Introdução
Na contemporaneidade, o processo de medicalização apresenta-se como um fenômeno cultural global, multifacetado, cujos efeitos repercutem tanto no âmbito individual como coletivo. A crescente difusão do discurso medicalizante, através de canais como a mídia e a escola, contribui para o aumento significativo da codificação do sofrimento psíquico em termos de uma nomeação própria do discurso médico. Ainda que a disseminação do discurso médico não se limite a psiquiatria, entre as áreas da medicina em destaque no processo da medicalização a psiquiatria assume maior relevo, posto que seu vocabulário tem sido fortemente disseminado nos últimos anos (Caponi, 2012; Guarido, 2007). A medicalização desenfreada se constitui como um fenômeno cultural fundado na ampla gama de sintomas e formas diagnósticas presentes nos manuais, principalmente no DSM - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais -, desconsiderando aspectos cruciais como as questões políticas, sociais, históricas e culturais, nos quais o sujeito está inserido.
Observamos a configuração de uma epidemia diagnóstica (Whitaker, 2017) na qual, muitos acontecimentos da vida têm sido registrados como relacionados a transtornos mentais (Caponi, 2009). Whitaker (2017) aponta para a existência de um paradoxo: com a ascensão das neurociências, ciências biomédicas, maior compreensão acerca dos transtornos psiquiátricos, bem como o avanço dos seus respectivos tratamentos, poderíamos esperar uma redução na incapacitação desencadeada por doenças mentais. No entanto, ocorreu o oposto, na medida em que se estabeleceu uma verdadeira revolução psicofarmacológica, houve também um aumento vertiginoso dos casos de incapacitação por doença mental. Seguindo o pensamento do autor, os cientistas têm descoberto progressivamente as causas biológicas dos distúrbios mentais, ao passo que as empresas farmacêuticas desenvolveram remédios eficazes para esses problemas de saúde. De fato, os medicamentos psiquiátricos são concebidos pela sociedade como um avanço no tratamento de transtornos mentais, embora esteja em curso uma epidemia de doenças mentais incapacitantes, induzida pelo uso dos fármacos.
Aguiar (2004) denuncia a expansão da jurisdição da medicina para campos que não são médicos, sendo o próprio viver capturado pelo discurso biomédico. Os discursos e práticas da medicina passaram a penetrar no tecido social, moldando e esculpindo os indivíduos e a sociedade. Assim, cabe pensar na medicalização como um processo progressivo do campo de intervenção da biomedicina por meio da redefinição de experiências e comportamentos como se fossem problemas médicos. O poder da medicina opera como uma força que produz realidades, criando determinadas práticas e discursos que engendram novas maneiras de os indivíduos entenderem, regularem e experimentarem os seus corpos e sentimentos.
De acordo com Tesser (2006), a medicalização crescente aliada às múltiplas crises da atenção à saúde, indica a necessidade de rediscussão constante do tema, das suas consequências e do seu manejo também nos serviços públicos de saúde. Tesser (1999) afirma que há uma crise em curso da atenção à saúde no Brasil, a qual abrange múltiplos aspectos e dimensões, tendo a medicalização como um de seus elementos constituintes. Esta crise multifacetada, atravessada por fatores macro e micro-sociais, culturais, socioeconômicos, políticos, institucionais e gerenciais, possui dimensões geradoras e alimentadoras altamente complexas e imbricadas entre si. Com efeito, se por um lado notamos o excesso de diagnósticos e protocolos, por outro, há uma dificuldade na operacionalização básica do sistema de saúde.
Diante desse cenário, torna-se imprescindível refletir sobre o processo de medicali-zação e seus efeitos na atualidade. Em um primeiro momento, serão apresentadas determinadas tendências contemporâneas nas quais o sujeito vem sendo forjado, que contribuem para as mudanças nas formas de sofrimento psíquico. Posteriormente, será indicado o papel da psiquiatria neste processo e a difusão do discurso psiquiátrico como propulsor da medicalização. Por fim, serão apontados dois aspectos fundamentais para um estudo aprofundado da medicalização: a tentativa de con-finamento da infância neste processo; a captura da relação médico-paciente pela lógica de mercado.
