A criação de uma área protegida (AP) no Brasil requer um árduo trabalho científico, além do pleito ou do apoio da sociedade. Há necessidade de destacar a importância biológica e cultural, o levantamento florístico, o zoneamento da área e a realidade socioeconômica da região, entre outras demandas.
A motivação, de modo geral, abarca circunstâncias que induzem o indivíduo a ter iniciativa para executar uma ação (Moutinho 1987 ). Esse comportamento expressa a ânsia pela concretização de um resultado decorrente de uma atitude que venha propiciar uma sensação hedonista (Kotler et al. 1999). Assim, a escolha de uma determinada AP para visitar ou de um destino ecoturístico, bem como o motivo que leva o turista a realizar uma viagem, tem sido alvo de pesquisas (Dann 1977; Holden e Sparrowhawk 2002; Uysal e Hagan 1993; Wight 2001 ).
Não obstante, a motivação para iniciar o processo de implantação de uma AP federal requer organização e demanda de tempo que envolve um imbricado processo administrativo, científico, documental e intelectual que arrasta profissionais de diversas áreas do conhecimento. O que leva um indivíduo a dedicar meio século de sua existência para implantar, buscar recursos, articular investimentos visando à pesquisa, à educação e à cultura, além de desenvolver trabalhos sociais no semiárido do Brasil? Para responder a esse questionamento, seria interessante realizar uma investigação com a autora dessa efetivação a fim de entender sua motivação. No entanto, acredita-se que é imprescindível compreender a importância atribuída pelos condutores de visitantes à principal responsável pela implantação de determinada AP. Assim, o objetivo desta pesquisa foi explicitar o que a arqueóloga Niède Guidon representa e simboliza6 ao Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC) sob a ótica dos condutores de visitantes que atuam na AP. A arqueóloga Niède Guidon foi a idealizadora e uma das responsáveis pela implantação do PNSC, além de presidente e fundadora da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham)7.
Para compreender o projeto de implantação do PNSC é necessário conceber o turismo arqueológico como alternativa à preservação, considerando que é uma opção de recursos financeiros, empregos, abarca a comunidade e é alicerce aos recursos culturais arqueológicos, considerado como turismo ecológico autossustentável (Bastos 2006). O PNSC é um excelente exemplo dessa vertente de turismo, haja vista o êxito por meio de um turismo que não se restringe somente ao aspecto arqueológico, pois valoriza o turismo ecológico e consagra a cidadania cultural em parceria com o saber informal, não formal e formal8 da população local na busca do desenvolvimento socioeconômico da região (Bastos 2006). Assim, Martins (2011) corrobora com a premissa da vertente do turismo arqueológico como o mais indicado ao PNSC em consonância com a pesquisa realizada pela Rede de Patrimônio, Turismo e Desenvolvimento Sustentável (Ibertur) e a Universidade de Barcelona com colaboração do Ministério do Turismo do Brasil.
O turismo arqueológico já é uma realidade no Brasil; o país se encontra entre os que mais apreciam esse tipo de destino, assim como o Egito, a Grécia, a Itália, o México e o Peru. Nas palavras de Martins (2011, 87): “Essas informações, segundo o estudo, permitem verificar um certo posicionamento do Brasil em um processo planejado de comercialização turística de destinos, produtos e serviços relacionados especificamente com turismo arqueológico”. Nesse sentido, os aspectos relevantes apontados na pesquisa de turismo arqueológico ao PNSC são a sinalização interpretativa de boa qualidade, a paisagem presente nos locais dos sítios arqueológicos, a elaboração de informações científicas adequadas aos visitantes e a sinalização nas estradas de acesso (Martins 2011).
PROCEDIMENTOS DA PESQUISA
A investigação é um estudo qualitativo, centrado na especificidade e na profundidade para explorar a representatividade real da arqueóloga Niède Guidon aos condutores de visitantes do PNSC (figura 1). Na opinião de Flick (2005), o método pode ser utilizado para estudar “os pontos de vista subjectivos de diferentes grupos sociais” (82) e “a focagem da entrevista se relaciona mais com o tema do estudo do que com a utilização de estímulos” (80). Assim, Flick aponta como “exemplos de tácticas para aumentar a profundidade ‘focar os sentimentos’, ‘reformular os sentimentos explícitos ou expressos’ e ‘referir situações comparáveis’” (2005, 80).
Este estudo investiga, por meio de entrevista semiestruturada com temas geradores aplicada aos condutores de visitantes do PNSC, a representatividade e o simbolismo da arqueóloga Niède Guidon para os condutores de visitantes a partir do seguinte questionamento: você pode dizer o que a Dra. Guidon simboliza ao PNSC?
Os participantes da pesquisa foram selecionados a partir da Portaria do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) nº 8 da lista de 9 de abril (Brasil 2014), a qual traz um cadastro de 59 condutores credenciados na AP. Como critério de exclusão, seis condutores que não operavam com trilhas de longa duração foram excluídos, dois não residem mais na região e um deixou de atuar profissionalmente, restando 50 eletivos. Dos 50 condutores, 80 % (n = 40) responderam à entrevista sobre a arqueóloga Niède Guidon.
A pesquisa foi submetida ao comitê de ética da Universidade Federal de Santa Catarina, do Brasil, e aprovado pelo parecer nº 1.315.275. Obteve-se a licença para atividades com finalidade científica (nº 49.700-1) e o código de autenticação (14.226.816) no ICMBio. Os condutores foram contatados e convidados a participar voluntariamente da pesquisa durante o mês de novembro de 2015. Aqueles condutores que concordaram participar voluntariamente do estudo leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os dados foram tratados por meio da análise de conteúdo (Bardin 2010 ), a qual consiste da pré-análise, da exploração do material e do tratamento dos resultados, da inferência e da interpretação. A investigação conservou na íntegra o contexto verbalizado pelos condutores, de acordo com a estrutura linguística própria, para entender a estima demonstrada por esses profissionais com a arqueóloga Guidon.
CONDUTORES DE VISITANTES
A Portaria nº 27 de 30 de janeiro de 2014, do Ministério do Turismo do Brasil, define que a atividade de guia e monitor de turismo não pode ser confundida com a de condutor. No Art. 8º, § 1º, consta que a condução de visitantes em APs federais, estaduais ou municipais deverá ser exercida pelo profissional capacitado para atuar em uma AP específica, cadastrado no órgão gestor e com noções ecológicas peculiares da AP que vai atuar (Ministério do Turismo 2014).
