O trabalho que segue é resultado de uma pesquisa etnográfica focada na fabricação e comercialização do queijo minas artesanal em Minas Gerais, Brasil. Num primeiro momento, ela foi motivada por discussões e embates entre órgãos reguladores e populações diante de um contexto de ilegalidades impostas por normatizações sanitárias em torno dos modos de produção e comercialização do alimento, mas que terminou me conduzindo, a partir da pesquisa de campo, ao desafio de realizar uma etnografia que perpassa múltiplos atores e vários “chãos” etnográficos, com questões de ordem empírica e teórica a serem enfrentadas. Uma delas consistiu em definir contemporaneamente a presença do campesinato na atividade e em analisar suas estratégias de reprodução social, enraizadas nos conhecimentos e práticas locais.
Em termos metodológicos, realizei, entre 2014 e 2018, várias viagens às chamadas “regiões produtoras” de Minas Gerais, especialmente aos munícipios de São Roque e Medeiros, ambos na Canastra1. A partir das observações realizadas nesses munícipios, construo este artigo. A pluralidade de modos de vida em torno da fabricação do alimento me levou à necessidade de dialogar com autores que estudam os povos tradicionais, como os camponeses, construídos há décadas como objeto legítimo da Antropologia (Ploeg 2008; Wanderley 1996, Woortmann 1988), mas também com aqueles que olham para os fenômenos da modernidade, como os estudos de Ciência e Tecnologia (Latour 2012; Paxson 2013; West 2008)2.
No caso dos queijos artesanais, normas sanitárias construídas em instâncias internacionais e voltadas para o comércio de grande escala e longas distâncias passaram, a partir da década de 1990, a ter maior interferência direta nesses mercados internos, caracterizados pelas relações de proximidade (Cintrão 2016)3. Por serem predominantemente fabricados a partir de leite cru (in natura)4, os queijos artesanais tornaram-se, desde então, em vários países do mundo, os produtos artesanais mais sensíveis diante das legislações sanitárias (West 2008) e transformaram-se em um problema sanitário. Em Minas Gerais, os produtores do queijo minas artesanal passaram a se defrontar com normatizações e ações fiscalizatórias hostis que colocaram a grande maioria deles numa situação de ilegalidade, com produção e comercialização de um alimento fora dos parâmetros exigidos pelas legislações sanitárias (estadual e nacional).
Num contexto em que as legislações operam e reforçam processos de “modernização” com tendências à exclusão e concentração social e econômica (Cintrão 2016), a fim de impor, nas propriedades, processos de especialização produtiva, a categoria “camponês” - marcada historicamente pela diversidade produtiva - emergiu como uma questão epistemológica a ser enfrentada. Escapando da ilusão da circunscrição da sociedade tradicional, como um isolado social e cultural bem-definido (Albert 1997), tal categoria não foi entendida e utilizada como noção de sociedade, mas enquanto atores que se caracterizam pelo tipo de ocupação e uso do território, que consideram a família, a terra e o trabalho como elementos que constituem um ordenamento moral do mundo5. Tal definição se mostrou importante diante do risco de reificação e/ou essencialização desses atores, que não foram analisados como tipos, mas sim como sujeitos históricos com uma diversidade de formas de ser e viver, com identidades que são redefinidas de acordo com os contextos em que estão inseridos. Assim, eles assumem características particulares, em relação ao conceito clássico de camponês - forma política e acadêmica de reconhecimento desses atores6 -, resultantes de circunstâncias histórico-conjunturais.
Diante de tal arcabouço, tomando os termos de Klaas Woortmann (1988), optei por não assumir a ideia de “camponeses puros”, mas de uma campesinidade, entendida como uma qualidade de valores presentes em graus distintos de articulação ambígua com a modernidade. A integração ao mercado não significa, por si só, uma baixa campesinidade ou uma ausência dessa ordem moral. Longe de se opor a ela, essa relação com o mercado pode ser acionada para evitar a ruptura desse modelo. Como seres históricos, em contínua transformação, a trajetória desses atores não é linear, e pretendo demonstrar isso aqui. Como afirma Woortmann (1988, 16): “um movimento que se dirige a uma dimensão da modernidade pode ser, ele mesmo, necessário para que haja um outro movimento, o de reconstituir a tradição”.
Nesse contexto, o conjunto de representações e práticas, associadas ao modo de vida por trás da fabricação dos queijos artesanais, emergiu mais do que simples produção de bens econômicos ou mercadorias cuja primazia é determinada pela lógica do capital. Esse conjunto é a expressão da moralidade, com atores que estabelecem relações específicas com os territórios ocupados e seus recursos naturais, tendo a reciprocidade (entre os homens e entre estes e a natureza), no sentido maussiano, enquanto um valor ético associado à campesinidade (Scott 1976; Woortmann 1988)7. Essas representações se mostraram importantes como indicadores da constância desses atores, o que contraria o argumento ou a possibilidade de sua morte (Mendras 1991), uma vez que, durante um longo período, foram vistos dentro de diversos campos disciplinares enquanto fadados ao desaparecimento em meio às transformações capitalistas na agricultura e à urbanização do meio rural. Tais estudos evidenciam determinantes - de origem econômica e cultural - que os colocam com um tipo provisório no processo histórico, isolado ao mercado e a qualquer tipo de racionalização que não seja a noção de subsistência produtiva (Bosetti 2012) 8.
