INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, avanços médicos e tecnológicos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) resultaram em crescente número de sobreviventes da doença crítica1 , 2 . Na Austrália e Nova Zelândia, por exemplo, mudanças nas práticas em UTI permitiram uma expressiva queda na mortalidade de pacientes com sepse, que passou de 35% no ano 2000 para 18.4% em 20123 .
Junto a esses avanços, aumentou o conhecimento sobre os efeitos deletérios da doença crítica para pacientes e familiares em longo prazo4 , modificando a ênfase da sobrevivência para a qualidade de vida e preservação da funcionalidade após a alta2 , 5 .
Em conferência da Society of Critical Care Medicine (SCCM), realizada em 2010, o termo Síndrome pós-tratamento intensivo (SPTI) foi definido para descrever “novos prejuízos ou piora nos domínios físico e/ou cognitivo e/ou estado mental que tenha surgido após a doença crítica e persistido além do internamento de cuidados agudos”6 .
Entre os principais fatores de risco para esta síndrome estão a sedação profunda, imobilidade, delirium, sepse, hipóxia e hipoglicemia4 , o que indica que sua ocorrência se relaciona à própria doença crítica e às terapias utilizadas em UTI.
A SPTI predispõe incapacidades funcionais, que se caracterizam por dificuldade ou necessidade de ajuda pelo indivíduo na execução de atividades cotidianas básicas ou mais complexas, com inabilidade ou limitação no desempenho de papéis sociais e de atividades relacionadas ao trabalho, à família e à vida independente7 .
Estima-se que 69% dos pacientes pós-críticos experimentem piora ou novas dificuldades na execução de atividades como fazer compras, falar ao telefone, realizar tarefas domésticas, administrar finanças e utilizar meios de transporte após a internação8 .
A preocupação com os prejuízos persistentes da doença crítica tem estimulado a criação de medidas preventivas dentro das UTIs4 , 9 , 10 . e de estratégias de acompanhamento pós-alta a curto e longo prazos em diversos países11 , com destaque aos ambulatórios pós-UTI12 - 14 . Nesses ambulatórios profissionais intensivistas recebem os pacientes para um retorno no qual são avaliados, orientados e direcionados ao processo de reabilitação11 , 15 .
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não possui estratégias, programas ou diretrizes específicos para o acompanhamento do paciente pós-crítico depois da alta hospitalar.
Esse cenário brasileiro é fomentado pela escassez de estudos nacionais e o atual desconhecimento dos profissionais da saúde e sociedade sobre as consequências da doença crítica, entre elas as incapacidades funcionais, o que estimulou a realização do presente estudo. Além disso, poucos estudos, mesmo internacionais, abordam a perspectiva dos próprios pacientes diante das limitações funcionais pós-UTI, o que é importante para a compreensão de suas reais necessidades de saúde no retorno ao domicílio.
Assim, este estudo teve como objetivo compreender as vivências de pacientes diante de incapacidades funcionais pós-UTI no retorno ao domicílio.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo exploratório, de abordagem qualitativa que utilizou o Estudo de Caso como método de pesquisa. A escolha deste método surge do desejo de entender fenômenos sociais complexos, permitindo que os pesquisadores retenham as características holísticas e significativas de eventos da vida real16 .
O estudo de caso objetiva a investigação de um caso específico, bem delimitado, contextualizado em tempo e lugar para que se possa realizar uma busca circunstanciada de informações17 . Neste estudo constitui o caso “o paciente no domicílio com incapacidades funcionais pós-tratamento em UTI”.
O local de estudo foi o domicílio dos participantes, que foram selecionados de modo intencional e com auxílio de dois serviços públicos de saúde localizados em um município do interior do estado de Minas Gerais.
Os critérios para inclusão no estudo foram: idade igual ou superior a 18 anos; histórico de internação em UTI por no mínimo 15 dias; uso de Ventilação Mecânica Invasiva (VMI) durante a internação; tempo de retorno ao domicílio entre 30 e 180 dias e presença de limitação da capacidade funcional no momento da alta hospitalar definida por escores na Escala de Lawton e Brody entre dependência total nas sete Atividades Instrumentais de Vida Diária (AIVDs) avaliadas e dependência parcial em cinco das sete AIVDs avaliadas.
