Considerações iniciais sobre o método de análise conceitual de um texto teórico
O presente artigo trata da análise dos conceitos de “self” e “identidade”, identificando os usos, significados e gramática destes conceitos na teoria do psicólogo social George Herbert Mead, mais especificamente a análise desses conceitos no livro Mind, Self, and Society (Mead, 1934, 1934/2010). Para tanto, foi organizado um método próprio que tomou como base a perspectiva de Ludwig Wittgenstein (1953/2012, 1958/1992a, 1958/1992b) sobre a linguagem, sobre como as palavras ganham seus significados e sobre como lidar com problemas conceituais. As considerações metodológicas a seguir são fruto de nossa apropriação do pensamento deste filósofo.
Segundo a abordagem de Wittgenstein (1958/1992a, 1958/1992b, 1953/2012), quando um autor define um conceito e afirma o que aquele conceito é, descrevendo o fenômeno a que tal conceito se refere, tal autor está determinando a gramática desse conceito. Isto é, ao dar uma definição e explicações sobre um conceito, um autor tenta regular as ocasiões em que os membros de sua comunidade linguística podem empregar esse conceito, ditando as regras de como tal conceito pode ser usado. No jogo de linguagem, dar uma definição é dizer quais jogadas se pode fazer com um termo, é estabelecer a função do termo no jogo. As definições, ao explicar o que uma coisa é, têm o formato de proposições empíricas, quando de fato funcionam como prescrições para a aplicação de um conceito. Ou seja, as definições funcionam como regras. E por dizer respeito a regras, é que, na perspectiva de Wittgenstein, se afirma que uma análise conceitual é uma análise gramatical.
Nesse sentido, o objeto de estudo dessa análise concei- tual será o comportamento linguístico de um autor, o qual se acessa por meio do texto que esse autor produziu. O texto é lido, interpretado e descrito. Essas descrições são análogas às observações que o cientista empírico faz sobre a natureza. Enquanto o pesquisador empírico descreve fenômenos, fatos e processos, o investigador conceitual descreve conceitos, afirmações e linhas de raciocínio.
A relevância de uma pesquisa dessa natureza está no fato de que os conceitos, afirmações e linhas de raciocínio conduzem a determinadas maneiras de atuar concretamente no mundo. Sendo assim, os mal-entendidos e as confusões conceituais podem levar a problemas empíricos sérios, como conclusões enganosas, pseudoexplicações e absurdos. Assim, a clareza conceitual na ciência tem implicações práticas importantes. A investigação conceitual, portanto, tem a função de esclarecer ou mesmo prevenir mal-entendidos (Wittgenstein, 1953/2012, § 90, p. 65).
O método que Wittgenstein adota em sua obra tardia (cf. 1958/1992a, 1958/1992b, 1953/2012) consiste em descrever diferentes exemplos em que um termo é utilizado, e então comparar esses diferentes exemplos. Essa descrição pode ser complementada por uma apreciação crítica das definições e explicações de um conceito. De todo modo, o objetivo é elucidar o jogo de linguagem de um autor ou teoria.
No que diz respeito ao presente estudo, como já indicado, o autor cujo texto analisamos foi George Herbert Mead (1863-1931). Mead foi professor de filosofia, ciência e um dos fundadores da Psicologia Social norte-americana. Foi influenciado pela teoria da seleção natural de Charles Darwin, pelo Pragmatismo de William James e John Dewey, e pela dialética de Hegel (Álvaro & Garrido, 2006; Souza, 2011). Sua obra mais conhecida é o livro Mind, Self and Society: from the standpoint of a social behaviorist (1934), editado postumamente por Charles Morris e traduzido para vários idiomas. Nesse texto, notamos que Mead buscou uma abordagem científica e não metafísica para a Psicologia Social, porém afastando-se do modelo científico defendido por John B. Watson nas décadas de 1920-30.