Em 2016, a Instrução Normativa nº 2 do ICMBio (Brasil 2016) indicou regras administrativas para a autorização de prestação do serviço de condução em APs. Adverte ser “desejável que os condutores de visitantes sejam moradores do interior ou do entorno das unidades (Brasil 2016, 115)”. Essa normativa se utiliza do conceito de ecoturismo que “possui entre seus princípios a conservação ambiental aliada ao envolvimento das comunidades locais, devendo ser desenvolvido sob os princípios da sustentabilidade com base em referenciais teóricos e práticos, e no suporte legal” (Brasil 2010, 11).
Nas orientações básicas ao ecoturismo, “pressupõe a elevada difusão de premissas fundamentais - como princípios e critérios”, entre esses a “sustentabilidade socioambiental”, diretamente associada à construção “de planejamento participativo, com integração intersetorial e inserção da comunidade local para contemplar as necessidades de infraestrutura e qualificação profissional para a gestão sustentável da atividade” (Brasil 2010, 12). Nesse sentido, é isso que sucede no transcorrer da implantação e gestão do PNSC até a atualidade, com cursos de capacitação de condutores oferecidos aos residentes do entorno sistematizados desde 1993, além de ações educacionais, sociais e culturais (Brasil 2018; Buco 2014; Justamand e Oliveira 2018; Martins 2011 ).
Ao considerar a proposição pelo turismo arqueológico, que tem entre seus desígnios empregar e envolver a comunidade local e a sistematizar cursos para manter a base dos dotes culturais arqueológicos e da sustentabilidade ecológica (Bastos 2006 ), os cursos de formação de condutores contemplam as diretrizes do ecoturismo no país (Brasil 2010) e atingem o objetivo de implantação do PNSC.
Conduzir visitantes em APs é uma profissão regulada pelo Ministério do Turismo e pelo ICMBio (Brasil 2014; Brasil 2016), e é considerada auxiliadora no processo de sensibilização e conservação ambiental de sítios naturais que são protegidos ou não (Boggiani 2018; Cotes 2018; Ribas e Hickenbick 2012 ).
Perfil dos condutores
O perfil de condutores do PNSC aponta que 34 % são do sexo masculino; 65 % têm entre 31 e 40 anos; 57 % são casados ou com união estável; 37,7 % têm formação até o ensino médio; 30 % são graduados; 25 % pós-graduados; 72,5 % têm tempo de atuação de 11 anos ou mais; 55 % contam com uma remuneração de até um salário mínimo (Cotes et al. 2018).
Pesquisas indicaram mais uma perspectiva na condução no PNSC, a característica educativa (Cotes et al. 2017a; Cotes et al. 2017b; Cotes et al. 2018; Cotes, Alvarenga e Nascimento 2020), em que são abordados, durante a condução, “um repertório de conhecimentos educacionais e multidisciplinares sobre a fauna e flora, a geologia, a arqueologia, a megafauna, as pinturas rupestres e a história do homem americano” (Cotes et al. 2018, 174), contemplando parte do conceito de ecoturismo (Brasil 2010). Além de tudo, Cotes, Alvarenga e Nascimento (2020) sugerem que o trabalho dos condutores do PNSC apresenta analogia com a estrutura de uma aula, semelhante ao labor docente, com características didático-pedagógicas.
Terceiro quartel do século XX
Nos primeiros anos da década de 1960, chega às mãos da arqueóloga Guidon, no Museu Ipiranga em São Paulo, fotos de pinturas rupestres tiradas no atual PNSC. As imagens foram levadas pelo então prefeito de Petrolina, Luiz Augusto Fernandes, em 1963, quando em viagem a São Paulo (Bastos 2010; Martins 2011 ).
Guidon, no fim do ano de 1963, na companhia das amigas arqueólogas Maranca e Bittmann, parte em seu Fusca da cidade de São Paulo em direção a São Raimundo Nonato (Bastos 2010; Martins 2011 ). Esse fato seria muito progressista para sociedade da cidade-alvo da empreitada se as três mulheres, “todas fora do seu tempo”, conseguissem lá chegar. Elas não obtiveram sucesso na expedição em decorrência de terem viajado em dezembro, mês caracterizado por chuvas que inundam a região do Vale do São Francisco.
Após essa primeira tentativa, Guidon retorna à França, onde se especializa em Pré-História na Universidade de Paris IV. Em 1970, regressa ao Brasil, e, em companhia da amiga geógrafa e antropóloga Vilma Chiara, se organiza e parte de São Paulo com dois objetivos: ir à aldeia da etnia Krahôs em Tocantins e, posteriormente, seguir viagem até São Raimundo Nonato com o intuito de ver as pinturas rupestres (Bastos 2010; Martins 2011 ).
Nessa segunda tentativa de chegar a São Raimundo Nonato, as duas obtiveram sucesso. Guidon e Chiara fotografaram as pinturas rupestres que viriam a ser o tema desenvolvido na tese de doutoramento da primeira. Segundo o Sr. Nivaldo Coelho de Oliveira, seu condutor predileto - nessa época os condutores eram denominados de guias ou mateiros -, Niède, antes de retornar a São Paulo, chamou alguns condutores e afirmou que regressaria. Também se comprometeu a retribuir com um bom dinheiro por cada novo sítio identificado (Bastos 2010).
Ao retornar a Paris, Guidon expôs a seus professores a descoberta no sudeste do Piauí, pontuando a relevância da região, não somente pelas pinturas rupestres, monumentos geológicos (figura 2) e sítios arqueológicos, além disso por sua localização entre duas formações geológicas peculiares, onde foi possível constatar o encontro de dois biomas com presença de fauna e flora da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica (Martins 2011 ).