A escolha pela Escala de Lawton e Brody se deu por ser o instrumento mais utilizado em estudos internacionais para avaliação da capacidade funcional pós-UTI9 e por ter versão adaptada e validada para o contexto brasileiro18 .
A inclusão de pacientes com tempo mínimo de internação em UTI de 15 dias e que necessitaram de VMI visou facilitar a seleção daqueles com incapacidades de moderadas a severas. Com o mesmo objetivo definiu-se que os participantes deveriam ter, no mínimo, dependência parcial em cinco das sete AIVDs avaliadas pela Escala de Lawton e Brody. Considerou-se que pacientes com incapacidades de moderadas a severas poderiam contribuir de forma mais significativa para o objetivo de estudo, uma vez que experimentavam maior dependência de cuidadores e maior restrição ao ambiente domiciliar.
Em relação aos critérios de exclusão, eles foram definidos como: presença de qualquer impedimento para uma efetiva comunicação com a pesquisadora; presença de limitação da capacidade funcional prévia à internação em UTI e institucionalização antes e/ou após a internação hospitalar.
Com auxílio destes critérios, os fisioterapeutas colaboradores realizaram uma seleção inicial de participantes dentro das instituições de saúde e realizaram uma busca pelos históricos de internação.
A primeira autora entrou em contato telefônico com os potenciais participantes, confirmou a presença dos critérios de inclusão e agendou uma visita domiciliar, para aplicação da escala de Lawton e Brody. Optou-se pela aplicação da escala pessoalmente para uma melhor compreensão pelo potencial participante, especialmente porque objetivava identificar as limitações presentes no momento da alta hospitalar, não no período atual, quando algum grau de recuperação já poderia ter sido alcançado.
Após a confirmação de todos os critérios de inclusão, os indivíduos foram convidados a participar do estudo e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que elucidava seus objetivos e procedimentos.
A coleta de dados ocorreu em um período de cinco meses consecutivos e utilizou como técnicas a entrevista semiestruturada complementada por anotações em diário de campo, que ofereceram maior profundidade e validade aos dados. O diário de campo foi sistematizado segundo modelo de Trivinõs19 e incluiu material descritivo e reflexivo, destacando-se anotações sobre gestos, atitudes e expressões faciais dos participantes durante as entrevistas; falas dos participantes fora do contexto da entrevista; características do ambiente domiciliar e do relacionamento familiar; gestos, atitudes, expressões e falas de familiares e reflexões da pesquisadora.
As entrevistas foram realizadas no local de preferência do participante no domicílio, sem a presença de familiares ou cuidadores e com auxílio de um roteiro baseado no modelo de Turato20 . As perguntas disparadoras utilizadas foram: “Como tem sido sua vida após retornar para casa?” e “Como tem sido para você conviver com limitações físicas após ter saído do hospital?”. As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas ipsis litteris pela primeira autora e nomeadas com a letra “E” seguida do número referente à ordem em que foi realizada. O tempo médio das entrevistas foi de 32 minutos e 02 segundos e uma única entrevista foi realizada com cada participante.
Para o fechamento amostral utilizou-se o critério de saturação teórica, que é a interrupção da inclusão de novos participantes quando os dados obtidos, segundo a análise do pesquisador, apresentam certa repetição ou redundância, não oferecendo maiores contribuições para a pesquisa21 . Uma significativa saturação de dados foi identificada na oitava entrevista sendo encerrada a coleta de dados.
Para a análise do material empírico utilizou-se a análise temática de conteúdo proposta por Minayo, que é constituída de três etapas: na primeira delas é realizada a escolha do material a ser analisado e leitura flutuante, constituição do corpus, formulação e reformulação de hipóteses e objetivos, determinação de unidades de registro e contexto, os recortes, a forma de categorização, a modalidade de codificação e os conceitos teóricos gerais. Na segunda etapa é feita a exploração do material onde o pesquisador propõe inferências, realiza interpretações e busca a formação de categorias teóricas ou empíricas que especificarão os temas. Na terceira etapa é realizado o tratamento dos resultados obtidos e interpretação22 .
No embasamento do processo de análise e criação de inferências foram utilizados como referenciais teóricos o estado da arte sobre o tema de estudo e conceitos de Integralidade em Saúde apresentados em três compilações de Roseni Pinheiro e Ruben Araujo de Mattos23 - 25 .