As vicissitudes da contemporaneidade
Segundo Birman (2012), a contemporaneidade se revela como uma fonte contínua de surpresas. Os indivíduos não têm conseguido se regular e nem antecipar aos acontecimentos que jorram aos turbilhões. Os signos que serviam de orientação e direcionavam a existência, bem como os seus códigos de interpretação, têm sido deslocados de suas posições e lugares simbólicos. Muitos deles desapareceram. Em contrapartida, outros signos perderam a força e a valência de que eram investidos, sendo realocados em outros conjuntos. Novos códigos são formulados e reformulados, sem que seus enunciados sejam sempre patentes.
Para Lima (2005), quase tudo se passa de maneira imprevisível e intempestiva, assolando o sujeito e desencadeando uma suposta vertigem. Seguindo o fluxo turbulento do mundo contemporâneo, o sujeito experimenta um mundo errático, com leis que mudam no decorrer do jogo e valores que se esvaziam pouco depois de se afirmarem. Conforme o autor enuncia, a estratégia necessária para se viver, agora, é se viver o agora. Assim, em uma era onde políticas e existências são fragmentadas, as preocupações se configuram parcialmente e a atenção não se fixa nos objetos mais do que o tempo necessário para obter uma breve satisfação, sem degustá-los completamente, deslocando rapidamente o foco para novas atrações. Desse modo, a excessiva labilidade atencional parece se constituir como uma característica marcante da sociedade atual.
Bezerra (2010) também compreende que as sociedades atuais estão pautadas na incerteza e na imprevisibilidade. Contudo, no plano da experiência pessoal, surgiu um tipo de indivíduo cuja identidade e as trajetórias existenciais estão baseadas em um processo contínuo de escolhas pessoais em detrimento de roteiros pré-determinados ditados por classes, religiões e etnias. Nesse sentido, a tradição estaria perdendo a sua força normativa a partir do enfraquecimento da ordem simbólica, e a vida estaria se tornando matéria de reflexão e decisão pessoais. Seguindo este pensamento, podemos dizer que o indivíduo se converteu em gestor de si e transformou a felicidade, que antes era uma aspiração, em um dever.
Nessa conjuntura, a autonomia adquiriu valor central, tornou-se um imperativo, um padrão em relação ao qual são mensurados e ganham significação os sucessos, fracassos, desvios e déficits. Assistimos uma reconfiguração da busca pela felicidade, seu recrudescimento marcado pela urgência e se convertendo em uma dimensão individual (Bezerra, 2010; França, 2010).
Para Rosa e Winograd (2011), o corpo tornou-se objeto privilegiado no campo da saúde e, para fazer frente à cultura do mal-estar subjetivo, surgiu uma medicina do bem-estar. Esta medicina tem sido difundida em nossa sociedade há aproximadamente vinte anos e se dirige também a demanda de saúde mental.
Além do consumo e da posse de objetos, insígnias de conquistas objetivas, na atualidade surgiu a noção de "boa vida" que pode ser mensurada a partir da fruição de um bem-estar superlativo. Este tipo de bem-estar denota um "sentir-se mais do que bem", fruto da competência na gestão da vida, no uso dos dispositivos de controle, na eliminação do sofrimento e na otimização das potencialidades vitais. Porém, apesar disso, o sofrimento psíquico e a dor continuam a serem inscritos nas vivências, ainda que sob diferentes insígnias. Nesse cenário, o corpo tem se apresentado como terreno a partir do qual critérios autênticos do bem-viver serão encontrados, e onde são buscadas as causas tanto do sofrimento como da vida mal vivida (Bezerra, 2010).
Para Rosa e Winograd (2011), o corpo tornou-se objeto privilegiado no campo da saúde e, para fazer frente à cultura do mal-estar subjetivo, surgiu uma medicina do bem-estar. Esta medicina tem sido difundida em nossa sociedade há aproximadamente vinte anos e se dirige também a demanda de saúde mental. Assim, o que assumiu relevo ultrapassou o campo de tratamento de doenças mentais, pois inclui a utilização de recursos advindos do campo médico e extracientífico para o melhoramento das performances individuais.
Em sua obra sobre performance, Ehrenberg (2016) aponta para a extrapolação da lógica utilizada no esporte para o âmbito sócio-cultural. Segundo o autor, a sociedade contemporânea encontra-se sob a égide do culto a performance, que impulsiona cada um a se singularizar e aprender a se governar com vistas a encontrar em si mesmo as orientações para a sua existência. É valorizada uma natureza heroica, cujo modelo erigido foi o do empreendedor, do indivíduo que não depende de ninguém, que assume os riscos pelas suas ações. Entretanto, para atingir ideais tão elevados de performance, permeados pela obsessão de ganhar, de vencer, de ser alguém, o consumo em massa de medicamentos psicotrópicos passa a ser um grande aliado. Assim, podemos dizer que a cultura da conquista e da performance é também uma cultura da ansiedade (Ehrenberg, 2016) e das drogas (Birman, 2012).
