Este artigo trata da inserção da abordagem em Educação Patrimonial no âmbito do Programa de Educação Ambiental da Bacia de Campos (PEA-BC), conduzido pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), especialmente no projeto Territórios do Petróleo: Royalties e Vigília Cidadã na Bacia de Campos nos anos 2017-2019.
Este artigo tem como objetivo promover um debate público sobre os processos de distribuição e aplicação dos recursos financeiros provenientes das participações governamentais (royalties e participações especiais), de modo que contribua em diminuir a desinformação sobre esses recursos inanceiros no orçamento público municipal (Gantos, 2014). A Fase I do projeto (2014-2016) buscou, por meio de processos de sensibilização e formação, conhecer e se fazer conhecido pelas comunidades identiicadas como vulneráveis aos impactos negativos da indústria de petróleo e gás na Bacia de Campos (BC), culminando a formação dos chamados Núcleos de Vigília Cidadã (NVC)1 (Gantos, 2019), nos dez2 municípios do estado do Rio de Janeiro, atendendo às condicionantes específicas estabelecidas pela Coordenação de Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Marinhos e Costeiros (CGMac) do Ibama.
A Fase II (2017-2019) tratou de consolidar os NVCs buscando constituir uma identidade comum que objetivasse a conexão entre as localidades e os grupos sociais reconhecidos como vulneráveis aos impactos nos municípios. Por meio de ações educativas, buscou-se estimular o sentimento de pertencimento do grupo, dedicando-se a ampliar o conhecimento local e regional, valorizando a cultura e os conhecimentos tradicionais (Gantos, 2019). Para tanto, foi considerado adequado a aplicação dos Inventários Participativos, como metodologia capaz de contribuir no fortalecimento dos laços sociais e solidariedade dos grupos envolvidos no processo.
Para a pesquisa-ação de que trata este artigo, interessou-nos especialmente a interface entre a Educação Ambiental e a Educação Patrimonial no contexto da gestão ambiental pública, sobretudo aquela que diz respeito aos processos administrativos, como o caso do licenciamento ambiental. Este configura-se como um instrumento da gestão pública atribuída ao estado, "que se materializa quando um órgão público ambiental autoriza a instalação e funcionamento de um empreendimento causador de degradação ao ambiente, como ocorre, por exemplo, com minerações, siderurgias, indústrias diversas, estradas, portos, produção do petróleo, usinas hidroelétricas, nucleares e termoelétricas" (De Mendonça; Serrão, 2013: 86).
A interação meio ambiente-cultura, no âmbito da gestão ambiental pública, está presente na Resolução 01/1986 do CONAMA, artigo 6°, em que se encontra a determinação de incorporar ao estudo de impacto ambiental da área de influência do empreendimento, entre outras coisas, o uso e ocupação do solo, "destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos"3.
Inspirada nos preceitos4 definidos na Declaração de Estocolmo (Organização das Nações Unidas, 1972)5, a Constituição Brasileira de 1988 aderiu a uma concepção de meio ambiente em que se agrega a cultura e o patrimônio cultural, assumindo que o patrimônio cultural é uma das dimensões do meio ambiente, não se resumindo este aos aspectos naturais. Para Da Silva (1995: 2),
o conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico.
O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, ar-tiicias e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas.
Franco (2015: 187) argumenta que o "ambiente humano, ou o meio ambiente é o que está a nossa volta", ou seja, está formado não só pelo ambiente natural, mas também pelo "ambiente construído pelos humanos, o ambiente cultural ou social". Nesse sentido, "os seres humanos pertencem ao mesmo tempo ao mundo natural e ao mundo cultural" (Franco, 2015: 187), cabendo, no entanto, ressaltar que a adaptação dos humanos aos ambientes naturais se dá por meio da cultura. O autor argumenta ainda que a diferença entre cultura e natureza é apenas instrumental, afirmando que a "ambivalência é parte do jogo do conhecimento, e não há erro algum em reconhecer os humanos tanto como integrantes, quanto separados da natureza", assumindo que ambos conformam o "ambiente humano ou o meio ambiente" que, entrelaçados, constituem e, nesse sentido, permitem "aprofundar a reflexão sobre as características específicas dos patrimónios cultural e natural e sobre as relações entre eles" (Franco, 2015: 190).
Franco então se questiona: "por que valorizar o património cultural e natural? A resposta mais simples e óbvia é: para garantir a conservação do ambiente humano, sem o qual a vida humana não seria possível" (Franco, 2015: 191).
Com base nessa perspectiva, assumimos a necessidade de uma pedagogia para este ambiente humano, onde as práticas da Educação Patrimonial e Ambiental tor-nam-se essenciais no sentido de construir uma consciência crítica sobre sua totalidade. Apoiadas neste entendimento, foi que buscamos desenvolver a interação entre as práticas da Educação Ambiental e Educação Patrimonial, aspirando contribuir efetivamente no processo de consolidação e coesão dos Núcleos de Vigília Cidadã (NVC) do projeto Territórios do Petróleo.
Do ponto de vista da gestão pública, observa-se uma convergência nos instrumentos da lei sobre a conveniência de ações educativas que estabelecem esta relação entre meio ambiente e cultura, inclusive no licenciamento. Miranda, alega que,
Tendo em vista que o patrimônio cultural integra o conceito amplo de meio ambiente, obviamente que todos os impactos sobre os bens culturais materiais (tais como cavernas, sítios arqueológicos e paleontológicos, prédios históricos, conjuntos urbanos, monumentos paisagísticos e geológicos) e imateriais (tais como os modos de viver, de fazer e se expressar tradicionais, os lugares e referenciais de memória) devem ser devidamente avaliados para se averiguar a viabilidade do empreendimento e para se propor as correspondentes medidas mitigadoras e compensatórias. Em razão disso, podemos afirmar que o processo de licenciamento ambiental é um instrumento de acautelamento e proteção também do patrimônio cultural, encontrando fundamento no art. 216, § 1°, in fine, c/c art. 225, § 1°, IV da nossa Carta Magna. (Miranda, 2009)
Para a ação educativa proposta junto aos NVCs foi definida a metodologia desenvolvida pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), denominada Inventário Participativo (IPHAN, 2016). Desde nosso ponto de vista, o tema da preservação do ambiente humano deve caminhar associado a um constante processo de aprendizado em que são fundamentais os valores relacionados à cidadania, à participação e ao controle social, que se relacionam aos objetivos do PEA-TP.
Patrimônio Cultural e Inventários Participativos
Sendo uma ação concebida para atuar juntos aos NVCs, consideramos que essencialmente nos interessava o património de natureza comunitária, relacionado a um território compartilhado; o património como "tecido da vida" (De Varine, 2013: 43) . Neste caminho, todas as decisões sobre os bens a serem inventariados foram tomadas pelos membros dos NVCs.
