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Avances en Psicología Latinoamericana
Print version ISSN 1794-4724
Av. Psicol. Latinoam. vol.33 no.2 Bogotá May/Aug. 2015
https://doi.org/10.12804/apl33.02.2015.08
Doi: http://dx.doi.org/10.12804/apl33.02.2015.08
As bases teóricas da técnica da recriação do contexto na entrevista cognitiva
The Theoretical Basis of the Technique of Context Reinstatement in the Cognitive Interview
Bases teóricas de la técnica de recreación del contexto en la entrevista cognitiva
Luciano Haussen Pinto*
Lilian Milnitsky Stein**
* Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (FADERGS), Brasil
Luciano Haussen Pinto, Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, Brasil; Lilian Milnitsky Stein, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. A correspondência relacionada com este artigo deve ser direcionada a Luciano Haussen Pinto, Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Porto Alegre - RS, 91530-000, Brasil – Telefone: (51) 3320-3500. Correio eletrônico: luciano.hp@gmail.com
** Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Brasil
Para citar este artículo: Pinto, L. & Stein, L. (2015). As bases teóricas da técnica da recriação do contexto na entrevista cognitiva. Avances en Psicología Latinoamericana, 33(2), 285-301. doi: dx.doi.org/10.12804/apl33.02.2015.08
Recebido: 20 de maio de 2014 Aprovado: 20 de novembro de 2014
Resumo
Na apuração de um crime as vítimas e testemunhas possuem um papel decisivo. Na área da Psicologia do Testemunho, muito tem se avançado em métodos de entrevista investigativa, sendo a Entrevista Cognitiva uma das mais consolidadas atualmente. O objetivo deste estudo foi realizar uma revisão narrativa da literatura sobre uma das técnicas da Entrevista Cognitiva: a recriação do contexto. Muitos estudos atribuem em grande parte à recriação do contexto o êxito da Entrevista Cognitiva em otimizar os depoimentos tanto em termos de quantidade quanto de qualidade das informações lembradas. Foram analisadas as bases teóricas sobre memória que ajudam a explicar quais mecanismos a recriação do contexto aciona e que favorecem a recordação. Os efeitos positivos da técnica possuem relação direta com a noção de memória dependente do contexto e com o princípio da especificidade de codificação. Por fim, são referidas algumas limitações, bem como novas alternativas de utilização da técnica.
Palavras chave: recriação do contexto; entrevista cognitiva; psicologia do testemunho; memória dependente do contexto; especificidade de codificação.
Abstract
In reporting a crime the victims and witnesses have a decisive role. In the area of psychology of testimony, much has been advanced in the methods of investigative interviews, being the Cognitive Interview currently the most consolidated around the world. The aim of this study was to perform a narrative review of the literature about one of the techniques of the Cognitive Interview: context reinstatement. Many studies attribute the success the Cognitive Interview has in optimizing the quantity and quality in recalled information largely to context reinstatement. The theoretical bases of memory were analyzed to explain the mechanisms context reinstatement triggers that favor recall. Its positive effects have direct relation with the notion of context-dependent memory and with the principle of encoding specificity.
Key words: context reinstatement; cognitive interview; psychology of testimony; context-dependent memory; encoding specificity.
Resumen
Al informar sobre un delito, las víctimas y los testigos tienen un papel decisivo. En la psicología del testimonio, mucho se ha avanzado en los métodos de entrevista de investigación, y la entrevista cognitiva es una de las más consolidadas en la actualidad. El objetivo de este estudio fue realizar una revisión narrativa de la literatura sobre una de las técnicas de la entrevista cognitiva: la recreación del contexto. En buena medida, muchos estudios atribuyen a la reconstrucción del contexto el éxito de la entrevista cognitiva en la optimización de los testimonios, en términos de la cantidad y la calidad de la información recuperada. Se analizaron las bases teóricas de la memoria que ayudan a explicar cuáles mecanismos de la recreación del contexto generan y favorecen el recordar. Los efectos positivos de esta técnica están directamente relacionados con la noción de memoria dependiente del contexto y con el principio de especificidad de codificación. Por último, se refieren algunas limitaciones, así como nuevas alternativas para usar la técnica.
Palabras clave: recreación del contexto; entrevista cognitiva; psicología del testimonio; memoria dependiente del contexto; especificidad de codificación.
Testemunhas são fundamentais para ajudar a polícia a elucidar um crime. Na apuração dos fatos pretende-se responder a duas questões principais: o quê exatamente ocorreu, e quem cometeu o crime (Fisher & Geiselman, 2010; Milne & Bull, 2001). Os relatos das testemunhas podem favorecer a descrição do agressor, indicar outras fontes de informação e sinalizar pistas. Normalmente, a testemunha é solicitada a identificar suspeitos, objetos e ações que, em conjunto, servirão como prova testemunhal no inquérito policial e no processo judicial (Nygaard, Feix & Stein, 2006). Muitas vezes a prova testemunhal é a que mais influencia jurados e juízes no julgamento quanto ao réu ser culpado ou inocente (Benton, Ross, Bradshaw, Thomas & Bradshaw, 2006).
Segundo Horry, Memon, Wright e Milne (2012), após uma análise de julgamentos ocorridos na Inglaterra e no País de Gales, foi revelado que mais de 200 processos baseados no reconhecimento de suspeitos por testemunhas foram realizados em um ano. Destes, 45% resultaram na delação do suspeito, sendo 82% posteriormente condenados, indicando o peso substancial do depoimento de testemunhas oculares. No entanto, a literatura referente à psicologia do testemunho já apontou diversas variáveis que permeiam a memória das testemunhas que não raramente as tornam falíveis ou pouco confiáveis (Foster, Huthwaite, Yesberg, Garry & Loftus, 2012; Loftus, 2013).
