Introdução
A constituição de um sujeito se baseia na sua origem, na história e nas fantasias que habitam e compõem o seu romance familiar. A transgeracionalidade é uma das formas de transmissão da herança psíquica, cuja repetição configura-se pela insistência da cadeia significante. O inconsciente, por ser transindividual e estruturado como uma linguagem, desvela a fantasia originária anterior a seu próprio herdeiro. As inflexões feitas pelo Outro parental no discurso são fundamentais, em considerando que o desejo é desejo do Outro. Por isso, o objetivo principal desta pesquisa teórica consiste em articular a noção de transgeracionalidade, para perfilar a constituição das patologias relacionadas a herança psíquica. O inconsciente estruturado como linguagem desvela algo anterior a sua própria existência, que pode adquirir um caráter mórbido, mortífero e ser transmitido através de sucessivas gerações. Se o desejo é o desejo do Outro, conforme (Lacan 1962-1963/2004), a importância das inflexões feitas pelo Outro parental no discurso infantil não poderia ser mais importante. Na dimensão imaginária, o Outro servirá como um ponto de apoio de que o sujeito vai necessitar para saber como deve agir, pensar e sentir, conforme será aprofundado ao longo deste artigo.
Segundo (Inglez-Mazzarella, 2006), em um estudo aprofundado acerca da transmissão geracional torna-se imprescindível refletir sobre o papel das identificações, posto que este é um dos mecanismos fundamentais para constituição psíquica, assim como sobre a noção de supereu. A constituição de um sujeito se baseia na sua origem, sua história e nas fantasias sobre as relações que compõem seu romance familiar (Freud, 1976/1909). Nesse sentido, é válido destacar o inconsciente, que se forma por meio de resíduos de linguagem (ditos e não-ditos), representações ancestrais (ou vazios de representação), traços esvaziados de memória que habitam o discurso familiar. Trata-se de significantes impostos ao sujeito, que ao mesmo tempo os capta e por eles é cooptado, pois não tem a opção de furtar-se deste berço psíquico que o acolhe.
A família é o espaço privilegiado para que o processo de transmissão psíquica opere, por isso, o estudo demanda uma análise que considere o enlace entre as dimensões do real, simbólico e imaginário. A partir do que propôs Maud Mannonni (2004) e Françoise (Dolto, 1981a, 1981b, 2004), o narcisismo e o investimento dos pais têm uma função determinante na construção da subjetividade da criança e na produção de seus sintomas. Por essa estreita relação, (Dolto, 2017) compreende que a criança encarna e presentifica através dos seus sintomas as consequências de um conflito vivo, familiar ou conjugal, camuflado e aceito por seus pais. Cabe a criança suportar, inconscientemente, o peso das tensões e interferências da dinâmica emocional sexual inconsciente em ação nos pais, cujo efeito de contaminação mórbida é tão mais intenso quanto mais se guarda ao seu redor o silêncio e o segredo, ou seja, os não-ditos. Tais conteúdos, favorecem o surgimento de sintomas. Por exemplo, os segredos consistem em histórias não verbalizadas e repetitivas, que intrigam a nova geração, cabendo a esta o trabalho de se individualizar frente aos enigmas que tipificam a história familiar. Os sintomas podem se apresentar tanto como respostas aos conteúdos genealógicos ou como sintomas transgeracionais.
Embora não faladas, algumas histórias incluem aspectos inconscientes da herança genealógica que não foram elaborados e retornam nas gerações seguintes. Estes aspectos não apresentam possibilidade de simbolização e incluem os ditos, não-ditos, os segredos, o trauma, aquilo que foi silenciado, escondido, proibido de dizer ou calado pelos ancestrais e, portanto, bloqueiam os processos de transformação (apropriação/elaboração) psíquica. Os não-ditos referem-se a conteúdos que foram ocultados por gerações anteriores por estarem associados à vergonha e/ou à culpa, sofrimento ou ao que não foi simbolizado. Seria a parte “mal-dita/maldita” da herança (Eiguer, 1998). A parte “maldita’ remete aos diferentes sentidos do termo: portadora de maldição e fatalidade, parte vergonhosa, oculta, fardo e obstrução; ou “mal-dita”, a palavra mal enunciada, desgarrada e ruidosa. Por esse motivo, os não-ditos ou mal-ditos são a trama dorsal da temática familiar e podem atravessar gerações e desencadear sintomas também transmitidos transgeracionalmente.