Birman (2012) postula a necessidade de reconhecermos que vivemos em uma "cultura das drogas", que não se restringe ao uso das drogas ilegais, mas incluem drogas legais e ditas medicinais, legitimadas cientificamente. Na denominada "cultura das drogas", vivemos intoxicados ainda que não saibamos disso, pois diferentes fármacos e estimulantes se inscrevem no estilo de vida contemporâneo. O uso desenfreado de psicotrópicos é corroborado, muitas vezes, pelos próprios médicos clínicos que têm prescrito fartamente este tipo de fármaco.
Neste ponto, convém nos determos um pouco mais à discussão sobre o uso de medicamentos na atualidade. Por vezes, o processo de medicalização encontra-se associado ao uso de medicamentos, o que fomenta também um processo de medi-camentalização (Caliman, 2016). Segundo Rosa & Winograd (2011), esta se refere à oferta de produtos que prometem o alívio ou a melhora do estilo de vida e são veiculadas através de meios de comunicação diversos, servindo como manuais de au-toajuda e atendendo a uma crescente demanda de cuidado. Esse nível social do uso de medicamentos parece ser induzido por meio do apelo da indústria farmacêutica. Nesse sentido, a medicamentalização versa sobre um fenômeno amplo que inclui a expansão do processo de medicalização para campos extracientífcos.
Como exemplo da relação entre medicalização e medicamentalização, podemos citar Mbongue (2005) que designou medicamentation o uso de produtos medicinais para tratar problemas que antes foram medicalizados. O termo medicamentation refere-se ao uso social de medicamentos, não necessariamente médico. Desse modo, a medi-camentalização consiste no uso de drogas para tratar problemas que antes não requeriam sua utilização.
Bezerra (2010) afirma que o discurso científico tem sido proeminente fonte de orientação nos dias de hoje, o que contribui para a compreensão da mente como mero efeito do funcionamento das funções cerebrais. Progressivamente, as evidências científicas e os protocolos passaram a subordinar a clínica psicológica, colocando em segundo plano a particularidade inerente a cada caso em nome de generalizações e quantificações. Lima (2005) pontua que apenas a ciência parece ter o instrumental para decodificar o texto original da natureza, o que permite antecipar e prever não apenas as doenças, mas comportamentos, traços de personalidade e todas as vicissitudes da vida. De um lado, há uma preocupação excessiva em cuidar da carga hereditária transmitida às futuras gerações, de outro, o declínio da tradicional prática do médico clínico e o enfraquecimento dos laços geracionais.
Por outro ângulo, a valorização do discurso da ciência, bem como a busca de incessante pela identificação dos biomarcadores de transtornos mentais reduz a existência unicamente à perspectiva biológica. A amplificação de conhecimento gerado na biomedicina expande a capacidade heterônoma de intervenção material no corpo e nos seus mecanismos fisiopatológicos concebidos e conhecidos. Entretanto, deixa a desejar quando se trata de considerá-lo como uma tecnologia promotora de autonomia (Tesser, 2006).
A medicalização entra em cena a partir da operação de uma sutura na divisão subjetiva, que enclausura o sujeito e suas respectivas experiências em classificações diagnósticas. Nesse contexto, encontramos um solo fecundo para que o discurso psiquiátrico se torne um forte norteador cultural.
A medicalização e o sofrimento
De acordo com Birman (2010), o surgimento do discurso da ciência como uma importante fonte de orientação, especialmente, o discurso da psiquiatria, contribuiu consideravelmente para a constituição de novos limiares para o campo da validade da norma. Este campo passou a ser definido por critérios cada vez mais calculados e pormenorizados, sendo considerados anormais todos os indivíduos que se afastam dos novos padrões de saúde e bem-estar definidos pela agenda da qualidade de vida.
Bezerra (2010) afirma que o discurso científico tem sido proeminente fonte de orientação nos dias de hoje, o que contribui para a compreensão da mente como mero efeito do funcionamento das funções cerebrais. Progressivamente, as evidências científicas e os protocolos passaram a subordinar a clínica psicológica, colocando em segundo plano a particularidade inerente a cada caso em nome de generalizações e quantificações.