Para pesquisadores em Psicologia Cognitiva, os erros de testemunho não representam novidade, uma vez que há muito tempo estão familiarizados com a natureza imperfeita dos processos cognitivos, especialmente da memória humana (Loftus, 1979). Por outro lado, este ainda é um tópico pouco conhecido por leigos, jurados, operadores da lei em geral e até mesmo psicólogos peritos (Loftus, 2013; Stein & Nygaard, 2003). Na esfera jurídica, os responsáveis pela aplicação das leis tendem a avaliar uma testemunha de forma pouco crítica e não científica, e com a expectativa de que as informações relatadas refletirão naturalmente os fatos passados (Wright, Memon, Skagerberg & Gabbert, 2009).
A memória humana, no entanto, não funciona como a reprodução de uma vídeo-gravação de algo vivido antes. O processo de memória sofre influências e interferências que, de alguma forma, afetam os depoimentos (Schacter, 1999). A maneira pela qual uma testemunha é interpelada é um fator determinante, não só sobre quais e quantas informações serão lembradas, mas também sobre a precisão e credibilidade destas informações (Milne & Shaw, 1999). Por exemplo, a forma de abordagem, os tipos das perguntas, como elas são feitas e a estrutura geral do processo de coleta dos dados impactam o desempenho mnemônico da testemunha em termos de quantidade e qualidade dos relatos (Milne & Bull, 2001). Devido à importância da prova testemunhal para o sistema judicial, os psicólogos têm procurado esclarecer as condições em que a memória da testemunha torna-se mais confiável, informando assim, aos operadores da lei, as formas mais adequadas e eficazes de coletar testemunhos.
Ao longo das últimas décadas, houve um esforço pela criação de métodos mais científicos de entrevistas investigativas. Devido ao extenso número de estudos já realizados e à sua utilização em diversos países, a Entrevista Cognitiva (EC) é um dos métodos mais robustos e pesquisados atualmente. Criada há quase 30 anos por Geiselman et al. (1984), e aperfeiçoada em 1992 por Fisher e Geiselman, trata-se de um modelo de entrevista embasado em princípios da comunicação e da cognição humana, principalmente os relativos à memória.
O objetivo do presente artigo é examinar as bases teóricas de uma das técnicas da EC: a recriação do contexto (RC). Diversos estudos sugerem a RC como a mais eficiente técnica da EC, indispensável para o sucesso deste protocolo de entrevista. Mas a questão é: por que ela funciona? Para responder, primeiramente, será apresentada a EC em sua estrutura completa de forma breve. Após, objetiva-se descrever e explicar especificamente a aplicação da técnica RC, juntamente com alguns estudos que a testaram. Posteriormente, serão expostos os fundamentos teóricos que embasam a técnica e, por fim, serão apresentadas técnicas alternativas que vem se mostrando úteis e que por vezes podem substituir a RC tradicional.
A Entrevista Cognitiva (EC)
A criação da EC ocorreu por solicitação de policiais e operadores do direito dos Estados Unidos que identificaram a necessidade de maximizar a quantidade e a precisão das informações colhidas de vítimas e testemunhas e minimizar as chances de distorções e/ou esquecimento (Fisher & Geiselman, 1992). A EC se baseia em conhecimentos advindos do campo da Psicologia Social e da Psicologia Cognitiva. No que tange à Psicologia Social, a técnica integra e utiliza teorias sobre a comunicação e relações humanas. Já em relação à Psicologia Cognitiva, a EC está em consonância com os conhecimentos sobre percepção, linguagem e, principalmente, sobre o funcionamento da memória e sua suscetibilidade a falhas (Fisher, Brennan & McCauley, 2002). Neste artigo, o enfoque está essencialmente sobre os aspectos mnemônicos da EC.
A EC é um método organizado em cinco etapas, cada uma com objetivos específicos (Feix & Pergher, 2010; Pinho, 2006). Antes de iniciar a entrevista propriamente dita, o ambiente físico deve ser adequadamente preparado. Seleciona-se uma sala simples com total privacidade, sem objetos decorativos, cadeiras dispostas lado a lado, sem mesa entre entrevistador e testemunha, além de equipamento de gravação de áudio e vídeo (Milne, 1999). A primeira etapa da entrevista, a construção do rapport, visa estabelecer um ambiente e as condições favoráveis para que o entrevistado fique à vontade e motivado para realizar o seu relato, além de serem explicados os objetivos e as regras básicas do funcionamento da entrevista.
A etapa seguinte é a chamada recriação do contexto, esta etapa será detalhadamente descrita em seção mais adiante.
A terceira etapa, recordação livre, é quando o indivíduo, após ter mentalmente recriado o contexto da situação, realiza o seu relato livremente, sem interrupções. Mesmo que o entrevistado faça pausas, não deve receber perguntas. O entrevistador acompanha atentamente o relato, faz suas anotações e reserva as perguntas para a próxima etapa (Feix & Pergher, 2010).
A quarta etapa é o questionamento, na qual o entrevistador adota técnicas para fazer perguntas com base no que foi trazido pela testemunha durante o relato livre. O objetivo é que o entrevistador possa esclarecer suas dúvidas e obter ainda mais detalhes (Pinho, 2006). Nesta fase, existe ainda a possibilidade de outras duas técnicas cognitivas: a mudança de perspectiva, em que a testemunha tenta relembrar a cena de um ponto de vista diferente do qual testemunhou (i.e., do ângulo de outra testemunha ou do próprio criminoso); e a mudança de ordem, na qual é solicitada a narrativa da situação de trás para frente (Geiselman, Taras, Schaap & Woodruf, 1994). Também a recriação do contexto pode ser novamente aplicada em relação a uma cena considerada crucial. Tais técnicas tem o intuito de explorar outros caminhos para acessar informações até então não lembradas.