A pesquisa de campo trouxe o entendimento de que tais expressões de moralidade podem se apresentar como marcadores diacríticos, que insurgem como resposta às transformações que ocorrem na sociedade maior e às orientações políticas e jurídicas oriundas do próprio Estado, o que implica ameaças externas como a perda do território e da autonomia sobre os recursos locais. Essas representações se associam a um sentido de pertencimento pela memória social desses atores que veem suas referências defrontadas com práticas de modernização empresariais e incorporações de tecnologias que, gradativamente introduzidas na região, alteram as temporalidades e rotinas locais. No contexto estudado, a imposição de um modelo empresarial de agricultura - que se apresenta cada vez mais como norma e exemplo a ser adotado, por meio das transformações induzidas pela ingerência dos Estados-Nação - não tem significado a implantação de uma forma social de produção única e homogeneizada, o que indica a capacidade desses atores - mesmo não ocupando necessariamente um mesmo território ou mesma posição - de formular um projeto de vida, de construir uma forma de integração à “sociedade englobante” e de resistir às circunstâncias nas quais estão inseridos e aos modos de produção hegemônicos, coexistindo com eles (Wanderley 1996).
A partir desse encadeamento complexo e de exemplos dessa capacidade de adaptação, por meio do trabalho de campo, trago elementos que apontam a resistência, a resiliência e os saberes dos modos de vida desses atores.
O Desenvolvimento da Produção Familiar Queijeira em Minas Gerais
A história da fabricação do queijo minas artesanal remonta ao período colonial; trata-se de uma forma simples e barata de conservar e agregar valor ao leite, com baixo custo de produção. Oriunda da colonização portuguesa, que trouxe o gado bovino (antes inexistente) e a tecnologia para a produção de queijos, esta vem sendo adaptada socioterritorialmente e repassada ao longo das gerações. A presença de extensos chapadões e dos campos naturais de cerrado favoreceu, em diferentes regiões de Minas Gerais, a expansão da pecuária, associada ao cultivo de subsistência em fazendas diversificadas. Até os dias atuais, o queijo é importante na economia do estado, sendo parte do modo de vida de cerca de 30 000 famílias e estando presente em 519 dos 853 municípios mineiros (Barbosa 2004).
Sua fabricação envolve apenas três ingredientes: leite, coalho e sal. Originalmente, a maior parte dos materiais para a construção dos utensílios e instalações, assim como das pessoas para sua elaboração, era encontrada (ou reproduzida) nas próprias fazendas ou regiões produtoras. Como, por exemplo, as madeiras e o barro para a construção das queijarias e de utensílios; o coalho (feito do estômago de alguns animais) e as gramíneas. Tais técnicas de fabricação permitiram - e ainda hoje permitem - aos produtores preservar o excedente do leite, via fermentação, transformando-o em uma massa que se mantém atraente ao paladar por alguns meses. Nas regiões do estado onde sua difusão ocorreu, a pecuária leiteira de onde provém o queijo, coexistindo com outros modos de produção com os quais mantêm relações de interdependência, definiu a economia e os modos de vida de camponeses que vêm historicamente adaptando seu manejo e sua forma de integração ao mercado.
Na região da Serra da Canastra (figura 1), por exemplo, que abrange sete munícipios na região do chamado “alto rio São Francisco” (Barbosa 2007; Cintrão 2016; Fernandes 2012; Lourenço 2005), um dos principais rios do Brasil, o processo de colonização se iniciou a partir de campanhas de extermínio das populações indígenas e quilombolas9, e de concessões de sesmarias que foram distribuídas de 1800 a 1803, como forma de expansão da fronteira. Ali, ao longo do século XIX, constituiu-se em um sistema agropastoril caracterizado pela existência de grandes fazendas de criação extensiva de gado de corte em consonância com uma agricultura complementar de base familiar, desenvolvida em pequenas posses, onde eram criados rebanhos leiteiros e cultivadas lavouras de milho, feijão e arroz para a subsistência (Barbosa 2007).
Nesse contexto, os bezerros constituíram-se em uma forma adicional de pagamento por parte dos fazendeiros (patrões) aos retireiros10, e um meio comum de manutenção de recursos. Ainda hoje, os novilhos são pensados como “semente de gado” que podem ser o capital inicial de uma futura fazenda. É rotineiro encontrar jovens produtores na região que, após poucos anos labutando em grandes fazendas de café e até em serviços urbanos, como operários da construção civil11, ajuntaram algumas cabeças de gado. Quando eles não possuem suas próprias terras, os animais podem ser “guardados” na fazenda de parentes, servindo como “seguro” ou “poupança”12 e elemento básico para a constituição de uma nova família. Uma vez alcançadas as condições para se afastarem, ao menos parcialmente, das demandas dos trabalhos anteriores, esses atores arrendam um terreno (frequentemente de algum familiar) e começam a sua fabricação de queijos. Uma atividade que pode ser apenas sazonal, com a produção de queijos quando o preço do litro de leite pago pelos laticínios está baixo (geralmente nos meses chuvosos) e com a venda direta do leite quando o valor do insumo melhora (nos meses de seca), podendo também consorciá-la com outras atividades, mesmo fora da propriedade. Tal contexto demonstra uma primeira dimensão da complexidade do modo de vida do camponês no estado, com tais atores transitando entre serviços urbanos e fazendas nas áreas rurais como estratégia de reprodução social.