Não pretendemos aqui oferecer uma definição acabada de património. Nosso objetivo não é, neste caso, discutir o conceito. Mas para fins de demarcar uma ideia, partimos da noção de que o património cultural "es el conjunto de bienes muebles, inmuebles e inmateriales que hemos heredado del pasado y hemos decidido que merece a pena proteger como parte de nuestras señas de identidad e histórica"6 (Querol, 2010: 11). Um alargamento desta noção incorpora
todas as manifestações e expressões que a sociedade e os homens criam e que ao longo dos anos vão se acumulando com as gerações anteriores. Cada geração as recebe, usufrui delas e as modifica de acordo com sua própria história e necessidades. (...) não são somente aqueles bens que herdam dos nossos antepassados. São também os que produzem no presente como expressão de cada geração, (...). (Grunberg, 2007: 5)
A partir dessas premissas, assumimos que o património do qual nos interessa é o de natureza comunitária, na perspectiva que nos traz Hugues de Varine (2013: 44) , aquela que "emana de um grupo humano diverso e completo, vivendo em um território e compartilhando uma história, um presente, um futuro, modos de vida, crises e esperanças". Nessa perspectiva, o património é o "DNA do território e da comunidade" (De Varine, 2013: 45).
O vocábulo inventário tem origem no termo latino 'inventarium' (rol ou catálogo de coisas), do qual vem o verbo invenire 'encontrar', 'achar', tendo seu uso mais frequente em âmbito jurídico. Refere-se ao arrolamento de bens, que podem ser móveis, imóveis, materiais, imateriais, naturais, etc., acompanhado de detalhada descrição, relacionada ao património de um indivíduo ou família, de uma empresa ou de uma coletividade. O termo passa, a finais do século XVIII, na França, a ser utilizado como uma das formas de proteção do património cultural.
Para Motta e Resende,
os inventários estão na origem da constituição do campo da preservação do patrimônio no século XVIII no contexto da construção dos Estados Nacionais. Surgiram como modos de produzir um novo saber, por meio da coleta e sistematização de informações obedecendo a determinado padrão e repertório de dados passíveis de análises e classificações, e se constituem até hoje como instrumentos de identificação, valorização e proteção dos bens como patrimônio cultural. Nesse sentido, na trajetória das práticas de preservação, o conceito de inventário deve ser considerado chave, pois sempre remeterá à própria conceituação do que seja o patrimônio cultural. (Motta; Rezende, 2016: 2)
As mesmas autoras destacam que os "inventários constam como recomendação nos documentos internacionais desde o início do século XX, visando à produção de conhecimento sobre os bens que representassem a expressão mais significativa das culturas, segundo entendimentos da época", já estando presente inclusive na Carta de Atenas de 1931 (Motta; Rezende, 2016: 10).
De acordo com Miranda (2008: 293), o termo é utilizado no Brasil, desde o início do século XVIII, como instrumento destinado a conhecer e proteger o que, posteriormente, será reconhecido como património cultural brasileiro. Dentre os primeiros inventários, o autor menciona o levantamento e a descrição, empreendido por Frei Agostinho de Santa Maria, das imagens da Virgem Maria e dos templos "no Arcebispado de Bahia e nos Bispados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão, Pará, Rio de Janeiro e Minas Gerais" e também o inventário dos edifícios em Recife e Maurícia, após a expulsão dos holandeses realizado por Francisco Mesquita (Miranda, 2008: 293).
Miranda (2008: 293) argumenta ainda que, estritamente do ponto de vista da cultura, no Brasil, o termo inventário passa a ser utilizado nos anos 1920, quando se institucionaliza como "instrumento jurídico de preservação cultural, ao lado do tombamento, da desapropriação, dos registros, da vigilância e de outras formas de acautelamento e preservação (art. 216, §1o)". Motta e Resende7, acrescem que os processos de reunião "de informações sobre os bens ocorreram com a criação de inspetorias estaduais de monumentos, que tinham entre suas funções identificar os monumentos situados nos estados, produzindo listagens e inventários". As autoras citam as primeiras inspetorias estaduais: de Minas Gerais (1926), da Bahia (1927) e de Pernambuco (1928). Com a criação do Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional/SPHAN (atualmente Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional/IPHAN) em 1937, institui-se efetivamente os inventários como forma de 'encontrar' os bens culturais. Nesse momento, essencialmente, eram considerados patrimónios os bens edificados e de natureza material. Advertimos que uso da palabra 'natureza', não se refere às características ontológicas do bem. Estamos de acordo com De Meneses (2012: 31), em que considera que se "(...) todo patrimônio material tem uma dimensão imaterial de significado e valor, por sua vez, todo patrimônio imaterial tem uma dimensão material que permite realizar-se. As diferenças não são ontológicas, de natureza, mas basicamente operacionais".
Posteriormente, com a Constituição de 1988, o termo patrimônio adquiriu um sentido mais amplo, abarcando para além dos bens materiais o patrimônio imaterial. A partir de então, e principalmente com a Lei 3.555 de 2000, o termo "inventário" aderiu-se completamente ao patrimônio imaterial. Nesse mesmo ano, o IPHAN instituiu o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), um instrumento "essencial para a identificação e documentação de bens culturais", imateriais e materiais, consolidado em um manual de aplicação8. O INRC tem por objetivo não apenas "identificar e documentar os bens culturais, de qualquer natureza", mas também como "apreender os sentidos e significados atribuídos ao patrimônio cultural" vistos como intérpretes da cultura local e parceiros na preservação (IPHAN, 2000: 8). Finalmente em 2016, o IPHAN publicou um manual de aplicação intitulado "Educação Patrimonial: Inventários Participativos", em que definiu o processo de inventariar como "um modo de pesquisar, coletar e organizar informações sobre algo que se quer conhecer melhor. Nesta atividade, é necessário um olhar voltado aos espaços da vida, buscando identificar as referências culturais que formam o patrimônio do local" (IPHAN, 2016: 7).
Deste modo, assumimos que o inventário, "ou o inventário cultural/natural é o levantamento sistemático dos bens culturais e naturais, visando ao conhecimento e à proteção do patrimônio de uma determinada cultura" (Assunção, 2003: 64). No entanto, sem olvidar o alerta que nos faz Hugues de Varine (2013: 46),
para aqueles que trabalham a serviço do desenvolvimento - sobretudo se eles não fazem parte da comunidade -, o inventário é indispensável, sempre sabendo que não será jamais exaustivo, nem definitivo, que ele deverá, portanto, permanecer evolutivo, subjetivo, condicionado pelo objetivo da pesquisa e pelos saberes do momento.
Os Inventários participativos que propõe o IPHAN, constituem-se pois, numa ferramenta para a Educação Patrimonial que visa "promover a mobilização social das comunidades em torno de suas referências culturais, estimulando a busca pela identificação e valorização do seu patrimônio" (Florêncio; Biondo, 2017: 53), de modo participativo, ou seja, mobilizando os sujeitos racionalmente e emocionalmente com fins de estimular e valorizar a participação nos processos decisórios, neste caso, referente às suas referências culturais.