Aúltima fase da EC se refere ao fechamento, em que o entrevistador pode fazer uma síntese de tudo relatado até então, conferindo junto ao entrevistado se o seu entendimento está correto. Ao ouvir o resumo do seu depoimento, algum outro detalhe complementar pode ainda ser suscitado da memória da testemunha. Finaliza-se com o entrevistador agradecendo o empenho da testemunha, retornando a algum tópico trivial e deixando um meio de contato para a eventualidade da recordação de uma nova informação (Fisher & Geiselman, 1992).
Muitas pesquisas já foram realizadas utilizando a EC, os achados apontam para um aumento na quantidade e na qualidade das informações fornecidas pelas testemunhas (Fisher & Schreiber, 2007; McCauley & Fisher, 1995; Milne, Clare & Bull, 1999; Verkampt & Ginet, 2010). Alguns outros estudos, porém, também relataram um pequeno (não significativo) aumento na quantidade de informações incorretas (Mello & Fisher, 1996). Há investigações demonstrando os bons resultados da EC abrangendo diferentes grupos: adultos (Memon, Meissner & Fraser, 2010), crianças (Saywitz, Geiselman & Bornstein, 1992), idosos (Wright & Holliday, 2007) e testemunhas com deficiência cognitiva (Milne et al., 1999).
Há duas pesquisas de metanálise sobre a EC (Koehnken, Milne, Memon & Bull, 1999; Memon et al., 2010). A primeira incluiu os resultados de 55 estudos comparativos, compreendendo um total de cerca de 2500 entrevistas. A segunda examinou 65 experimentos em 57 artigos. Os achados desta segunda replicaram os da metanálise anterior, ou seja, a EC propiciou um significativo aumento de informações corretas advindas das memórias dos participantes, ainda que acompanhado, às vezes, de um pequeno aumento (não significativo) de informações incorretas. Desta forma, a EC mostra-se uma ferramenta útil em áreas que demandem a coleta de informações com base na lembrança das pessoas.
A EC é uma abordagem composta por diferentes técnicas, todas com o intuito de maximizar as oportunidades de recuperação de memórias. Não se trata de um método totalmente padronizado, pelo contrário, entende-se a EC como uma caixa de ferramentas a partir da qual o entrevistador, em cada caso, pode selecionar, dentre várias técnicas, aquela(s) que julgar necessário para efetuar bem o seu trabalho (Milne & Bull, 2001). Ou seja, as técnicas que compõem a EC podem ser utilizadas todas em conjunto ou de forma independente, o que a torna um método mais dinâmico.
Em virtude desta flexibilidade, várias propostas de versões modificadas da EC têm sido testadas (Bensi, Nori, Gambetti & Giusbetti, 2011; Colomb, Ginet, Wright, Demarchi & Sadler, 2013; Colomb & Ginet, 2012; Dando, Wilcock & Milne, 2009; Davis, McMahon & Greenwood, 2005; Verkampt & Ginet, 2010). A maioria dos estudos compara a EC completa com a EC modificada (sem uma ou mais das técnicas que a compõem). Assim, se torna possível avaliar se há, dentre as etapas e/ou técnicas da EC, uma mais importante do que outra ou se, de fato, todas são necessárias para atingir bons resultados. Acriação de versões modificadas e mais curtas decorre, também, dos dados de realidade da rotina do trabalho policial, pois a versão completa demanda intenso e continuado treinamento, consome um tempo considerável frente ao volume de trabalho da polícia, além de não ser um procedimento de fácil aplicação (Dando et al., 2009). Esta adaptação para formatos mais simplificados e rápidos também vai ao encontro da necessidade em atender vítimas e testemunhas vulneráveis (i.e., crianças, idosos, deficientes mentais) (Memon et al., 2010).
Nas versões reduzidas da EC, as técnicas mudança de ordem e mudança de perspectiva são, em geral, as mais omitidas (Brown, Lloyd-Jones & Robinson, 2008; Clifford & George, 1996; Dando, Wilcock & Milne, 2008; Kebbell, Milne & Wagstaff, 1999). Os motivos da exclusão são basicamente: (a) serem consideradas de mais difícil aplicação (os entrevistados muitas vezes não as compreendem); (b) para reduzir o tempo da entrevista, e (c) serem as menos determinantes no favorecimento da memória na comparação com as outras técnicas (principalmente a recriação do contexto e o relato livre) (Memon et al., 2010; Milne & Bull, 2002). Além de pouca eficácia em gerar mais informações, as duas técnicas podem levar, inclusive, a um aumento na recordação de informações incorretas (Dando, Ormerod, Wilcock & Milne, 2011; Oxburgh & Dando, 2011). Por outro lado, os efeitos benéficos da recriação do contexto têm recebido bastante su-porte empírico em pesquisas com adultos (Bensi et al., 2011; Colomb & Ginet, 2012; Emmett, Clifford & Gwyer, 2003; Memon, Wark, Bull & Koehnken, 1997; Wilcock, Bull & Vrij, 2007) e também com crianças (Bowen e Howie, 2002; Davis et al., 2005; Hayes & Delamothe, 1997; Milne & Bull, 2002).
Técnica da recriação do contexto (RC)
Considerando a solidez da EC na coleta de informações junto a testemunhas, tem havido o interesse em averiguar o peso de cada componente da entrevista. E conforme exposto anteriormente, a técnica da recriação do contexto tem se destacado em termos de eficácia, sendo hoje considerada indispensável em qualquer versão da EC.