Se, por um lado, a constituição só se faz com base no que é transmitido, herdado, e a herança psíquica é matéria nobre, estruturante, por outro, não é apenas da positividade que se faz uma pessoa. Há uma porção tortuosa da herança, defeituosa, alienante, algo que não foi dito, representado, pensado, elaborado ou constituído como parte da herança psíquica (Inglez-Mazzarella, 2006). Os desafios da clínica como atividade viva e pulsante impõe o constante aprofundamento teórico da prática. Por isso, é imprescindível considerar a herança psíquica tanto em seu viés estruturante que ampara as continuidades narcísicas como no seu caráter alienante.
Essa modalidade de transmissão que desestrutura, a transmissão transgeracional, ocorre quando há falhas na transmissão da herança psíquica, deste modo a transmissão da herança passa a ser alienante para o sujeito. Assim, será transmitido o traço daquilo não pôde ser simbolizado nem elaborado (Santos & Ghazzi, 2012). A partir das falhas no processo de metabolização da herança psíquica, podemos observar o esboço das patologias da herança (Robert, 2018; Jaitin, 2014; Kaës, 2015; Benghozi, 2010).
A transmissão psíquica: transgeracionalidade e não-ditos
De acordo com (Kaës, 1998), há uma urgência na transmissão, assim como a impossibilidade de não transmitir. O processo de transmissão opera ainda que contra a vontade, e se dá em um tempo, tem uma duração. Nesse sentido, a transmissão é entendida como um processo complexo no qual o tempo não é cronológico, linear, podendo ser circular e/ou intermitente, o tempo do inconsciente. A temporalidade do inconsciente e da transmissão psíquica não é fluída, e se conserva por meio de traços.
Em outro momento da sua investigação, (Kaës, 2001) afirma que há uma urgência para transmitir, sob o efeito de um imperativo psíquico incontrolável. Essa necessidade decorre de exigências narcísicas de continuidade da vida psíquica. Há uma necessidade de “transferir-transmitir” para outro o que não pode ser contido, o que escapa ao próprio sujeito. Nesse sentido, compreende-se que a família é um dispositivo fundamental para as primeiras relações, alianças, filiação, parentesco e identificações primordiais.
Existem duas modalidades de transmissão geracional: intergeracional e transgeracional. Na primeira, que ocorre entre as gerações, o sujeito não é apenas herdeiro, beneficiário, mas também adquirente singular e criador do que lhe é transmitido. Nesse processo, há um constante trabalho psíquico inconsciente de elaboração e transformação, remanejamento, apropriação, permitindo uma diferenciação a cada geração (Kaës, 1998, 2014; Trachtenberg, 2014). Este tipo de transmissão permite a apropriação e até mesmo a criação da herança psíquica. A transmissão psíquica intergeracional é estruturante, de modo que o conteúdo metabolizado do material psíquico inconsciente passa a geração seguinte (Trachtenberg, 2014). A transmissão intergeracional permite dar continuidade a identidade de uma família através de um legado inconsciente estruturante.
De acordo com (Magalhães e Féres-Carneiro, 2005), a transmissão intergeracional possui uma função universalmente organizadora. Os rituais, as crenças, os valores transmitidos pelas gerações se repetem e, algumas vezes, se renovam em um novo laço a ser construído nas gerações posteriores. O sujeito não é auto-engendrado e o processo de constituição da subjetividade demanda a metabolização da herança na tensão com o (s) outro (s) que transmite(m).
Ao contrário, a transmissão transgeracional é invasiva, atravessa os sujeitos e as gerações abolindo as fronteiras e espaços subjetivos. Nesse tipo de transmissão, o conteúdo é transmitido sem espaço para transformações, em estado bruto, correspondendo a contínuas repetições significantes que clamam por sentido. Por ser composto de material inconsciente não elaborado é vedada a integração psíquica (Granjon, 2000). Dessa forma, são transmitidos os lutos não elaborados, os segredos, a violência, traumas, sofrimento, tudo o que não pode ser simbolizado, apropriado e transformado.
