Introdução
O trabalho é um aspecto essencial da vida das pessoas e um componente importante para a saúde mental (Duffy et al., 2016). Dito de outra forma, para além de fonte de renda, pode-se refletir que o trabalho exerce um papel fundamentalmente social e, até mesmo, nos processos identitários dos indivíduos. Atualmente, o uso de tecnologias, facilidades de negociação e criação de novos formatos de atuação aprimoram a relação das pessoas com o trabalho. Por outro, as desigualdades, concentrações de renda, redução de ofertas de emprego, mudanças nas relações legais e jurídicas (ex.: terceirização; trabalho temporário), entre outros também se fazem presentes nesse contexto (OIT, 2019).
Nesta conjuntura, ressalta-se a importância de estudos inclusivos, baseados na Psicologia do Trabalhar, que contemplem as pessoas que trabalham, aqueles que querem trabalhar, trabalhadores do cuidado e não somente grupos elitizados e escolarizados (Duffy et al., 2016). Neste cenário é importante um avanço investigativo e interventivo para além daqueles profissionais que trabalham em organizações, sendo necessário incluir uma agenda com populações de diferentes posições sociais (ex. minorias), em situações de informalidade e ou em busca de inserção profissional (ex. desempregados e alentados) (Blustein et al., 2019).
Uma situação decorrente das diferentes e recentes transformações econômicas, sociais e pandêmicas é a ampliação dos contextos informais de trabalho (Blustein & Guarino, 2020). Em síntese, para o presente estudo, concebe-se enquanto trabalho informal o exercício laboral desenvolvido sem que haja regulamentação do Estado (Santos & Mesquita, 2016). No entanto, a conceituação de trabalho informal possui alguns pontos conflitantes, uma vez que existem variações como os estatutos nacionais de economia infromal, legislações jurídicas, mercado informal e o trabalho informal, porém esta diversidade possui um ponto em comum referente a sua principal categorização em termos de prática: a ausência de regulamentação por parte do Estado (Lima & Soares, 2002).
Se por um lado as organizações que tradicionalmente oferecem trabalhos formais estão expostas ao impacto das novas tecnologias e a um mercado externo cada vez mais competitivo e instável, o mercado informal também é atravessado por essas características (Blustein, 2019), todavia com efeitos pouco explorados no contexto acadêmico e científico. Aos trabalhadores que estão em condição informal, evidencia-se a autonomia e flexibilidade, como explicado pelo fenômeno da uberização e empreendedorismo. Segundo Slee (2018), emerge-se um espaço de atuação e o seu reflexo nas relações de trabalho e na economia global tem sido extensamente documentados. O fenômeno se dá, nas palavras de Abílio (2019), como novas formas de gerir, organizar e controlar o trabalho, na qual troca-se o papel identitário de trabalhador para uma espécie de empresário de si próprio. Cabe o apontamento, que embora o fenômeno tenha sido referenciado pelo prefixo “Uber”, derivado da empresa de mesmo nome, a uberização é constituída por uma gama de plataformas digitais distribuídas globalmente, que unem os prestadores de serviço aos consumidores (ex. serviços de hospedagem de curta duração, serviços de manutenção, entre outros).
O quadro descrito sobre a expansão do trabalho informal e suas consequências já era uma realidade presente no contexto mundial e brasileiro previamente à pandemia Sars-CoV-2, convencionalmente chamada de Covid-19. Os reflexos da pandemia ampliam tais consequência e de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2020), nos países da América Latina e Caribe aproximadamente 158 milhões de pessoas estarão em uma natureza laboral com contornos de informalidade. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2020), através da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Contínua (COVID – 19), desde o mês de maio de 2020, a taxa de desocupação, saltou de 10,1 milhões para 14 milhões de pessoas em novembro, sendo registrado um número de 29,2 milhões de trabalhadores informais, número equivalente a 34,5% do total de ocupados.