No campo da Psicologia Social, após um período de obscuridade, Mead vem sendo resgatado nos últimos anos para a pesquisa e a reflexão sobre as relações entre indivíduo e sociedade (Bazilli et al., 1998; Farr, 1996; Ferreira, 1999; Lima, 2010; Sass, 2004). Como Souza (2011) afirma, a teoria de Mead “ampliou a reflexão sobre o processo de interação social, significando a linguagem como elemento central para a formação social do self e da gênese constitutiva das identidades psicossociais” (p. 375).
Nesse resgate histórico do autor, Mead vem sendo cada vez mais utilizado como referência teórica em pesquisas sobre identidade, entretanto, este autor não desenvolveu teoricamente o conceito de “identidade”, trabalhando especificamente com o conceito de “self”, o que pode ser uma fonte de confusões conceituais. Diante dessa problemática, o objetivo do presente estudo foi elucidar sinonímias, confusões e sobreposições de sentido entre “self” e “identidade” em Mind, Self and Society, de modo a esclarecer as relações desses conceitos com outros da teoria de Mead.
Assim, o escopo deste estudo foi delimitado da seguinte maneira: os conceitos-alvo foram “self” e “identidade”, buscando identificar suas semelhanças e diferenças, e descrever a rede teórica da qual fazem parte; o estudo foi delimitado a um texto clássico do autor, o livro Mind, Self, and society, na sua versão original em inglês (Mead, 1934) e em uma versão traduzida para o português (Mead, 1934/2010).
Nas descrições sobre o conceito-alvo, consideramos que o uso das aspas tem um papel metodológico, pois serve para distinguir quando o conceito-alvo está sendo utilizado de quando o conceito está sendo referido. Ou seja, quando estamos fazendo referência a um conceito, tal como se faz referência a qualquer objeto, este é redigido entre aspas. É um procedimento simples, mas que pode evitar mal-entendidos, pois na análise conceitual o objeto de estudo é o conceito, e não o fenômeno que este conceito se refere.
O tratamento dado ao texto foi o seguinte: fizemos uma busca de todos os trechos de Mind, Self and Society em que Mead utilizou a palavra “identidade” e a palavra “Self”. Essas referências foram impressas, com a indicação da obra e página onde se encontra. Essas citações foram organizadas em colunas, uma para os usos da palavra “Self” e outra para os usos da palavra “identidade”. Então, essas diferentes citações foram comparadas entre si, buscando aspectos em comum (suas semelhanças de família), sua função na teorização, relações com outros conceitos, sinonímias e confusões. Para a compreensão mais aprofundada, buscamos as considerações de outros autores que trataram dos conceitos-alvo, para esclarecer relações de influência ou de apropriação teórica. Com essa interpretação e análise, redigimos uma síntese, elucidando os usos e significados dos conceitos-alvo, isto é, descrevendo: os contextos em que o conceito-alvo aparece, as regras que regem seu uso, o que o autor fez ao utilizar o conceito, qual a função do conceito na teoria. Tal síntese configura o resultado desta análise conceitual.
Os usos de “self” e “identidade” em Mind, Self and Society
Autores de contextos bem diferentes vêm sugerindo consensualmente que o conceito de “identidade” como se entende na Psicologia Social seria advindo do conceito de “self social”, tal como este foi desenvolvido por William James em seu “The Principles of Psychology” (1890). Por exemplo, essa opinião aparece nos textos de Chen, Boucher e Tapias (2006), Ciampa (1977), Deschamps e Moliner (2009), e Souza e Gomes (2005).
Porém foi George Herbert Mead que desenvolveu a noção de “self social” de um modo que os psicólogos sociais pudessem então trabalhar a noção de “identidade social”. George Mead valeu-se de William James e Charles Cooley (Chen, Boucher, & Tapias, 2006; Souza & Gomes, 2005), ressaltando desses autores os aspectos sociais da teorização sobre o self. Mead, entretanto, irá se diferenciar desses seus interlocutores buscando uma abordagem mais externalista.