(Debieux, 2001) aponta especificamente para a transmissão dos não-ditos, situações que envolvem escolhas ambivalentes, falar ou não falar sobre o passado doloroso. Muitas vezes, a solução adotada por famílias que enfrentaram situações de sofrimento é não falar. No entanto, a transmissão psíquica acontece tendo o não-dito como via privilegiada no processo transmissão. Aquilo que fica oculto, enquistado, não-dito ou “mal-dito”, sempre encontra uma via de escoamento que traz à baila sua existência, transbordando para as gerações seguintes. O que é transmitido de uma geração para outra emerge de silêncios, proibições, enigmas, impensados, fantasias, conteúdos traumáticos e produções sintomáticas.
(Debieux, 2001) esclarece que:
“Entre o dizer e o não-dizer, entre a verdade velada ou exposta, discutiremos a solução adotada pelos pais: a de não falar sobre o passado doloroso, lembrando que estão submetidos aos processos inconscientes e não têm claro o que, nos acontecimentos, os faz emudecer. A história que nos interessa então, não são os fatos ditos em si, mas aqueles encerrados como marcas daquilo que não foi representado ou foi encoberto por uma visão imaginária e definitiva, que veda ao sujeito interrogar-se (p.125)”.
Compreendemos em consonância com o pensamento da autora que o que não está dito, recoberto pelo já dito, possibilita movimentar a cadeia significante para produzir novos sentidos. Desta forma, o relato dos fatos propicia a criação de cenas, que permitem analisar como se estrutura o desejo na dialética da relação com o outro. Nesta articulação, é possível a emergência de um sujeito. A história não é tomada como uma sequência de fatos e datas, mas como significâncias, como trama de sentidos. Os fatos existem enquanto reclamam sentido. É sempre junto da falta de sentido e pela exigência de preenchimento dessa falta que se forma o pressentimento daquilo que será a história de cada um.
De acordo com (Granjon, 2000), a herança transgeracional é baseada nos elementos brutos, não elaborados, na história lacunar, traumática e, por ser composta de material não elaborado, cria obstáculos ao processamento simbólico. Este conteúdo permanece enquistado na psique como algo que não se reconhece como seu. (Kaës, 1998) afirma que se transmite preferencialmente aquilo que não se contém, aquilo que não se retém, aquilo de que não se lembra: a falta, a doença, a vergonha, o recalcamento, os objetos perdidos e ainda enlutados, o luto, o sintoma, o trauma, a fantasia.
Considerando a constituição psíquica, conforme (Lacan, 1969), o sintoma da criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar. No entanto, na medida em que a criança oferta o seu sintoma como resposta ao que há de sintomático na estrutura familiar, o sintoma da criança não é considerado apenas como um mero efeito do discurso dos pais. Se a criança se coloca nessa estrutura fantasmática, deve-se considerar sua implicação subjetiva como forma de responder ao desejo do Outro. A articulação estrutural entre o desejo e discurso parentais, sabemos que a criança procura responder ao enigma dos significantes obscuros propostos pelos adultos, identificando-se com o que julga ser o objeto materno, tentando preencher a falta estrutural do outro, e evitar a angústia de castração. Em se tratando de pais que vivenciaram situações traumáticas, esses significantes obscuros podem ganhar uma carga pulsional mais elevada, sendo transmitidos seus resquícios transgeracionalmente, através das gerações.
O sintoma da criança denuncia algo que vai além dela e diz respeito ao "par familiar", ou seja, a demanda dos pais implica em uma série de posições subjetivas que a criança possa vir a ocupar, fazendo dela um substituto do gozo perdido dos pais (Lacan, 1969). O sujeito criança deve encontrar assim uma saída para o enunciado de seus pais, cujos desejos particulares se dissimulam na demanda; desse modo, a criança tem que tentar preencher o lugar desejado por seus familiares. Não é de se estranhar que uma mudança na posição subjetiva da criança - provocada inclusive pelos efeitos da análise - se faça presente na estrutura como um todo, afetando os pais e provocando alterações na maneira como esses respondem ao que há de sintomático por parte deles (Caram, 2003). Por esse motivo, eu ressalto sempre a importância do trabalho com os pais na condução e na manutenção da análise com crianças.