Por seu turno, Bezerra (2010) afirma que com a expansão das biotecnologias se abriu um limiar inédito de transformação e aperfeiçoamento da natureza com base em decisões e escolhas humanas. Surgiram processos e produtos com o poder e a potencialidade de modificar ou controlar os fenômenos que eram inexpurgáveis da vida. Com efeito, o indivíduo da sociedade atual é solicitado a se pensar e agir como ser autônomo livre de obstáculos à realização das suas potencialidades, apto a buscar constantemente a fruição máxima da vida. Cada vez menos nos imaginamos confrontados com limites externos às nossas aspirações e idiossincrasias, o que corrobora para uma verdadeira "gestão de si".
Todavia, conforme foi visto anteriormente, incorremos em um impasse: se, por um lado, a cultura propulsiona uma busca irrefreável pela gestão de si, por outro, a exorbitante propagação do conhecimento biomédico não confere a autonomia almejada.
Apesar de nos defrontarmos com um imperativo cultural de felicidade que dita um roteiro a ser seguido, e das sucessivas tentativas de extirpar o sofrimento psíquico e a dor da experiência humana, ainda não logramos êxito nesta trajetória. A dor e o sofrimento permanecem como elementos inerentes à natureza humana, podendo denunciar tanto lesões orgânicas como exprimir sua origem psicogênica.
Seguindo essa tendência, os tratamentos médicos para comportamentos e sofrimentos psíquicos têm sido vistos como algo normal, corriqueiro e até como exemplos de progresso, de tecnologia e de inovação. No que se refere à tecnologia, a visão biologi-cista é hegemônica nas ciências da saúde, o que sustenta uma medicina que busca evidências, objetiva sintomas e utiliza medicamentos psicotrópicos como base para o tratamento dos sofrimentos humanos. Esses medicamentos são considerados bens de consumo e se associam aos discursos de promoção da saúde, da qualidade de vida, do bem-estar e da felicidade (Guarido, 2010).
Apesar de nos defrontarmos com um imperativo cultural de felicidade que dita um roteiro a ser seguido, e das sucessivas tentativas de extirpar o sofrimento psíquico e a dor da experiência humana, ainda não logramos êxito nesta trajetória. A dor e o sofrimento permanecem como elementos inerentes à natureza humana, podendo denunciar tanto lesões orgânicas como exprimir sua origem psicogênica. De fato, para quem sofre, estes elementos que perpassam o sofrimento e a dor são bem mais do que meros fenômenos neurológicos. Mesmo quando se encontram associados às enfermidades, estabelecidas a partir de critérios biomédicos, a dor e o sofrimento dispõem de múltiplas facetas simultaneamente diferentes, intensas e verdadeiras, possuindo caráter trágico, portando certezas excepcionais, de valor incomunicável, igualmente incontestável e inacessível ao termo que a designa clinicamente. Assim, não podem se restringir ao enquadramento de categoria alguma (Tesser, 1999).
Paradoxalmente, apesar da incomunicabilidade da dor, a certeza de sua possível existência no outro é uma verdade igualmente excepcional. A percepção da dor no outro denota uma verdade também inquestionável: a certeza de que o outro é capaz desta experiência. Isso acompanha a certeza de que ele é humano (Illich, 1975).
A experiência de dor pode propiciar um momento de envolvimento mais íntimo do doente consigo mesmo, com seu meio e sua vida, configurando-se como um momento de reflexão de um ser em crise. Tal envolvimento pode ser, e amiúde é, extremamente terapêutico. O indivíduo pode sair mais forte, mais autônomo, mais responsável por si mesmo, perante a vida e o sofrimento dos outros. A linguagem, a busca de sentido e a interpretação são alguns dos fatores que dão forma à dor, através dos quais agem os determinantes sociais, a ideologia, as estruturas econômicas, as características sociais, as crenças e as concepções sobre o mundo e o homem. Ou seja, a cultura orienta e desembaraça o sentido dado pelo indivíduo à experiência da dor e da enfermidade (Tesser, 1999).