Nos estudos investigando a RC, nota-se uma variação no modo como ela tem sido aplicada. Em alguns casos, as instruções da técnica são mais extensas (Dando et al., 2009; Hammond, Wagstaff & Cole, 2006; McCauley & Fisher, 1995), em outros as instruções são mais curtas (Hershkowitz et al., 2001). Alguns estudos incluem uma fase prévia de aquecimento, onde a RC é administrada a partir de um acontecimento neutro não relacionado ao evento a ser lembrado (Hershkowitz et al., 2001), enquanto outros estudos não incluem esta fase preliminar de familiarização com a técnica (Dando et al., 2009). Já no estudo de McCauley e Fisher (1995), as instruções da RC só foram passadas depois dos participantes terem realizado o relato livre, com o intuito de explorar mais detalhes de uma cena chave trazida pela testemunha. Portanto, não há uma regra única sobre como transmitir a instrução da RC, mas um exemplo pode ser o seguinte:
Então agora gostaria que você pudesse relatar tudo o que lembra sobre (o fato testemunhado/vivido). Algo que pode ajudar você é procurar usar a sua mente para voltar àquele dia. Caso prefira, feche os olhos para fazer isso... (pausa). Volte naquele momento, o que você observava ao seu redor? (pausa) O que ouvia? (pausa) Sentia algum cheiro? (pausa) Algum pensamento lhe ocorria, algum sentimento? (pausa) Espere a cena toda se criar na sua mente... (pausa). Quando achar que ela está clara o bastante comece a contar tudo o que lembrar livremente, sem editar ou omitir detalhes.
Contextos podem ser reconstituídos tanto física quanto mentalmente. A recriação física do contexto envolve a exposição da vítima/testemunha ao cenário real em que o evento ocorreu ou quando ela tem acesso a um ou mais objetos que estavam presentes na situação original. Contudo, nem sempre é possível ou conveniente dispor destes objetos ou que a vítima/testemunha volte à cena do crime (pelo aspecto traumático que pode interferir o processo de recordação, além da própria cena do crime possivelmente estar bastante alterada em relação com a original). A recriação do contexto físico se mostra eficaz para a recuperação de fatos da memória em adultos (Krafka & Penrod, 1985; Smith, 1979) e em crianças (Pipe & Wilson, 1994). Na pesquisa de Wilkinson (1988), participaram crianças de quatro anos de idade que fizeram algumas atividades durante um passeio em um parque. No dia seguinte, as crianças foram convidadas a recordar tudo o que conseguissem: um grupo foi entrevistado em uma sala silenciosa e outro grupo no parque que tinham visitado no dia anterior. Os resultados mostraram os efeitos da recriação do contexto físico, com as crianças recuperando mais memórias quando entrevistadas no parque.
Já Priestley, Roberts e Pipe (1999), entrevistaram crianças pequenas seis meses depois de terem participado de um passeio a um navio pirata. As crianças foram divididas em três condições: para um grupo houve a exposição de pistas do contexto original no momento da entrevista (alguns objetos do navio pirata mostrados para as crianças), para outro grupo houve a mesma exposição destas pistas (porém 24 horas antes da entrevista), e o terceiro grupo não recebeu pistas. Os resultados apontaram que a apresentação de pistas da situação original (seja no momento da entrevista ou um dia antes) aumentou a quantidade de informações corretas em comparação ao grupo sem acesso a qualquer pista. Assim, quando a testemunha tem a chance de visualizar objetos presentes na codificação ou de retornar à cena do crime, a tendência é o aumento da quantidade de lembranças.
Entretanto, o contexto não é necessariamente sempre externo (físico). O estado subjetivo da testemunha (humor, pensamentos, sensações) também é um aspecto importante presente no momento da codificação (Milne & Bull, 2002). Por isso, na maciça maioria das vezes, aplica-se a RC mental nas entrevistas investigativas, orientando-se a testemunha a "reconstruir" mentalmente todos os aspectos da situação a ser lembrada (tanto os externos quanto os internos). Hershkowitz et al. (2001) compararam os efeitos da RC físico com o mental em 142 crianças alegadamente vítimas de abuso sexual entre os quatro e os 13 anos de idade. Não houve diferenças em termos de quantidade de informações trazidas, mas sim em relação à qualidade das informações. O grupo submetido à RC mental teve desempenho superior ao da RC físico. Estes efeitos são interessantes porque contrapõem as postulações de que crianças (principalmente as menores) não seriam capazes de se beneficiar de pistas contextuais recriadas mentalmente por ainda não possuírem as habilidades metacognitivas necessárias (Koehnken et al., 1999; Memon, Cronin, Eaves & Bull, 1993).
Num estudo com adultos e crianças, Milne e Bull (2002) compararam a eficácia das quatro técnicas cognitivas da EC (recriação do contexto, relato livre, mudança de ordem, mudança de perspectiva). Para as duas faixas etárias, se observou que a combinação das técnicas recriação do contexto e relato livre foi a que eliciou mais informações. Por outro lado, as técnicas mudança de ordem e mudança de perspectiva se revelaram pouco efetivas. Da mesma forma, Hayes e Delamothe (1997) verificaram que a utilização da técnica da RC (em combinação com a do relato livre) conduziu a um aumento das informações corretas relatadas por crianças que assistiram a uma história gravada em vídeo e testadas três dias depois. Embora ambos os estudos (Hayes & Delamothe, 1997; Milne & Bull, 2002) tenham utilizado intervalos curtos entre a codificação e a recuperação, Bowen e Howie (2002) constataram que a RC também ajudou crianças pré-escolares que participaram de uma atividade de 15 minutos (jogando um jogo com o pesquisador) a reportarem mais informações certas, mesmo após um período de nove dias.