A produção de queijos em contextos rurais apresenta, historicamente, poucas barreiras à entrada de novos atores e se mostra mais acessível financeiramente do que outras atividades agropecuárias, de custo inicial elevado. Em Minas Gerais, durante décadas, o sal foi o único insumo utilizado que não era fabricado nas regiões produtoras. O coalho industrializado, por sua vez, inseriu-se no processo de fabricação somente após 1930. Anteriormente, ele provinha do estômago de bezerros, tatus ou capivaras, encontrados naquele período nas próprias fazendas. A eletricidade começou a ser inserida em etapas do processo - como na ordenha do leite e na refrigeração dos queijos -, somente a partir do final dos anos 1970 e tardou a se generalizar. Também nessa década, o uso de rações e de materiais de origem industrial (como os plásticos, azulejos, inox) passou a ser incorporado no processo, recomendado por extensionistas e, com frequência, exigido por órgãos de fiscalização sanitária (Cintrão 2016).
Por tudo isso, em diversas regiões do estado, ao longo do século XX, ao contrário do que ocorreu com outros produtos lácteos - como iogurte, manteiga e mesmo a venda direta de leite fluido -, a emergência de queijos industriais e a instalação de grandes e médios laticínios, que coletam leite em diferentes estabelecimentos rurais, não afastou a fabricação de queijos do âmbito da produção familiar em direção à indústria, permanecendo um setor pouco concentrado, com a existência de milhares de queijarias de pequeno porte, nas quais prevalece a relação terra, família e trabalho. Ainda que médios e grandes laticínios, além de outros atores, com diferentes visões e trajetórias, também possam estar envolvidos na produção13.
Uma característica geográfica comum nas diversas regiões do estado que as conduziram à fabricação do queijo minas artesanal, e que permitiu que esta permanecesse com essas características até o momento atual, é o isolamento provocado pela presença de serras, com relevo acidentado, o que, somado a uma malha viária de baixa densidade e às dificuldades para o escoamento da produção (principalmente em períodos de chuva, devido às más condições da maioria das estradas e do acesso às propriedades rurais) fez da atividade queijeira uma das principais alternativas de reprodução social. Essas regiões geralmente apresentam muitas fazendas em localidades de difícil acesso, o que dificulta a coleta do leite por indústrias ou laticínios.
Além disso, a produção de queijos possibilita um retorno monetário rápido e constante, uma vez que existem canais de comercialização alimentados por uma grande demanda pelo alimento nos centros urbanos. Assim, mesmo a produção de monoculturas agrícolas, como o avanço de lavouras de café, milho e soja nos últimos 20 anos, não atingiu grande parte da produção nas fazendas queijeiras nessas regiões onde essa produção familiar permanece. O fato de o pasto ocupar áreas de maior declividade, que não favorecem o processo de mecanização, faz com que a pecuária leiteira de âmbito familiar não ocupe exatamente o mesmo espaço que a produção de grãos. Nesse contexto, a produção queijeira nessas regiões é uma alternativa única para a permanência de milhares famílias e, ao que parece, tem evitado a precarização das condições de vida e impedido uma maior concentração de terras.
Por tudo isso, a produção de queijos artesanais permanece um setor pouco concentrado economicamente, com a existência de um grande número de queijarias de pequeno porte que fabricam conjuntamente uma grande produção abastecedora de diversos estados, ainda que com um elevado grau de informalidade e ilegalidade. Estima-se que menos de 0,5 % das cerca de 30 000 famílias produtoras que existem em Minas Gerais se adequam ao exigido pelas normativas da lei estadual, uma vez que apenas cerca de 300 seguem as normativas exigidas pelo poder público estadual, com o devido cadastramento no Instituto Mineiro Agropecuário - órgão de regulação estadual -, que as possibilitam de exercer sua produção e comercialização dentro da legislação. Na Canastra, são apenas 57 regularizadas num universo de mais 800 famílias envolvidas com a atividade, isto é, cerca 7 % dos fabricantes da região (Barbosa 2004).
Enfim, da forma como se estruturou em Minas Gerais, ela gerou um alimento bastante popular - conhecido como “queijo da roça” ou “queijo minas” - que, até hoje, permite uma relativa independência aos produtores, em relação ao estrangulamento de estarem situados entre a indústria de insumos (rações, vacinas, medicamentos etc.) e os laticínios que ditam o preço na compra do leite nas diferentes regiões. Característica que é apontada por Ploeg (2008) como central para os camponeses: a busca por manter a autonomia sobre a “base de recursos” e uma independência em relação às indústrias. Como me disse um casal de lideranças entre os produtores da Canastra, que será foco de análise mais adiante: “O queijo é um dos poucos segmentos hoje em dia que o produtor consegue dominar todo o processo. Inclusive a alimentação das vacas que, se você quiser, você pode sair da mão da Guabi [indústria fabricante de ração]”.