Guidon obteve aprovação de seus docentes para implementar um projeto de pesquisa na região. Ao regressar da França para São Raimundo Nonato, três anos depois da primeira incursão, a arqueóloga obteve dos condutores - que na realidade, até o final do terceiro quartel do século XX, englobavam uma população que vivia basicamente da pecuária, da lavoura de subsistência (milho, feijão e mandioca), da retirada da maniçoba (látex) e da caça - a informação que haviam identificado mais de 50 sítios e tocas com pinturas rupestres (Borges 2007; Martins 2011; Oliveira 2014). O pagamento prometido aos condutores foi efetuado, e, a partir daí, restou um trabalho hercúleo para cadastrar e registrar todo o acervo.
No fim do último quartel do século XIX até o segundo quartel do século XX, a região em que hoje se localiza o PNSC teve o desenvolvimento da lavoura de maniçoba, o que potencializou o processo de chegada de migrantes e permitiu novos usos dos sítios, onde no passado eram utilizados para descanso, cemitério, espaço para rituais (figura 3) e registro das pinturas rupestres (Borges 2007 ).
Borges (2007) ressalta as distintas particularidades da dinâmica social para compreender a cultura dos habitantes dos sítios e das tocas da época. Nesses locais foram encontrados fornos para preparar beiju e farinha a partir da mandioca, que era cultivada na proximidade, além de outras culturas de subsistência, como milho e feijão, complementadas com a caça para a alimentação (Borges 2007).
Com a decadência da extração da maniçoba e a chegada de pesquisadores interessados na arqueologia, na antropologia, na megafauna, na geologia, na história da região, nas pinturas rupestres, na história do homem americano, contada a partir das descobertas na região, gradativamente esse cenário demudou.
Guidon, após a visita a São Raimundo Nonato em 1970, retorna em 1973 na companhia de Silvia Maranca e Águeda Vilhena de Moraes. Descreve o povoado como insignificante até a presente data, pois não tinha água encanada, comércio e energia elétrica (Martins 2011). Nesse período, o semiárido do sudeste do Piauí não imaginava que após três décadas iria se transformar em polo comercial da região, com a presença de um Serviço Social do Comércio e de um Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, além de contar com instituições públicas de ensino superior como a Universidade Estadual do Piauí, o Instituto Federal do Piauí e a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
Na contemporaneidade, atividades desenvolvidas no meio ambiente natural podem fomentar um incremento positivo na economia a partir de ações políticas de desenvolvimento. Essas permitem persuadir positivamente a conservação de áreas naturais mundiais protegidas (Hjerpe 2018; Mcneely, Faith e Albers 2005; Melo, Crispim e Lima 2005), justamente o que ocorreu no entorno do PNSC.
Quarto quartel do século XX
O PNSC foi criado em 1979 pelo Decreto nº 83.548, compreendendo uma área de 129 140 ha, com clima semiárido e vegetação característica, a caatinga. Localizado na região Nordeste do Brasil, no sudeste do estado do Piauí, o parque abrange áreas dos municípios de Canto do Buriti, Coronel José Dias, São João do Piauí e São Raimundo Nonato, entre as coordenadas 08° 26' 50" e 08° 54' 23" de latitude sul e 42°19' 47" e 42° 45' 51" longitude oeste (SMAPR 1994). A temperatura média anual é de 28 ºC, variando em junho, com mínima de 12 ºC; acima de 45 ºC em outubro e novembro, com início da época das chuvas se estendendo até abril (Emperaire 1984 ). O PNSC é considerado um hotspot devido às descobertas científicas e aos primeiros registros de grupos humanos que adentraram a América e o Brasil, sugerindo uma conquista gradativa a partir de cem mil anos atrás (Justamand e Oliveira 2018 ).
O Piauí tem um baixo nível de desenvolvimento humano, e seus principais entraves são “a inexistência de saneamento ambiental para a melhoria das condições de salubridade do meio físico, de saúde e de bem-estar da população” (Borges 2007, 51), como se constata na evolução do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nos anos de 1991, 2000 e 2010 (figura 4), de quatro municípios que abrangem a área do PNSC.
Fonte: elaborado pelos autores com base no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD 2010, 2000, 1991), 2019
Guidon coordenava, desde 1973, a equipe de cooperação científica da Missão Franco-Brasileira de Pesquisa, onde hoje é o PNSC (Justamand e Oliveira 2018; Martins 2011 ). A missão fez em 1975 um diagnóstico que constata a premência de criar a AP. A equipe de especialistas analisou as mudanças percebíveis nos ecossistemas da região e as alterações socioeconômicas locais. Ao considerarem a importância dos sítios arqueológicos, a diversidade e o atributo dos resquícios ali existentes, a beleza da paisagem, a especificidade da cobertura vegetal e a potencialidade turística, os especialistas apontaram a urgência de informar às autoridades a necessidade de ações para reverter os impactos da presença humana (Borges 2007 ).
Em junho de 1979, o Decreto nº 83.548 foi assinado pelo presidente da república, o qual criava o PNSC. No decorrer da década de 1980, para viabilizar a preservação do bioma caatinga e os sítios arqueológicos, haja vista a preocupação da missão franco-brasileira “com a presença de posseiros, dos incêndios que destruíram vários sítios com pinturas rupestres, da caça ilegal e do desmatamento descontrolado de espécies nobres, nasceu a Fumdham em 1986” (Buco 2014, 35). A Fumdham utiliza como propósito duas estratégias: “a pesquisa científica multidisciplinar e a valorização e integração da população local, num projeto baseado na autossustentação regional” (Borges 2007, 55). Dessa forma, já atendia, naquela época, a proposta contemporânea das orientações do ecoturismo (Brasil 2010) e apresentava benefícios à economia local (Hjerpe 2018; Mcneely, Faith e Albers 2005; Melo, Crispim e Lima 2005 ).
A Fumdham vem trabalhando interdisciplinarmente desde a sua criação na perspectiva de investigar a interação do ser humano com seu meio ambiente, num recorte da pré-história até a atualidade. É composta de uma equipe de cientistas e técnicos para elaborar e colocar em prática projetos de desenvolvimento com vertentes de atuação na educação de jovens e adultos, no desenvolvimento socioeconômico das comunidades do entorno do PNSC e no incremento ecológico autossustentável por meio de projetos econômicos de melhoramento da vida das comunidades que propiciam aos moradores a propagação de técnicas e cultivos apropriados, além da oferta de campo de trabalho (Martins 2011 ). Percebe-se, na atuação da Fumdham, sua aproximação com as diretrizes do ecoturismo no país (Brasil 2010). Interessante pontuar, na dinâmica de preservação, que o patrimônio cultural e a biogeocenose do PNSC apresentam uma relação direta, pois a conservação do primeiro está atrelada ao equilíbrio de seu ecossistema.