James (1890) afirma que o “social self” de um homem está no reconhecimento que ele recebe de seus parceiros, acrescentando que um homem tem tantos “social selves” quantos há indivíduos que o reconheçam e carreguem em suas mentes uma imagem dele. Assim, James conclui: “... Nós praticamente podemos dizer que ele tem tantos eus sociais diferentes quanto os distintos grupos de pessoas cujas opiniões ele se importa. Ele geralmente mostra um lado diferente de si mesmo a cada um desses grupos diferentes.” (James, 1890, p. 295). Em James, temos que meu “self social” não é uno, mas diverso, e se configura pela referência que os outros dão de mim, a partir de minha vinculação afetiva com esses outros, a partir dos grupos nos quais me incluo.
Cooley (1922), por sua vez, dirá que o self se configura pelas observações e expectativas do indivíduo sobre os outros com quem se relaciona, imaginando e supondo a imagem que eles teriam dele. Assim, Cooley compara o self a um espelho (looking-glass self): o “self” é entendido como a imagem que o indivíduo forma de si mesmo ao imaginar o que os outros pensam dele. Cooley diria: o que eu penso de mim depende do que eu imagino que os outros pensam de mim, de modo que olhar para como os outros me veem seria como olhar para um reflexo de quem sou (Cf. Cooley, 1922, pp. 184-185).
Chen, Boucher e Tapias (2006) observam que Mead ecoou a crença de Cooley de que o self é modelado pela antecipação e observação das respostas dos outros indivíduos, mas enfatizando aí a influência dos grupos sociais importantes ao indivíduo e da sociedade de um modo geral. Além disso, mas diferenciando-se de James e Cooley, que enfatizaram as emoções e sentimentos envolvidos na configuração do self de um indivíduo, “...Mead enfatizou os alicerces cognitivos do Eu, tais como o papel crucial da tomada de perspectiva” (Chen, Boucher, & Tapias, 2006, p. 152), alicerces cognitivos relativos à linguagem e à comunicação, portanto, enfatizando o aspecto social do self. Quanto a isso, em seu Mind, Self, and society, Mead afirma:
É verdade que Cooley e James tentam situar a base do self nas experiências afetivas reflexivas, ou seja, naquelas experiências que envolvem os próprios sentimentos. Mas a teoria segundo a qual a natureza do self deve ser encontrada naquelas experiências não explica a origem do self e nem dos próprios sentimentos que supostamente caracterizam essas experiências. [...] Como dissemos, a essência do self é cognitiva; situa-se no diálogo internalizado de gestos que constitui o pensamento ou nos termos dos quais procedem o pensamento ou a reflexão. Assim, a origem e os fundamentos do self, como os do pensamento, são sociais (Mead, 1934/2010, p. 191).
Para Mead, o self se forma com o uso da linguagem; dito em seus termos: através do diálogo com gestos significantes. O significado, para Mead, consiste em a pessoa realizar um gesto para outra pessoa e a resposta subsequente provocada no receptor ser a mesma que evoca no emissor. Destacamos aqui como o autor descrevia a interação social com os termos que dispunha à época, ou seja, com o paradigma mecanicista de Estímulo-Resposta. Mead diria que duas pessoas se entendem, compartilham os mesmos significados, quando ambas reagem do mesmo modo diante dos mesmos estímulos verbais. Em suas palavras: “O indivíduo se estimula para a resposta que está eliciando em outrem e, então, age, até certo ponto, em resposta a essa situação.” (Mead, 1934/2010, p. 178). Esta coincidência de respostas tanto de A quanto de B num diálogo implica em as pessoas se tornarem objetos para si ao adotarem as atitudes do outro em relação a si. Quando A se dirige a mim, eu o entendo ao adotar sua atitude em relação a mim. Quando eu, B, me dirijo a A, ele me entende ao adotar minha atitude em relação a ele.
Em seu sentido significante, a linguagem é aquele gesto vocal que tende a despertar no indivíduo a mesma atitude que este elicia nos outros, e é esse aperfeiçoamento do self pelo gesto que media as atividades sociais que dá origem ao processo de assumir o papel do outro (Mead, 1934/2010, p. 178).