Para garantir a validade dos achados de pesquisa o Núcleo de Pesquisas e Estudos Qualitativos em Saúde (NUPEQS) participou do processo de análise de dados e todas as etapas da análise de conteúdo propostas foram respeitadas. Objetivando garantir a confiabilidade do estudo, o diário de campo e o roteiro de entrevista foram testados em uma coleta de dados piloto.
Durante o período de coleta de dados 16 potenciais participantes foram contatados por telefone, sete deles não responderam aos critérios de inclusão, um foi selecionado para a coleta de dados piloto e oito participaram do estudo.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Faculdade Ciências Médicas da Unicamp sob o parecer número: 2.164.658 e cumpriu todas as normas da Resolução nº 466/2012, que normatiza pesquisas com seres humanos26 .
RESULTADOS
Da amostra de oito participantes, cinco eram do gênero masculino (62.5%). A idade média dos participantes era de 54 anos, variando entre 29 e 69 anos. O tempo médio de internação dos participantes em UTI foi de 84.5 dias, variando entre 30 e 200 dias.
Em relação ao cuidado pós-alta, a atenção primária foi a principal responsável pelo acompanhamento dos participantes, destacando-se a Atenção Domiciliar (AD) pela condição de restrição ao domicílio vivenciada por eles. Quatro participantes (50%) eram acompanhados pela AD prestada pela Estratégia Saúde da Família (ESF); dois participantes (25%) pela AD prestada pelo Serviço de Atenção Domiciliar (SAD); um participante (12,5%) era acompanhado por profissionais da rede privada e um (12,5%) não era acompanhado por nenhum serviço ou profissional após a alta hospitalar.
Da análise do material empírico oriundo das entrevistas e anotações em diário de campo emergiram duas categorias, apresentadas a seguir:
O sofrimento emocional e sua repercussão na recuperação funcional
Diversos relatos dos participantes permitiram identificar vivências de sofrimento emocional no domicílio diante das incapacidades funcionais. Nas seguintes falas notam-se sentimentos de tristeza e inutilidade, além de uma perspectiva demasiado pessimista, caracterizada pela crença da irreversibilidade de suas limitações funcionais:
“(...) até agora eu tenho pensamentos muito negativos [se emociona]... eu sinto que isso não tem fim, que isso não tem saída, que eu vou ficar sem movimento até, até sempre (...)” (E3)
“Psicologicamente destruído, detonado, me sentia um inútil, insuficiente, achava que ali já tava chegando no fim já, sem perspectiva de melhora nenhuma (...)” (E4)
“(...) eu me sentia um inútil né? (...) eu cheguei a ponto de achar que ia ficar na cama mesmo, é complicado... porque mexe muito com o psicológico da gente... psicológico quando abala você se recompor não é fácil (...)” (E8)
A esse sofrimento emocional se somaram memórias dolorosas e confusas do período na UTI, o que influenciou negativamente o processo de reabilitação de alguns participantes:
“O que dificultou talvez mais [a recuperação física], assim no começo, o psicológico porque é o que eu tô falando, querendo ou não atrasa sabe? Atrasa... a cabeça da gente, você pensa muita besteira, pensa muita coisa que não deve (...)” (E7)
“(...) até então eu não tava sabendo do que tinha acontecido comigo [ao chegar em casa], eu só tava lembrando do tanto que eu sofri no hospital entendeu? (...) Ah, eu gostaria [de entender o que ocorreu no hospital] sabe porque? Eu acredito que eu teria uma pós-cirurgia, seria, seria mais tranquilo pro meu psicológico (...) até pra minha sensação física (...)” (E8)
Para alguns participantes foi primordial ressignificar as experiências de sofrimento e superar os padrões negativos de pensamento para conseguirem se empenhar na reabilitação:
“(...) com o tempo eu fui apendendo, eu fui melhorando, e fui colocando na cabeça que eu tinha que melhorar (...) eu coloquei na minha cabeça ‘(...) eu tenho que ajudar, eles tão fazendo tudo por mim [família] e eu vou fazer tudo por eles e por mim também (...). Eu não vou perguntar, eu vou fazer’ e eu fui fazendo fisioterapia, não só nos horários de fisioterapia (...)” (E7)
“De jeito nenhum [queria fazer fisioterapia], mas aí que tá o xis da questão, daí eu acordei e falei ‘Opa! Mas se eu não fizer eu não vou melhorar, então deixa eu tentar’ (...)” (E8)
“(...) tem hora que dá vontade de pedir pra minha mãe trazer um prato de comida e eu falo ‘Nãnã’... eu brigo comigo mesmo né? ‘Então, vamos lá, vamos levantar, trata de descer a escada’ (...) Dessa forma eu tenho conseguido e tenho certeza que eu vou superar e vencer, eu tô focado, eu tô determinado a seguir.” (E8)
Apesar de a maior parte dos participantes ser acompanhada por uma equipe de Atenção Domiciliar (AD), constatou-se que o sofrimento emocional por eles vivido e seu impacto na recuperação funcional não eram apreendidos ou valorizados pelos profissionais, com somente um participante recebendo apoio psicológico e psiquiátrico.