Compreendemos que o processo de transmissão psíquica geracional é ativo, acontece na dinâmica relacional do dia-a-dia, e não se restringe à ancestralidade da realidade, mas abrange a sua representação imaginária. Tudo aquilo que se refere às vivências psíquicas, imagens ou representações se ancora no processo de transmissão psíquica. Alguns conteúdos da transmissão são aceitos e elaborados na forma de mitos familiares ou culturais, outros permanecem como conteúdos inacessíveis, silenciados ou proibidos de dizer.
A herança psíquica
A partir da teoria psicanalítica, ser herdeiro é uma condição constitutiva de todo sujeito, cada pessoa tem como tarefa organizar e transformar a herança psíquica que pode se expressar materialmente. (Kaës, 2001), um dos autores mais consagrados nos estudos sobre a transmissão geracional, destaca que a fantasia de transmissão possui uma dupla dimensão, ou melhor, dupla função: a função defensiva contra a angústia de vir-a-ser sujeito de seu inconsciente e a função representativa da posição do indivíduo na geração.
Se falamos em transmissão inconsciente e entendemos o inconsciente como linguagem, função simbólica determinada por significantes, sabemos que toda criança já está sendo constituída psiquicamente mesmo antes de seu nascimento através de um banho de linguagem ancestral que permeia o seu lugar no mundo (Santos & Ghazzi, 2012). Este banho linguageiro, através do qual a própria cultura e a história (ontogenética e filogenética) são transmitidas, acontece primeiramente no seio da família, no berço psíquico que acolhe o sujeito, e se dá pelo encontro de linhagens em uma cultura, uma época sócio-histórica, em um determinado tempo. O conteúdo psíquico inconsciente que enlaça e atravessa estas dimensões pode ser compreendido como herança.
A noção de herança é um tópico que engloba diferentes campos do saber, entre os quais, o campo do Direito e da Psicanálise. Se, no âmbito jurídico, a herança é compreendida em sua vertente material, patrimonial e de propriedade, à luz da psicanálise compreendemos a transmissão e a herança através de outras chaves de leitura, cujo cerne se baseia no inconsciente.
A denominada “herança jurídica” é vinculada à morte, transmitida por testamento ou por direito sucessório, possui a função precípua de garantir aos herdeiros legítimos a sua parcela da herança. Neste momento, é importante pensarmos nas batalhas judiciais intermináveis, que se prolongam durante anos, se configurando como um laço patológico e aprisionador que não permite a ressignificação e atualização da vida (Brandão, 2019). Desse modo, observamos a materialização da herança psíquica através da lide ou do litígio.
Por outro lado, a Psicanálise se interessa pela herança simbólica ou pelo simbolismo presente na herança, que também podem ser transmitidos em vida pela via psíquica para ascendentes e/ou descendentes. (Gomes, 2013) esclarece que o material psíquico transmitido sendo da ordem do impensável liga-se aos conteúdos de vergonha, interditos e alienação, podendo se manifestar em uma feminilidade associada ao modelo tradicional de passividade e subjugação à autoridade e força da figura masculina. Quando a associação entre esses elementos é levada ao extremo, é produzida a patologia e/ou violência nos laços conjugais. Isso dificulta e, até mesmo impede, a construção de novas formas de relacionamento, posto que este tipo de enlace pressupõe a formação de vínculos amorosos ligados às questões edípicas nas quais a escolha do parceiro é determinada por motivações inconscientes. A escolha amorosa e a dinâmica relacional permanecem cristalizadas em um formato ancestral associado à violência.