Para Illich (1975), a dor vivida, para se constituir em sofrimento psíquico, deve estar integrada em uma cultura. Isso se deve ao fato de a cultura fornecer um quadro que permite organizar o vivenciado, sendo condição indispensável ao desenvolvimento da denominada "arte de sofrer". A cultura confere a dor (e a outros sintomas ou doenças) uma forma da interrogação que pode ser expressa e partilhada, fornece elementos para veicular a dor, os sons, as palavras e os gestos que aliviam e permitem a comunicação, o diálogo que liga o indivíduo ao seu meio. Nesse sentido, a cultura fornece a matriz explicativa, os mitos, as lendas, o universo simbólico que explica e atribui sentido à existência da dor (Tesser, 1999). Cabe pensar que a medi-calização do sofrimento promove o tamponamento das indagações e o silenciamento do sujeito diante da sua dor, tendo em vista que ele perde a possibilidade de tentar falar, de elaborar, de se posicionar e dar sentido para sua vivência.
Cabe pensar que a medi-calização do sofrimento promove o tamponamento das indagações e o silenciamento do sujeito diante da sua dor, tendo em vista que ele perde a possibilidade de tentar falar, de elaborar, de se posicionar e dar sentido para sua vivência.
Illich (1975) afirma que a medicina institucionalizada se transformou numa grande ameaça à saúde. Esta ameaça se dá pela difusão de três tipos de iatrogênese: 1) a iatrogênese clínica, que consiste nos danos causados ao indivíduo ocasionados pelo uso da tecnologia médica, diagnóstica e terapêutica; 2) a iatrogênese social, efeito social danoso do impacto da medicina, gerando uma desarmonia entre o indivíduo e o seu grupo social, como a crescente dependência da população para com as drogas e as prescrições da medicina institucionalizada; 3) a iatrogênese cultural, a destruição do potencial cultural para lidar autonomamente com boa parte das situações de enfermidade, dor e morte.
A medicalização social se associa ao que Illich denominou como iatrogenia cultural, que expropria a saúde enquanto responsabilidade do indivíduo e da família. A ousada expansão do conceito de iatrogênese introduzida por Illich (1975) para abarcar processos difusos e subreptícios de medicalização da sociedade foi inovadora. O termo "iatrogênese" é usado com sentido derivado do uso comum do termo médico "iatro-genia", como produção de efeitos deletérios sobre a saúde devidos à ação médica. O autor elencou diversas críticas à medicina moderna no que tange os aspectos culturais, econômicos, sociais e políticos, criticando um movimento cultural crescente cujas dimensões, hoje, talvez sejam globais.
Cumpre mencionar que, não obstante os significativos progressos biotecnológicos alcançados no que se refere à saúde, assim como a identificação precoce e tratamento de doenças, talvez estejamos vivendo uma crise dos cuidados que acabam se tornando atribuições de especialistas. Contudo, é valido destacar que as tarefas do cuidado vão muito além do que se ensina e daquilo que se prescreve (Figueiredo, 2009). Com efeito, as repercussões da medicalização na cultura e nas experiências individuais e coletivas impelem constantes reflexões.
A difusão do discurso psiquiátrico
Segundo Aguiar (2004), o poder da medicina opera como uma força que produz realidades, criando determinadas práticas e discursos que engendram novas maneiras de os indivíduos entenderem, regularem e experimentarem os seus corpos e sentimentos. O discurso médico induz os indivíduos a adotarem determinadas formas de viver, pensar e se comportar. Esse complexo processo global denominado medicalização consiste em uma forma de transformar em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que eram administrados de outras maneiras, no próprio ambiente familiar e comunitário, envolvendo interpretações e técnicas de cuidado (Tesser, 2006). Embora a medicalização não tenha seu domínio restrito ao saber psiquiátrico, este campo cumpre um papel de suma relevância tendo em vista a abrangência do seu discurso.
Guarido (2007) e Caponi (2012) sublinham que o processo de medicalização desenfreado é favorecido pelo surgimento da ampla gama de sintomas e formas diagnósticas presentes nos manuais, principalmente no DSM. Para Bezerra (2010), nos últimos quase setenta anos a psiquiatria passou por uma verdadeira revolução impulsionada por quatro fatores decisivos, a saber: a sintetização dos primeiros psicofármacos nos anos 50; a mudança de paradigma na organização de diagnósticos psiquiátricos na década de 80 com a implementação do DSM-III; o desenvolvimento das neurociências, que aumentou o conhecimento sobre as bases biológicas do funcionamento cerebral; o ultrapassamento do hospital como local privilegiado da prática da psiquiatria.