Em um cenário de coexistência entre trabalho precário, informal e formal, bem como perspectivas futuras de instabilidade e deterioração do trabalho (DIEESE, 2020), desenvolve-se o presente artigo, sob o viés da The Psychology of Working Theory (PWT) (Blustein, 2006; Duffy et al., 2016), voltado para adaptação e evidências psicométricas de uma medida psicológica para avaliação da satisfação de trabalhadores em contextos formais e informais de trabalho.
Teoria da Psicologia do Trabalhar (TPT)
A “Psychology of Working Theory”, traduzida para o português como Teoria da Psicologia do Trabalhar (TPT) (Pires, Ribeiro & De Andrade, 2020), possui como um dos pressupostos centrais abranger quem trabalha e quem deseja trabalhar, de maneira mais inclusiva, além da tentativa de compreender também as experiências dos diversos tipos de trabalhadores nesse novo contexto ocupacional de transformações (Blustein et al., 2019). Assim, a TPT assume o compromisso inclusivo, uma vez que foge da perspectiva mais restritiva dos campos de estudos da área, que tradicionalmente contemplam trabalhadores e ocupações que se encontram em posições de privilégios a nível individual e/ou social, ou ainda que ocorram em organizações tradicionalmente estruturadas e populações mais escolarizadas (ex. universitários) (Mcmahon, Watson & Lee, 2019).
Um dos conceitos centrais da Psicologia do Trabalhar é o trabalho decente, que, de acordo com a OIT (2019), envolve condições adequadas e dignas relacionadas à segurança física e psicológica, o acesso aos cuidados de saúde, a compensação adequada, o tempo livre e descanso adequados, etc. Outro ponto principal da teoria é a inclusão e entendimento da experiência dos grupos marginalizados socialmente (ex. minorias de orientação sexual, de gênero e étnicas) e de restrição econômica, que está associada à classe social e recursos financeiros disponíveis (Duffy et al., 2016).
Os estudiosos da Psicologia do Trabalhar têm dedicado esforços consideráveis para compreensão dos sistemas que perpetuam as desigualdades com base nas identidades e privilégios econômicos (Blustein et al., 2019). Diante desse quadro, o viés da Psicologia do Trabalhar foi escolhido para esse estudo, visto que sua teoria abarca os trabalhadores informais, grupos marginalizados, bem como características do contexto social atual, sendo variável importante para dimensões convergentes e discriminantes de uma medida de satisfação no trabalho.
Satisfação no Trabalho e suas medidas
Os estudos sobre a satisfação experienciada no trabalho assumiram diversas perspectivas ao longo das investigações do tema (Judge et al., 2017; Locke, 1976), ocupando-se de associar o construto com variáveis contextuais (ex. ambiente de trabalho) e disposicionais (ex. motivação) (Salessi, De Andrade & Omar, 2020). Suas definições constitutivas e operacionais e englobam dimensões avaliativas sobre o ambiente de trabalho (ex. segurança no trabalho), relacionamento com chefia e colegas (ex. relacionamento), aspectos estruturais de progressão e salários (ex. compensação adequada), justiça distributiva (ex. equidade na distribuição de responsabilidades), entre outros (Judge et al., 2017; Oliveira et al, 2019; Raziq & Maulabakhsh, 2015). Dessa maneira, sentimentos, respostas emocionais, atitudes e compreensões com relação às experiências de trabalho correspondem as definições gerais aceita pela maioria dos pesquisadores sobre construto (Judge & Kammeyer-Mueller, 2012; Judge et al. 2017; Salessi, 2014; Schlett & Ziegler, 2014).
Para avaliação psicométrica da satisfação no trabalho no Brasil e ao redor mundo existem escalas que se ocupam desse objetivo, sendo estas com estruturas multidimensionais (Carlotto & Câmara, 2008; Coelho Júnior & Faiad, 2012; Cruz, Ferreira & Gabardo-Martins, 2020; Martins & Santos, 2006; Siqueira, 2008) ou unidimensionais (De Andrade, Omar e Salessi, 2020; Mac Donald e Mac Intyre, 1997). No contexto das principais medidas com evidências científicas e voltadas para o contexto brasileiro, grande parte é desenvolvida com itens com conteúdo pertinentes a avaliação da satisfação no trabalho em organizações formais (Coelho Júnior & Faiad, 2012; Siqueira, 2008), avaliando muitas vezes dimensões do trabalho não pertinentes a trabalhadores de contexto informal ou não organizacional, com itens que procuram avaliar, por exemplo, a satisfação com o sistema de cargos e salários da empresa.