Assim, o queijo tornou-se a base da economia doméstica de milhares de famílias e um dos alimentos mais populares de Minas Gerais, com sua elaboração no âmbito do espaço cotidiano (“nas roças”), a partir da maioria dos insumos locais, da mão de obra familiar e do saber transmitido nas relações diárias e de geração a geração. Atualmente, talvez seja o alimento mais simbólico de Minas, já que, por muitas décadas, o estado vem sendo referenciado em todo o país por sua produção. Para além de sua capacidade singular de ser convertido em uma importante fonte de renda, também por estar arraigado na alimentação de diferentes classes sociais, é historicamente produtor de códigos, costumes e hábitos.
Porém, como colocado anteriormente, a atividade queijeira, até então exercida sem grande atenção por parte do poder público, passa, desde 1990, a sofrer com o aumento das inspeções sanitárias e tributárias por parte das autoridades. Estas demandam, para a fabricação e comercialização do alimento, processos de “modernização” que implicam investimentos e custos fora do alcance e interesse de grande parte dos produtores, como edificações com determinada separação em ambientes internos, revestimentos de azulejos ou tintas especiais, forros sintéticos ou pintados, pisos cimentados (inclusive no curral), interdição de bancadas e instrumentos de madeira (substituídos por materiais de custo elevado), exames laboratoriais periódicos, dentre outras (Dupin e Cintrão 2018). Num período em que, diante de diversos escândalos alimentares, o país assume compromissos internacionais de incorporar normatizações que associam “qualidade” e inocuidade, voltadas à indústria, mas estendidas à produção familiar, surgem as primeiras barreiras que colocariam gradativamente a maioria desses camponeses produtores de queijos numa situação de ilegalidade, que levaria à ocorrência de multas, confiscos e destruição do alimento.
Curiosamente, em paralelo ao processo de ilegalidades, esses queijos se converteram em símbolos alimentares em diferentes países, tendo seu modo de fazer reconhecido como parte da cultura local. A forte presença cultural do queijo foi evocada em Minas Gerais, por exemplo, quando a continuidade de sua produção e comercialização começou a ser ameaçada por fiscalizações e normas sanitárias que buscaram se impor. Como reação a essas ameaças, adotaram-se, como estratégia a partir desse período, certificações como as Indicações Geográficas (IGs)14. Inspiradas no modelo francês das Denominações de Origem, as IGs referem-se a um registro que atribui um selo de qualidade a produtos comerciais que os identifica como detentores de uma parte da história e da identidade de um grupo social e que, por isso, devem ser preservados. Essa certificação atribui reputação e autenticidade ao produto ao distingui-lo em relação aos similares disponíveis no mercado15. Assim, tal modelo utiliza a proteção da origem como estratégia de valorização de produtos e regiões produtoras, que se destacam pela associação das características do lugar - geografia, clima, flora bacteriana, umidade etc. - a fatores sociais, o que resulta em um produto bem-específico.
Os reconhecimentos e as certificações fazem parte de mudanças que tornaram a cadeia produtiva dos queijos artesanais de Minas Gerais mais complexa. Atualmente, aproveitando os preços convidativos alcançados por nichos do alimento, por meio do marketing que se construiu em torno das IGs, emergiram, na atividade, profissionais liberais de origem urbana, que agora estão na atividade ao lado de outros produtores cujas disposições são orientadas por um habitus tradicional, ou seja, orientações voltadas para campesinidades. Há, então, nas palavras de Woortmann (1988), dois usos do tempo histórico que convivem no interior da mesma atividade. A entrada constante desses novos atores, com diferentes sentidos sobre a produção, demanda certos cuidados para falar em campesinidades na fabricação e na comercialização, com a necessidade de caracterizar as relações específicas com a terra e seus recursos, a organização social, econômica e cultural própria dentro do meio ambiente no qual estão inseridos.
A partir das dinâmicas do trabalho de campo, foi possível refletir sobre algumas dessas orientações, que vão se adaptando em redes que se tornam mais complexas - com seus regimes de saberes e práticas -, bem como perceber os efeitos do entrecruzamento dessas redes (como a inserção do conhecimento científico e da tecnologia) sobre elas. A partir da trajetória de um casal de produtores, hoje líderes, com uma história muito particular, e da fala de outros personagens da região, são apresentados exemplos de como a questão dessas orientações de campesinidade se tornam complexas e ganham elementos novos diante de transformações que ocorrem a partir de contextos externos e de imposições políticas e jurídicas, oriundas do próprio Estado, que ameaçam o modo de vida desses atores.