Com essa introdução que define as referências que nortearam o inventário e o projeto em que estamos inseridas, passamos às narrativas construídas pelos sujeitos da ação educativa (SAE).
No contexto do PEA-TP, buscamos estimular os participantes dos dez NVCs a promover coletivamente a identificação de um bem cultural/natural ou manifestação no seu município. A ação ensejou a coleta de informações sobre o bem/manifestação identificado, oportunizando os debates relacionados às questões culturais, ambientais, memória e identidade, fortalecendo os vínculos entre os participantes.
Apesar da metodologia proposta na referida publicação do IPHAN, ter sido pensada para o ambiente da educação, as categorias apresentadas devem ser entendidas como proposições; de fato o inventário deve ser visto como "um instrumento de livre uso" que permite modificações objetivando sua adaptação "aos objetivos das comunidades que irão utilizá-lo, inclusive na supressão ou inclusão de novas categorias" (Florêncio; Biondo, 2017: 55). O Inventário Participativo sugere o uso de fichas como forma de sistematizar a coleta e a análise das informações coletadas pelo grupo de trabalho. São cinco as fichas propostas, a saber: do Projeto; do Território; das Fontes Pesquisadas; do Relatório de Imagem e do Roteiro de Entrevistas (IPHAN, 2016). Além dessas fichas, chamadas Estruturantes, o Inventário Participativo traz as Fichas das Categorias, que se orientam pelo INRC, assim identificadas: Lugares; Objetos; Celebrações; Formas de Expressão e Saberes.
Sempre é bom ter em conta que não há como praticar modelos universais ou integrais quando nos referimos ao setor cultural. De modo algum, somos capazes de apreender completamente uma realidade cultural. Contudo, é indispensável assegurar modelos de coleta que nos permitam algum nível de comparação ou correlação para que os resultados obtidos não tenham uma função apenas descritiva. É nessa perspectiva que buscamos intervir positivamente na formação cidadã por meio da cultura, favorecendo articulação coletiva para a gestão participativa e para o controle social.
Como se trata de um projeto no âmbito da gestão ambiental pública voltado para a educação ambiental crítica, faz-se necessário o cuidado para que as ações educacionais não se apresentem esvaziadas de sentido. Loureiro (2012: 26) adverte que:
o dado de realidade é que participação, interdisciplinaridade, respeito à diversidade biológica e cultural, entre outros princípios, viraram lugar-comum, como se tivessem um único significado, e sem que suas implicações no escopo de cada abordagem ou projeto sejam explicitadas, problematizadas, aceitas ou refutadas.
A crítica sobre o esvaziamento dos conceitos nos usos recorrentes que se apresentam em projetos e ações também é advertida por Poulot, quando se trata do uso do conceito/termo de patrimônio:
(...) cansamos de evocar 'patrimónios' a serem conservados e transmitidos, relacionados com universos absolutamente heterogéneos. (...) Fala-se de um património não só histórico, artístico ou arqueológico, mais ainda etnológico, biológico ou natural; não só material, mas imaterial; não só local, regional ou nacional, mas mundial. Às vezes, o ecletismo de tais considerações redunda em contradições e leva a incoerência. (Poulot, 2009: 10)
Com estas observações queremos dizer que, para o desenvolvimento dos Inventários Participativos, buscamos atuar de forma crítica, atenta aos escorregadios caminhos de uma formulação pedagógica elementar e esvaziada. Objetivamos com esta metodologia trilhar um caminho seguro para um aprofundamento teórico-con-ceitual baseado na pesquisa empírica junto aos participantes dos NVCs. Por último, destacamos o papel desta metodologia/estratégia como um instrumento capaz de articular os conhecimentos provenientes da Educação Ambiental e da Educação Patrimonial, articulando-os em um único eixo, permitindo aos participantes dos NVCs alcançar em toda sua plenitude o exercício da cidadania.
Com relação aos dez municípios onde realizamos a pesquisa, observa-se uma latente carência de ações educativas que buscam valorizar a memória, a identidade e o território dos diferentes grupos sociais, que acarretam num maior protagonismo dos indivíduos e dos coletivos nas práticas culturais próprias de cada localidade. Nesse sentido, o que se pretendeu foi ampliar o repertório de bens culturais passíveis de serem identificados e reconhecidos pelos grupos com os quais trabalhamos, os NVCs. O patrimônio cultural é uma construção social, um ente abstrato que uma vez identificado e reconhecido (posto em valor) pode ser ativado, ou seja, é possível atuar sobre ele de alguma maneira (Prats, 2005: 19). Por ativação patrimonial, entende-se: a ação de selecionar um recurso cultural e transformá-lo, por meio do estabelecimento de serviços, mediação, difusão dos valores e informações, tornando o bem um produto patrimonial (Prats, 1997). Em nosso caso, o Inventário Participativo propiciou à ativação patrimonial, favorecendo ao aprofundamento da relação espaço tempo, a partir do reestabelecimento da memória compartilhada, da vivência na comunidade, da solidariedade e dos laços afetivos construídos no sistemático sentido de cidadania construído no âmbito dos NVCs.
Os Inventários Participativos nos 10 municípios do PEA TP
As etapas que envolveram a realização dos Inventários Participativos tiveram de ser ajustadas às demais etapas do PEA-TP de acordo com o plano de execução da Fase II. Duas atividades precederam à realização dos Inventários propriamente dito: a formação dos técnicos e agentes de mobilização9, e as oficinas preparatórias, para a realização dos Inventários junto aos membros dos NVCs.
Na primeira atividade, realizamos uma oficina com os técnicos locais e mobilizadores do projeto para a apresentação do tema do patrimônio cultural/natural, onde foi exposta a metodologia dos Inventários Participativos. Na ocasião, foi lido partes do manual, debatida a sistemática de aplicação, comentada as dúvidas e observado os principais aspectos relativos ao papel dos SAEs para a efetivação e acompanhamento do processo de inventariação. Nessa atividade, procuramos conhecer melhor a percepção da equipe, que desenvolve diretamente as ações educativas junto aos membros dos NVCs, sobre a elaboração dos inventários por parte da comunidade.
Como segunda atividade, foram realizadas três oficinas com os NVCs: a primeira em Cabo Frio, que reuniu os NVCs de Cabo Frio, Arraial do Cabo e Armação dos Búzios (microrregião Sul)10; a segunda, realizada em Campos dos Goytacazes, com os NVCs de São João da Barra, Campos dos Goytacazes, Quissamã e Carapebus (microrregião Norte); e a terceira, em Casimiro de Abreu, com os NVCs de Macaé, Rio das Ostras e Casimiro de Abreu (microrregião Centro). A proposta era a de estabelecer o contato direto com o Inventário Participativo, a partir da leitura conjunta do manual, esclarecer dúvidas e dar início ao processo de apropriação da metodologia por parte dos NVCs. Durante as oficinas, procuramos estimular o desenvolvimento das sensibilidades e competências dos participantes do processo no decurso da inventariação: coleta, sistematização e consolidação de informações sobre aspectos da cultura e da natureza, relacionados aos municípios11.