Como postulou (Benghozi e Féres-Carneiro, 2003), a violência pode ser sintoma da ausência de ordem simbólica genealógica que é efeito da função organizadora da lei. Para os autores, o tratamento dos fenômenos de violência são complementares à ritualização do jurídico. Isso permite gerir o nível diacrônico da malhagem de filiação e reestabelecer os continentes genealógicos. No entanto, de acordo com as pesquisas de (Benghozi, 2010), (Kaës, 2015) e (Gomes, 2013), a violência assume a forma transgeracional, tendo em vista a falta de simbolização do conteúdo e o esgarçamento do laço. Por isso, a violência pode ser compreendida também como uma das patologias ligadas à herança.
As patologias da herança comparecem no judiciário e corroboram para a judicialização das relações familiares, assim como fomentam a medicalização da existência, principalmente no que tange a psicopatologização dos sintomas e transtornos infantis.
Transgeracionalidade e identificações
(Kaës, 1998, 2017) explica que a transmissão psíquica opera tanto em um sentido estruturante de amparar e assegurar as continuidades narcísicas (transmissão intergeracional), como no sentido de transmitir aquilo que não se contém e não se retém, aquilo de que não se lembra: a falta, a vergonha, a doença, o sofrimento, o sintoma, o recalcamento, os objetos perdidos por ancestrais e ainda enlutados (transmissão transgeracional). Para o autor, o mecanismo inconsciente de identificação é descrito como o “processo maior” da transmissão. (Inglez-Mazzarella, 2006) corrobora com o pensamento de Kaës ao afirmar que um estudo aprofundado acerca da transmissão deve considerar o papel imprescindível das identificações, uma vez que este é um dos mecanismos fundamentais para a constituição psíquica.
O processo de identificação consiste em uma operação complexa através da qual o sujeito humano se constitui, assimilando um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transformando, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro. O conceito de identificação, que integra as figuras do corpo, da alteridade e da cultura, é o guia para a pesquisa da filiação e de seu correlato, a transmissão e seus destinos, merecendo um destaque especial enquanto mecanismo de constituição fundamental do sujeito, principalmente na estruturação do Eu e do Supereu. Estes aspectos traduzem o peso determinante da cultura e da herança nesta constituição (Kupferberg, 2004).
De acordo com (Freud, 1976/1933), a instalação do supereu pode ser classificada como um exemplo bem-sucedido de identificação com a instância parental. (Freud 1976/1933) afirma que através do processo de identificação ocorre a metamorfose da instância parental em superego. Compreende-se por identificação a ação de assemelhar um ego a outro ego, em consequência disso, o primeiro ego se comporta como o segundo em determinados aspectos, imita-o e, em certo sentido, o assimila dentro de si.
Assim, o papel que mais tarde é assumido pelo superego, no início é desempenhado por um poder externo, a saber, a autoridade dos pais. Ainda seguindo o pensamento de Freud, o superego, que posteriormente assume o poder, a função e até mesmo os métodos da instância parental, não é simplesmente seu sucessor, mas seu legítimo herdeiro (Freud, 1976/1933). Todavia, Freud assinala uma interessante contradição, o superego poderia adquirir características de severidade inflexível ainda que a criança tenha sido educada de forma branda, afetuosa e que se tenha evitado ameaças e punições. Neste ponto cabe interrogar qual é a dinâmica inconsciente que subjaz a herança psíquica? Como é forjada e transmitida a herança? Como a transmissão transgeracional da herança psíquica adquire contornos patológicos?
O vocábulo “identificação” é polissêmico, por isso sua compreensão torna-se complexa. É possível apresentar, no mínimo, três principais sentidos do termo: reconhecer a natureza de algo ou alguém, ação de se reconhecer como algo ou alguém, e considerar a semelhança entre algo ou alguém (Eiguer, 1991). (Eiguer, 1986, 1991, 1998) realiza a distinção entre o processo de identificação e a transmissão psíquica, apontando ainda para a identificação com o conteúdo transgeracional que pode se configurar como um ancestral ou relacionado à ancestralidade.
Como conceito, a identificação foi formulada por Freud para qualificar um processo que constitui e transforma o sujeito, por meio da apropriação de atributos ou traços de pessoas, em determinados momentos de seu desenvolvimento. Esse processo participa da constituição das relações objetais, portanto, da constituição da subjetividade. Sendo assim, a identificação marca o futuro do vir a ser, pois dependerá do que será e de como será organizado, no psiquismo da criança, o legado de seus ancestrais. Ao longo da obra freudiana, esse processo de identificação passou a ter gradativamente um papel importante.