Em 1952, data o surgimento da clorpromazina, que era comercializada nos Estados Unidos com a denominação de Thorazine, tranquilizante potente administrado em pacientes psicóticos. Nesta década, as empresas farmacêuticas conseguiram desenvolver melhores anestésicos, sedativos, anti-histamínicos e anticonvulsivantes. Os cientistas se aprimoraram na síntese de substâncias químicas que agiam sobre o sistema nervoso central (Whitaker, 2017).
Entretanto, os critérios diagnósticos estabelecidos se tornaram excessivamente simples e objetivos, constituindo um sistema classificatório que padroniza diagnósticos sindrômicos e não propriamente diagnósticos nosológicos. Assim, por ser sindrômico, o diagnóstico psiquiátrico ainda guarda sempre certo grau de indeterminação (Aguiar, 2004).
Na década de 80, a partir da implantação do DSM-III, houve um aprimoramento da classificação diagnóstica dita descritiva. Na tentativa de alcançar uma linguagem comum que possa ser partilhada por diferentes profissionais, o DSM parte de pontos de consenso. Estes pontos referem-se aos sintomas em sua manifestação mais concreta, cuja observação possa ser efetuada por qualquer pessoa independentemente da sua área de formação (Aguiar, 2004). A versão DSM-III rompeu definitivamente com a psiquiatria clássica. A partir desta ruptura, os quadros psicopatológicos passaram a ser apresentados como transtornos mentais. Estes transtornos podem ser diagnosticados em função da presença de certo número de sintomas (Guarido, 2007). Entretanto, os critérios diagnósticos estabelecidos se tornaram excessivamente simples e objetivos, constituindo um sistema classificatório que padroniza diagnósticos sindrômicos e não propriamente diagnósticos nosológicos. Assim, por ser sindrômico, o diagnóstico psiquiátrico ainda guarda sempre certo grau de indeterminação (Aguiar, 2004).
O avanço das neurociências alavancou consideravelmente o saber psiquiátrico. Aguiar (2004) assinala que, nos Estados Unidos, a década de 90 foi declarada a década do cérebro, através de proclamação presidencial, tendo em vista as novas descobertas nas pesquisas em neurociência. Uma série de progressos biotecnológicos trouxeram novas perspectivas para o estudo de perturbações psíquicas: as técnicas de produção de imagens cerebrais (tomografia computadorizada, ressonância nuclear magnética, tomografia por emissão de pósitrons) e o mapeamento da atividade elétrica cerebral. Estes fatores, além de permitirem uma visualização mais refinada das estruturas cerebrais, viabilizam o estudo dinâmico de suas funções e do seu metabolismo.
As neurociências forneceram os instrumentos técnicos e teóricos que orientaram a construção da explicação psiquiátrica. Nessa conjuntura, surgiu um novo panorama para a psicopatologia, posto que finalmente teria encontrado seu suporte científico, de fato e de direito. A nova psicopatologia que despontou acredita ter recuperado sua almejada vocação médica, em um processo iniciado no início do século XIX (Birman, 1999).
Nesta esteira de transformações, a psiquiatria transformou-se em um campo de saber intra e extra-asilar, tendo em vista que ela passou a se referir tanto ao campo da alienação mental, quanto aos variados problemas cotidianos da vida. Com essa nova organização, a psiquiatria passou a classificar como sintomas fenômenos que não eram definidos como doença mental. Com efeito, a psiquiatria mudou radicalmente de objeto de estudo bem como suas formas de intervenção, abrangendo uma série de condutas de cunho moral, disciplinar ou judiciário (Caponi, 2009). Com esse novo perfil, a psiquiatria participa, a seu modo, dos processos de elaboração e agenciamento das novas formas de busca pela felicidade (Bezerra, 2010).
A medicalização na infância
O discurso medicalizante que despontou nos cuidados com a população adulta foi estendido também às crianças. A infância tornou-se um tempo particular da constituição humana para o qual é necessário preparo, com o intuito de produzir indivíduos capazes para o trabalho e adultos saudáveis (Guarido, 2010). O discurso sobre a infância tem sido orientado à prevenção, à saúde mental e às políticas educativas que legitimam a intervenção médica na esfera privada, especialmente nas relações familiares e na criação das crianças. Os critérios científicos são utilizados como norte para a identificação de diversas etapas do progresso fisiológico e psicológico normal dos indivíduos, com vistas a descobrir uma possível inadaptação infantil ao ambiente escolar, familiar e social (Vásquez-Valencia, 2016). Ou seja, o contexto sócio-familiar da criança passou a ser avaliado através de marcadores científicos generalistas, que suscitam mais indagações.