Todos esses achados evidenciam a interação entre aspectos físicos e psicoemocionais no processo de incapacitação e recuperação do paciente com incapacidades funcionais pós-UTI, assim como a importância dos profissionais envolvidos em seu cuidado superarem a perspectiva limitada ao corpo físico adoecido.
A perda do papel familiar e os conflitos com cuidadores
A impossibilidade de retorno ao trabalho e a dependência em atividades cotidianas decorrentes das incapacidades funcionais fizeram com que participantes perdessem papéis familiares significativos para si e para a família, o que afetou sua autoestima e gerou sentimentos de frustração e inadequação, especialmente para aqueles que se identificavam como provedores antes da doença crítica:
“A gente acostumou porque quando a gente casou, eu falei pra ela ‘O arroz, o feijão... esses dois têm que ser de primeira (...)’ então nós nunca comprou arroz de segunda em casa e ela nunca precisou trabalhar pra fora também, então eu acho que essa é a minha obrigação (...) eu quero fazer alguma coisa pra ajudar, pra aumentar [a renda], mas não tá dando (...)” (E1)
“Ah, é ruim demais, eu sempre fui o contrário... eu que carregava tudo e todo mundo, então pra mim agora é um absurdo, ter que ser carregado (...) eu ganhava razoavelmente bem, dava pra arcar com todas as despesas, não precisava de ninguém (...) então é uma dificuldade, minha mulher ganha um salário mínimo, e só isso (...)” (E3)
Indiretamente foi possível constatar mudanças também nos papéis desempenhados por outros membros da família, principalmente pelas necessidades de cuidar e prover, e que a reorganização desses papéis ocorreu de modo singular em cada família, de acordo com suas possibilidades e recursos.
Evidenciou-se, ainda, que a condição de dependência gerou conflitos entre os participantes e seus cuidadores familiares, com os entrevistados demonstrando o desejo de que seus cuidadores tenham mais paciência com suas limitações ou que deem mais liberdade para que tomem decisões e realizem atividades sem auxílio:
“E não é que eu acho ruim de ajudar [da esposa lhe ajudar], ela não entende... EU [ressalta] quero ajudar ela (...) ela briga comigo e briga com razão, mas tudo que eu faço de errado é pra ajudar ela... hoje eu descasquei um mamão ali ela já ‘Fez arte né?’” (E1)
“(...) eu me sinto muito ruim... especialmente quando vejo sinais de... sei lá... de... de falta de aceitação deles né? [família] (...) tô cansado de pedir pra eles, chega uma hora que eles também reclamam, estão cansados, o meu filho aí já disse que tá com dor nas costas... que precisa tomar o rumo da vida dele também, ele tá aqui por minha conta, tá cuidando de mim, mas ele tem que viver a vida dele (...)” (E3)
“Assim que eu cheguei, eu tive muita dificuldade de adaptação com a minha família sabe? (...) minha mãe, ela sempre foi assim... superproteção, tudo que é demais não é legal (...) então, nós tivemos aí uns dias de desavença e não foi nada bom sabe? (...)” (E8)
Uma vez que o excesso de zelo e a incompreensão dos cuidadores claramente se relacionavam à sua insegurança, desconhecimento e sobrecarga, infere-se que a falta de apoio profissional à família foi um fator que favoreceu a ocorrência de conflitos. Nos conflitos observados, portanto, não existiam culpados, mas vítimas da situação de adoecimento: enquanto uma parte lutava pela reconquista da independência a outra lidava com as dificuldades inerentes à tarefa de cuidar.