(Roudinesco e Plon, 1998) descreveram de forma sucinta e cronológica, o conceito em questão na obra de Freud, auxiliando-nos a compreender seu desenvolvimento. Segundo os autores, Freud usa o termo, pela primeira vez, em uma carta para Fliess de 1896, porém de forma descritiva, não formulando-o por meio da metapsicologia. Nessa época, a identificação foi descrita como o desejo recalcado de “agir como” ou de “ser como alguém”.
O termo identificação está presente nos textos de (Freud desde os “Estudos sobre a histeria”, 1976/1893-1895), contudo, a noção de identificação foi sofrendo inúmeras modificações desde os primeiros estudos sobre as histéricas até os textos que caracterizam a segunda tópica freudiana. De acordo com (Kaufmann, 1996), a identificação é uma das categorias fundamentais da teoria e da metapsicologia freudianas. Na obra de Freud, o conceito de identificação assumiu progressivamente valor central, o que faz dela mais do que um mecanismo psicológico. Ela consiste em uma operação através da qual o sujeito humano se constitui, assimilando um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transformando, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro (Laplanche & Pontalis, 2001).
Em “Totem e tabu” (1976/1913), Freud distinguiu a transmissão por identificação aos modelos parentais e a transmissão constituída por traços mnemônicos das relações com as gerações anteriores. O primeiro processo refere-se à história e o segundo à pré-história do sujeito. Inclui-se na pré-história a transmissão de objetos perdidos por aqueles que nos precederam e que nos são transmitidos enlutados, mesmo que parcialmente.
(Laplanche e Pontalis, 2001) ressaltam que a identificação não se trata de uma simples imitação, mas da apropriação baseada na pretensão de uma etiologia comum. Ela exprime um “tudo como se” relacionado a um elemento comum que permanece inconsciente. Este elemento inconsciente comum às pessoas em causa refere-se a uma fantasia. Ademais, a identificação permanece sempre marcada pelos seus protótipos primitivos, fazendo-se necessário distingui-la das noções de incorporação, introjeção e interiorização. É válido notar que o conjunto das identificações de um sujeito forma um sistema relacional coerente, por exemplo, no cerne de uma instância como o superego encontram-se exigências diversas, conflituais, heteróclitas. Do mesmo modo, o ideal do ego é constituído por identificações com ideais culturais que não estão necessariamente harmonizados entre si.
A família é o primeiro sistema de socialização do sujeito, constituindo o seu primeiro contato com o meio cultural. Tal manifestação resulta de um funcionamento intersubjetivo, marcado por um percurso genealógico, é por esse percurso, situado dentro de um espaço-tempo, que se consolidam a transmissão de representações simbólicas entre as gerações e a condição de se viver em sociedade. Uma das principais funções familiares é promover um ambiente que permita um processo de desenvolvimento para o sujeito. A inserção do sujeito em uma linhagem genealógica, estabelecendo o “sentimento de pertença”, é o alicerce de sua subjetividade. Isso significa pertencer a uma família, a uma história, o que viabiliza a capacidade de reconhecer a si mesmo e de se diferenciar.
(Freud 1976/1921) enfatizou a diferença entre identificação e a escolha objetal. Na primeira, o desejo “de ser” toma-se para o eu um traço do objeto que fora apanhado como modelo. Na segunda, há o desejo “de ter” o objeto sexual. O desejo hostil de ocupar o lugar da mãe por parte da menina, sob influência do sentimento de culpa, produz o sintoma que expressa seu amor objetal pelo pai. O sintoma é justamente identificar-se com um “traço único” do pai, substituindo a escolha de objeto. Por haver recalque e mecanismos do inconsciente, “a escolha de objeto retroage para a identificação: o ego assume as características do objeto” (Freud, 1976/1921, p. 135).
