu nem sei mais o que falar». Assim, temos a percepção de que o tema do abuso, ainda que relatado apenas após a gravação da narrativa, deixa marcas profundas que se fazem sentir em outros momentos de sua fala, como na falta de perspectivas futuras, concomitantemente à desorientação com relação ao passado e à sua dificuldade de representação.
De acordo com os dados lançados no PIA, Cecilia foi encaminhada ao CIA/BH por prática de ato infracional análogo ao crime de uso de entorpecentes, art. 28 da Lei 11.343 (Brasil, 2006), recebendo, como medida socioeducativa, liberdade assistida. Assim, diante da infração cometida e do histórico de violência sexual de Cecilia, nos perguntamos se não seria o caso de um investimento em proteção, antes de uma criminalização, como apontam Leal e Macedo (2019, p. 214) ao demonstrar «o quanto as instituições que deveriam assumir caráter protetivo transformaram-se em instâncias de controle, de adestramento do sujeito, combinadas com uma realidade maior de exclusão».
É o que aponta também Andrés-candelas (2016) a partir de uma revisão crítica da construção do espaço social ocupado por crianças e adolescentes excluídos ou «perigosos ». Segundo o autor, até mesmo instituições que visavam proporcionar bem-estar a crianças desprotegidas, contribuíram antes para o contrário, aprofundando sua estigmatização e negando seus direitos mais básicos. Diante disso, fazemos coro à Ávila-Navarrete (2017) e à Arpini et al. (2012) ao acreditarmos no fortalecimento da rede de atendimento, a partir de um trabalho coordenado, articulado e competente entre os vários profissionais, além do reconhecimento familiar de sua corresponsabilidade, permitindo a elaboração da situação traumática ocasionada pela distorção relacional.
Cecilia na roda da vida: Gravidez e morte
Uma gravidez não planejada aos 15 anos fez Cecilia adentrar a vida adulta de forma brusca. Em suas próprias palavras, «15 anos é o mundo da gente, então, abandonar a adolescência pra poder criar um filho foi bastante difícil». Além de deixar para trás a vida de adolescente, ela também precisou abandonar temporariamente a escola. Apesar de ter retomado os estudos e ter seguido adiante em um curso profissionalizante, nota-se o afastamento das ruas e a predominância do tempo vivido em casa, tanto no período em torno da gravidez quanto à época da sua participação na pesquisa.
A partir da ruptura com a adolescência, das responsabilidades da maternidade e da espera para exercer sua profissão, Cecilia sente o fardo de ocupar uma posição social precária e distante de ideais de vida comuns. Assim como a mudança de cidade a privou, por exemplo, de «ter um melhor amigo de infância», hoje ela relata que «todo mundo tem um propósito, um sonho, alguma coisa pra se realizar e eu não me sinto realizada pelo que eu tenho e não tenho nada em mente ainda».
As dificuldades em ser mãe tão jovem se somam à perda do pai da criança, de forma violenta e precoce. Em sua narrativa, Cecilia relata: «o pai da minha filha morreu quando ela tinha 2 anos. Foi difícil pra ela né? Pra ela, pra mim, pra todo mundo». O rapaz, que estava na garupa de uma moto suspeita de ter sido roubada, foi morto por um policial e Cecilia faz questão de apontar a desproporção da violência do evento ao salientar que «o policial matou ele com dez tiros».
Além disso, de forma singular, Cecilia acumulou outras perdas. Um bebê que nasceu prematuro e não sobreviveu, quando já era mãe, e um outro namorado que foi baleado, mas morreu por traumatismo craniano. Na narrativa, ela conta: «Parece um carma, mas ele morreu. Ele morreu nem foi pelo tiro, não, ele saiu correndo e bateu a cabeça no chão, faleceu. Ele tinha apenas 21 anos e era no dia do aniversário dele». Este namorado, embora não contasse com a aprovação da família de Cecilia, foi quem assumiu a paternidade de sua filha, inclusive de forma legal.
A trajetória de Cecilia, ainda que repleta de particularidades, compartilha elementos comuns com a história de vida de outras meninas que se envolveram com parceiros ligados ao crime e que tiveram destino trágico. Essas adolescentes que perderam muito cedo seus parceiros, por vezes namorados, mas também pais de seus filhos, vivenciam uma mudança abrupta de papel que as coloca no lugar de «jovens viúvas», tal como descrito em Marinho (2004, p. 8). Diversas vezes, trata-se de meninas que cresceram em uma família nuclear, mas tiveram pouca orientação sexual. No caso de Cecilia, percebemos tal lacuna nas informações relatadas na entrevista semiestruturada, de ausência de prevenção de gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis.