A Trajetória de Luciano e Helena: “o Meu Avô Fazia Queijo, Mas a Corrente se Quebrou”
Quando a minha menina foi [para a universidade] estudar eu falei com ela (para tomar cuidado). Eu acho que a universidade deveria ter outro nome, porque ela perdeu a coisa de um todo. As pessoas saem de lá muito limitadas. Às vezes, saem mais preconceituosas do que nós que estamos aqui no mato. Saem com um conceito feito das coisas e não conseguem enxergar nada do que está ao lado dela. [...]. Eu acho que as pessoas que saem da universidade deveriam ter uma ideia de um universo, mas elas saem de lá só com um pedacinho. Agora não vai ser mais universidade, vai ser particularidade. Por isso que eu vejo o problema da legislação para queijo artesanal porque quem faz um queijo artesanal, ele tem que ter uma ideia de tudo. Eu não tenho que ter uma ideia só da microbiologia do meu leite, não. Eu tenho que ter uma ideia da microbiologia da minha terra. A terra, o capim, a vaca, o clima, é um todo. Por isso, o que me faz enxergar que essa especialização é a maior burrada, é porque os caras (técnicos da fiscalização) não conseguem enxergar nada do nosso queijo. Quando falei (em uma reunião) do cloro que o cara mandou eu botar (na água) do centro de maturação. É porque o cara nunca leu nada. Se você entender o queijo artesanal, que é pura bactéria, você não vai mandar botar um trem pra matar as bactérias, porque acabou o queijo. Mas o cara não é culpado, o problema é a escola que formou ele e que fez ele ser daquele jeito. Eu tenho que perdoar os caras, mas tenho que alertá-los porque foram formados, catequizados, para aquilo e o culpado são as universidades, que deu pra eles só aquela ideia: o certo é você só passar por esse caminho e só existe aquele caminho pra passar. (Luciano, produtor de Medeiros, entrevista realizada em abril de 2016)
A fala acima traz elementos e questões importantes que envolvem a produção de queijos artesanais e a presença de modos de campesinidade na contemporaneidade. Na fala do produtor rural, está a relação com a natureza, a questão da migração dos filhos para a cidade e os conflitos com esferas regulatórias do poder público, que aparecem implicitamente na figura fiscal do sanitário e do cientista a serviço da universidade, detentores de um conhecimento científico que se afirma por definição como verdade absoluta (Carneiro 2009, 301). Porém, o que se destaca diz respeito a uma epistemologia local que recusa tratar sua propriedade de forma compartimentalizada e um valor moral associado a essa questão.
A Chácara Esperança tem 102 hectares (40 alqueires), está a 850 metros de altitude e a uma distância de cinco quilômetros do município de Medeiros, na Canastra. Há, na propriedade, onde mora o casal Luciano e Helena, uma queijaria espaçosa (construída mais recentemente), dois galpões de piso cimentado, um de ordenha e outro voltado para a alimentação do gado. No que se refere à área externa, podemos dizer que esse espaço vem se modificando numa direção contrária à maioria das propriedades rurais da região. O que foi um dia uma propriedade especializada na venda de leite - cujas terras de cultura eram voltadas para a produção de milho, que serviria de alimentação ao gado - começa a diversificar-se, emergindo novos espaços de criação animal e plantio, que vão sendo delimitados pelas cercas que surgem na paisagem local. Assim, nos últimos anos, apareceram ali, por exemplo: horta, chiqueiro, galinheiro e as primeiras árvores frutíferas, ampliando a variedade de recursos naturais que são apropriados pela família. Uma diversificação que, por sua vez, tem implicado a diminuição do volume de leite produzido pelo rebanho bovino, que há alguns anos era o único alimento produzido na chácara.
Luciano e Helena não estão na atividade queijeira porque assumiram a atividade dos pais, que eram produtores, apesar de terem origem rural e conhecido a fabricação dentro da família. Helena diz que aprendeu a produzir queijos com a mãe, mas que perdeu o saber quando ainda criança. Sua família vendeu o sítio e mudou-se para a cidade. Ali, Helena optou por realizar o desejo do pai e tornou-se professora. Já Luciano afirma que aprendeu a fabricar queijos de massa cozida com um vizinho que trabalhava em um antigo laticínio, mantendo-se na atividade por anos. Segundo ele, seu pai foi “catireiro”16, começou com a venda de galinha, depois de gado, até se tornar bancário. “O meu avô fazia queijo, mas se quebrou a corrente. Eu tinha um tio que fazia [queijo], mas parou tem pouco tempo. Meu pai não fez queijo. Eu é que voltei a fazer”, conta.
No início de 2000, o casal comprou um terreno e se mudou para a região da Canastra. A intenção inicial era apenas produzir e vender leite para laticínios. No entanto, após receberem a assistência técnica de um órgão de extensão rural, eles começaram a produzir o queijo minas artesanal. Na medida em que fabricavam e vendiam os queijos, construíram-se enquanto lideranças envolvidas com o tema17. Em poucos anos, sob o olhar inicialmente desconfiado dos produtores locais, Luciano e Helena ajudaram a fundar as primeiras associações de produtores de queijos da região. Nesse período, a Chácara Esperança foi uma das primeiras propriedades do estado a adequar suas instalações às exigências de uma lei estadual de queijos artesanais que surgiu à época, diante de apreensões que aconteciam em diferentes regiões do estado.
Sem abrir mão dos recursos benéficos que o cadastramento trouxe, uma vez que afirmam que “as condições de trabalho inegavelmente melhoraram” dentro da nova queijaria construída, mas cientes de que essa incorporação tecnológica vem acompanhada de ameaças de perdas de uma vida, ainda que simples, mas segura e, em certo sentido, farta (Brandão 1999), o casal tem andado, desde então, sobre uma linha tênue. Ao buscar se adequar, eles foram obrigados a incorporar o “pacote tecnológico” que vem a reboque com a legalização e que impõe uma maior especialização produtiva para se tornar viável (Cintrão 2016). As adequações exigem, como foi colocado anteriormente, investimentos em equipamentos e infraestrutura, com a proibição de manejo de outros alimentos no espaço da queijaria, e ainda induzem à incorporação de um rebanho com maiores índices de produtividade leiteira.