Nesse sentido, (Mijolla, 2005) afirma que a identificação é um processo psíquico inconsciente pelo qual uma pessoa assimila uma parte mais ou menos importante de sua personalidade a de um outro que lhe serve de modelo. Descrito primitivamente por Freud em contextos psicopatológicos, o mecanismo de identificação veio designar um modo primordial de relacionamento com os outros e a integrar-se entre os processos constitutivos da psique.
O fenômeno da transmissão psíquica situa-se na esfera familiar como um processo de identificação constitutiva de todo e qualquer sujeito, que na melhor das hipóteses, realiza uma transformação daquilo que já se encontrava presente como investimento narcísico para torná-lo do próprio sujeito, conforme o famoso adágio de (Goethe, 2021): “Aquilo que herdaste dos teus ancestrais (Vätern), transforma-o e torna-o teu” (p.85). A transmissão não é passiva, pois remanejamentos frequentes e sucessivos viabilizam a sua apropriação por parte dos membros da família. Dessa forma, os integrantes inscritos em um lugar genealógico podem fazer da herança algo próprio (Inglez-Mazzarella, 2006).
A origem enquanto enigma
Na teoria freudiana, a genealogia do sujeito se apóia na construção de um aparelho psíquico, constituído na, e pela linguagem, a partir da relação com o outro sujeito. Sustentam-se em dois pilares míticos: o assassinato do pai primevo (1913) e o complexo de Édipo (1910), descoberto por Freud na análise de seus pacientes e na sua auto-análise, a partir da metapsicologia dos sonhos (1900). Ambos remetem tanto à cena individual quanto à cena coletiva e também, a partir de uma leitura que deve ao estruturalismo de Lacan, à suposição de que o sujeito é articulado por estruturas simbólicas que o precedem e o determinam.
Segundo a leitura de (Kupferberg, 2004), para Freud é justamente a sujeição do ser humano ao Outro, devido à sua condição de prematuridade e pulsionalidade, que se situa no cerne de sua humanização. Em outras palavras, levando em conta os diferentes registros em que pode ser abordada a problemática da genealogia do sujeito na teoria freudiana, pode-se dizer, resumidamente, que o sujeito freudiano se funda em uma estrutura que o pré-determina (Freud, 1976/1939). O sujeito, em psicanálise, é constituído por uma rede de relações que o antecedem e o ultrapassam, permitindo inclusive uma abordagem teórica a respeito da questão das origens. A condição de possibilidade desta estruturação pré-subjetiva remete justamente para o campo do arcaico, ao passo que a hipótese filogenética, enquanto formulação teórica, parece ser uma maneira de buscar a materialização desta concepção. O arcaico e a hipótese filogenética fazem referência, em primeiro lugar, à proximidade e estreita colaboração entre Freud e Sándor Ferenczi, que se encontra documentada na correspondência entre os dois psicanalistas (Freud, 1993). Na correspondência entre os dois colaboradores, começou a aparecer com frequência a fantasia filogenética, temática que retoma a conceituação do trauma, e que permite avançar na compreensão do modo como se efetua a filiação (o arcaico) e a transmissão (o hereditário). Desse modo, a origem passa a ser inscrita enquanto enigma a ser desvelado.
Conforme (Ansermet, 2003), a origem se apresenta como enigma, porém, também com fascínio. Fascinado pelo que pensa ser sua causa, o sujeito se submete a um destino que ele mesmo se impõe, repetindo sua história no presente e projetando o passado no futuro. Assim, há uma construção imaginário-simbólica produzida a posteriori que, por vezes, marca a psique. A verdade histórica, enquanto uma produção do sujeito, não corresponde necessariamente a uma verdade material. Alienado a um passado que não lhe pertence, preso na armadilha da causalidade, o sujeito pode vir a tomar, sem liberdade, uma via de mão única produzida pelo que pensa ser a sua determinação.
Muitas vezes, ocorre a polarização de movimentos fantasmáticos em relação a origem: ou deve-se liberar completamente da origem ensejando uma fantasia de auto-engendramento, ou ser capturado por ela. Esses processos descritos de aproximação e afastamento, permitem ao indivíduo ascender ao lugar de sujeito na busca por resposta ao enigma da origem e se localizar na cadeia de filiação. Conforme (Leclaire, 1975), outro fator que permeia a constituição se refere à origem, sobretudo à morte simbólica que deve ser operada, ou ao menos tentada, para que a vida seja possível, vida de desejo e de criação.