Os achados desta categoria convergem para a importância da família no processo de recuperação do paciente com incapacidades funcionais pós-UTI, uma vez que pode estimulá-los a ganhar independência, inclui-los nas decisões familiares e mostrar paciência com suas limitações, minimizando sentimentos de inadequação, frustração e baixa autoestima. Para tal, a família deve receber apoio profissional permanente na tarefa de cuidar e para a garantia da sua própria saúde.
DISCUSSÃO
As incapacidades funcionais pós-UTI são resultado de uma complexa interação entre déficits físicos27 , cognitivos28 , 29 e psicoemocionais30 - 32 e assim como sua origem, a recuperação dessas incapacidades também se mostra complexa, com exigências que vão além da reabilitação física e incluem adequada atenção psicoemocional e apoio à família.
Indícios de que a recuperação da força muscular do paciente pós-crítico é mais rápida que a recuperação da funcionalidade corroboram essa perspectiva, indicando que fatores como morbidades cognitivas, mentais, ambiente domiciliar e suporte de cuidadores influenciam na recuperação funcional33 .
Em relação a aspectos emocionais, é comum que no domicilio o paciente pós-crítico enfrente memórias de acontecimentos da internação que são muitas vezes sem sentido, falsas, confusas, fragmentadas e fora de ordem cronológica34 - 36 , o que somado ao enfrentamento de limitações nas atividades cotidianas gera sofrimento e dificuldades no engajamento na reabilitação funcional.
Estudos quantitativos já apontam a existência de relação entre aspectos físicos e psicoemocionais no processo de recuperação do paciente pós-crítico, com indícios de que grande parte dos sintomas depressivos pós-alta possuem origem somática37 , enquanto a presença de depressão e ansiedade predispõe pior recuperação física após a alta hospitalar31 , 38 .
Acredita-se que a depressão afeta a funcionalidade uma vez que sintomas como anedonia, falta de energia, humor deprimido e desmotivação diminuem a participação ativa na realização de exercícios39 , 40 e alteram a percepção do indivíduo sobre o que é capaz de fazer41 .
Esses resultados indicam que estratégias psicoemocionais desde a UTI até o período pós-alta podem contribuir com o processo de recuperação funcional do paciente pós-crítico, destacando-se a identificação precoce de sintomas depressivos; a reconstrução de memórias da internação e consultas de acompanhamento ambulatorial que permitam ao paciente falar sobre suas dificuldades, medos e receber apoio e explicação profissional34 , 35 .
Nessa perspectiva, apesar dos ambulatórios pós-UTI possuírem efetividade controversa41 ,42 , diversos modelos realizam avaliação psicoemocional e facilitam a elucidação de memórias da internação por meio do uso de diários e de consultas esclarecedoras com profissionais intensivistas, inclusive com possibilidade de uma visita a UTI12 , 13 , 15 .
Os diários de UTI são diários onde a equipe de saúde, familiares e amigos realizam anotações e/ou anexam fotos esclarecedoras sobre o período em que o paciente se encontra sedado e em ventilação mecânica43 , 44 . Em momento oportuno, essas informações serão acessadas pelo paciente e discutidas com familiares e profissionais auxiliando-o a compreender os acontecimentos da internação e o curso total da doença44 .
Pacientes tem avaliado essas ferramentas de ressignificação de memórias como valiosas no processamento de seus sentimentos e emoções e no esclarecimento de passagens da internação, propiciando a mudança de foco dos questionamentos do passado para as possibilidades do futuro45 .
Infelizmente no Brasil essas estratégias não são amplamente utilizadas, ao que colabora a fragmentação do SUS no que se refere à integração de serviços de diferentes níveis de atenção46 e a inexistência de estratégias específicas, como ambulatórios de acompanhamento pós-UTI.
Considerando o contexto brasileiro, é necessário que os profissionais da atenção primária recebam capacitação para compreender a complexidade desses pacientes e estejam preparados para oferecer um cuidado pós-alta integral, que supere a divisão existente entre mente-corpo e subjetividade-objetividade47 , reconhecendo que todo paciente é bem mais que um sistema biológico com lesões e disfunções que supostamente produzem seu sofrimento48 .