No cenário do trabalho informal, Esteves, Vasques-Menezes e Freitas (2019), construíram uma medida de satisfação no trabalho para esta população. O instrumento na estrutura final conta com 39 itens e quatro dimensões, que avaliam a relação com o trabalho (α = 0,93), segurança e vínculo (α = 0,85), rendimento e qualidade de vida (α = 0,91) e desenvolvimento pessoal e profissional (α = 0,87). Sendo o instrumento desenvolvido e validado apenas com profissionais de contexto de informalidade, não se torna uma ferramenta adequada do ponto de vista de suas propriedades psicométricas para investigações com profissionais informais e formais simultaneamente.
No cenário de ferramentas curtas e unidimensionais foi elaborada a Escala de Satisfação Laboral Geral, originalmente desenvolvida por Mac Donald e Mac Intyre (1997), adaptada para o contexto brasileiro por De Andrade, Omar e Salessi (2020). A medida se propõe a investigar o construto a partir de uma perspectiva global e breve com 7 itens (ex.: Em meu trabalho, posso aplicar minhas capacidades e habilidades), respondidos através de uma escala do tipo Likert de cinco intervalos (1 – discordo totalmente a 5 – concordo totalmente). O instrumento apresentou bons índices de consistência interna (ω = 0,77; fidedignidade composta = 0,75), além de indicadores de invariância configural, métrica e escalar entre amostras de profissionais formais brasileiros e argentinos (Salessi, De Andrade, & Omar, 2020).
Para Damásio (2013), a existência da opção de instrumentos breves para avaliação de construtos psicológicos se dá pelo fato de serem vantajosos por propiciarem menor exaustão ao participante. Desse modo, apesar da escala proposta por Esteves, Vasquez-Menezes e Freitas (2019) de apresentar boas evidências de validade na população de profissionais informais, seu processo de construção e amostra não viabilizaram comparações científicas com populações de profissionais formais. Desta forma, pensar em instrumentos que mensurem o fenômeno em formato breve com trabalhadores informais e formais simultaneamente é de suma importância. Diante deste cenário, o presente trabalho busca disponibilizar uma medida breve da satisfação laboral geral, que possar ser utilizada para avaliação de dimensões da satisfação no trabalho realizados em contextos informais e formais. A natureza de uma nova metodologia que atenda contextos e populações nem sempre tradicionais na investigação científica, atende a preceitos da teoria da psicologia do trabalhar, a qual propõem uma análise mais integrativa e abrangente de todas as pessoas que trabalham e querem trabalhar.
Método
Participantes
O estudo contou com uma amostra total de 1309 trabalhadores brasileiros de diferentes regiões do território nacional. Duas ondas de coleta de dados foram realizadas. A primeira foi conduzida com 709 participantes, sendo 368 mulheres (51,9%) e 341 homens (48,1%). A média de idade deste grupo foi de 39,60 anos (DP = 11,45) e, quanto ao estado civil, 337 (47%) participantes declaram-se casados, sendo seguido por 243 solteiros (34%). A escolaridade predominante da amostra foi pós-graduação com 58% (N = 413), seguido por ensino superior completo com 26% (N = 182) e ensino médio completo com 12% (N = 85).
A segunda onda de coleta de dados contou com 600 pessoas. Entre estes, 429 (71,5%) eram do sexo feminino e 171 (28,5%) do sexo masculino. A idade média foi de 34,38 anos (DP = 12,35) e com etnia autodeclarada de maioria parda (N = 248; 41,33%). Neste grupo, pessoas com pós- graduação foram a maioria (29%; N = 179), seguido por ensino médio completo (18,7%; N = 113). Quanto à natureza do trabalho, 298 (49,93%) participantes estiveram no grupo de desempregados ou foram do mercado formal de trabalho e 302 (50,03%) no grupo de profissionais com vínculo formal ou servidores públicos.