Luciano e Helena têm buscado, no dia a dia, lidar com essas contradições. Eles se adequaram às exigências, mas, ao contrário do que preconizam os técnicos dos órgãos públicos, que comumente chamam esse processo de “profissionalização”, diversificaram o rebanho (inicialmente da raça holandesa pura) como parte da diversificação produtiva da chácara. Eles vêm buscando um caminho entre se manterem dentro da legislação e conseguirem a autonomia produtiva, em um processo que envolve adaptação e até mesmo criação das práticas tecnológicas adotadas na propriedade. Em fevereiro de 2016, em uma reunião em que se discutia a legislação de produtos lácteos para a agricultura familiar no país, ouvi uma fala emblemática de Luciano sobre o tema. Diante de um parágrafo da lei que dizia que é proibido modificar as características dos equipamentos na queijaria, ele se levantou e disse: “isso é um absurdo, a legislação tira a possibilidade do produtor criar”.
Nos termos de sua lógica de reprodução social, o que o casal tem buscado é se apropriar de algo formulado pelas instâncias dominantes, no âmbito de uma ideologia modernizante, e construir, a partir de uma situação subordinada, um campo de manobra para escapar de tal submissão, ainda que, por vezes, cometendo infrações que podem levar a punições. A orientação vai ao encontro do que diz Ploeg (2008), que aponta os camponeses como empreendedores, inventivos, perspicazes e argutos, mas dentro de uma racionalidade própria que incorpora bom rendimento e cuidado, com a garantia de maior grau autonomia sobre a “base de recursos” e maior independência em relação às indústrias, o que os leva a terem preços “competitivos” em relação aos produtos industrializados.
Sobre a diversificação produtiva, é importante dizer que esta se tornou uma opção sólida a partir de uma situação vivida pelo casal: o aumento dos custos que quase o levou à falência. Em primeiro lugar, eles passaram a nutrir uma desconfiança pela tecnologia ao descobrirem, por experiência própria, que seus ganhos eram extremamente seletivos. Assim, eles desconfiaram do excesso de especialização. Afirmaram que “não funciona bem nem na alimentação do gado, nem na universidade, nem em sua fazenda”. Uma desconfiança que é compartilhada por muitos produtores da região, ainda que estes tenham trajetórias bem diferenciadas da história de vida do casal. Um deles me disse que: “tecnologia demais para nós que é pequeno não é bom negócio. Se nós botar um veterinário, um agrônomo a gente quebra [...] às vezes não é o produtor que produz mais que sobrevive, mas aquele que gasta menos”. Ou como ouvi de outra família local: “tenho até medo de ficar atualizado, por causa dos empréstimos e do aumento dos gastos”.
No caso de Luciano e Helena, o conhecimento de quem partiu de um modelo de propriedade agrícola convencional e descobriu que as empresas que vendem as inovações são as que colhem a maior parte dos frutos do aumento da produtividade dos sítios, e observou a “ruína” de amigos, vizinhos18, parentes e quase a própria ao tentar adequar-se aos seus termos, os fez repensar o caminho. Diante de um ambiente exterior hostil, dominado pelas grandes corporações e pelo squeeze - estagnação dos preços dos produtos e aumentos dos custos (Ploeg 2008) -, a desconfiança fez-se um mecanismo fundamental de controle e equilíbrio necessários à manutenção da propriedade (e do modo de vida), que, em vários momentos, só se manteve em funcionamento graças aos ganhos financeiros de Helena, que trabalhava na rede pública de ensino.
E, ainda, eles adquiriram, em sua trajetória, uma outra sabedoria que aponta que cada recurso tecnológico incorporado pela sua família ao longo das últimas gerações veio acompanhado de uma perda em uma dimensão própria (Brandão 1999). Assim, com a utilização do pacote tecnológico, as terras que antes eram mais férteis e menos vulneráveis às pragas se enfraqueceram; assim como o rebanho especializado tornou-se cada vez mais sujeito a doenças, o que implicou maiores custos e cuidados. Sem falar nas perdas na diversidade alimentar - uma vez que a rotação de terras para fins agrícolas foi substituída pelo rodízio de pastagens - e nas “quebras de correntes” que envolvem os saberes transmitidos em família, como aconteceu com a fabricação de queijos, mas também com outras prestezas esquecidas com o processo de modernização, que conduzem à transformação de seu modo de vida. Com isso, eles não têm mais condições de reproduzir os conhecimentos e as práticas tradicionais de seus antepassados.