Evidências da efetividade da técnica RC têm surgido destes esforços por versões mais reduzidas da EC também no sentido de torná-la mais simples e com menor tempo de aplicação e de treinamento necessários. Em um estudo com 100 universitários comparou-se cinco tipos de entrevista: a EC completa, uma entrevista estruturada (controle) e três diferentes versões reduzidas da EC (Bensi et al., 2011). Todos assistiram a um vídeo sobre um assalto a banco e foram testados no dia seguinte, sendo divididos nas cinco condições de entrevista. A EC completa eliciou mais informações do que as outras entrevistas, exceto a versão que não continha a mudança de ordem e mudança de perspectiva (e que continha a recriação do contexto e o relato livre). Esta versão reduzida alcançou resultados semelhantes a uma EC completa, porém em 66% do tempo. Numa pesquisa similar, Davis et al. (2005) encontraram resultados parecidos, sendo que a versão da EC contendo a RC e o relato livre (omitindo a mudança de ordem e a mudança de perspectiva) eliciou 87% das informações obtidas pela EC completa, entretanto consumiu 23% menos tempo.
Em uma investigação a partir de casos reais na França, onde os próprios policiais aplicaram as entrevistas, constatou-se que a EC reduzida (contendo a RC) obteve mais informações relevantes em termos forenses (de acordo com os policiais) do que a entrevista normalmente usada pela polícia francesa (Colomb et al., 2013). Adicionalmente, os policiais julgaram a EC reduzida como mais fácil e prática de ser utilizada no cotidiano de trabalho por ser menos complexa e exigir menos tempo.
Verifica-se, portanto, que a técnica da RC possui resultados exitosos em diversas investigações que testaram a sua eficácia, tornando-a uma técnica bem estabelecida para a coleta de informações com pessoas. Mas por que, afinal, a RC obtem tal desempenho? Que fundamentos teóricos a embasam e explicam o seu poder em relação à memória?
Memória dependente do contexto
Antes de responder as questões acima, é importante relembrar as três etapas básicas do processo de memória: codificação, armazenamento e recuperação. Na codificação, o indivíduo traduz os dados advindos do ambiente numa linguagem capaz de ser compreendida por seu sistema cognitivo (representa mentalmente a experiência graças às informações que chegam dos sentidos como visão, audição, etc.). Na segunda etapa, o armazenamento, os conteúdos codificados são "guardados" em espécie de arquivos, esperando até serem acessados em algum momento. A recuperação, por fim, é a etapa na qual há uma busca pelo material armazenado (Neufeld & Stein, 2001).
O termo contexto na literatura sobre memória apresenta uma variada gama de significados. Segundo Anderson e Bower (1973), isso ocorre porque a informação contextual inclui as características físicas de um determinado evento, as associações implícitas relacionadas ao evento, bem como alguns "elementos internos" (estado do humor e fisiológico, por exemplo). Enfim, considera-se o contexto um conjunto extenso e variado de características intrínsecas e extrínsecas que interagem entre si (Smith, Glenberg & Bjork, 1978).
Teorias sobre a memória ajudam a explicar a importância do contexto e, portanto, a fundamentar a técnica da RC, são elas: a teoria dos traços múltiplos (Bower, 1967; Roediger & Payne, 1982) e, especialmente, a teoria da especificidade de codificação (Tulving & Thomson, 1973), ambas sugerem a idéia de memória dependente do contexto. Estas teorias postulam que a representação mental de um evento não advém de uma simples soma de cada um dos vários elementos que o constituem. A memória se forma através de uma rede de associações entre os componentes da experiência, ou seja, no momento da codificação e do armazenamento estão eles de alguma maneira interligados (Underwood, 1974). Por exemplo, ao conhecer alguém, a impressão causada pela pessoa é processada tanto em termos objetivos quanto subjetivos. Isto é, várias características são codificadas em paralelo, como a altura, a cor da pele e do cabelo, as roupas, uma tatuagem e inclusive o próprio estado interno (estar ansioso no momento, por exemplo). Segundo Smith (1979), estes múltiplos aspectos tendem a conectar-se entre si e às características contextuais do local. Algumas destas características terminam por serem melhor codificadas e armazenadas do que outras. Isso justifica porque podemos ser capazes de recordar algumas características de uma situação, mas não de outras. Igualmente, explica porque, ao se lembrar de um fragmento da situação, outros não antes lembrados passam a surgir na memória, como lâmpadas que vão se acendendo e iluminando a cena.
O princípio da especificidade de codificação foi classicamente ilustrado por Godden e Baddeley (1975). No experimento, um grupo de mergulhadores aprendeu listas de palavras debaixo da água e em terra. Mais tarde, os mergulhadores foram testados para recordar as listas de palavras, seja no mesmo ou em outro ambiente de aprendizagem. Os resultados indicaram que os mergulhadores lembraram cerca de 50% a mais de palavras quando estavam no mesmo contexto (i.e., mergulhados) do que aqueles que foram testados em terra. Portanto, a recordação foi aumentada quando o ambiente da codificação e da recuperação foram os mesmos.
Outros estudos também apontam na mesma direção: itens codificados na presença de um determinado paladar (Baker, Bezance, Zellaby &Aggleton, 2004) ou odor (Chu & Downes, 2000) são mais suscetíveis de serem lembrados na presença do mesmo paladar ou odor do que na presença de outros diferentes. Goodwin, Powell, Bremer, Hoine & Stern (1969) mostraram que pessoas que aprenderam informações alcoolizadas, obtiveram melhores escores em testes de memória quando estavam novamente alcoolizadas no momento do teste. Pesquisas investigando estados internos como o humor (Ellis & Moore, 1999; Pergher, Grassi-Oliveira, Ávila & Stein, 2006), o efeito de drogas (Eich, 1980), mudanças no estado fisiológico (Miles & Hardman, 1998), e o contexto cognitivo (Marian & Neisser, 2000) indicam que os aspectos do estado interno do indivíduo são codificados como parte da experiência de um fato.