Figueira e Caliman (2014) afirmam que quando uma criança encaminhada ao médico retorna à escola com um diagnóstico, ocorre uma mudança na forma de lidar com essa criança. Parece que o próprio diagnóstico confere um tipo de compreensão que antes estava ausente.
Em relação aos manuais diagnósticos, Caponi (2016) e Whitaker (2016) compreendem que detectar precocemente transtornos mentais na infância tornou-se uma obsessão que se tornou o eixo central em torno do qual se articula o DSM-V. Nesse sentido, Caponi (2016) argumenta que os impulsos agressivos que eram tolerados, bem como as condutas indesejáveis que faziam parte do universo infantil, ingressaram no universo psiquiátrico. Estes comportamentos representariam indicadores de risco para doenças mentais graves na vida adulta.
Crianças que poderiam ser descritas como peraltas, mal-educadas, indisciplinadas ou desmotivadas, começaram a ser tomadas como acometidas por uma disfunção nos circuitos cerebrais. Paulatinamente, a "experiência de si" foi contaminada pelo reconhecimento, nos critérios diagnósticos de um transtorno, apresentando novas leituras para antigas dificuldades pessoais. Irrompeu o ideal de uma "criança perfeita" associado diretamente à saúde, cujas imperfeições devem ser mapeadas e evitadas tanto quanto possível (Lima, 2005). Em função disso, tem havido forte adesão dos pais à medicali-zação dos problemas dos filhos, na medida em que se recorre ao diagnóstico médico como primeira explicação e primeiro recurso para o tratamento de conduta.
Neste cenário, consideramos a escola como um elemento chave, ativo no processo de medicalização, quando relega os aspectos relacionais ou pedagógicos ao segundo plano, dando maior ênfase as hipóteses biomédicas sobre as dificuldades dos alunos. Figueira e Caliman (2014) afirmam que quando uma criança encaminhada ao médico retorna à escola com um diagnóstico, ocorre uma mudança na forma de lidar com essa criança. Parece que o próprio diagnóstico confere um tipo de compreensão que antes estava ausente.
Caliman (2016) ressalta que, quando o processo de medicalização recai sobre a infância, a premissa considerada é a existência de uma única infância, desconsiderando a diversidade presente e as diferentes formas de ser criança. Portanto, a autora enfatiza a necessidade de se adotar o plural no caso da medicalização das "infâncias". A existência de fronteiras instáveis, difusas e ambíguas entre o normal e o patológico no campo da saúde mental, viabilizou este processo crescente pelo qual condutas infantis passaram a ser classificadas como anormais. Nesse sentido, um conjunto de condutas próprias da infância ingressou na lógica psiquiátrica do risco (Caponi, 2016).
Whitaker (2017) indica que, em 1980, a classe psiquiátrica publicou a terceira edição do DSM, onde o "transtorno de déficit de atenção" (TDA) foi identificado como doença pela primeira vez. O conjunto de sintomas abarcados pela doença poderia caracterizar inúmeras crianças como portadoras do transtorno. Em 1987, a psiquiatria ampliou as fronteiras diagnósticas tornando-as ainda mais porosas, redenominando a doença como "transtorno do déficit de atenção e hiperatividade", em uma edição revista do DSM-III. Assim, subitamente podiam-se identificar crianças com TDA/H em todas as salas de aula. O autor argumenta que apesar de algumas pesquisas estabelecerem o TDA/H como uma suposta "doença cerebral", a sua etiologia permanece desconhecida.
Na contramão da perspectiva puramente biológica, Lima (2005) propõe uma investigação acerca do TDA/H que considere a influência cultural, política e econômica atuais na produção de uma categoria diagnóstica. Embora não coloque em xeque a existência do TDA/H, Lima (2005) defende que o transtorno deve ser compreendido como uma construção, não sendo um objeto autônomo auto-evidente a partir do preenchimento de critérios diagnósticos ou da observação do funcionamento cerebral.