Procedimentos de adaptação e levantamentos de evidências psicométricas Escala de Satisfação Geral no Trabalho sob o viés da Teoria da Psicologia do Trabalhar (ESGT-TPT)
A ESGT-TPT foi elaborada a partir da seleção de itens da Escala Genérica de Satisfação no Trabalho, originalmente desenvolvida por Mac Donald e Mac Intyre (1997) e adaptada para o contexto brasileiro por De Andrade, Omar e Salessi (2020). A primeira etapa do processo de adaptação do instrumento envolveu uma seleção prévia dos itens pelos autores, excluindo aqueles itens que mencionavam diretamente o contexto organizacional. Foi possível perceber que itens que faziam referência direta ao trabalho realizado em uma organização/empresa (por exemplo: “me sinto bem trabalhando para essa empresa”), não faziam parte da realidade de muitos trabalhadores devido ao desemprego ou à informalidade de sua atividade de trabalho. Aspectos também pertinentes ao item associado a qualidade no trabalho com colegas de empresa (ex. Me sinto confortável com meus companheiros de trabalho), nem sempre é presente para profissionais que trabalham sozinhos ou não possuem colegas formais de uma jornada tradicional de trabalho. Na sequência, versão piloto do instrumento foi aplicada no formato de entrevista em cinco trabalhadores informais ou fora do mercado formal, os quais manifestaram facilidade na compreensão dos itens previamente selecionados. Assim, foram mantidos cinco itens da escala original com conteúdo associados a natureza do trabalho, sem a menção de dimensões organizacionais.
No processo de geração de evidências para distintas populações de trabalhadores (formais e informais), o instrumento foi testado em dois contextos empíricos, sendo utilizados além dos procedimentos fatoriais exploratórios e confirmatórios na versão brasileira (De Andrade, Omar & Salessi, 2020), testes de invariância da medida em populações de respondentes de distintas classes sociais (alta e baixa), natureza do trabalho (formal x trabalhadores informais e fora do mercado formal) e gênero (homem x mulher). Procedimentos de evidência convergente e discriminante foram realizados ao final do estudo com distintos construtos psicológicos (trabalho decente, adição ao trabalho, engajamento no trabalho e status social).
Instrumentos
Este estudo faz parte de um projeto longitudinal, envolvendo objetivos teóricos e metodológicos dentro da perspectiva teórica da Psicologia do Trabalhar. Desta forma nem todos os instrumentos foram respondidos nas duas ondas da coleta, sendo divididos em instrumentos da primeira e segunda coleta.
I) Ambas as coletas
a. Questionário sociodemográfico: composto por questões como idade, escolaridade, estado civil, tipo de vínculo de trabalho e ocupação; teve como objetivo caracterizar os integrantes de ambos os grupos da amostra.
b. Escala de Status Social Subjetivo (ESSS): Desenvolvida por Adler e colaboradores (Adler et al, 2000) e adaptada para o contexto brasileiro por Giatti e colaboradores (Giatti et al., 2012), a medida solicita que o participante ao visualizar a figura de uma escada, demonstre onde ele está na sociedade, desde o degrau inferior (1) ao degrau superior (10). Com base nesta escala os participantes foram classificados em classe social alta e baixa.
c. Escala de Satisfação Geral no Trabalho sob o viés da Teoria da Psicologia do Trabalhar (ESGT-TPT): adaptada no presente estudo a partir da versão brasileira de De Andrade, Omar e Salessi (2020).