A sua relevância, no que concerne aos tempos remotos que aponta a presença humana nas Américas e seus sítios arqueológicos com arte rupestre, fez com que fosse inscrita na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na lista de Patrimônio Mundial da Humanidade e na lista indicativa do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Como consequência de todos esses esforços, o PNSC foi oficialmente designado pela Portaria n. 54, de 16 de março de 1993, como patrimônio federal, inscrito no Livro de Patrimônio Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico Nacional pelo Iphan (Buco 2014; Martins 2011 ).
No interior do PNSC encontra-se mais de 1 000 sítios arqueológicos, onde há aproximadamente 30 mil artes e pinturas rupestres, o mais vasto conjunto do mundo em região tropical, no qual cerca de cem sítios estão preparados para visitação e 16 adaptados para receberem deficientes físicos (Martins 2011 ). Destacam-se, entre as pinturas do PNSC, característica de movimento (figura 5), cenas de sexo (figura 6), rituais, partos, caçadas, entre outras (Bastos 2010; Buco 2014; Justamand e Oliveira 2018; Martins 2011).
A obrigatoriedade da presença do condutor no PNSC durante a visitação implicou no esforço em prol da capacitação de moradores com início em 1993 e que ocorreu sistematicamente nos anos de 1994 até 1999, 2001, 2003, 2004, 2012, 2013 e 2018 (Brasil 2018).
Primeiro quartel do século XXI
Na primeira entrevista aplicada aos condutores, ao indagar os motivos que fundamentaram a escolha pela condução, a resposta foi inusitada: “Falar disso é piada” (Condutora/01, Piauí, 2015). A condutora que residia no estado de Pernambuco até 2001 verbalizou que foi convidada para trabalhar na prefeitura de Coronel José Dias com artesanato. Afirma que tinha uma “dor de cotovelo de não ter tido oportunidade de desenvolver trabalho algum ligado ao parque”, apesar de ter nascido na região e ouvir comentários “sobre o importante trabalho da Dra. Niède no PNSC”. Assim, percebeu a oportunidade de realizar um sonho ao trabalhar no entorno da AP, já que a proposta era para ficar somente por quatro anos e seria “o tempo de passar uma chuva lá. Mas a chuva não veio e eu estou até hoje aqui” (Condutora/01, Piauí 2015).
Descreve que, em 2001, depois de dois meses em Coronel José Dias, então com 56 anos, deslumbrou a oportunidade de trabalhar como condutora após saber que iniciaria um curso de capacitação. Com a capacitação de condutora para atuar no PNSC, percebeu um entrave, pois o gestor do ICMBio na época tentou discriminá-la por causa de sua idade (na entrevista em 2015 a condutora tinha 70 anos). Mas, entremente ao estorvo, surgiu a intervenção da Dra. Guidon, ao argumentar com o gestor que, apesar da idade, deveria ter um tratamento igualitário, haja vista que a AP recebe pessoas mais idosas que reclamam de os condutores serem rápidos na caminhada, impossibilitando essa faixa etária de acompanhá-los. O aspecto idade para atuar como condutor foi abordado por Cotes et al. (2017b), que considerou que “a faixa etária, de modo geral, não parece afetar o trabalho de condução no PNSC” (901).
Em 2010, a Condutora/01 (Piauí, 2015) já convivia com outra realidade na região ao comparar o período com os dados do censo de 1991 (figura 4). É possível sugerir, a partir da figura 4, que a cidade de Coronel José Dias teve um acréscimo de mais de quatro vezes e meia no seu IDH da educação no intervalo de dezenove anos.
Nas pesquisa de Cotes e colaboradores (Cotes, Alvarenga e Nascimento 2020; Cotes et al. 2018; Cotes et al. 2017a; Cotes et al. 2017b), uma das perguntas da entrevista semiestruturada foi: “Quais disciplinas foram ministradas nessas capacitações?”. O Condutor/04 (Piauí, 2015), que fez o curso pela primeira vez em 1993 com 15 anos e era residente no Sítio do Mocó (distrito de Coronel José Dias), verbalizou que teve a Dra. Guidon como professora de arqueologia e antropologia.
No início de implantação do PNSC, em paralelo ao trabalho de pesquisa arqueológica, havia uma demanda por condutores para acompanhar os pesquisadores e os visitantes. Para tanto, os estudantes da capacitação tinham todo apoio, desde o deslocamento até a alimentação para realizar o curso em São Raimundo Nonato. Nesse período, os pesquisadores que desenvolviam trabalhos no parque tinham como contrapartida ministrar algum tipo de capacitação aos condutores, inclusive a própria Guidon não fugiu dessa demanda, prática ainda adotada (Cotes et al. 2017a).