Desta forma, a recriação desse estado durante a evocação ajudaria a recuperação das memórias sobre tal fato. Na EC, a técnica da RC é útil também porque explora elementos internos, como as emoções (i.e., como você estava se sentindo no momento?) e as cognições (i.e., que pensamentos lhe ocorriam?). Tais instruções permitem a ação dos efeitos do que também se chama memória dependente do estado interno, igualmente considerado um contexto (Eich & Metcalfe, 1989).
Stillman, Weingartner, Wyatt, Gillin & Eich (1974) propuseram uma analogia na qual a memória seria como um conjunto de diferentes arquivos armazenados. Nessa perspectiva, os estados internos não são arquivados separadamente, mas sim associados às operações cognitivas usadas para codificar e armazenar a informação. Assim, durante a codificação, um particular conjunto de operações cognitivas fica associado ao estado interno predominante daquele instante. No momento da recuperação, o estado interno serve como um sinal para ativar as mesmas operações cognitivas e o sistema de classificação que codificaram e armazenaram a informação. Desse modo, caso o estado interno durante a evocação seja outro em relação ao da codificação, serão acionadas também outras diferentes operações cognitivas. Isso resultará em um inapropriado sistema de classificação e busca de informações na memória que, por sua vez, dificultará a recordação.
É também presumido pelos princípios dos traços múltiplos e especificidade de codificação que só porque algo não foi lembrado num dado momento, não implica necessariamente que esta memória não exista. Muitas vezes, uma testemunha pode ter informações intactas na memória e mesmo assim não conseguir lembrá-las para relatar numa entrevista. A técnica da RC justamente tem o propósito de fornecer condições de recuperação que sirvam como pistas para acessar memórias eventualmente não disponíveis em um primeiro momento. Segundo La Rooy, Pipe e Murray (2007), pistas específicas de recuperação podem ser particularmente importantes após períodos longos de tempo entre a codificação e a recordação, especialmente para acessar detalhes específicos (Brainerd & Reyna, 1990). Nesse sentido, a técnica da RC oportuniza que a testemunha, ao conseguir resgatar um fragmento do evento, vá aos poucos evocando outras partes. Então, à medida que a testemunha está devidamente concentrada, não é interrompida nem pressionada psicologicamente ou pelo tempo, é natural que, ao buscar um item da memória, este ative outro item associado e assim por diante. Este processo tende a elevar consideravelmente a quantidade de informações ao final do relato. Sendo assim, podem ser lembradas informações que, sob outros métodos de entrevista, provavelmente não surgiriam, ainda que estivessem armazenadas na memória da testemunha.
De acordo com Smith (1994), o momento da recuperação de um determinado evento é um reiterado processo de busca ativa a um conjunto delimitado de informações. Nos casos em que estejam disponíveis pistas, estas facilitam o acesso às memórias porque permitem que a busca, em vez de ocorrer por toda a memória, seja mais dirigida. Assim, somente memórias associadas contextualmente às pistas estariam incluídas nesta busca. Esta hipótese é consistente com os achados tanto sobre memória dependente do contexto físico quanto do estado interno, que mostram maiores efeitos em testes de recordação do que em testes de reconhecimento (Godden & Baddeley, 1980; Smith et al., 1978). Essa diferença acontece porque nos testes de reconhecimento as informações já estão disponíveis e não há esta busca" ativa, enfim, não há necessidade de se consultar as informações do contexto. Existe apenas um processo de julgamento se as informações são condizentes ou não com a representação mental do fato. Essa falta de uma operação ativa levaria a um rebaixamento da qualidade da recuperação, o que justificaria o menor efeito do contexto em testes de reconhecimento em relação aos de recordação (Smith & Vela, 2001). Por exemplo, nos testes de reconhecimento de faces de suspeitos alinhados lado a lado, há diversos casos de erros cometidos por vítimas/testemunhas (Bartlett, Shastri, Abdi & Neville-Smith, 2009; Memon, Hope, Bartlett & Bull, 2002), ao passo que, através da recordação, a memória parece estar mais protegida contra falhas deste gênero.
A teoria do monitoramento da fonte proposta por Johnson, Hashtroudi & Lindsay (1993), pode colaborar para a compreensão sobre falhas na memória de reconhecimento na presença de pistas contextuais. O termo "fonte" diz respeito às condições em que um determinado evento foi codificado. Tais condições incluem os contextos espacial, temporal e social do evento, bem como as modalidades sensoriais envolvidas na aquisição da informação. Esse conjunto de características é a base a partir da qual o indivíduo irá fazer as discriminações sobre a efetiva realidade dos fatos rememorados. Nesse processo, o sujeito deve discernir memórias de pensamentos e/ou conteúdos imaginados, assim como discernir sobre a fonte da informação, buscando diferenciar entre várias fontes possíveis (sensoriais ou mentais, internas ou externas). O monitoramento da fonte pode ser feito de maneira rápida e automática sem consciência, baseado em julgamentos heurísticos sobre as características das memórias ativadas; ou de modo mais lento e controlado, através de processos cognitivos complexos e sistemáticos (Johnson et al., 1993; Mitchell, Johnson & Mather, 2003). Os critérios utilizados no julgamento do monitoramento da fonte tendem a ser mais rígidos e severos na recordação do que para fazer um julgamento de reconhecimento. Quanto mais parecidas forem as fontes, mais difícil será o correto monitoramento, gerando, assim, uma maior chance de erro de atribuição ou de julgamento (especialmente, nos testes de memória por reconhecimento) (Gauer & Gomes, 2008; Payne, Elie, Blackwell & Neuschatz, 1996).