II) Segunda coleta
a. Escala de conflito trabalho-família (CTF): desenvolvida por Netemeyer, Boles e McMurrian (1996) e adaptada para o contexto brasileiro por Aguiar e Bastos (2013), o instrumento visa avaliar percepções acerca do conflito trabalho-família. Possui 10 itens e apresenta uma estrutura bidimensional, dividida entre Interferência do Trabalho na Família (cinco itens) e o Interferência da Família no Trabalho (cinco itens), com alfa de Cronbach de 0,90 e 0,86 em cada fator, respectivamente. Os itens são respondidos através de escala Likert de seis pontos, indo de “discordo totalmente” a “concordo totalmente” (ex.: “as demandas do meu trabalho interferem na minha vida familiar”; “as pressões geradas pela minha família interferem no meu desempenho no trabalho”).
b. Escala Utrecht de Engajamento no Trabalho (UWES-9): escala que avalia engajamento no trabalho, adaptada e tendo suas evidências de validade investigadas na versão brasileira por Ferreira et al. (2016). Contém nove itens, sendo dividida em três fatores: vigor (três itens), dedicação (três itens) e absorção (três itens). Possui alfa de Cronbach de 0,93 e confiabilidade composta (CC) de 0,91, utilizando-se de escala Likert para as respostas aos itens, variando de 0 (“nunca”) a 6 (“sempre”) (ex.: “Em meu trabalho, sinto-me repleto (cheio) de energia”).
c. Escala de trabalho decente (DWS): o instrumento busca avaliar o construto de trabalho decente. Adaptado para o Brasil por Ribeiro, Teixeira e Ambiel (2019), é composto por 15 itens, divididos em cinco fatores que são: condições seguras de trabalho (α = 0,79; ω = 0,80), acesso à serviços de saúde (α = 0,95; ω = 0,95), compensação adequada (α = 0,90; ω = 0,92), tempo livre e de descanso (α = 0,82; ω = 0,84) e valores complementares (α = 0,96; ω = 0,96), com bons índices de confiabilidade. As respostas são obtidas por meio de escala Likert, que varia de 0 a 7, sendo 0 correspondente a “discordo totalmente” e 7 a “concordo totalmente” (ex.: “No trabalho, eu me sinto protegido de abusos emocionais ou verbais de qualquer tipo”). As dimensões de compensação e tempo livre são estruturadas com itens invertidos.
d) Dutch Work Addiction Scale (DUWAS): adaptada para o Brasil por Carlotto e Miralles (2010), busca avaliar adição ao trabalho por meio de 10 itens e dois fatores: trabalho excessivo e trabalho compulsivo. Apresentou bons índices de confiabilidade para ambas as dimensões, 0,70 e 0,74, respectivamente. Utiliza-se de escala Likert para obter as respostas itens, variando entre 1 a 4, sendo 1 correspondente a “nunca” e 4 a “todos os dias” (ex.: Geralmente estou ocupado, tenho muitos assuntos sob meu controle).
Procedimentos éticos e de coleta de dados
O estudo foi preliminarmente avaliado e aprovado pelo Comitê de ética da Universidade [omitido], sob o CAEE nº [omitido], de acordo com a Resolução nº 466/12 que postula sobre pesquisas com seres humanos (CONEP, 2014). Com a autorização, a coleta de dados foi realizada de maneira online, sendo utilizado a plataforma google para hospedagem do questionário. Os participantes da pesquisa foram recrutados a partir de convites personalizados em rede sociais e grupos de WhatsApp. Com devido aceite em participar da pesquisa, os voluntários recebiam um link com questionário do estudo. O tempo médio de resposta do instrumento foi de 5 a 10 minutos.
Análise de dados
Os softwares utilizados para a análise estatística do presente estudo foram o Factor (Ferrando & Lorenzo-Seva, 2014), R (R-Project, 2021) e o Mplus (Muthén & Muthén, 2012). Inicialmente, o banco de dados foi mapeado a procura de dados omissos. Quando identificados, estes foram substituídos por meio do método Estimation-Maximization – EM (Tabachnick & Fidell, 2013). Os índices de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) e de esfericidade de Bartlett foram verificados a fim de examinar a possibilidade de fatorização da matriz de dados. Sequencialmente, com os dados da primeira onda de coleta, executaram-se análises fatoriais exploratória (AFE) com matrizes paralelas com o estimador Unweighted Least Squares (ULS) (Lloret-Segura et al., 2014). Para investigar a dimensionalidade e estrutura fatorial da escala foi empregada uma análise paralela.