Depois das oficinas, coube aos membros dos NVCs, junto à equipe técnica e mobilizadores, decidirem qual(ais) bem(ns)/manifestação(ões) seria(m) inven-tariado(s). O desenvolvimento dos Inventários Participativos foi acompanhado periodicamente nas reuniões ordinárias12 dos 10 NVCs. Nessas reuniões, pudemos contribuir deslindando dúvidas e conceitos, apresentando sugestões de encaminhamento, contribuindo na pesquisa, facilitando material de leitura e indicando fontes de pesquisa, na seleção de material para a composição do inventário.
Cabe ressaltar que o processo de execução dos Inventários Participativos alcançou resultados para além dos esperados, apresentando-se como um elemento fundamental no desenvolvimento de projetos socioambientais, como os de educação ambiental na gestão ambiental pública, favorecendo o envolvimento e a mobilização das pessoas. Cada etapa desenvolvida pelos grupos estimulava a participação e aguçava a curiosidade de reconhecimento das culturas locais.
O Quadro 1, apresenta a relação dos municípios, os bens inventariados, natureza e categoria relativo aos Inventários Participativos. Sempre lembrando que as escolhas foram dos NVCs, assim como as categorias relacionadas.
A etapa seguinte correspondeu à realização dos Inventários pelos componentes dos NVCs do PEA-TP. Não realizamos nenhuma intervenção no tocante à escolha do bem a ser inventariado, à definição das fontes de pesquisa e entrevistas, às perguntas aos entrevistados, à seleção de imagens e das fotografias que foram feitas; enfim, todas as decisões e iniciativas partiram do grupo. Nossa intervenção foi pontual, com o objetivo de ligar os fios soltos da pesquisa. Em todas as pesquisas houve ao menos um trabalho de campo, com visita ao local, em que os mesmos puderam observar, entrevistar, fotografar, arguir e intuir sobre o bem pesquisado; exceto em Carapebus, em razão de uma interdição de acesso pela justiça, devido a ocorrência de um crime sucedido no local.
No geral, não tomamos em consideração, para este artigo o patrimônio cultural oficialmente instituído pelos órgãos competentes nas três esferas públicas. Os dados aqui disponibilizados, tem por base a pesquisa realizada pelos NVCs. Em seguida, comentamos os inventários.
Armação dos Búzios, a construção naval artesanal
O município de Armação de Búzios é conhecido por suas praias de grandes belezas cênicas, seus costões rochosos e promontórios de vegetação nativa. As belezas naturais atraem veranistas e turistas, movimentando a cidade. Mas Búzios não é somente boutiques de grifes e intensa vida noturna. E, foi em busca desta Búzios pouco visível que o NVC municipal escolheu inventariar o trabalho artesanal de Mestre Andrelino na praia Rasa. Apesar do intenso turismo, Búzios tem ainda uma população dedicada à pesca artesanal.
Desde os anos 1950, Mestre Andrelino se dedica a construção de barcos artesanais, um conhecimento adquirido e aprimorado de gerações em gerações. As condições meteorológicas da península impõem a necessidade de um barco adequado para enfrentar os ventos fortes que açoitam o litoral, dificultando o retorno dos pescadores à terra firme. O barco deve ser maciço, feito em madeira de lei. Deve ter uma proa 'afilada' para melhor enfrentar os ventos. Manufaturado a partir do tronco de madeira inteira, recebeu o delicado nome de "folhinha".
Como acontece com outros artefatos, aqui entendidos como produtos de ativi-dades artesanais, como a viola-de-cocho e as rabecas, que dependem de madeira de qualidade para sua elaboração, a produção do barco folhinha tem enfrentado muita dificuldade na obtenção de madeira, devido às restrições legislativas sobre o corte de madeira.
A praia da Rasa é um referencial importante para a comunidade quilombola da Rasa. Parte dos membros do NVC é da comunidade e a proposta apresentada por eles foi amplamente acolhida pelo grupo que se empenhou em realizar o inventário. O grupo percebeu a importância da atividade da pesca e seus artefatos como um elemento significativo da vida buziana, que certamente passa despercebido pelos veranistas e turistas.
Valorizar a cultura local do município está sempre presente no diálogo entre os membros do NVC de Búzios, sobretudo entre as mulheres do grupo. A atividade tradicional da pesca artesanal conta a história do município para além das glamourosas noites vividas na famosa rua das Pedras e dias de praias cheias. O Inventário Participativo possibilitou à comunidade o conhecimento de um caminho para a valorização.
Arraial do Cabo, o Bioma da Restinga de Massambaba
O ecossistema denominado Restinga de Massambaba, está formado por uma faixa arenosa de aproximadamente 48km ao longo da costa, entre os municípios de Sa-quarema e Arraial do Cabo. A faixa arenosa, com larguras que variam entre 300111 e 6km entre o Oceano Atlântico e a Lagoa de Araruama, abriga uma importante biodiversidade. A vegetação presente na Restinga de Massambaba está associada ao Bioma da Mata Atlântica, configurando-se em um "conjunto de comunidades vegetais distribuídas em mosaico e associadas aos depósitos costeiros quaternários" (Carvalho et al., 2018: 12). A vegetação de restinga é fortemente influenciada pela salinidade e pelo vento, e cumpre um papel fundamental na estabilização dos substratos arenosos, favorecendo a manutenção dos corpos hídricos e na preservação da biodiversidade, dentre outros (Carvalho et al., 2018: 12). Os estudos realizados na região identificam ao menos 10 formações vegetais diferentes, denotando a riqueza da flora, com numerosas espécies endêmicas.
Apesar das diferentes Unidades de Conservação (UCs) existentes que pretendem a proteção deste bioma, está em curso um intenso processo de degradação ambiental. A crescente substituição das atividades tradicionais, como a pesca e a extração de sal e, a partir dos anos 1970, o turismo e a especulação imobiliária têm produzido um forte impacto neste delicado ecossistema. Esse impacto, com a notável perda da biodiversidade e a destruição de parcelas da vegetação, motivou o NVC de Arraial do Cabo a escolher a Restinga de Massambaba para o inventário.
Inspirados pelo livro "Restinga de Massambaba: vegetação, flora, propagação e usos" de Amanda S. da R. Carvalho et al. (2018), então recém-publicado, e pelas lembranças que o mesmo suscitou nos membros mais velhos do grupo, principalmente no tocante à relação das comunidades tradicionais com a restinga e seu potencial medicinal e alimentar, o grupo decidiu inventariar esse ecossistema. A pesquisa realizada pelo NVC registrou a presença de diferentes frutos, como o cambuí, a pitanga, o cajá, o abricó, o maracujá, a pitangubaia, o araçá, o guamirim, a gabiroba, a grumixama, o ingá, o murici, a guepeba, o quixaba e o bacuri; a maioria pouco conhecida pelas novas gerações. Também identificaram espécies medicinais como a aroeira, o bajirú e a jacacanga. O inventário apontou também a existência de material para a preparação dos artefatos de pesca, como barcos, agulhas e fibras para a confecção de redes.