A relação entre médico-paciente
A articulação entre as sucessivas crises na atenção à saúde associadas às particularidades da cultura contemporânea promoveu modificações também na relação médico-paciente. Birman (2012) postula que houve um esvaziamento desta relação, em função de uma perspectiva mercadológica que atinge a medicina em amplo aspecto. A prática médica vem assumindo progressivamente uma versão excessivamente técnica, onde as consultas têm que ser rápidas para que haja aumento no número de atendimentos, o diagnóstico é realizado frequentemente de modo apressado e, consequentemente, impreciso. Assolados com atendimentos, os médicos não dispõem de tempo hábil para ouvir os seus pacientes e considerar as particularidades inerentes a cada caso. Desse modo, como tentativa de suavizar as dores e sofrimentos dos pacientes de modo rápido e eficaz, a medicalização tem ocorrido ostensivamente.
Em uma medicina capturada pela lógica de mercado, não há espaço para o clínico acolher psiquicamente os pacientes em sofrimento, porém, tentam suavizar o desamparo destes através da medicalização dos seus sintomas. A prescrição massiva de psicotrópicos e antidepressivos solapou a escuta atenta das queixas, corroborando com o processo de medicalização e medicamentalização (Birman, 2012).
Por outro lado, os problemas desencadeados pela medicalização se complexificam e não se encontram circunscritos aos médicos e aos profissionais da saúde. No que tange ao atendimento infantil, Caliman (2016) pontua que um pedido de ajuda proveniente da família acaba sendo deslegitimado pela afirmativa do médico: "seu filho não tem nada". Dizer que a criança não tem nada estritamente biomédico é sentido como uma violência, uma prática que deslegitima a demanda de cuidado que surge da escola e da própria família. Portanto, em certa medida, também é um desafio para o médico se ele tenta oferecer alguma resistência a este processo.
Tesser (2006) compreende que o fim de uma consulta médica não deve se resumir a prescrição de um medicamento, um pedido de exame ou encaminhamento, pois esta consulta possui a potencialidade de estabelecer o início de um novo patamar de diálogo. Uma relação médico-paciente que considere as condições psicossocio-existenciais do doente com seu sofrimento viabilizaria novos desafios terapêuticos e outras possibilidades de posicionamento e interpretação. Nesse sentido, ambos, curador e doente, poderiam operar conjuntamente em busca de uma melhora clínica e autonomização progressiva.
Em uma medicina capturada pela lógica de mercado, não há espaço para o clínico acolher psiquicamente os pacientes em sofrimento, porém, tentam suavizar o desamparo destes através da medicalização dos seus sintomas. A prescrição massiva de psicotrópicos e antidepressivos solapou a escuta atenta das queixas, corroborando com o processo de medicalização e me-dicamentalização (Birman, 2012).
Considerações finais
Conforme foi visto neste estudo, o processo de medicalização refere-se a um fenômeno cultural multifacetado, multifatorial, que denota a ampliação da jurisdição da medicina para campos não médicos. A crescente presença de diagnósticos psiquiátricos, através dos quais são estabelecidas as bases biológicas do sofrimento psíquico, propulsiona este processo. Segundo Lima (2005), a psiquiatria e suas categorias diagnósticas têm sido um mecanismo de transmissão da cultura ao cotidiano dos indivíduos. Assim, com a expansão do alcance do campo da medicina e, especialmente, da psiquiatria, o processo de medicalização/psiquiatrização também se estendeu a infância.
Contudo, torna-se premente repensar os avanços da medicalização como forma majoritária de intervenção terapêutica, pois estes delimitam o indivíduo, normati-zam-no, minando suas possibilidades de se posicionar histórica e politicamente. A medicina passou a intervir na saúde dos indivíduos que não estão doentes, porém demandam ajuda farmacológica para lidar com as denominadas dificuldades da existência e com o sofrimento psíquico. As pessoas estão cada vez mais recorrendo aos medicamentos para suportar as pressões e os sofrimentos gerados pela vida contemporânea. Depreendemos que a medicalização pode se configurar como uma necessidade de silenciar o sofrimento a qualquer custo, como se não devesse fazer parte dos processos humanos.
Por fim, é importante ressaltar que o discurso medicalizante é apropriado de diferentes modos por médicos, profissionais de saúde, pacientes, familiares, educadores, instituições etc. Não se trata de menosprezar a incidência das patologias ou minimizar a premente necessidade da intervenção medicamentosa e do diagnóstico precoce. Cabe notar simplesmente que a medicalização desenfreada restringe as possibilidades individuais e coletivas, incidindo de modos diversos e denunciando algo que está para além dos casos particulares.