Nesse ponto de vista meadiano, fala-se também que ocorre no processo comunicativo uma relação de autorreconhecimento, pois, como Mead afirma, o gesto dotado de significado é aquele em que a pessoa “...reage ao que emite para outrem e em que essa sua reação passa a fazer parte de sua própria conduta, quando ela não só ouve, mas responde a si mesma, fala consigo e responde a si mesma, tal qual o outro lhe responde” (Mead, 1934/2010, p. 155). Reagir ao que emite para outrem possibilita o sujeito se tomar reflexivamente como um objeto de experiência, adquirir autoconsciência, daí proporcionando um senso de identidade para a pessoa.
Essa explicação meadiana acerca do senso de identidade tem feito com que muitos psicólogos sociais citem Mead como se ele falasse diretamente de identidade (Cf., por exemplo, Íñiguez, 2001, p. 215). Todavia, no original de Mind, Self, and society (1934), o termo “identity” apenas é utilizado oito vezes. Dessas oito ocorrências, somente em dois casos a palavra “identity” tem o mesmo sentido que a noção psicossociológica de identidade pessoal ou social.
A primeira ocorrência de “identity” está na Parte 2 “Mind”, Seção 9 “The Vocal Gesture and the Significant Symbol” (Mead, 1934, pp. 61-68), precisamente no seguinte trecho:
O estímulo que evoca um som particular poderá ser encontrado não só nos outros organismos do grupo, mas também no repertório da ave particular que utiliza o gesto vocal. Este estímulo A evoca a resposta B. Agora, se esse estímulo A não é igual a B, e se assumirmos que A evoca B, então se A é usado por outros organismos, estes vão responder no formato de B. Se este organismo também utiliza o gesto vocal A, ele estará, em si, evocando a resposta B, de modo que a resposta B será enfatizada em oposição das outras respostas, porque a resposta B é evocada não só pelos gestos vocais de outros organismos, mas também pelo próprio organismo. Isso nunca ocorreria se não houvesse uma identidade re- presentada por A, neste caso, uma identidade de estímulos (Mead, 1934, p. 64-65).
No trecho acima, o autor está tentando explicar um processo de interação entre organismos, descrevendo como as respostas de um organismo podem ser, ao mesmo tempo, estímulos utilizados por um mesmo organismo ou por organismos diferentes de um mesmo grupo. Note-se que aí ele está usando “identidade” para falar de dois estímulos iguais ou semelhantes, empregando por fim a expressão “identidade de estímulos”.
No trecho seguinte encontramos um uso semelhante: “Você está sempre respondendo a si mesmo, justamente como outras pessoas te respondem. Você assume que em um certo grau deve haver identidade na resposta. Isso é ação numa base comum” (Mead, 1934, p. 67). Aqui de novo “identidade” no sentido de igualdade, semelhança, “identidade na resposta”.
Em seguida “identity” aparece ainda na Parte 2, na seção 12 “Universality” (Mead, 1934, pp. 82-90). Ao falar sobre o que é o “significado” e sobre o que é “universalidade”, Mead discute as diferenças de perspectivas assumidas num processo comunicativo entre falantes e ouvintes. Ele coloca que nessas diferentes perspectivas, porém, deve haver uma identidade entre elas. Identidade aqui tem o sentido de “unidade”:
Na medida em que o indivíduo indica o significado a si próprio no papel do outro, ele ocupa o seu ponto de vista; e como ele está indicando o significado para o outro a partir de sua própria perspectiva, e como aquilo que é assim indicado é idêntico, deve ser aquilo que pode ser em diferentes perspectivas. Deve, portanto, ser um universal, pelo menos na identidade que pertence às diferentes perspectivas que são organizadas na perspectiva única, e na medida em que o prin- cípio da organização é aquele que admite outras perspectivas além daquelas efetivamente presentes... (Mead, 1934, p. 89).
O termo “identity” é empregado de novo, também na Parte 2, na seção 17 “The Relation of Mind to Response and Enviroment” (Mead, 1934, pp. 125-134), no seguinte trecho, com a mesma acepção de “igualdade, semelhança”: “A universalidade se reflete em termos comportamentais na identidade da resposta, embora os estímulos que a evoquem sejam todos diferentes.” (p. 125). Aqui ele está falando de categorização de comportamentos como sendo ocorrências diferentes de um mesmo tipo. Respostas semelhantes, que têm identidade, formam uma certa universalidade, ou seja, uma mesma categoria.