Ao longo da realização do inventário, o grupo revelou pleno conhecimento sobre as particularidades do ecossistema, assim como a íntima relação entre o patrimônio natural e cultural, especialmente o de caráter imaterial. A relação entre o conhecimento dos elementos naturais e os usos - alimentares, medicinais e artesanais - como práticas culturais esteve presente ao longo de todo trabalho. A pesquisa empreendida recorreu à história local, desde os primeiros habitantes (sambaquis) e revelou a importância da restinga para a ciência.
O grupo verificou igualmente diversos problemas, como a falta de uma fiscalização mais rigorosa e a presença de inúmeras construções irregulares, reconhecendo que estes problemas afetam o patrimônio natural e cultural. Por fim, observou que a escola tem um papel relevante na formação dos jovens, para que estes conheçam e se interessem mais pelos saberes e fazeres da comunidade, e ressaltou que a preservação da restinga vai muito além de sua beleza natural. Sua preservação passa pela memória das experiências humanas passadas de geração em geração.
Nesse sentido, coadunamos com a ideia de uma escola que abrace os diversos contextos culturais, uma escola transformadora que compreenda que os seres humanos, enquanto sujeitos de sua história, produzem cultura, nas "práticas que têm como objetivo predominante a sobrevivência econômica, através da produção e circulação de bens e serviços", nas "práticas que têm por objetivo predominante a sobrevivência social e política como as diferentes formas de organização e associação (grupos familiares, partidos, grupos de lazer, sindicatos, associações de moradores, etc.)" e nas "práticas que tem como principal objetivo a expressão e representação do real e do imaginário, conhecimento do mundo e sua valorização, a produção artística, a religiosidade, as lendas, os mitos, a ciência, a tecnologia etc." (Brandão, 1996: 44). Os valores imbuídos nessas práticas são os valores que buscamos nutrir nos NVCs.
Cabo Frio, a Fazenda Campos Novos
O NVC de Cabo Frio decidiu por realizar o inventário no sítio da Fazenda de Santo Inácio de Campos Novos, apesar do mesmo possuir duplo tombamento (IPHAN e INEPAC13). A escolha de um bem já consagrado favoreceu à obtenção de farto material bibliográfico sobre ele. O grupo foi questionado sobre o porquê inventariar algo que já possuía o reconhecimento em duas esferas do Estado. Em resposta a esses questionamentos, eles apresentaram uma perspectiva que escapa à lógica da preservação institucional do bem material: eles miraram nos moradores, descendentes dos trabalhadores da fazenda, ainda residentes no local, e nas histórias compartilhadas por essas comunidades.
Evidencia-se o reconhecimento da comunidade para com os remanescentes de escravos e a preocupação da ausência da história do povo negro em âmbito municipal, em que nenhuma data comemorativa lembre sua importante participação. Desse modo, o cemitério, -atualmente interditado aos moradores, inclusive para as visitas aos túmulos- e as histórias referentes a acontecimentos extraordinários e misteriosos foram abordados no inventário.
A lenda da Batatoa, narrada pelo Sr. Antônio, a partir de uma experiência real do mesmo e as histórias que cercam os enterramentos no interior da casa, conduziram a pesquisa do grupo por caminhos diferentes daquele que fundamenta o tombamento do local. Também as árvores frutíferas, as plantas medicinais, as hortaliças foram objeto da observação do NVC de Cabo Frio.
Na avalição realizada pelo NVC, houve evidência da ausência de manutenção e conservação de toda área, o que demonstrou o descaso com a história do município. Nesse sentido, as recomendações foram enfáticas, sugerindo a realização de mutirão de limpeza de todo o local; a realização de um trabalho de sensibilização da comunidade do entorno buscando uma maior valorização do local e a sugestão de reabertura do cemitério para visitas da comunidade.
Campos dos Goytacazes, a puxada de barco em Farol de São Tomé
A praia de farol de São Tomé, situada a aproximadamente 50km do centro da sede do município de Campos dos Goytacazes, possui uma significativa comunidade pesqueira. Ali o mar é muito agitado e a configuração geológica não acomoda a construção de um porto. A tradicional pesca de arrastão foi, a partir dos anos 1970, lentamente substituída pelo barco a motor, que embora fosse mais seguro e garantisse um maior volume de pesca trouxe o problema de como atracar os barcos. A "puxada" é a atividade de colocar e tirar o barco da água. São entre 30 e 100 barcos movidos diariamente no local.
Inicialmente toda a tarefa era feita 'no braço', sendo que logo foi introduzido o tra-tor para tirar o barco do mar. Para tanto, foi preciso desenvolver um suporte de ferro colocado na proa, chamado de 'biqueira', cuja função era dar resistência ao barco no momento de retirar o barco da água. Num segundo momento, foi introduzido uma outra estrutura, também em ferro, denominado 'pau de popa' que permitia que os barcos pudessem ser empurrados para o mar. Isso permitiu o uso de barcos maiores.
O NVC de Campos dos Goytacazes viu esta prática como um saber específico, criado e transmitido pelos pescadores locais, estreitamente vinculado à sobrevivência da prática pesqueira no litoral campista, dependente da expertise daqueles que dominam a praticada puxada.
A pesquisa para o Inventário, levada acabo pelo NVC de Campos dos Goytacazes se estendeu aos estaleiros artesanais existentes no local. Ali, o grupo pôde conhecer mais sobre os barcos e as características necessárias para a puxada. O grupo identificou que, além da biqueira e do pau de proa, os barcos devem ter uma estrutura mais larga, para um melhor equilíbrio, e não virar na entrada e na saída do mar.
Na avaliação, o grupo manifesta que a prática da puxada é pouco valorizada pela população no município. Reconhecem que é uma atividade que requer um saber específico e é bastante perigosa, a considerar os relatos de acidentes no local. Por esse ângulo, as recomendações sugerem ações públicas para uma maior segurança do trabalho, associada a uma maior valorização econômica e cultural deste saber associado à pesca artesanal.
Carapebus, A Usina de Carapebus S.A.
O município de Carapebus, até sua emancipação em julho de 1995, foi um distrito do município de Macaé. Embora não tenha nenhum patrimônio reconhecido pelo IPHAN, está inserido no tombamento do Canal Campos-Macaé pelo INEPAC e possui algumas edificações que são identificadas como patrimônio arquitetônico. Dentre estes, as instalações da Usina de Carapebus, inaugurada em 1927, são um referencial importante para toda a comunidade. O NVC de Carapebus elegeu a usina para o Inventário.