A entrada precoce na maternidade e o consequente abandono dos estudos é uma realidade comum e reflete tanto a causa quanto o efeito das menores chances de escolarização e mobilidade social. Segundo Diniz (2013), o menor controle sobre a reprodução e as responsabilidades nos cuidados com os filhos pequenos resulta na limitação das possibilidades de ascensão social.
Além da trajetória familiar, Cecilia compartilha com outros casos de «jovens viúvas », ou de meninas que conviveram com gangues em bairros com altos índices de criminalidade, o contato precoce e imediato com a violência e a morte (Marinho, 2004). Seja pela violência que acompanha o crime, em acertos de contas ou confrontos com policiais, seja pela banalização produzida pela reiterada experiência da morte e da exposição dos corpos em vias públicas.
Percebemos, portanto, um percurso comum a muitas mulheres jovens habitantes da periferia, no qual o trânsito entre a vida doméstica e a vida pública se inicia na adolescência, através do relacionamento com rapazes envolvidos com o crime, da experiência das ruas, do uso de entorpecentes, passando ou não por algum ato infracional (Diógenes, 2003). Ao mesmo tempo, a maternidade precoce as devolve à vida privada, seja pela necessidade dos cuidados de si e da criança, seja pela nova posição, estigmatizada, de mãe adolescente e solteira (Marinho, 2004). Porém, Cecilia sonha em retornar à vida pública através da educação e do trabalho, alternativa que nem sempre está disponível para as mulheres das classes menos favorecidas (Bourdieu, 2014). Como demonstra Wachelke (2018), as condições de existência da adolescência no capitalismo contemporâneo acarretam «a necessidade de definição da situação pessoal nas forças de trabalho, seja durante ou logo após a vida escolar» (p. 925).
Dessa forma, vemos uma Cecilia que conseguiu retornar para os estudos e, até mesmo, alçar um nível técnico, mas ainda sem um vislumbre de possibilidade de exercer a nova profissão. Esta relata que nunca trabalhou como técnica de enfermagem, mas é o que espera para seu futuro. Concomitantemente, uma outra dimensão desponta como alternativa à vida privada, a da religião. A partir dos dados coletados na narrativa, no PIA e na entrevista semiestruturada, não é possível refletir sobre o trabalho de luto (Freud, 1917/1996a) da jovem em relação às mortes dos parceiros e filhos. Todavia, acreditamos que a vinculação com o espaço religioso pode funcionar como um contorno para o trauma do encontro com a morte. Nesse sentido, consideramos importante pontuar o espaço religioso como um lugar de encontro e de aposta, no qual ela se sente amparada e acolhida, envolta por elementos psíquicos e sociais que discorreremos a seguir.
Aposta e novas filiações: a saída pelo Candomblé
O último ponto que gostaríamos de destacar sobre o caso Cecilia é o vínculo que esta demonstra com a religião afro-brasileira denominada Candomblé, refletido na figura da «mãe de santo», a líder do grupo que ela frequenta. A partir deste encontro ela se define, «sou candomblecista», o que demonstra a construção de laços sociais como tratamento do trauma sexual e das mortes que a marcaram. Nas palavras de Cecilia:
Bom, o meu dia a dia é tranquilo. Nas terças-feiras eu vou pra casa da minha Mãe de Santo (…). Ela é uma boa mãe de santo, ela aconselha, é mais que uma mãe de santo, é uma amiga muito especial. É uma mãe, é uma amiga, é uma companheira. Ela tem outro território também, (…) e às vezes eu vou pra lá, e tem muitas pessoas jovens da minha idade também, que estão no meio, sabe? Ah, é muito legal, eu gosto...
Como demonstram Ribeiro e Minayo (2014), a partir de uma revisão de literatura, o processo de conversão religiosa tem papel relevante na mudança de posicionamento daqueles às voltas com o crime ou a violência, se tornando, para muitos, um modelo de transformação de vida. Nos espaços empobrecidos das periferias urbanas os centros religiosos passaram a se adaptar, a "m de incluir ações ditas de proteção a essa população, como trabalhos sociais, educativos, profissionalizantes e de inclusão no mercado de trabalho. A conversão se traduziria, então, numa proposta de integração social, de cidadania, a partir da qual estes sujeitos encontrariam a possibilidade de uma vida sem estigmas:
Em seus testemunhos, eles, os ex-bandidos, pecadores, resgatados da morte, afirmam ter ganhado merecidamente a densidade social e moral que lhes faltava. E é deste lugar que reclamam por reconhecimento, o qual está longe de ser de natureza «puramente» religiosa. (Birman & Machado, 2012, p. 64)
Dessa maneira, mais importante do que discutir a dicotomia entre conversão verdadeira ou falsa, é analisarmos como a adesão a uma religião pode, no mínimo, funcionar como uma estratégia de sobrevivência. Como afirmam Ribeiro e Minayo (2014): «Nesses ambientes, frequentemente, as igrejas ou os templos religiosos são tidos como lugares de refúgio, locais sagrados que oferecem proteção aos seus membros» (p. 1785). Ou seja, não se trata apenas de promover reabilitações, mas de garantir os elementos necessários à manutenção de uma identidade não criminosa que seja reconhecida e respeitada por aquela comunidade. Desde a promoção de certa estabilidade psíquica, até a indicação para se conseguir um emprego, estes sujeitos passam a ter acesso à uma espécie de supor-te que os mantém de pé, no caminho a ser trilhado. Nas palavras das autoras: «Praticar uma religião contribui para diminuir a vulnerabilidade a estressores, provém sentido e coerência de vida e dá acesso a uma rede de pessoas que atua como apoio social» (Ribeiro & Minayo, 2014, p. 1783).