Nas indagações presentes no questionário aplicado aos condutores havia o questionamento: “Que motivos fundamentaram sua escolha para ser condutor?”. Na análise dessa pergunta, 40 % do total de condutores eram residentes em Coronel José Dias e no Sítio do Mocó e 15 % apresentaram respostas similares, pois foram alunos do Núcleo de Apoio às Comunidades (NACs) implantado no Sítio do Mocó. Uma resposta representativa à pergunta acima é:
Eu já estava na quarta série primária e não sabia ler. Eu vim aprender a ler aqui na escola que a Dra. Guidon implantou no Sítio do Mocó com dinheiro da Fumdham, do exterior e da Unicamp. Ela começou a funcionar em 1991 e tinha como objetivo trazer uma escola de qualidade de tempo integral e a consciência ecológica para as crianças passarem para os pais. Porque o parque está aqui na divisa com a comunidade, e, como nossos pais e avós caçavam muito, o objetivo foi que as crianças pudessem conscientizar seus pais e quando crescessem não viessem a caçar também. Na escola teve uma equipe de arqueólogos mirins com as crianças mais avançadas. Isto me ajudou muito no meu trabalho de condutor. Ela (Guidon) levava este grupo para aprender a escavar dentro do parque com ela e outros arqueólogos. Ensinava a técnica de como fazer uma escavação e isto me ajudou muito no meu trabalho de condutor. Tem colegas meus desta época, da minha geração que são técnicos em arqueologia e alguns estão trabalhando na escavação da transposição do Rio São Francisco, isto por causa desta escola e destas oportunidades que ela trouxe para comunidade. O objetivo da escola foi formar cidadãos de bem e isto ela conseguiu. Tinha aulas normais, oficinas, atividade física, produção de hortaliças para o próprio consumo da escola, pois a gente somente ia para casa dormir. Tinham muitas coisas que um aluno de escola pública não tem até hoje. Essa escola era um projeto social chamado de NACs que foi montado nas comunidades do entorno do parque [...]. Nestas escolas tentaram desenvolver alguma atividade que trouxesse renda para a pessoa. (Condutor/04, Piauí, 2015)
O NACs, apontado pelo Condutor/04 (Piauí, 2015), surgiu após a Dra. Guidon promover em Campinas, em 1986, uma reunião com pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a participação da pesquisadora francesa Anne Marie Pessis para criação da Fumdham, em que um dos propósitos foi a proteção do parque. Nessa reunião foi decidida a criação do Projeto Educação, Saúde e Desenvolvimento Sustentável em parceria com o governo italiano por meio da ONG Fondazione Terra Nuova de cooperação internacional (Martins 2011 ).
Na área educacional foram construídas e implantadas cinco NACs pelo período de cinco anos, em cinco comunidades do entorno do PNSC. Essa iniciativa teve o apoio da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho por meio do projeto à formação e capacitação pedagógica e elaboração de material didático aos professores que iriam atuar nos NACs. Concomitantemente, em outra parceria com a Fiocruz, no mesmo projeto, foram treinados agentes de saúde e enfermeiros para atuar no centro de saúde que funcionava no NAC do Sítio do Mocó.
Nas escolas dos NACs eram atendidas aproximadamente 200 crianças. Seu funcionamento iniciou em 1991 em horário integral. As atividades, além do aspecto educacional, contavam com refeições, banho, atendimento médico, atividades esportivas, horta e manifestações artísticas (Bastos 2010; Martins 2011 ). É sobre esses NACs que o Condutor/04 (Piauí, 2015) verbalizou a iniciativa pioneira e o ponto de inflexão para transformar a realidade local.
A criação desse projeto foi uma sugestão da antropóloga Cristina Pompa e do arqueólogo Fábio Parenti, ambos envolvidos no trabalho de pesquisa no PNSC e representantes italianos e membros fundadores da Fumdham. A partir da efetivação dessa proposta, tem início uma parceria internacional da Fumdham em prol do PNSC (Martins 2011 ).
Após sugestão do pesquisador Adauto Araújo, pesquisadores italianos desenvolveram outro estudo sobre viabilidade de implantação da agricultura no entorno do PNSC (Martins 2011 ). A proposta tinha como cultivo plantas alimentícias e ornamentais. Em depoimento ao Museu da Pessoa, a Dra. Niède dissertou sobre a perspectiva de desmatar e/ou tocar fogo na vegetação para plantar. Propôs o cultivo do cacto como planta ornamental, pois no deserto o México já cultiva e vende essa espécie com êxito para floriculturas do Rio de Janeiro e de São Paulo (Martins 2011). Exemplificou o valor de mercado do cacto vendido em Paris por, aproximadamente, 70 euros. Sugeriu ensinar o cultivo do cacto como alternativa de fonte de renda, pois não necessita desmatar a vegetação (Martins 2011).
A ideia não prosperou, haja vista que os argumentos dos políticos sinalizavam à premência de plantar comida (Martins 2011 ). Guidon afirmou que era perfeitamente exequível plantar cacto por ser mais perto da realidade local, pois com o dinheiro da venda poderiam comprar alimentos em qualquer estabelecimento comercial. Criticou os políticos por não terem conhecimento científico e proporem alternativas que não são viáveis e sustentáveis na região, mas que agradam provisoriamente a população e atraem votos, o que perpetua a pobreza e os votos nas eleições (Martins 2011).
Na continuidade da entrevista, o Condutor/04 (Piauí, 2015) verbalizou aspectos que iriam mudar a realidade local.
O posto de saúde que tinha aqui dentro da escola no Sítio do Mocó foi muito importante, pois aqui tinha muita mortalidade e desnutrição infantil. Eu posso afirmar porque eu vivenciei e presenciei isto e fui um dos beneficiados. Eu era muito desnutrido e a escola começou a tratar disto, além de desenvolver projetos de coleta de lixo, fossa seca e como manter a higiene na própria casa. A gente utilizava o banheiro em qualquer lugar e tinha muita mortalidade infantil. Depois da implantação da escola, eu observei que poucos anos depois começou a deixar de existir as mortes, a diminuir a mortalidade e desnutrição infantil. Lá em casa mesmo éramos sete irmãos e três morreram devido à desnutrição infantil. Meus irmãos morreram quando já estavam bem grandes devido à desnutrição infantil. Dava uma diarreia ou qualquer besteira e morria, e hoje não morre mais gente destas coisas. A energia elétrica era gerada por motor e somente em 1992 que chegou a energia elétrica aqui, devido os esforços da Dra. Niède.
O centro de saúde implantando no Sítio do Mocó, uma parceria com a Agência Terra Nuova, atendia diariamente 500 pessoas residentes do entorno do PNSC, pois na época não existia unidade de saúde na região (Martins 2011 ). Seu funcionamento dependia da parceria com a Fiocruz para levar de carro, do Rio de Janeiro a São Raimundo Nonato, vacinas armazenadas em refrigeradores portáteis para campanhas de vacinação infantil, pois até aquele momento não ocorriam essas ações por parte do poder público (Martins 2011). Assim, a população do entorno do PNSC buscava o atendimento nesse centro de saúde, e, com a atuação da equipe composta de um médico italiano, uma enfermeira brasileira, 15 técnicos em exames laboratoriais e três agentes de saúde locais treinados pela Fiocruz, faziam as visitas diárias domiciliares, o que diminuiu o número de pessoas atendidas no centro de saúde (Martins 2011).