A partir de um levantamento sobre a história da usina na localidade, com base principalmente num livro de autoria de Anna Maria V. Almeida, participante do NVC, intitulado "Carapebus na páginas do passado" e, em sítios na internet e entrevistas, o grupo elaborou um histórico da relação da Usina com o município, observando os aspectos positivos e negativos que estão compreendidos nesta relação: a importância econômica para o município com oferta de empregos; a falta de segurança no trabalho e a política de assistencialismo da usina; a manutenção da escola; e a construção do hospital e de áreas de esporte. Também foi observado os impactos ambientais negativos da atividade, como a fuligem produzida com a queima da cana e o despejo de vinhoto nos córregos e rios, provocando grande mortandade de peixes.
O local situado em área central na sede do município está complemente abandonado e sem nenhum tipo de conservação. A realização do inventário explicitou o valor histórico-cultural da usina para a comunidade, principalmente sua relação com a fundação do município, portanto como marco fundador. A pesquisa evidenciou igualmente os problemas de subordinação da população aos ditames dos donos e administradores da Usina na esfera pública e privada, relacionando o baixo desenvolvimento da localidade. Ao mesmo tempo, recolheram nos relatos os aspectos nostálgicos do passado marcado pelo apito da usina, pelas conversas nos intervalos do trabalho, pelos laços de solidariedade e irmandade tecidos no dia a dia, das sessões de cinema, dos casamentos e dos enterros. Nesse sentido, é que entendemos que a relação entre a Usina e a população é cultural, onde a dimensão simbólica de significação está presente e orienta de forma dinâmica as condutas sociais em todas as esferas e campos da vida cotidiana (Brandão, 1996: 55).
Na avaliação, o grupo manifestou o desejo de que toda área fosse transformada em um espaço cultural, que pudesse gerar novos empregos e renda. As recomendações finais vão neste sentido, de que haja o tombamento total da área para que se possa ao mesmo tempo preservar e retomar o território da usina como espaço de convívio.
Casimiro de Abreu, a rua Beira-Rio no distrito de Barra de São João
Casimiro de Abreu possui dois patrimônios arquitetônicos tombados: a Casa próxima à Praça Marechal Deodoro ou Rua Bernardo Gomes, conhecida como casa de Casimiro de Abreu pelo IPHAN e a Igreja de São João Batista pelo INEPAC, ambas no distrito de Barra de São João, localidade relacionada à fundação da cidade e local do bem cultural escolhido para o inventário. Desde 2016, a Câmara Municipal instituiu Corredores Histórico-Culturais nesse distrito, tendo em vista esta ser a área de ocupação mais antiga do município, que até o ano de 1846 era uma freguesia de Macaé.
A pesquisa do inventário seguiu um percurso pautado na memória fundacional, buscando destacar a relevância do lugar e os personagens mais notáveis no cenário nacional, nascidos na localidade, como Washington Luiz e o próprio Casimiro de Abreu, além de outros que visitaram o local, como Charles Darwin, Princesa Isabel e o naturalista mineiro Barão de Capanema. O grupo realizou uma visita ao local e, tendo como referência imagens antigas da rua Beira-Rio, buscaram identificar os pontos mais importantes - o cais, o casario e uma ponte pública de ferro -, verificando os usos atuais e avaliando o estado de conservação.
A pesquisa para o inventário, realizada pelo NVC de Casimiro de Abreu, tendo em conta os elementos acima, assumiu um tom nostálgico, pautada numa narrativa histórica de caráter mais tradicional, em que se destacou o apego ao patrimônio arquitetônico de fins do século XVIII e século XIX, e dos personagens que a eles se relacionam. O grupo não apresentou nem avaliação e nem recomendação.
Macaé, a Lyra dos Conspiradores
O NVC de Macaé escolheu a centenária Sociedade Musical Beneficente da Lyra dos Conspiradores para a pesquisa do inventário. A Lyra foi fundada por abolicionistas dissidentes da Banda Nova Aurora, vinculada à maçonaria, que não aceitava negros alforriados como músicos. As narrativas históricas sobre a Lyra possuem inúmeros relatos de colaboração em fugas de escravos, como a existência de um sótão na Capela Nossa da Penha, ao lado do edifício da banda, de onde partia um túnel que levava os escravos diretamente ao antigo mercado de peixe (atual porto), onde embarcavam para o Quilombo de Dores de Macabu, em Campos dos Goytacazes.
Além de seu importante papel em defesa da Abolição, a Lyra se constituiu numa importante referência no ensino musical no município. Ao longo do século XX, a Lyra e seus músicos participaram das festividades, atos políticos e outros eventos públicos, nas praças, coretos e clubes da cidade. A banda estava formada principalmente por trabalhadores, especialmente os ferroviários. Com sede própria, a Lyra até os dias de hoje desempenha uma relevante função social na formação de músicos. Destaca-se que as bandas e liras nas cidades do interior cumprem um importante papel para essa formação, inclusive em período escolar.
A pesquisa para o inventário focou não apenas no levantamento de dados históricos, mas principalmente nas condições atuais da casa sede da banda musical. Sem meios para obter os recursos suficientes para sua manutenção e sem subsídio municipal, a casa se encontra em péssimo estado de conservação, segundo avaliação do NVC. Janelas quebradas, fiação exposta e tábuas soltas no piso são apenas os aspectos mais visíveis do edifício. Com parte dos cômodos sem condições de uso para as aulas e para a conservação dos documentos, das partituras e das fardas, e ainda, há o mau estado dos instrumentos. A Lyra e seus músicos já não conseguem atender adequadamente ao ensino de música.
O grupo foi veemente na sua avaliação sobre o estado do bem inventariado, observando todos os problemas levantados, com grande destaque para o acervo documental. O valor simbólico do lugar está dado pela importante participação na luta abolicionista que consideram ser um marco histórico-cultural para o município. Nesse sentido as recomendações são claras: reconhecimento e restauração da edificação, e salvaguarda do acervo com os recursos provenientes dos royalties do petróleo. Assim como, a manutenção da banda como forma de preservar o patrimônio material e imaterial.
Quissamã, Fazenda Machadinha
A escolha do bem a ser inventariado pelo NVC de Quissamã foi a Fazenda Macha-dinha, uma comunidade Quilombola, localizada em área rural no município. O conjunto de edificações do século XIX, auge da economia agroaçucareira na região, inclui uma capela, a cavalaria, as ruínas da antiga casa senhorial em estilo neoclássico e o conjunto de senzalas, onde residem a oitava geração de descendentes dos escravos. O conjunto, tombado pelo INEPAC, está localizado às margens do Canal Campos-Macaé, tombado pelo mesmo instituto.