A necessidade de um cuidado pós-alta integral a esses pacientes é reforçada pela importância da família em sua recuperação, tornando-a uma unidade que demanda cuidado e amparo no enfrentamento das consequências do adoecer e das dificuldades oriundas do cuidado cotidiano que realiza49 .
Assim como evidenciou estudo com pacientes que sofreram Acidente Vascular Encefálico (AVE)50 , os pacientes deste estudo mostraram-se frustrados com a perda de um papel familiar significativo e seu status, bem como pela nova posição desempenhada dentro da família.
Estimativas de que 50% dos pacientes pós-críticos não retornam ao trabalho após um ano da alta hospitalar4 e estudos que comprovam o impacto negativo da doença crítica sobre a vida laboral51 , 52 , sugerem que a frustração diante da impossibilidade de contribuição financeira com a família é uma realidade comum para esses pacientes.
Diante das novas necessidades de cuidar e prover, observou-se que cada família se reorganizou de forma única, como resultado de aspectos emocionais, socioeconômicos, culturais, qualidade dos relacionamentos prévios e desejos pessoais dos cuidadores53 , confirmando que os problemas enfrentados após a alta da UTI não alteram somente a vida do paciente54 e a importância dos profissionais da saúde reconhecerem a singularidade, o desejo, o saber e a história de cada família na construção do cuidado55 .
Reconhecer e respeitar a singularidade da família ao apoiá-la é primordial, uma vez que o cuidado por ela produzido molda-se continuamente segundo seus potenciais e possibilidades, sendo construído “com” e não somente “para” o ente familiar e buscando atender as suas necessidades particulares de cuidado56 .
No que diz respeito aos conflitos familiares, estudos prévios com pacientes pós-críticos apontam como suas causas a dificuldade do cuidador em renunciar ao cuidado, a sua interferência em atividades que o ente adoecido sente-se capaz de realizar e a dificuldade do paciente empenhar-se na sua própria recuperação57 , 58 , o que vem de encontro aos achados do presente estudo.
É importante considerar que comportamentos familiares vistos como inadequados podem ser secundários à sua insegurança, desconhecimento e sobrecarga física e emocional, amplamente descrita nesta população59 , o que torna fundamental o suporte profissional aos cuidadores tanto para a reconquista da independência pelos pacientes58 quanto para a manutenção da própria saúde.
Uma vez que os profissionais da AD foram os mais presentes na atenção pós-alta dos participantes, é imperativo que efetivamente se apropriem da posição privilegiada que possuem junto à família, com inserção no espaço doméstico e em meio ao movimento e à complexidade das relações familiares60 , produzindo um cuidado compartilhado, individualizado e empático.
CONCLUSÕES
Diante das incapacidades funcionais pós-UTI os participantes deste estudo vivenciaram no domicílio o sofrimento emocional e sua repercussão negativa sobre a recuperação funcional, a perda do papel familiar e conflitos com cuidadores familiares. A partir dessas vivências conclui-se que a recuperação funcional desses pacientes envolve mais que a reabilitação física, sendo um processo complexo que requer cuidado integral. De modo específico, destacaram-se como importantes para a recuperação funcional do paciente pós-crítico o acompanhamento psicoemocional desde a UTI até o retorno ao domicílio, o emprego de estratégias de reconstrução de memórias da internação e o suporte profissional à família.
A atenção primária, por meio da AD, teve importante atuação junto à amostra de estudo, mas mostrou limitações em responder às suas necessidades de saúde, o que indica a importância da capacitação desses profissionais sobre a complexidade do paciente pós-crítico bem como a criação de estratégias que a aproximem da atenção terciária. Essa aproximação pode favorecer a adoção de estratégias de elucidação de memórias, a compreensão ampliada e individual do processo de adoecimento e um cuidado compartilhado e continuado.
Como limitação do presente estudo destaca-se que as incapacidades funcionais apresentadas pelos participantes eram de moderadas a severas, o que exige cautela na transferência de resultados para realidades em que apresentem incapacidades menos limitantes. Acredita-se que esse estudo pode incentivar novas discussões e indicar diretrizes para novas pesquisas e abordagens profissionais junto a esses pacientes, especialmente em países como o Brasil, com escassez de estudos, ausência de estratégias e desconhecimento dos profissionais da saúde sobre as consequências da doença crítica.