Vimos, portanto, que nos trechos acima “identidade” tem o sentido de “igualdade”, “equivalência”, “semelhança” ou ainda “unidade”. Um exercício para tirar isso à prova é o leitor substituir estas palavras onde “identidade” foi utilizada. O sentido da frase irá mudar muito pouco.
Somente na Parte 3 “Society”, o termo “identidade” tem uma função semelhante à dada por psicólogos sociais hoje, ou seja, servindo para falar de relações entre pessoas. Na seção 36, “Democracy and Universality in Society” (pp. 281-289), o conceito aparece no seguinte trecho:
Nesse sentido, estes dois fatores - primeiro, o domínio de um indivíduo ou um grupo sobre outros grupos; segundo, o senso de fraternidade e identidade de diferentes indivíduos do mesmo grupo - vieram juntos no movimento democrático... (Mead, 1934, p. 287).
Neste caso, o termo “identidade” também é usado para indicar semelhança ou unidade, mas com uma diferença sutil: agora é colocado no contexto não da Lógica, mas no da Sociologia. Nas ocorrências anteriores, “identidade” indicava uma igualdade de objetos (estímulos ou respostas), sendo tal igualdade uma questão de percepção, categorização e lógica. Agora, porém, aparece compondo a expressão “senso de fraternidade” e “senso de identidade”, indicando a igualdade de indivíduos ou unidade de um grupo, o que não se resume a uma questão de percepção. Segundo autores como Deschamps e Moliner (2008/2009), ou então Goffman (1963/1988), a unidade de um grupo é decorrente de relações de reconhecimento cognitivo (questão de percepção, categorização e lógica), mas sobretudo de reconhecimento social e ético, o que diz respeito a garantia de direitos, trocas afetivas, compartilhamento de valores, crenças em comum etc. Esse é um uso do termo “identidade” como noção psicossocial.
Mais adiante na parte 3, encontramos o emprego da palavra “identity” na Seção 41 “Obstacles and Promises in the Development of the Ideal Society” (pp. 317-328), em dois trechos, e em ambos com sentidos diferentes entre si:
Um membro da comunidade não é necessariamente igual aos outros indivíduos dela por ser capaz de identificar-se com eles. É possível ele ser diferente. Pode haver um conteúdo comum, uma experiência comum, sem que haja uma identidade de função (Mead, 1934, p. 325).
Neste trecho também ocorre um uso semelhante ao do caso anterior, mas com algumas pequenas diferenças. Mead está discutindo homogeneidade-heterogeneidade grupal. Diz que um indivíduo pode partilhar as mesmas experiências e conteúdos com outros indivíduos de sua comunidade, porém exercendo funções (papéis) sociais diferentes. O verbo “identificar-se” tem uma clara acepção social, dizendo respeito ao compartilhamento de interesses. Porém, neste mesmo trecho, quando diz “identidade de função”, “identidade” tem a acepção lógica de “igualdade” entre objetos.
Por outro lado, na citação seguinte, da mesma Seção 41 “Obstacles and Promises in the Development of the Ideal Society”, é que enfim veremos “identidade” sendo usado tal como “self”:
Há, é claro, um certo conjunto de reações que pertencem a todos, que não são diferenciadas quanto ao aspecto social, mas que se expressam em direitos, em uniformidades, nos métodos comuns de ação que caracterizam membros de comunidades diferentes, em maneiras de falar, e assim por diante. Distinguível de tais reações está a identidade, que é compatível com a diferença de funções sociais dos indivíduos, e que é ilustrada pela capacidade do indivíduo em assumir o papel dos outros a quem ele afeta - o guerreiro colocar-se no lugar daqueles a quem ele está indo contra, o professor colocar-se na posição da criança a quem ele está buscando instruir (Mead, 1934, pp. 325-326).