A partir da implantação do centro de saúde e do trabalho dos agentes de saúde, Martins (2011, 146) apontou que, gradualmente, “os casos de morte de crianças por diarreia, o que era extremamente comum no início do Projeto, foram a zero, bem como os casos de morte por doenças imunoprevisíveis”. Essa informação vai ao encontro do que afirmou o Condutor/04 (Piauí, 2015), que teve sua família beneficiada, além da população da região.
Após cinco anos de implantação do projeto dos NACs, as escolas e o centro de saúde passaram a ser geridos pelo governo estadual, o que, segundo Martins (2011), não aconteceu na prática. Posteriormente, o Ministério da Educação passou a ser o responsável e, para surpresa de todos, no ano 2000 os NACs fecharam suas portas por determinação do governo federal.
Guidon não se acomodou com o fim dos NACs e, com seu empoderamento habitual, criou em 2001 o projeto Pró-Arte Fumdham para preencher a lacuna deixada dos NACs. Com um olhar muito à frente do seu tempo, a Dra. Guidon buscou parcerias para o desenvolvimento local, além de recursos no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a construção da infraestrutura turística visando à abertura e à manutenção de estradas internas, guaritas e adequação dos sítios para receber visitantes. Construiu a fábrica Cerâmica Serra da Capivara, que emprega diretamente 40 pessoas do entorno, exportando sua produção para Estados Unidos, Espanha e Itália, além de fornecer para empresas nacionais, como Armazém Cariri, Borali, Casa Vila Madalena, Galeria Brasil, Pão de Açúcar e Tok Stok (Martins 2011 ). Outra iniciativa desse recurso foi a criação da empresa de produção de mel sob sistema de cooperativa com ofertas de cursos e estruturação do cultivo, como caixas para colmeias e equipamento de proteção individual.
Sobre a apicultura, o Condutor/23 (Piauí, 2015) explica como a população foi beneficiada:
E hoje o Parque é a maior fonte de renda comercial, mas trouxe outra visão para região e São Raimundo Nonato que é um polo da região hoje em dia. A Dra. Niède foi a pedra chave da região. Muitas cidades da região somente conseguem se manter com os fundos dos municípios e São Raimundo consegue com o comércio, com a apicultura, com o turismo, até mesmo a apicultura foi incentivada por ela. Porque antes as pessoas faziam a extração do mel nas rochas e nas árvores. Em 2009, São Raimundo Nonato foi o maior exportador de mel do Brasil. [...] A Dra. Niède gerou muita renda para as comunidades do entorno do parque, trouxe água, trouxe energia elétrica, criou colégios para as pessoas.
Os impactos positivos na região, tanto sociais - com a chegada da apicultura - como ambientais - oriundo das ações da Fumdham -, podem ser notados no relato da Condutora/29 (Piauí, 2015). Ao deixarem de lado o método tradicional e iniciarem o processo de cultivo do enxame com o uso de caixas, as pessoas abandonaram a prática de derrubar árvores, que levava à morte da rainha na coleta do mel:
Antes dos pesquisadores chegarem aqui na região, as pessoas trabalhavam com apicultura para sobrevivência e se tivesse uma colmeia no alto de uma árvore, o que interessava era o mel. Então eles cortavam a árvore, colocava fogo nas abelhas para elas ficarem tontas e atacar menos. E, uma vez que este fogo atinge a rainha, essa colmeia era exterminada. Quando a Fumdham chegou aqui na região, trouxe alguns projetos para inserir as comunidades do entorno do parque, e a apicultura foi um destes cursos. As pessoas faziam o curso, ganhavam dez caixas para que montassem o apiário e hoje em dia a apicultura é uma das economias da região sem causar nenhum dano nas abelhas e na vegetação.
Com o propósito de alavancar o turismo na região e com a inviabilidade do BID de financiar a construção de um aeroporto, a Dra. Guidon buscou apoio no governo federal para implementar essa iniciativa. As primeiras análises de viabilidade da implantação do aeroporto datam de 1997. Entretanto, em entrevista concedida a Drevillón em 2011, Guidon comentou que, no período de 1984 a 2004, o aeroporto teve destinado 15 milhões de dólares, além de seis milhões de reais, porém os recursos desapareceram (Martins 2011 ).
Em 2007, o Ministério do Turismo liberou, inicialmente, 12 milhões de reais ao estado do Piauí e, posteriormente, cinco milhões por meio de emenda do orçamento da União para conclusão da obra (Martins 2011 ). No entanto o aeroporto ainda não funciona.
Durante a realização das entrevistas semiestruturadas com os condutores, a figura da Dra. Guidon esteve sempre presente, revelando a representatividade e o simbolismo da arqueóloga aos condutores. Todos os entrevistados reconhecem sua importância na implantação e no desenvolvimento da região, corroborando com os achados de Hjerpe (2018), Mcneely, Faith e Albers (2005) e de Melo, Crispim e Lima (2005), para a pesquisa em APs no mundo.
Entre os relatos dos condutores foi possível identificar evidências do impacto educacional sobre questões de aprendizagem.
Aqueles velhos mais carrancudos tinham uma visão completamente diferente do parque, quando veem os netos e os filhos trabalhando ou se beneficiando do parque e, principalmente, as universidades que chegaram e quando eles veem os netos e os filhos estudando, eles hoje já veem o parque com um olhar diferente e este é o lado positivo. (Condutor/17, Piauí, 2015)
Para as comunidades do entorno, a Dra. Niède é muito importante tanto pela questão do desenvolvimento econômico como o sociocultural. Aqui antes da vinda da reserva não tinha sequer uma universidade que você pudesse estudar, se pudesse pagar você iria ter um curso, se pudesse pagar lá fora, senão... não iria fazer nada. Com a vinda do parque, a gente conseguiu estudar mais e consegue chegar mais longe, a gente têm três universidades. (Condutor/20, Piauí, 2015)
A implantação do PNSC e a criação da Fumdham propiciaram um incremento nas cidades do entorno, evidenciado na comparação dos censos (figura 4). De fato, a chegada do PNSC e da Fumdham trouxe luz, água encanada, alargou as possibilidades de subsistência da população, estabeleceu pontes entre os moradores e a educação e humanizou e empoderou o cotidiano daqueles residentes no entorno. Ao comparar, desde 1991, o ranking do IDH dos municípios atendidos pelo projeto de implantação do PNSC com os dados do censo 2010 (figura 4), fica explícito em números as mudanças ocorridas.