Ao analisarmos o perfil do jovem brasileiro percebemos que a participação em grupos religiosos dispara na frente de qualquer outra participação social, como espaços esportivos, associações, entidades ou partidos políticos. É principalmente por meio do grupo que as ações religiosas se concretizam e se intensificam, fazendo com que o reconhecimento interno seja mola propulsora na busca de ampliar seus espaços de atuação e de disseminar os valores compartilhados, levando a certa participação política (Dias, 2013). Assim, por meio da sustentação de regras, normas e valores comuns, o grupo garante uma coesão moral e certo controle social, que impede ou minimiza os comportamentos delinquentes (Ribeiro & Minayo, 2014).
Nesse sentido, podemos pensar não apenas do ponto de vista social dos fenômenos de conversão e abandono do crime, mas de como estes parecem se traduzir também em estabilidade psíquica e saúde mental. Huculak e McLennan (2010), em um estudo na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor com adolescentes de 12 a 17 anos que aguardavam a decisão judicial de seus casos, demonstraram uma correlação positiva entre religiosidade e elevados estados de saúde mental. Além disso, muitos adolescentes religiosos relatavam maiores índices de paz, conforto ou harmonia. Assim como Ribeiro e Minayo (2014), que observam em sua revisão de literatura como «a religião contribuiria para diminuir a vulnerabilidade a estressores provendo sentido e coerência de vida, e teria papel relevante nas expectativas de futuro e na promoção da esperança e da motivação para a mudança» (p. 1782).
Porém, ao dizermos de adolescentes e jovens negros e de religiões de matrizes africanas, se faz preciso considerar todo o contexto histórico e sociocultural que imprime contornos específicos ao fenômeno. Nesse sentido, o processo de abolição da escravatura e seus desdobramentos ao longo da história possui elementos e características únicas, no que se refere à realidade brasileira. Desde o total desamparo a que foi lançada a população negra na situação de libertos, até o cenário atual, no qual a maior parte das pessoas presas ou mortas por arma de fogo no Brasil é negra, se reafirma um projeto de embranquecimento e recalcamento da cultura africana.
Como demonstra Fernandes (2008), a transição do período de castas para uma sociedade de classes no Brasil teve no negro e no mulato a expressão de um desequilíbrio social, já que estes não possuíam as habilidades biológicas, psicológicas e culturais que permitissem sua adaptação ao novo regime como um trabalhador livre. Todo o processo se orientava, de fato, para que houvesse uma substituição do escravo pelo branco, representado principalmente pelo imigrante europeu, considerado o agente natural do trabalho assalariado. Como não houve qualquer tentativa de reparação social a fim de proteger o negro, enquanto pessoa e grupo, restava a este aceitar a posição de escória do operariado ou «se abater penosamente, procurando no ócio dissimulado, na vagabundagem sistemática ou na criminalidade fortuita meios para salvar as aparências e a dignidade de "homem livre"» (Fernandes, 2008, p. 44).
Concomitantemente, a criação de um aparato ideológico permitiu a introdução de um estereótipo que justificasse a exploração e a opressão de um grupo humano pelo outro, já que o direito não sustentava mais essa garantia. Como expressa Luz (2010), no tocante ao negro, «há um tremendo esforço para desculturalizá-lo e representa-lo como boçal, rude, primitivo e atendendo aos demais níveis: animal» (p. 23). A partir disso, se faz claro como a população negra modifica sua condição de escrava, mas ainda não é capaz de se enquadrar nos termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos, tornando-se, nos termos de Butler (2017), vidas precárias não passíveis de luto.
Transcorridos 130 anos desde a efetivação jurídica do fim da escravidão os reflexos desse processo ainda se mostram bastante expressivos, como no fato de que a maioria das pessoas presas no Brasil são negras, cerca de 64 % segundo dados oficiais (Brasil, 2017). Porém, a desigualdade racial brasileira se mostra ainda mais expressiva no tocante à concentração de homicídios na população negra, duas vezes e meia superior à de não negros, tendo crescido 23.1 % entre 2006 e 2016, com redução de 6.8 % no mesmo período em relação aos não negros (Brasil, 2018).