Além dos diversos estudos com enfoque em modelos cognitivos, várias outras pesquisas sugerem também uma base neurobiológica para a ideia de memória dependente do contexto e, portanto, para a RC (Barsalou, 2008; Fletcher, Stephenson, Carpenter, Donovan & Bullmorel, 2003). Otten, Henson e Rugg (2002) mostraram que as atividades no cérebro em diferentes regiões durante a codificação estão correlacionadas com as áreas ativadas na recuperação da memória. Os córtices de associação auditivo e visual, por exemplo, ativados durante a codificação dos estímulos, são reativados quando estas informações auditivas e visuais são recuperadas (McKenzie & Eichenbaum, 2011; Polyn, Natu, Cohen & Norman, 2005). Já as amígdalas e outras regiões implicadas no processamento emocional, também se reativam durante a recordação da informação emocional (Lewis & Critchley, 2003; Smith & Mizumori, 2006). Em síntese, as investigações através de neuroimagem tem corroborado a ideia de que lembrar um episódio envolve reconstruir parcialmente o mesmo estado do cérebro presente durante a codificação. Tais achados neurobiológicos, portanto, convergem com a proposição de que recriar o contexto original mentalmente possui um efeito impactante para a recuperação de uma memória.
Em suma, para Tulving (1985), é a sobreposição ou a similaridade entre as pistas e os traços de memória que determina a quantidade e a qualidade da recuperação de informações. Quanto maior a correspondência entre as pistas fornecidas durante uma entrevista e os itens presentes no contexto da original, mais provável será da memória ser trazida de forma mais completa e fidedigna. Todavia, conforme Eysenck (1979), o mais importante para a recordação não seria tanto a simples sobreposição ou similaridade entre a pista e a informação armazenada, mas sim a extensão em que a pista fornecida permite discriminar se uma lembrança é correta ou incorreta. Isto é, não seria qualquer pista contextual capaz de otimizar a memória. Por exemplo, Nairne (2002) criou um experimento em que os participantes liam em voz alta uma lista de palavras: write, right, rite, etc. (todas com a mesma sonoridade). Depois, os participantes tinham que lembrar, por exemplo, a segunda palavra da lista, sendo que recebiam como pista a sonoridade da palavra (rima). Porém, a pista, apesar de compatível com a informação codificada, não se revelou útil porque não permitiu aos participantes discriminar a palavra correta a ser lembrada, uma vez que a pista (sonoridade) era também similar para as outras palavras aprendidas.
No testemunho, algumas vezes, dependendo da situação, uma pista também pode não ser útil (Fernandez & Alonso, 2001). Em algumas ocasiões recriar o contexto mentalmente pode ter o potencial de prejudicar a acurácia do relato (Oxburgh & Dando, 2011). Como a técnica propõe que o entrevistador forneça algumas pistas iniciais para induzir a recriação do contexto, pode haver casos nos quais as pistas genéricas dadas pelo entrevistador sejam incompatíveis com o evento original. Dado que cada fato testemunhado tende a ser uma experiência única, subjetiva e pessoal, algumas pistas providas pelo entrevistador (i.e., pistas relativas ao tempo, aos sons, ao cheiro) podem não ser importantes para todas as testemunhas. Isso porque a atenção é limitada e as pessoas tendem a focá-la de diferentes formas, para diferentes alvos. Por conseguinte, se mal aplicada, a técnica eventualmente, em vez de ajudar a memória da testemunha, pode deixá-la mais suscetível a erros e/ou distorções (Dando et al., 2009; Oxburgh & Dando, 2011). Um problema observado é que policiais muitas vezes entrevistam várias testemunhas sobre o mesmo crime e, conforme aumenta o número de entrevistas realizadas, é provável que o investigador vá formando a própria imagem do fato ocorrido. Desta maneira, existe a possibilidade do entrevistador (influenciado pelas diversas informações já colhidas) introduzir, inadvertidamente, pistas sugestivas na execução da técnica da RC, comprometendo, assim, a qualidade da informação trazida pela testemunha. Um dos meios para se evitar esse problema é o investimento em treinamento constante dos profissionais, visto que a tarefa do entrevistador demanda um notável esforço cognitivo. Em termos práticos, uma das medidas seria durante o rapport no início da EC, assim como logo antes da RC, frisar, além das instruções sobre dizer não sei e não lembro, principalmente a instrução de não adivinhar nem tratar suposições como memórias (Feix & Pergher, 2010).
Técnicas alternativas à recriação do contexto tradicional
Uma alternativa à RC padrão utilizada mais recentemente são desenhos ou esboços realizados com lápis ou caneta pela testemunha. Dando et al. (2009) mostraram que as testemunhas que durante o processo de recordação desenharam um esboço detalhado do que viram, obtiveram uma performance tão eficaz quanto aqueles que seguiram a técnica da RC tradicional. Os autores também identificaram menos informações errôneas com a utilização dos desenhos. Resultados semelhantes foram encontrados num estudo recente com 51 participantes acima dos 65 anos, faixa etária em que é comum um declínio da memória (Dando, 2013). Os participantes assistiram ao vivo a encenação de um assalto e foram entrevistados 48 horas depois, sendo divididos em três condições: (a) RC; (b) RC com desenho, e (c) sem recriação do contexto. O grupo que fez uso do desenho foi o que trouxe mais lembranças de dados corretos e menos de incorretos.
Neste procedimento com desenho, durante a entrevista, antes de começar o relato livre, a testemunha recebe um papel e um lápis e é instruí-da mais ou menos assim: o que eu gostaria que você fizesse, por favor, é desenhar um esboço ou um quadro detalhado do evento que você viu uns dias atrás. Além disso, a testemunha é encorajada a desenhar o máximo de detalhes, da forma e o quanto quiser: gostaria que você desenhasse o tanto de detalhes quanto possível sobre o evento. Pode ser como você quiser, qualquer coisa que você ache que poderá ajudá-lo a se lembrar do evento. Também lhe peço que descreva cada item/ coisa que você for desenhando. O tempo para a realização do desenho é livre (Dando, Wilcock, Milne & Henry, 2009).