O processo educacional implementado pela Fumdham no entorno do PNSC permitiu aumentar o nível de consciência ambiental:
Nossa comunidade se desenvolveu bastante com a vinda do parque e este colégio que a Dra. Niède criou aqui no Sítio do Mocó fez um trabalho com a população de conscientização com o meio ambiente e você não vê lixo na rua. (Condutor/06, Piauí, 2015)
A Dra. Guidon formou uma escola muito boa, então nós éramos pequenos, pequenos assim, já éramos adolescentes e aprendemos lá a importância do parque, da natureza, dos animais que existem aqui. A Dra. Guidon foi muito importante, porque se não fosse a doutora esse local nem existia, não tinha mais por quê. O pessoal caçava e ia chegar o dia que não ia ter mais caça. A água também é pouca, então esse lugar praticamente não ia existir, as famílias iam ter que sair pra outros lugares à procura de serviço, pois aqui não tem água, não chove pra ter produção. Se a doutora não tivesse vindo para a região e feito essas descobertas, aqui praticamente não existiria você vê aqui é uma das melhores regiões, você vê aí não encontra uma região tão organizada, todo mundo têm como se virar, tem serviço e tudo foi graças à doutora e ao parque. (Condutora/07, Piauí, 2015)
O meu coração está ali dentro do parque. Tenho muitos colegas ali dentro que trabalhavam no Ibama e nós temos uma amizade muito recíproca. Essa questão da preservação e conservação até hoje eu carrego comigo, além de ser policial hoje eu não aceito ver alguém comercializar animais silvestres ou comendo. Eu já tive a oportunidade de fazer isto, mas não fiz, porque a consciência que eu peguei ali dentro eu quero carregar até o resto da minha vida. Particularmente eu vejo uma importância muita grande na Dra. Guidon, porque além dela ter desbravado nosso sertão e ter conseguido fazer suas pesquisas e trazido essa comunidade tanto de pesquisadores como de pessoas que hoje estão trabalhando no parque, veio trazer um desenvolvimento muito grande para nossa região. (Condutor/27, Piauí, 2015)
O Condutor/06 (Piauí, 2015) reconhece a simbologia que as ações decorrentes da implantação do PNSC acarretaram:
Hoje o que eu tenho e consegui eu agradeço a ela [Guidon]. Eu devo tudo a ela. Desde o meu pai que trabalhou mais de 20 anos com ela na parte de pesquisa e escavação. Até a região deve a ela, a própria São Raimundo Nonato que tem vários hotéis e se desenvolveu.
A importância das benfeitorias procedentes da implantação do PNSC é compreensível nos relatos:
O principal ponto turístico do Piauí é o PNSC, se for falar do Piauí tem que falar do PNSC, pois nós estamos no berço das Américas. E fora a questão dos serviços. São Raimundo Nonato hoje têm três universidades públicas, temos o aeroporto, e a perspectiva que venha ter linhas permanentes. Os hotéis, quantos tinham antes de ser criado o parque? Quantas pousadas tinham, o comércio, os serviços públicos, as farmácias, hospitais, clínicas, as instituições financeiras, a justiça federal, a justiça do trabalho, então São Raimundo Nonato cresceu muito com o parque. (Condutor/08, Piauí, 2015)
No meu ponto de vista a Dra. Niède foi uma mãe. Ela chegou na nossa região e não tinha praticamente quase nada, só as casinhas que o pessoal morava, só as rocinhas. Hoje tem energia que foi ela quem conseguiu trazer para cá. O meu conhecimento hoje foi devido à escola que a Dra. Niède construiu aqui no Sítio do Mocó. Hoje o básico dos meus estudos foi naquela escola ali, e hoje eu agradeço muito a Dra. Niède pelo o que a gente tem. (Condutor/10, Piauí, 2015)
Eu sou suspeito em falar porque sou fã incondicional dela. Eu faço parte de uma geração de condutores transitória, onde eu vi a geração dos meus antepassados anterior à minha que realmente excomungava a Dra. Guidon, por atrelar a criação do parque a ela. Mas minha geração estudou o trabalho que ela fez aqui. Para mim eu não tenho nem palavras para dizer a importância da Dra. Guidon para região. Tudo que eu disser com relação à parte científica, ao desenvolvimento, ao reconhecimento do parque, ao nível que a sociedade aqui tem hoje se deve a Dra. Guidon. (Condutor/13, Piauí, 2015)
Esse processo educacional foi elencado na pesquisa de Cotes, Alvarenga e Nascimento (2020), em que descrevem a existência das dimensões conceituais, atitudinais e procedimentais exibidas antes e durante a caminhada nas trilhas do parque pelos condutores de visitantes.
O PNSC não vive somente de pesquisa e turismo, a Fumdham construiu dentro da área da sua sede o Museu do Homem Americano (figura 7) com o intuito de disseminar a relevância do patrimônio cultural do homem pré-histórico que viveu na região. O museu conta com um acervo de exposição permanente, resultado de pesquisas arqueológicas desenvolvidas desde 1973 na área do PNSC e do seu entorno. Ele foi organizado para proporcionar a compreensão da evolução dos hominídeos e das teorias de povoamento da América durante os períodos Pleistoceno e Holoceno.
Diante da riqueza das pesquisas realizadas, o Museu do Homem Americano ficou pequeno para expor a história da região. Em dezembro de 2018, o Museu da Natureza (figura 8) foi inaugurado ao lado do PNSC, com um custo aproximado de 13,7 milhões de reais, oriundos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. A ideia surgiu no início do século XX, mas somente em 2017 os recursos foram liberados para as obras.
O Museu da Natureza tem como ideia narrar a história da geologia, do clima, da fauna e da flora da região. Além de apresentar as alterações proporcionadas no meio ambiente, por meio das mudanças climáticas e dos eventos geológicos, destaca a mistura atual de vegetação e fauna de ocorrência da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica na mesma região, pois era o encontro dos dois biomas há aproximadamente nove mil anos atrás.