Diante deste contexto, a "m de alcançar o reconhecimento social de que representam vidas que não podem ser destruídas ou sistematicamente negligenciadas até a morte, a população negra se volta à um projeto de embranquecimento e apagamento de suas raízes culturais. Nas palavras de Fanon (2008): «É porque o preto pertence a uma ‘raça inferior’ que ele tenta assemelhar-se à raça superior» (p. 179). Além disso, a isso a ideologia do mestiçamento e do sincretismo podem ser consideradas formas de mascarar o sistema cultural negro ao propiciar a criação de uma terceira via, a chamada cultura brasileira ou popular (Luz, 2010).
Neste processo, a religião negra ocupa um papel predominante, pois representa o melhor transmissor dos valores essenciais da cultura originariamente africana: «Em relação ao processo cultural, a religião é fonte e dinamizadora de um ethos, indicadora de comportamentos, hábitos, em fim, de uma maneira negra de ser» (Luz, 2010, p. 81). Como demonstra Cunha (2014), nas décadas de 1980 e 1990, as religiões de matrizes africanas como a Umbanda e o Candomblé possuíam representantes e lugares de culto abundantes nas favelas do Rio de Janeiro, mas começaram então a passar por um processo de apagamento e cerceamento advindos do Estado.
Segundo a autora supracitada, «a repressão aos centros era uma perseguição à religiosidade negra e pobre» (Cunha, 2014, p. 71), pois terreiros protegidos por intelectuais da elite local podiam ser alçados ao status de religião. Já aqueles localizados nas favelas não tiveram muita alternativa a não ser fechar as portas, abrindo caminho para a proliferação de igrejas evangélicas que imprimiram um novo modo ser local. Como resultado, verificou-se a reafirmação da relação entre bandidos e Exu, ou demais entidades afro, assim como entre policiais e Jesus, num processo de recalque da cultura negra em prol da valorização da moral cristã.
Diante desse cenário, se faz importante destacar como a conversão à religião pode desempenhar um papel importante na desistência do crime, mas a reafirmação da cultura negra, a partir da adesão às religiões afro, representa um modo de resistência às tentativas de embranquecimento, sustentando um movimento de valorização de si e da própria origem.
Considerações Finais
A história de Cecilia é atravessada pela violência sexual, pelo assassinato de parceiros e pela maternidade precoce. Verificamos que o ponto chave para o desenrolar da sua trajetória de vida é o abuso sexual sofrido na infância. Percebemos ao longo de sua narrativa a dificuldade em abordar o assunto, afirmando, por vezes, que não sabia como contar a sua história e se preocupando se muitas pessoas iriam ouvir a sua narrativa. Portanto, o abuso sofrido na infância, e revelado após a morte do agressor, pode ter desencadeado dinâmicas sociais e psíquicas experienciadas pela jovem, como a mudança de estado, a falta de perspectivas para o futuro e o enlace com o Candomblé. A sua trajetória infracional está associada a vínculos instáveis e frágeis, acrescidos da vivência de elementos estressores, como maus-tratos e abusos, ou seja, falta de laços de apoio.
Outro elemento fundamental na análise da trajetória da jovem são as mortes que marcaram a sua adolescência, Cecilia teve parceiros ligados ao crime que tiveram um destino trágico, inclusive o pai da sua filha. A gravidez na adolescência retrata os diversos casos de meninas que cresceram em uma família nuclear, mas com pouca orientação sexual. Por fim, ressaltamos ainda a aposta em novas filiações, com seu ingresso no Candomblé, como válvula de escape de uma realidade social pesada que lhe foi imposta desde muito cedo.
Diante da análise deste caso, destaca-se a necessidade de políticas públicas preventivas para intervir no início da vitimização dos grupos mais vulneráveis, antes da intensificação da trajetória infracional. Além disso, se faz necessário o fortalecimento da rede de atendimento, a partir de um trabalho coordenado, articulado e competente entre os vários profissionais e a família dos adolescentes, permitindo a elaboração de situações traumáticas, como a ocasionada pela violência sexual.
Por fim, acreditamos que pesquisas científicas sobre as adolescentes que cometeram atos infracionais são extremamente relevantes para melhor compreender esses sujeitos, o fenômeno da infração juvenil feminina e a pertinência do olhar psicanalítico sobre o tema em questão. Ressalta-se que estudos e pesquisas sobre esse tema contribuem para o desenvolvimento qualitativo do atendimento socioeducativo às adolescentes.