Em outras passagens de sua obra, Mead descreve que a criança desenvolve seu “self ” por ser capaz de assumir a atitude do outro em relação a si mesma. As brincadeiras e jogos seriam bastante importantes para exercitar isso porque muitas delas envolvem imitação e troca de papéis (brincar com bonecas(os), pega-pega, polícia e ladrão, futebol etc.). Então no trecho acima ele coloca que “...a identidade [...] é ilustrada pela capacidade do indivíduo em assumir o papel dos outros a quem ele afeta.” (p. 326). Neste trecho fica clara a sinonímia entre identidade e self. Aqui “identidade” tem uma acepção de unidade e igualdade, mas se referindo especificamente a uma unidade psicológica, ou seja, ser “o mesmo”, um mesmo “eu”, que é compatível com uma certa diversidade de modos de agir. Aqui temos também um uso aparentado ao de “identidade pessoal e social”.
E finalmente, a última ocorrência de “identidade” no livro de Mead aparece no Ensaio Suplementar III, “The Self and the Process of Reflection” (pp. 354-378). É o que vemos ao final do seguinte trecho:
À medida que a criança completa o círculo do mundo social ao qual ela responde e cujas ações ela se estimula a produzir, ela acaba completando de alguma forma o seu próprio Self em direção do qual todas essas atividades lúdicas podem ser dirigidas. É uma realização que se anuncia na passagem da forma anterior da brincadeira para a dos jogos, sejam eles os jogos competitivos ou os jogos mais ou menos dramáticos, nos quais a criança entra como uma personalidade definida, que se mantém por toda a representação. Seu interesse passa das estórias, contos de fada, contos populares, para as narrações conectadas em que ela, a criança, pode sustentar uma identidade simpática ao herói ou à heroína no correr dos acontecimentos (Mead, 1934, pp. 370-71).
Nesta citação, também encontramos um uso do termo “identidade” semelhante ao de “self ”, mas ao mesmo tempo já se aproximando da acepção dada pelos autores de psicologia social atuais. “Identidade” aí tem o sentido de unidade psicológica (self) e de conjunto de características identificadoras, aparecendo aqui o sentido de “identidade pessoal e social”. Em suma, concluímos que no texto de Mead (1934) a palavra “identity” só é traduzível por “self ” em duas situações, na citação acima e na anterior.
No uso que Mead faz do termo “self ”, esse termo seria melhor traduzido para o português por “Eu”, “Si mesmo”, “autoconsciência”, “experiência de si”, “noção de si mesmo”. Mas “self ” e “identidade” se confundem quando Mead se refere ao “I”, da “self-consciousness”, da experiência de si e da noção de si mesmo. Algum pesquisador poderia dizer que aí está implicada a questão da identidade pessoal, que é o senso que um indivíduo tem de si próprio a partir do que percebe de si e do que os outros percebem dele.
Outro ponto importante é que Mead irá dizer que o “self” possui duas instâncias: “Eu” e “mim”. Em nossa interpretação da teoria meadiana, “Eu” e “mim” são instâncias temporais, e não espaciais. Dito de outro modo: “Eu” e “mim” são conceitos que se referem a momentos, referem-se a determinados momentos em que o indivíduo está agindo, e não a determinadas partes dentro dele. O termo “Eu” se refere ao momento em que o sujeito age, em que ele é sujeito da sua ação, em sua experiência imediata. O termo “mim” se refere ao momento em que o sujeito observa o que fez, lembra-se do que fez, avalia o que fez em relação às atitudes dos outros, o momento de sua experiência em que ele é um objeto para si. É plausível cogitar que Mead escolheu esses dois termos devido às suas funções gramaticais: seja no português, seja no inglês, geralmente “eu” tem função de sujeito e “mim” função de objeto.