Na segunda onda da coleta foram procedidos procedimentos fatoriais confirmatórios, através do estimador WLSMV (mean and variance-adjusted weighted least squares). Tomando enquanto critério os valores e estimadores seguindo Brown (2015), onde Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA) tenha valores desejados os inferiores a 0,10; X2/gl com valores esperados menores que 0,5; Tucker-Lewis Index (TLI) e Comparative Fit Index (CFI) com valores desejados para ambos acima de 0,90. O instrumento também foi submetido à análise fatorial confirmatória multigrupo (AFMG) (Damásio, 2013), para investigação da possibilidade de invariância da medida entre os grupos respondentes em classe social subjetiva (AB e CDE), natureza do trabalho (formal x informal) e gênero (homem x mulher).
Procedimentos de correlação do tipo r de Pearson foram executados entre o escore geral de satisfação no trabalho e medidas convergentes/divergentes de conflito trabalho-família, trabalho decente, engajamento no trabalho e adição ao trabalho. Por fim, realizaram-se cálculos dos coeficientes do tipo Alfa de Cronbach e Ômega de McDonald (Marôco, 2010).
Resultados
Análise Fatorial Exploratória
Utilizando-se do primeiro grupo amostral, analisaram-se os indicadores de adequação dos dados para realização dos procedimentos estatísticos, onde os índices Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) e de esfericidade de Bartlett foram significativos [KMO = 0,75; Bartlett, χ²(10) = 1447; p<0,000], indicando fatoração da matriz de dados. A tabela 1 apresenta os resultados da análise fatorial exploratória de correlações policóricas e valores descritivos do procedimento realizado.
Observa-se através dos resultados das cargas fatoriais dos itens, que a escala possui estrutura interna unidimensional consistente com modelo teórico (De Andrade, Omar & Salessi, 2020; Mac Donald & Mac Intyre, 1997), uma vez que todos os itens apresentaram cargas acima de 0,50 variando entre 0,61 e 0,79 (Tabela 1). Resultados que se alinham ao previsto em literatura, na qual se indicam valores acima de 0,50 (Hair et al., 2009). A análise de confiabilidade realizada através do coeficiente Alfa de Cronbach e Ômega apontou valores positivos, sendo os respectivos valores: 0,77 e 0,78.
Análise Fatorial Confirmatória e Testes de Invariância
Com o segundo grupo amostral e a partir do modelo unidimensional sugerido pela AFE, realizou-se uma análise fatorial confirmatória. Os índices de ajustes CFI e TLI foram plenamente satisfatórios e superiores a 0.90. O índice de ajuste RMSEA não se mostrou adequado, apresentando um valor de 0,16 [0,13-0,19]. Assim, optou-se por testar um segundo modelo, utilizando-se os indicadores de modificação, com a correlação dos erros dos itens 4 e 5 (0,78), nomeado de modelo 1’. Nessa segunda tentativa, observou-se melhoria dos índices de ajuste, com valor de RMSEA próximo ao ideal no intervalo de confiança do modelo.
A análise fatorial confirmatória multigrupo (AFMG) procedeu-se através do modelo configural, métrico e escalar unidimensional. Os resultados encontrados para os três grupos analisados (classe social subjetiva, natureza do trabalho e gênero informado), considerando o critério ΔCFI > 0,05, indicaram invariância da medida para os três grupos. A tabela 2 apresenta os resultados encontrados na AFC, juntamente com análises de invariância da medida segundo classe social subjetiva (alta e baixa), natureza do trabalho (formal x trabalhadores informais e fora do mercado formal) e gênero (homem x mulher).
Evidências externas
A escala de satisfação no trabalho obteve correlações significativas com diferentes construtos, indicando evidências convergentes com engajamento no trabalho (r = 0,59; p<0,001), trabalho decente (segurança, r = 0,62; valores, r = 0,42; p<0,001) e discriminantes com sobrecarga no trabalho (r = 0,90; p<0,001), trabalho interferindo na família (r = -0,20; p<0,001) e dimensão de compensação de trabalho decente (r = -0,40; p<0,001). Não houve correlações significativas com família interferindo no trabalho, adição ao trabalho e dimensões de trabalho decente associadas à saúde e tempo livre.