Eu sou parte de uma classe de produtores que perdeu um pouco daquela sabedoria lá de trás, de olhar a lua, olhar a terra e comecei a pisar dentro das tecnologias. Hoje estou dando um passo atrás e digo que quero evoluir até meu avô. Porque o que eu vejo nas tecnologias que tem aí, e procuro estar um passo atrás delas, é justamente que elas não te dão o direito de liberdade. Todas as tecnologias que chegaram na roça para nós são tecnologias de dependência. E isso é o maior mal que estamos vivendo na agricultura. A maioria dos filhos de produtores que vão para a escola não voltam mais para as pequenas propriedades. Eles vão trabalhar nos grandes agronegócios. Formam e vão trabalhar para o agronegócio. As tecnologias não sustentam os pequenos. E são tecnologias de dependência no sentido de que para mim plantar um milho hoje eu tenho que ir na loja comprar o adubo e na outra comprar a semente, passar no posto e abastecer o trator, assim eu não sei fazer mais nada. Eu sou dessa geração. E estou buscando uma outra maneira de fazer isso, porque, quando me vi, estava extremamente dependente. (Luciano, setembro de 2016)
Sobre a manutenção de um modo vida, Luciano tem repetido insistentemente a frase: “eu quero evoluir até meu avô”. Em sua busca por autonomia, ele afirma que o avô produzia três queijos por dia e hoje ele produz vinte e poucos, mas como fica apenas com 10 % do que ganha, uma vez que com o restante apenas cobre os custos, então, segundo ele, o ganho é parecido. Parte de sua crítica ao sistema convencional e sua busca por um outro modelo produtivo é em função disso. “Nós, como produtores, ficamos com toda a carga de trabalho, mas a margem de lucro fica deste tamanhozinho”, ele afirma, referindo-se às consequências que a inserção de tecnologias externas provocou nas propriedades. Ganho para as empresas agropecuárias e perda inevitável para os agricultores (Brandão 1999).
O ponto principal dessa crítica centra-se na perda da liberdade, ameaçada por esses elementos “de fora”. Assim, as vantagens materiais, tecnológicas (dispensáveis no passado), tidas como necessárias hoje, chegam ao campo com um repertório de desvantagens não só econômicas, mas, principalmente, sociais e morais (Brandão 1999), como a perda da diversidade produtiva, da qualidade daquilo que se produz, do prazer no trabalho diário e da tão prezada autonomia.
Eu vejo que o grande mal para nós produtores é você chegar aqui em casa hoje e só ter queijo. Isso é absurdo. Eu falo que eu quero evoluir até o meu avô, porque meu avô tinha o queijo, ele tinha os bezerros, ele criava o porco, ele plantava o milho. Então, é uma agricultura de sobrevivência. A fazenda do pai do meu avô, eu acho que era um exemplo. Tinha o problema como todas, mas lá ele tinha café, porco, fazia cachaça, tinha leite, tinham uma horta, um pomar de laranja com mil pés. Então, quer dizer, era uma fazenda. (Luciano, entrevista em abril de 2016)
A fala aponta orientações que, para o casal, estão relacionadas com os mercados - e com a modernidade - e que se diferenciam da lógica empresarial. Isso é observado, por exemplo, nas escolhas que eles - mas também outras famílias da região - fazem na montagem de seus rebanhos. A grande maioria delas se recusa a adotar raças “puras” de gado voltadas apenas para a produção de leite, conforme prescrito por políticas agrícolas e técnicos especializados. As famílias argumentam que vacas “especializadas” não são adaptadas às condições da região e ao relevo acidentado, são mais susceptíveis a problemas de saúde, demandando maiores cuidados e custos (remédios, rações, serviços veterinários). Adicionalmente, afirmam que raças puras têm menos versatilidade que o gado local, historicamente, produtor de leite, mas também de carne e utilizado para tração e transporte. Assim, as escolhas locais não coincidem com as exigências legais e com a racionalidade técnica, guiada pela ciência e voltada prioritariamente para o ganho mercantil.
Por sua vez, a opção local pela rusticidade dos animais, associada à diminuição de custos, envolve também questões de ordem moral que implicam outros sentidos políticos e econômicos. Uma produtora de um munícipio vizinho me disse que não entendia como certo produtor vizinho poderia estar legalizado “se as vacas dele são magras e os animais da fazenda mal zelados”. Entre muitas famílias, a relação com animais remete muito mais a representações ligadas ao sentimento de ter responsabilidades e deveres do que a representação de dominação e poder. Nessas representações, faz-se presente, por exemplo, a individualização dos animais, que têm nome e historicidades próprias19, e devem ser tratados diariamente por questões não apenas econômicas. Essa obrigação emergiu nas entrevistas como um dever moral, do qual a melhor forma de expressão talvez esteja na metáfora reproduzida de forma recorrente na região: “o produtor de queijo é escravo da vaca”, revelando uma ligação do camponês ao ciclo biológico dos animais. Porém, diferentemente da escravização pelo sistema de produção capitalista, em que os que ganham são “os de fora”, aqui a expressão ganha uma conotação não necessariamente negativa, pois está ligada ao trabalho e à manutenção do principal patrimônio da família. Não se trata simplesmente da natureza sobre a qual o trabalho de um grupo doméstico incide, mas do patrimônio da família, sobre o qual se constrói a própria família enquanto valor (Woortmann 1988).
O sentimento recorrente que os produtores têm de estar a serviço de seus animais se constrói de forma coerente com a ideia de que estes são sensíveis do mesmo modo que os seres humanos. Tal forma de viver junto se dá sob uma relação de troca maussiana. Dessa forma, parece-me que fugir dessa esfera de reciprocidade, por exemplo, abandonar sua ordenha num final de semana (o que nunca tive notícia que tivesse acontecido) seria tomado como bem mais do que um prejuízo financeiro. Afinal, existe uma condição ética vinculada à atividade e ao tempo que se gasta com ela.