A utilização do desenho tem a vantagem de introduzir menos informações potencialmente inapropriadas ou sugestivas e produzir menor carga cognitiva em comparação à RC mental tradicional. Consequentemente, diminuem as chances de distorções e/ou confabulações. Esse efeito é atribuído ao fato do desenho propiciar que a pessoa gere as suas próprias pistas, em vez de recebê-las arbitrariamente do entrevistador (Dando et al., 2008). Por ser relativamente simples de aplicá-la, a RC através do desenho/esboço gera vantagens também ao entrevistador que, dessa forma, reduz consideravelmente a carga cognitiva necessária para o automonitoramento durante a aplicação da RC. Tudo isso sem comprometer a eficácia dos conhecidos princípios mnemônicos por detrás da técnica que tanto otimizam a quantidade e a qualidade de um depoimento. A eficácia do desenho/ esboço tem sido tão positiva que recentemente foi incorporado a um protocolo de entrevista escrita auto-aplicável chamado Self-Administered Interview (SAI) criado no Reino Unido por Gabbert, Hope & Fisher (2009). Trata-se de um modelo de entrevista baseado nos princípios da EC, porém não demanda um entrevistador, já que a própria testemunha lê as instruções e as responde nas folhas do protocolo.
Além do uso de desenho, a simples instrução de fechar os olhos parece alcançar resultados similares à técnica da RC. Num estudo, 96 testemunhas, após assistirem a uma simulação de um assalto na rua, foram entrevistadas dentro de um ambiente tranquilo ou em uma rua movimentada, com os olhos abertos ou fechados (Vredeveldt & Penrod, 2013). Um grupo tinha que apenas fazer um relato livre de olhos fechados e o outro com os olhos abertos. Os participantes que fecharam os olhos tiveram um aumento significativo no número de informações relatadas, sem prejuízo na precisão destas informações. Esse benefício ocorreu para as testemunhas entrevistadas numa sala fechada, mas não para aquelas entrevistadas na rua. Este achado sugere que a testemunha, apenas ao manter seus olhos fechados (sem receber qualquer outra instrução), pode produzir uma RC espontânea. Após o relato livre, na recordação com pistas, os olhos fechados ajudaram a recuperar detalhes visuais bem específicos tanto para os entrevistados na sala quanto na rua. Estes resultados corroboram os de Caruso e Gino (2011), que evidenciaram que os olhos fechados induziram os participantes a recriar mentalmente os fatos ocorridos de forma mais extensiva, mesmo na ausência de instruções.
Wagstaff, Wheatcroft, Caddick, Kirby e Lamont (2011) testaram a instrução olhos fechados dada junto com a RC para crianças de seis a sete anos e adultos. Os resultados mostraram que fechar os olhos, somado à RC, ajudou significativamente a memória das crianças e adultos, sem aumentar erros ou inflacionar a convicção em informações erradas. Os indicativos de que a instrução de fechar os olhos durante a recuperação auxilia a memória apoia-se no pressuposto de que a testemunha se torna menos passível a distrações presentes no ambiente (incluindo o próprio contato visual com o entrevistador), além de favorecer a concentração nas imagens e sons da situação (Perfect et al., 2008). Sendo assim, acredita-se que a instrução de fechar os olhos para fazer o relato livre seja uma alternativa nos casos em que os policiais têm pouco tempo e colhem os relatos na rua ou quando não possuem treinamento em EC. É também uma maneira do entrevistador se beneficiar da RC, uma vez que esta tende a acontecer naturalmente na mente da testemunha quando ela fecha os olhos, sem a necessidade do entrevistador fornecer instruções.
Considerações finais
Por tratar-se de uma área com diversas implicações jurídicas que atingem desde a sociedade até vidas privadas, a abordagem científica do testemunho é fundamental. O objetivo deste artigo foi revisar e discutir sobre uma das formas de entrevista investigativa mais pesquisadas e bem sucedidas na atualidade: a Entrevista Cognitiva. Mais especifica-mente, enfocou-se a recriação do contexto, uma das técnicas que compõe a EC e que tem demonstrado ser a mais potente no favorecimento da memória de testemunhas (Dando et al., 2008). Nota-se que a técnica da RC possui uma relevante sustentação teórica e empírica observada através de um diverso rol de estudos científicos tanto em pesquisa básica quanto aplicada. Acredita-se que para aqueles que utilizam a RC na sua prática profissional tão ou mais importante do que a constatação de sua eficácia, é conhecer e compreender os mecanismos e fundamentos teóricos que a amparam. Ao aprender mais sobre o funcionamento da memória, os entrevistadores ganharão em segurança sobre o uso da técnica e também terão maior consciência sobre as suas limitações e possíveis riscos.
Visto que o foco do presente estudo foi a revisão e a discussão da técnica da recriação do contexto e das teorias relacionadas à memória que a fundamentam, sugere-se uma metanálise a respeito da técnica, haja vista que tal proposta ainda não foi produzida e seria de grande valia para o tema. Pois, constatou-se que há variações na aplicação da técnica e possivelmente nos efeitos sobre os diferentes públicos (adultos, idosos, crianças, pessoas com déficits cognitivos, etc.). Em relação a crianças, percebeu-se a carência e a necessidade de um estudo empírico sobre o uso de desenhos a fim de conferir se os resultados também serão positivos.
Levando-se em conta que nossas memórias são uma mescla de memórias originais junto com informações subsequentes (e potencialmente falsas/ enganosas), na verdade, o mais incomum para qualquer testemunha seria ter a capacidade de produzir um relato completo e exato de um evento passado. Ainda assim, acredita-se na necessidade de esforços e caminhos para se obter o melhor relato possível de cada testemunha decidida a cooperar em um depoimento. A EC, incluindo a técnica da recriação do contexto, é certamente um destes caminhos.
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