O PNSC é hoje referência nacional na gestão de AP e internacional nas questões culturais, históricas e do mundo natural. Guidon e seu empoderamento em meio ao semiárido do Brasil enfrentou inúmeras adversidades, compeliu recursos e olhares dos políticos ao possibilitar novos parâmetros. A partir do processo educacional, infiltrou (Cotes, Alvarenga e Nascimento 2020), como a água da chuva que some rapidamente ao cair no solo arenoso do semiárido, a perspectiva da educação como objeto da população que lá reside no meio do martírio, que é viver sem água da chuva e sem terras agricultáveis. Destaca-se que foi clarividente em seu ambicioso projeto de geração de emprego e renda, no desenvolvimento do turismo e na autossustentação, além de atrair para si a confiança daqueles que hoje sobrevivem a partir do PNSC (Justamand e Oliveira 2018).
Outro aspecto a ressaltar é o fato de Guidon convencer os condutores da importância do processo educacional (Cotes, Alvarenga e Nascimento 2020) como única opção para população, como relatou o Condutor/63 (Piauí, 2015): “Eu me lembro que a Dra. Guidon sempre diz que o único mecanismo para mudar a sociedade é o saber, é a educação. A doutora diz que a mola mestre mais fundamental para mudar a sociedade para ajudar a sair da pobreza é a educação”. O Condutor/63 (Piauí, 2015) aprendeu os ensinamentos de Guidon e segue seu discurso se referindo à antropóloga: “A Dra. Niède dizia: Vocês vão sair daqui para ir aonde? Para ficarem marginalizados na cidade grande. É melhor vocês terem condições de estarem inseridos na terra, viver isto aqui e estudar”. Ele reconhece todo o esforço, protagonismo e simbolismo da Dra. Guidon, e segue:
A Dra. Guidon é uma relíquia. Eu não posso endeusar a doutora, jamais. Todos nós somos seres únicos. Mas ela é uma relíquia porque é uma peça fundamental para nós. Chamo de relíquia porque em um futuro próximo ela irá fazer muita falta. Acho que no mínimo o que a gente pode fazer por ela é alguma coisa que pudesse trazer a memória da doutora para eternizar no parque. Eu acho a Dra. Niède uma coisa preciosa, tem seus defeitos, mas é uma pedra preciosa.
Apesar das limitações do presente estudo, nomeadamente aquelas relacionadas ao instrumento de coleta de dados e às questões temporais, o legado de Guidon já está eternizado na região do PNSC. Além da criação da Fumdham, há as descobertas científicas, o estabelecimento de dois museus no semiárido do Brasil, a criação do primeiro curso de arqueologia do Brasil na Universidade Federal do Vale do São Francisco, as mudanças sociais e na orientação aos habitantes do caminho das pedras para superar os obstáculos a partir da educação (Cotes, Alvarenga e Nascimento 2020 ).
Considerações finais
Os relatos dos condutores permitiram identificar sentimentos e percepções dos profissionais com a antropóloga revelando o notório simbolismo de Niède Guidon ao PNSC. Assim, o presente estudo contribui para o alargamento da compreensão dos condutores de visitantes no PNSC, especialmente sobre a disseminação da importância da educação e dos cursos sistematizados de formação continuada de condutores, os quais confirmam a necessidade da participação da população como contrapartida na implantação de APs no Brasil.
Um aspecto a ressaltar é a estrutura administrativa organizacional de gestão do PNSC, no que concerne aos cursos de condutores de visitantes realizados na AP desde 1993, que desencadeou ou influenciou a criação das portarias do Ministério do Turismo nº 27, de 30 de janeiro de 2014, e do Ministério do Meio Ambiente, Normativa nº 2 do ICMBio, de 3 de maio de 2016. Como já apontamos em estudos anteriores e neste, o PNSC é um exemplo de gestão administrativa de APs no Brasil, cujo modelo existe hoje em parte pela ação obstinada da Dra. Niède Guidon durante os decênios de 1970, 1980, 1990 do século XX até a contemporaneidade. Na trilha dessas ações administrativas governamentais de modernização, recomendamos o aprimoramento do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que gerencia a implantação e a gestão das APs no Brasil, para inclusão da categoria de geoparque, pois já é uma demanda real no país.
As evidências apontam o PNSC como um exemplo de gestão que atende aos objetivos do ecoturismo, do turismo arqueológico e segue na direção do conceito de geoparque, em que a autossustentação foi, desde o início, o fundamento primordial ao sucesso conquistado nacional e internacionalmente pelo parque.
A chuva não veio e Níède Guidon penetrou suas raízes na areia do semiárido do Piauí. Ela é “a mulher original” do Parque Nacional Serra da Capivara, “é a origem, o processo e o fim” que não se concretizam, pois seu “trabalho se fez em instantes vivos” ou no resplandecer de uma utopia concretizada (Delfina 2018, 148). “Niède Guido é a mulher desta concretude” (Delfina 2018, 148). As boas práticas e o empoderamento da arqueóloga Níède Guidon estão acima do que se materializou no entorno e no PNSC. São ações de embates com o poder público nas mais variadas esferas, com o propósito único de viabilizar o parque e a dignidade dos residentes do entorno por meio da ciência, da política, da educação e das transformações sociais. Nesse sentido, entendemos que é necessário viabilizar o aeroporto de São Raimundo Nonato para operar com voos semanais, a fim de facilitar o acesso ao parque e à região, evitando seu uso na atualidade por políticos que lá descem para somente fazer suas propagandas eleitorais, bem como perpetuar uma casta que nada vem oferecendo de concreto como alternativa para transformar a vida da população local e do seu entorno.
O presente estudo compreende a primeira pesquisa sobre os condutores de visitantes que atuam no Parque Nacional Serra da Capivara decorridos 26 anos do primeiro curso de capacitação. À guisa do desenlace das considerações finais, um aspecto destacado pelo Condutor/25 (Piauí, 2015) chamou a nossa atenção: “Se não fosse a Dra. Guidon, o Parque Nacional Serra da Capivara não seria o que é hoje. E a Dra. Niède Guidon não seria o que ela é hoje sem o parque”. Portanto, as concretudes dos grandes feitos permitem desejar vida longa à Níède Guidon, pois o Parque Nacional Serra da Capivara já é eterno.