Entender “eu” e “mim” como instâncias espaciais, dimensões ou partes do self conduz à interpretação de que são elementos internos ao self, daí, elementos internos à mente do indivíduo. Parece-nos que essa interpretação mentalista dos conceitos “eu” e “mim” se dá pelo fato de que na Psicologia se costuma falar de elementos constituintes do aparelho psíquico ou da mente. Entretanto, como Spaniol (1989) observa, a transposição de um uso corriqueiro de um termo em um dado contexto para outro contexto é uma das fontes de mal-entendidos ou confusões conceituais. Nas psicologias psicodinâmicas, costuma-se falar no aparelho psíquico ou mente em termos espaciais. O aparelho psíquico possui locais entre os quais as representações, os afetos etc. circulam. Em nossa interpretação, não é assim que Mead (1934) usa seus conceitos, pois ele buscava uma abordagem comportamental dos fenômenos psicológicos (vide a Introdução e capítulos iniciais de Mind, Self, and society).
Assim, “eu” e “mim” se referem a momentos da experiência do indivíduo com ele mesmo. No ensaio The mechanism of social consciousness, de 1912, Mead afirma: “O ‘mim’ é a resposta de um homem à sua própria fala” (p. 405). Sobre o “Eu”, complementa: “O ‘Eu’, portanto, nunca pode existir como um objeto na consciência, mas o próprio caráter conversacional de nossa experiência interior, o próprio processo de responder à própria fala, implica um ‘eu’ nos bastidores que responde aos gestos, aos símbolos, que surgem na consciência.” (p. 406). O conceito de “mim” se refere à experiência de si, do que se pensa, sente, se observa e se faz; o conceito de “Eu” se refere à unidade psicológica autora e contexto da experiência. “O real e autoconsciente Self nas interações sociais é o objetivo ‘mim’ ou ‘mim(s)’, com seu contínuo processo de responder (agir) acontecendo e implicando um ‘Eu’ fictício e sempre fora de seu próprio campo de visão.” (p. 406). O conceito de “Eu”, em Mead, é semelhante ao “eu transcendental” definido por Kant (Mead, 1912, p. 406). Mas podemos acrescentar que é também semelhante à noção de “eu observador” do Zen Budismo, sendo a instância base onde a experiência ocorre e que a vivencia.
Considerações finais
A guisa de conclusão, é preciso apontar algumas limitações do presente estudo. A primeira delas diz respeito ao processo de interpretação de textos. O sentido de um texto, não está nele mesmo, nem na “intenção” do autor, mas sim no diálogo entre o texto e o seu leitor (Eco, 2001). Portanto, a interpretação inevitavelmente terá o viés daquele que a faz, o que significa que outro pesquisador, debruçando-se sobre a mesma obra, provavelmente apresentará uma visão diferente. Sabendo dessa característica e tentando diminuir a produção de distorções, apresentamos o máximo possível de citações diretas dos autores, mostrando ao leitor as palavras da própria fonte. Com isso, tentamos garantir que nossas interpretações e sínteses fossem plausíveis e coerentes com o texto do autor analisado.
A segunda limitação se refere à escolha apenas do livro Mind, Self and Society (Mead, 1934) para análise. Embora esse seja o livro mais influente do autor, sabemos que apenas a análise desse texto não permite afirmar como o autor faz uso dos conceitos “self” e “identidade” em toda sua obra. Para tanto, seria preciso realizar uma análise conceitual semelhante em todos os seus artigos, bem como em seus outros livros. Entretanto, essa limitação foi deliberada, pois, considerando a relevância do Mind, Self and Society para autores contemporâneos, o objetivo foi analisar como Mead fez o uso desses conceitos nesse livro.
As observações de Mead (1934) sobre o Self são ainda base para estudos atuais, por seu foco sobre a tomada de perspectiva e o desenvolvimento da linguagem como condição para a formação do Self. As limitações de sua teoria são relativas ao período histórico em que foi produzida, como por exemplo as suas descrições nos termos do pa- radigma S-R. Ainda assim, sua contribuição é importante de ser lembrada por tecer uma compreensão dos processos psicológicos mentais em termos da interação social.
Em Mead (1934), o termo “Self” se refere ao processo em que o sujeito se experiencia como alguém próprio, atua como um eu e se percebe reflexiva e conscientemente como um objeto de experiência, podendo se referir a si mesmo como “mim”. O termo “identidade”, por outro lado, foi utilizado pelo autor sobretudo para se referir à unidade de coisas.