Para o autor, é preciso que o psicanalista não cesse de perpetrar a “morte da criança maravilhosa”, ou seja, de reconhecer que ele (o sujeito) não pode realizá-la enquanto representação tirânica do infans. A criança maravilhosa é, primeiramente, a nostalgia do olhar materno que fez dela um extremo esplendor, contudo, ela é ao mesmo tempo a criança abandonada, perdida numa total solidão moral e desamparo diante do terror e da morte. A prática psicanalítica torna manifesto o trabalho constante de uma força de morte: esta trata-se de matar a criança maravilhosa ou aterrorizante que, de geração em geração, testemunha acerca dos sonhos e desejos dos pais (Leclaire, 1975).
Seguindo este pensamento sobre a fantasia da origem, toda ordem familiar toma para si a tarefa de ocupar-se com essa imagem inencontrável ou perdida de felicidade, de ruína, de glória e de impotência que está na base da origem. Assim, a fantasia ancestral pode perpassar gerações, às vezes, sob a forma de sintoma transgeracional.
Considerações finais
A partir do exposto, observamos que todo indivíduo nasce imerso em uma espécie de caldo inconsciente no qual se misturam acontecimentos reais e imaginários, verdades, fantasias e representações vividas por gerações que o antecedem. Este conteúdo fará parte da tessitura que constitui sua singularidade, suas escolhas amorosas e a composição da trama familiar.
Cada criança ao nascer, tem em suas mãos, como algemas, uma cadeia genealógica que a religa à origem e a convoca para responder com os seus significantes à questão “o que o Outro quer de mim?”. A transmissão psíquica nos remete à inscrição do sujeito na cadeia de filiação, genealógica, na qual ele é um elo e à qual está submetido, sendo ao mesmo tempo portador, transformador e criador da herança familiar.
A família desempenha uma função fundante de cada um dos seus membros (construção subjetiva), sendo o primeiro contato com o meio cultural e social. Nela circula uma história - através do discurso familiar (ditos e não ditos) - e a transmissão psíquica geracional como legado a ser metabolizado, transformado e apropriado pelo sujeito. A tarefa de transmitir é questionada em diversos momentos na vida familiar, principalmente em ocasiões como: nascimento de um novo membro, casamento, separações e morte. A família nutre psiquicamente o sujeito desde o seu nascimento e até mesmo antes da sua gestação, preparando um lugar simbólico para recebê-lo, desejando-o e lançando-o ao mundo para germinar a sua história.
No que concerne à história de cada sujeito, observa-se a existência de significantes que são transmitidos e precedem a nossa existência, sob a forma de traços sem memória e esvaziados de sentido, podem permanecer congelados, ausentes de simbolização. Assim, alguns ascendentes podem complicar consideravelmente a vida dos seus descendentes.
Podemos pensar na transmissão psíquica transgeracional como repetição através das gerações que se configura pela insistência da cadeia significante. A repetição do conteúdo ancestral clama por significado através das gerações, todavia, interroga sobre a possibilidade de identificação com uma representação desconhecida ou ocultada. As ancestralidades real, simbólica e imaginária devem ser pensadas em articulação, posto que as vivências traumáticas encontram canais inconscientes de transmissão que quanto menos reconhecido for o significante, mais ele irá insistir. São os referenciais simbólicos que permitem a instauração da diferença entre as gerações e os lugares na família. Esses pontos de fragilidade expressos em termos de sintoma parecem indicar uma impossibilidade de representação simbólica.
Nos estudos psicanalíticos contemporâneos, podemos observar o crescente interesse suscitado por pesquisas voltadas para transmissão psíquica transgeracional, sobretudo em seu aspecto transgeracional. O interesse pela transmissão psíquica transgeracional demonstra a importância de investigar o tema no cenário atual, percorrendo caminhos que forneçam maiores subsídios para a prática e para a interlocução da psicanálise com outros campos do saber. O delineamento realizado neste estudo constitui uma investigação preliminar sobre as patologias da herança e será devidamente continuado.