Para avaliar aspectos preditivos da ESGT-TPT foi realizado um teste Anova de comparação de médias entre os grupos de classe social alta e baixa. Os participantes do grupo de status social maior (ex. classe AB) obtiveram valores de média mais elevados (M = 3,90; DP = 0,75) do que participantes de menor classe social (ex. C, D e E) (M = 3,20; DP = 0,80) (F (1,514) = 92; p<0,001; n2 = 0,22). Aspectos que, no geral, indicam a capacidade do instrumento em diferenciar satisfação no trabalho entre trabalhadores de distintas classes sociais.
Discussão
O presente trabalho procurou adaptar para o contexto brasileiro uma medida de avaliação da satisfação no trabalho de profissionais inseridos em contextos formais e informais. O instrumento foi adaptado envolvendo uma etapa piloto de avaliação da semântica dos itens, sendo sequenciado por duas ondas de coleta de dados, gerando diferentes evidências positivas de validade da Escala de Satisfação Geral no Trabalho sob o viés da Teoria da Psicologia do Trabalhar (ESGT-TPT). A ESGT-TPT na sua estrutura final contou com cinco itens, todos com uma linguagem de fácil entendimento e aderentes às diferentes realidades dos trabalhadores formais e informais, bem como evidências de invariância em distintas classes sociais (AB e CDE) e gênero (homens e mulheres).
Ainda sobre o instrumento foram observadas cargas fatoriais que indicam coerência com a estrutura unidimensional da primeira versão da escala adaptada com sete itens no Brasil (De Andrade, Omar & Salessi, 2020); além de boa consistência interna com indicadores de precisão Alfa e Ômega. A ESGT-TPT obteve ainda correlações positivas e negativas com outros constructos, trazendo evidências externas e discriminantes do instrumento com engajamento no trabalho, sobrecarga de trabalho, conflito trabalho-família e trabalho decente. Do ponto de vista de aspectos preditivos, foi possível verificar ainda a capacidade do instrumento em diferenciar aspectos de satisfação de trabalho, segundo classe social, indicando assim a boa predição da medida para comparações nestes grupos.
Considerando o objetivo geral deste trabalho em disponibilizar uma medida psicométrica que possa ser utilizada para avaliação de trabalhadores com diferentes perfis ocupacionais e relações legalista com o mercado trabalho, a ESGT-TPT apresenta-se como um instrumento com características inclusivas e atendem as demandas de investigação com populações menos favorecidas (Blustein, 2006; Duffy et al., 2016). Nesta direção, os resultados da análise fatorial confirmatória multigrupo são considerados um tipo refinado de evidências de validade de um instrumento (Damásio, 2013), aspectos ainda pouco utilizados em medidas no contexto de trabalho no Brasil. Os procedimentos e resultados encontrados acerca da invariância do instrumento foram de suma importância não somente pelas qualidades psicométricas que apontaram sua invariância entre grupos, mas também pela possibilidade de analisar distintas formas de vinculação com a natureza do trabalho (trabalho formal e informal), além da comparabilidade de classes sociais (privilegiados e menos favorecidos) e gênero (homens e mulheres).
Uma análise específica do relacionamento com variáveis externas, alinhada aos estudos de Karanika-Murray et al. (2015), bem como os achados de Garg, Dar e Mishra (2017), demonstraram relação positiva entre os colaboradores que apresentavam engajamento no trabalho com a satisfação laboral. Em relação à associação negativa da satisfação laboral e sobrecarga, os resultados também foram de acordo com a teoria, uma vez que Dwinijanti, Arrozi e Kusumapradja (2020), já apontavam para correlação negativa. Cabe ressaltar que tal relação negativa de magnitude alta encontrada demonstra a importância do constructo para amortecer os impactos da sobrecarga no trabalho.