Para Luciano e Helena, essa construção ética que remete a uma ordem social de caráter mais holista do que individualista lhes traz o desejo de “retornar” aos antigos. Assim, eles almejam, na propriedade, um sistema em que os tempos modernos sejam usados para restabelecer o tradicional. Como afirma Woortmann (1988), a trajetória camponesa não é um movimento linear que se dirige a uma dimensão da modernidade. Assim, no caso, tal adequação às normas pode ser, ela mesmo, necessária para que haja um outro movimento, o de reconstituir a tradição. Como afirma o autor, “não é o passado que sobrevive no presente, mas o passado, que, no presente, constrói as possibilidades do futuro” (Woortmann 1988, 17). Tem-se, então, uma descontinuidade construída intencionalmente, como na fala de Luciano, que diz que está “dando um passo atrás” e quer “evoluir até o [sistema produtivo do] avô”.
Dentro dessa trajetória, as relações que eles e outros produtores estabelecem com o mundo exterior - seja com o mercados, seja com as autoridades públicas que chegam à propriedade - têm sido sustentadas não de acordo com uma racionalidade prática, por vezes definida como “homo economicus”20, mas com valores morais construídos com respaldo nos costumes, na cultura e na razão, em que pese a reprodução familiar (e não a acumulação)21. Ali, eles trazem a questão da desconfiança (institucionalizada) aos ambientes hostis e a busca por autonomia (Ploeg 2008), dentro de um sistema produtivo que “aprisiona”, já que deixá-lo é um processo longo e que não tem sido nada fácil.
No contexto de busca pela subversão da ordem econômica de concepções utilitaristas mercantis, tais valores de ordem moral - que se materializam nas opções adotadas - se aproximam do que Ploeg (2008) identifica como um processo contemporâneo e que chama de “recampesinização”. Diante da ascensão do que o autor denomina de “impérios alimentares”, como princípio orientador do processo produtivo na agricultura contemporânea na distribuição e consumo de alimentos, bem como os processos extremos de degradação ambiental e de desigualdade social no campo, formas alternativas a esse modelo são produzidas na agricultura, como estratégias diversas para resistir a um contexto de adversidade.
Conclusão
Em decorrência da modernização fomentada pelas políticas públicas do Estado após a Segunda Guerra Mundial, especialmente nos países ditos “desenvolvidos”, a agricultura passou a funcionar segundo uma lógica produtiva eminentemente determinada pelo mercado, fato que exigiu das unidades de caráter familiar uma racionalização produtiva de caráter empresarial. Nesse contexto, no Brasil, camponeses passaram a ser identificados como agricultores familiares (Bosetti 2012; Wanderley 1996). Com a constituição do critério da inserção no mercado como principal fundamento da diferenciação entre o camponês e o agricultor familiar, concluiu-se recorrentemente em diferentes áreas de conhecimento da Ciências Humanas que a forma social camponesa havia sido superada por uma perspectiva produtivista, ou seja, pela racionalização e mercantilização da produção, sendo o Estado o grande impulsionador dessas mudanças no setor agrícola.
Diferentes abordagens tomaram como pressuposto a incapacidade do campesinato de existir enquanto forma social de produção num ambiente marcadamente controlado por relações mercantis intensas, concebendo-o tão somente de maneira estática em seu modo de vida. No entanto, a imposição desse modelo empresarial de agricultura não significou a implantação de uma forma social de produção única e homogeneizada no campo (Wanderley 1996). Ao me aproximar, em uma dimensão empírica, das experiências e práticas desenvolvidas pelos atores envolvidos com a produção do queijo minas artesanal, e, a partir do trabalho etnográfico, de regularidades e historicidades próprias, busquei apontar para a diversidade de condições em que esses atores se encontram na contemporaneidade e as múltiplas estratégias que precisam mobilizar para se reproduzirem socialmente. Isso exige uma compreensão mais ampla, que ultrapassa o econômico, do mundo em que tais atores se constituem. Essas estratégias demonstram que a sua reprodução é um fato social do mundo moderno, e não resquício do passado.
No contexto analisado, diante de processos de “modernização” e especialização produtiva com tendências à exclusão e concentração social e econômica que se impõe (Cintrão 2016), as racionalidades predominantes entre produtores da região têm atuado no sentido de criar capacidades de agência e habilidades cognitivas para interferir no fluxo de eventos que os cercam (Brandão 1999), muitas vezes a partir da apropriação das tecnologias nos termos locais. Formas de campesinidade têm evitado que aconteça com os queijos artesanais da região estudada o mesmo que ocorreu com outros produtos lácteos, afastados do âmbito de produção familiar e absorvidos pela indústria de laticínios.
Tais modos têm permitido driblar mecanismos de poder que podem levar à exclusão social e contribuído para que continuem existindo setores de produção e comercialização pouco concentrados, com milhares de unidades produção artesanal de pequena escala, que abastecem consumidores de diversos estados. Graças à presença dessas orientações camponesas, é possível que as famílias que têm, na produção dos queijos, a base do seu modo de vida e a principal fonte de renda e alimento cotidiano se mantenham na atividade a partir de códigos culturais compartilhados localmente.