Apoiado em estudos sobre a comunidade, o grupo associou as referências culturais do quilombo à Angola, na África. O reconhecimento como quilombo favoreceu ao desenvolvimento de uma reforma nas senzalas, dotando-as de serviços de banheiros e cozinhas e a construção de uma série de edificações que tiveram por objetivo a reprodução social e cultural da comunidade quilombola, como campo de futebol, casa de passagem, memorial, restaurante, entre outros. Essas novas edificações pretendiam igualmente apoiar as atividades turísticas no local.
Além das edificações, o NVC de Quissamã observou a presença do baobá, árvore com forte conteúdo simbólico para esta comunidade, e de outras árvores frutíferas, assim como de uma expressiva produção agrícola. Também anotaram a existência de práticas culturais específicas da localidade, como o jongo e fado mirim, o artesanato e a confecção de bonecas abayomi e a feijoada tradicional.
O grupo fez anotações sobre a demanda da comunidade quilombola a respeito da necessidade de uma maior manutenção das edificações, como a pintura das senzalas, da igreja e do memorial e avaliou que a falta de interesse pode dificultar a preservação do patrimônio histórico e a valorização do passado. Nesse sentido, aponta a escola como ente indispensável para incentivar modos de se preservar, ao mesmo tempo que buscar o poder público para fortalecer o turismo na comunidade.
Ao analisar o material produzido pelo grupo, compreendemos que este percebeu a existência de uma relação contínua e dinâmica entre a tradição cultural e a vida cotidiana na criação de símbolos, uma vez que a comunidade quilombola elabora e se recria dia a dia naquele espaço.
Rio das Ostras, as Festas do Feijão e de São Pedro
Em Rio das Ostras, o NVC optou por realizar dois inventários; o principal fator desta decisão está relacionado às localidades de residência e às atividades produtivas aos quais estão relacionados. Foram inventariadas duas festividades: a Festa do Feijão no distrito de Cantagalo, área rural do munícipio, e a Festa de São Pedro, relacionada à comunidade de pescadores.
A Festa do Feijão teve início no ano de 2005, quando da legalização de terras da reforma agrária na região, e está relacionada à colheita, configurando-se como uma celebração relacionada aos resultados do plantio, em que se procura dar maior visibilidade aos produtores rurais. Durante a festa é oferecido ao público um variado cardápio de pratos à base de feijão. Ocorre entre os meses de outubro e novembro, ao longo de uma semana.
A pesquisa, no entanto, revelou alguns conflitos. Embora todos entrevistados compreendam o evento como uma festa da colheita, em que se celebra os bons resultados alcançados, que a cada ano apresenta maior produção, o grupo encontrou algumas discrepâncias. Uns argumentam que a festa é inventada, porque o município não tinha anteriormente tradição no plantio do feijão; outros consideram a presença de outros produtos agrícolas que não o feijão um desvirtuamento da festa. Em ambos os casos os entrevistados observaram um esvaziamento da festa, identificado pelo pouco apoio do poder público para a sua realização.
As pesquisas e entrevistas realizadas com os diversos setores permitiu ao grupo construir uma narrativa das interrelações entre os produtores rurais e os diferentes órgãos (nas três esferas públicas), observando os apoios recebidos e as formas de participação da sociedade nos eventos. Com a pesquisa, o grupo pode traçar uma detalhada descrição da festa.
Na avaliação foi ressaltada a importância da festa na preservação da memória da zona rural de Rio das Ostras. Este dado é importante, pois o grupo ao realizar o Inventário pôde vivenciar coletivamente a experiência de desvelar suas próprias memórias, enquanto produtores rurais e moradores do distrito. Neste sentido, apontaram a falta de registros sistemáticos sobre a festa. A principal recomendação foi a troca da data da festividade para um período de menos chuva, pois consideraram que esta prejudica o festejo. Propuseram realizar um estudo junto aos produtores, buscando aprofundar o entendimento sobre o significado da festa e uma melhor interação com as secretarias responsáveis.
O outro grupo do NVC de Rio das Ostras escolheu a Festa de São Pedro, realizada na Boca da Barra, por inciativa da colônia de pescadores local. A procissão concilia um trajeto terrestre com saída da Capela de N. Sra. de Lourdes, chegando ao píer da mesma localidade, onde tem início o percurso marítimo, percorrendo várias praias até a orla do centro de onde retorna ao ponto inicial. Para além do caráter religioso, a festa conta com shows musicais, brincadeiras, queimas de fogos, travessia de natação e pratos confeccionados com pescados da época.
O grupo produziu um relato histórico-socioambiental da Boca da Barra, desde a colonização, a partir de livros e recordes de jornais sobre a história de Rio das Ostras acrescidas de conversas com pescadores e festeiros. O NVC destacou o valor sen timental e cultural da festividade como um elemento relevante na preservação da memória e das raízes da comunidade leripe (filhos de pescadores). A recomendação final é a indicação da necessidade de registro da festa como patrimônio imaterial (celebração).
Ambos os grupos destacam as festas relacionadas aos ciclos produtivos, que se relacionam ao conjunto da comunidade, em que se mobiliza os indivíduos e os diferentes grupos em prol da celebração. Nos dois casos, remetem a importância da festa à preservação da memória local da comunidade.
São João da Barra, a construção naval artesanal em Atafona
O NVC de São João da Barra escolheu os modos de fazer embarcações artesanais, realizados no distrito de Atafona. Fabricadas em estaleiros do tipo doca seca, em geral no quintal da própria residência, apresenta-se como uma importante ativida-de relacionada à pesca. Adquirido na prática, conhecimento passado de pai para filho, o ofício de carpinteiro de barco carrega valores culturais significativos para a comunidade.
A tradição na produção de barcos no munícipio remonta ao século XVII, quando o porto de São João da Barra começa a ganhar certa importância. Até a segunda metade do século XIX, com a chegada do trem, o município abrigou diversos estaleiros. Durante a pesquisa para o inventário, o grupo levantou diversas publicações sobre a produção artesanal de barcos e realizou entrevistas com um historiador local. No trabalho de campo, foi levantado os materiais e ferramentas utilizadas, formas de obtenção e qualidade da madeira, etapas e temporalidade da produção, enfim, um levantamento detalhado do processo.
Na avaliação, o grupo observou que os estaleiros estão desaparecendo da paisagem local, e o ofício tem sido desvalorizado. Apenas em um bairro de Atafona se pode encontrar, nos dias de hoje, a permanência desta atividade. O grupo lamenta a diminuição da atividade qualificada como importante tradição cultural e tecem diversas recomendações: uma escola de carpintaria naval, aproveitando-se os mestres locais, atenção à segurança dos artesões de ofício atendendo a melhoria nas condições de trabalho e por fim, a promoção de eventos que valorizem a construção naval artesanal no município.
Sobre a experiência dos Inventários Participativos no PEA-TP
Ao final dos trabalhos de inventariação, desenvolvemos um questionário no google forms para o qual solicitamos aos NVC que respondessem. As perguntas eram individuais, não havia obrigatoriedade em responder e obtivemos 56 respostas de um universo total de 84 pessoas.