Por sua vez, a relação positiva com trabalho decente (segurança e valores) e negativa com compensação (sendo esta mensurada no sentido inverso), foi consistente com estudo de Wang et al. (2019) e Ribeiro, Teixeira e Ambiel (2019), o qual demonstram que a percepção de um trabalho decente, eleva a percepção de consequentes positivos no trabalho e na vida não trabalho. Especialmente sobre a relação trabalho-família, na dimensão de conflito de trabalho interferindo na família, a relação negativa demonstra o efeito extrapolados destes domínios. De maneira semelhante, Oliveira, Cavazotte e Paciello (2013) indicaram que um alto nível de conflito trabalho- família está associado a redução da satisfação no trabalho. Assim, a relação do conflito trabalho- família e satisfação encontrada no presente estudo, foi consonante com tais resultados, não somente na direção da relação, mas também acerca da magnitude encontrada ser baixa.
As últimas décadas trouxeram um gradativo processo de flexibilização nas leis trabalhistas. Tal cenário culminou no aumento considerável de trabalhadores terceirizados, informais, autônomos e intermitentes (Antunes, 2015). Esse quadro em conjunto com a crise sanitária e econômica advinda da pandemia Sars-Cov-2 revela a importância de estudos psicológicos abraçarem todos as possibilidades de exercício laboral (Duffy et al., 2016). Partindo do contexto apresentado, se faz necessário o questionamento a respeito de instrumentos que mensurem fenômenos relacionado aos aspectos psicossociais do trabalho, em geral, construídos e amplamente utilizados atendendo especialmente características do trabalho formal, sem considerar as consequências advindas de outras possibilidades de exercício de trabalho, como por exemplo, trabalho informal.
Considerando as consequências de recentes reformas trabalhistas que valorizam uma cultura mais individual e menos estadistas dos contratos de trabalho (Ribeiro, 2020), alinhadas ao crescimento do trabalho crescimento do trabalho informal pelo Brasil e no mundo (Blustein & Guarino, 2020; Moraes, 2020), alimentando exponencialmente pela crise mundial advinda Pandemia Sars-Cov-2 no mercado de trabalho, enfatiza-se a importância de pesquisas que possam avaliar aspectos afetivos e consequente do ato de trabalhar. Assim, os resultados encontrados no presente estudo apresentam um instrumento com boas propriedades psicométricas, que podem alimentar com cientificidade a agenda de pesquisa e intervenção que promova justiça social, inclusão no desenvolvimento profissional e maior equidade na distribuição de recursos, conforme pressupostos centrais da TPT (Blustein et al., 2019).
Para futuras investigações interessadas no uso do instrumento e da teoria, aponta-se enquanto limitações desse estudo o fato da amostra ter sido coletada por conveniência, o que por sua vez influencia a sua capacidade de generalização. Ademais, o fato de o instrumento ter sua coleta através do autorrelato, pode não condizer, de fato, com o que o participante gostaria de responder. Nesta direção são sugeridos, de acordo com pressupostos da TPT, o uso de abordagens qualitativas para avaliação de dimensões do trabalho, sendo recomendado o uso de ferramentas e metodologias narrativas, por exemplo (McMahon, Watson, & Lee, 2019).
No que tange aos resultados da segunda onda de coleta, constatou-se que os índices de ajuste de modelo não foram plenamente satisfatórios no índice de RMSEA. Tal aspecto pode estar associado ao fato de amostras pequenas sofrerem penalizações e inflarem valor do estimador (Kline, 2015). Em paralelo, através do procedimento de sugestão dos índices de modificação, o valor do intervalo de confiança alterou-se, indo de 0,00 a 0,12. Tendo em conta tais resultados, é possível considerar que o upper bound possa estar associado ao fato de que o grau de liberdade em ambos os modelos sejam e/ou estejam próximos a 5, conforme também indicado por Kline (2015). Tais considerações devem ser revistas em estudos futuros, com a sugestão da necessidade de contemplarem amostras maiores para dados mais sólidos acerca da qualidade psicométricas de ajuste de modelo sem a penalização dos estimadores.