Primeiramente, pedimos que marcassem os três principais valores, por ordem de importância, que motivou a escolha do tema do inventário, a partir de um elenco de palavras - simbólico, político, afetivo/sentimental, científico, técnico/industrial, cultural, usos, economia direta, economia potencial, economia indireta. Como mais importante se destacou o "valor simbólico", seguido de "valor de cultura" e terceiro em importância "afetivo/sentimental".
Perguntamos também sobre a avaliação pessoal, com relação ao estado de preservação do patrimônio inventariado, especialmente o aspecto material e 50% dos respondentes consideraram ruim, 39,3% consideram regular e apenas 10,3% bom. Entendemos que as respostas são coerentes com aquilo que foi apresentado pelos NVC ao longo do processo.
A terceira pergunta era sobre se consideravam que a conservação do bem cultural favorece ao desenvolvimento local e social, e obtivemos 94,6% das respostas positivas, estando os restantes 5,4% distribuídos entre as respostas não e talvez. Ninguém assinalou a opção "não sabe". E ênfase das respostas nos permite inferir que os membros do NVC possuem um claro entendimento sobre a relação entre patrimônio e desenvolvimento local como um fator positivo.
A quarta pergunta procurou saber qual a etapa do inventário teria trazido maior aprendizagem, e a maioria das respostas (42,9%) indicou o trabalho de campo, momento em que o grupo pode estar presente no local inventariado, conversando com os agentes e pessoas envolvidas, ou seja, quando de alguma maneira puderam viven-ciar por si mesmos o patrimônio objeto do inventário. Em segundo lugar, indicaram (10,7%) a discussão prévia sobre o elemento cultural a ser inventariado. As demais opções - o contato com as técnicas de pesquisa; a pesquisa documental, bibliográfica e midiática (fontes); a organização dos dados; a interpretação e análise das informações recolhidas; a elaboração do documento final; conexão entre recursos dos royalties e cultura - dividiram de forma equilibrada os 46,4% das respostas restantes.
Na quinta pergunta, pedimos que escolhessem uma entre oito frases que expressassem melhor a experiência com o inventário. Seguem as oito frases: 1 permitiu que eu conhecesse referências culturais existentes no meu município; 2 permitiu que eu valorizasse as referências culturais existentes no meu município; 3 favoreceu ao meu autoconhecimento; 4 favoreceu a um maior conhecimento da minha localidade (território e paisagens); 5 permitiu uma maior integração entre os membros da minha comunidade; 6 favoreceu a um despertar mais afetivo com relação ao meu entorno; 7 permitiu relacionar recursos provenientes das rendas petrolíferas e preservação cultural; 8 contribuiu para despertar meu sentimento de responsabilidade com a cultura local. A frase 8 foi a escolhida por 33,9% dos respondentes seguidos equilibradamente pelas frases 1, 4 e 7.
Na sexta e última pergunta, pedimos que definissem o Inventário Participativo a partir da escolha de uma única opção. A opção "estímulo ao conhecimento do patrimônio cultural local" foi indicada por 35,7% dos respondentes, seguida da opção "estímulos aos valores intergeracionais" (21,4%); "exercício da cidadania" (19,6%) e "estímulo à participação social" (10,7%).
Em nossa avaliação, as respostas obtidas com os questionários nos permitem inferir sobre o potencial dos Inventários Participativos como uma ação capaz de relevar a importância das referências culturais para a comunidade, compreender de que forma estão presentes no cotidiano das pessoas, e sua importância num contexto geracional, como fator de identidade e reconhecimento. Principalmente, revela-nos a importância da participação da sociedade nas decisões relativas às suas referências culturais.
Considerações finais
O desenvolvimento dos Inventários Participativos nos 10 municípios de abrangência do PEA-TP não atendeu a nenhum objetivo específico do plano de trabalho, mas se constituiu em um importante instrumento de mobilização e envolvimento dos membros do NVC com as ações propostas pelo projeto, sobretudo, potencializando o sentimento de pertencimento no grupo e nos municípios que residem, possibilitando conhecerem a história de lugares e saberes locais. A metodologia foi ainda de suma importância para a consolidação do grupo, que originalmente são de localidades e grupos sociais diversificados e com agendas de interesse distintas. Da mesma maneira, foi importante para o processo pedagógico que teve por base a pesquisa, a partir da coleta e da organização sobre um bem ou referência cultural de significado para cada uma das comunidades envolvidas, consoante à proposta do IPHAN.
Ao longo do processo, buscamos de forma coletiva descontruir a ideia dominante de que os bens patrimoniais de uma comunidade precisam ser consagrados por alguma instituição ou autoridade. Inclusive no caso de ser um bem já consagrado, o que se buscou foi identificar elementos que não estão presentes nos registros oficiais. O processo de construção dos Inventários levou cada um dos NVCs a identificar referências culturais vivas, pertencentes à coletividade e presentes nas localidades. Trata-se de um instrumento com potencialidade de incentivar as pessoas para a participação social, devido a descortinar histórias vividas por sujeitos locais e despertar o sentimento de pertencimento do ambiente, o que estimula a buscar por meio legais e institucionais, a valorização da cultura.
Ao realizarem as pesquisas sobre os lugares, os saberes, os biomas, as formas de expressão e as celebrações designados para o inventário, os NVCs puderam consolidar os vínculos entre os membros do grupo e destes com os lugares, redefinindo o olhar sobre a suas localidades e seu município, urdindo novas tramas de afeto e solidariedade e, principalmente, reafirmando a identidade cultural do grupo. Na descoberta coletiva dos valores culturais por meio do processo de pesquisa (inventariação), foi possível avaliar e identificar os riscos e ameaças, assim como refletir sobre as possíveis intervenções que garantam a salvaguarda, a partir de suas próprias observações. O inventário favoreceu à reflexão sobre o que é ou não significativo, do ponto de vista cultural, para o grupo.
A realização dos inventários estimulou à uma maior participação na arena da gestão pública da cultura e da gestão ambiental, concatenando a relação intrínseca entre as pastas e sendo capaz de despertar a percepção dos membros dos NVCs sobre a interligação existente entre o espaço vivido e as relações culturais do ambiente. Essa experiência contribuiu para a formação cidadã dos(as) integrantes dos NVCs, estimulando um olhar crítico sobre a realidade que estão inseridos(as) e incentivando a se apropriarem dos espaços decisórios para a gestão do território municipal, municiados de conhecimento para a participação qualificada.
A partir da pesquisa e do envolvimento com os inventários participativos, o grupo esteve mais atento aos eventos relacionados aos temas, ampliando a participação e levando a alguns membros dos NVCs a participarem dos Conselhos de Cultura nos municípios, introduzindo a agenda da cultura nas demandas e reinvindicações do grupo. Nesse sentido, alcançando um dos mais importantes dos objetivos do PEA-TP que é o de aumentar a incidência política e o controle social.