INTRODUÇÃO
A violência doméstica contra a mulher (VDCM) configura-se em grave problema social e de saúde pública da atualidade devido a sua magnitude, gravidade e pelas consequências negativas sobre a vida das mulheres, ocorrendo de modo frequente, mas sendo raramente enunciada1 , 2 .
Considera-se VDCM aquela praticada no espaço de convívio permanente de pessoas, apresentando ou não vínculo familiar3 . No lócus do lar, a prática da VDCM tem sido associada ao constructo sociocultural da falocracia e do andocentrismo, ou seja, à dominação e poder masculino4 .
Aproximadamente uma em cada cinco brasileiras refere ter sido vítima de violência doméstica. Estatísticas afirmam que 20% das brasileiras sofreram em 2010 algum tipo de violência por parte de homens, conhecidos ou não, sendo as formas mais citadas a física e a psicológica5 .
Ao pensar a VDCM sobre o prisma das relações de poder, percebe-se que as formas de subordinação a que as mulheres são submetidas, a partir da agressão, tratam-se de dispositivos de manutenção de poder focados na violência e na contínua condução de condutas6 .
Exercer o poder através da violência se aproxima do referencial foucaultiano, que traduz os jogos de poder como formas de agir sobre a ação dos outros, sem necessitar de consentimento. Entretanto, o poder só se exerce sobre sujeitos livres, que possuem um campo de possibilidades para transformar a situação vivenciada6 . Para Foucault6 o poder não representa algo que o indivíduo possui ou não. É um constructo sócio histórico que se exerce e só existe em ação.
Transportando o poder para as situações de VDCM, o homem faz uso de estratégias de violência para que a mulher possa agir da forma que ele deseja, lhe obedecendo e sendo submissa, limitando suas condutas e modelando sua subjetividade. Designada também como violência de gênero a VDCM representa o resultado dos desequilíbrios no exercício de poder dentro das relações conjugais, na qual os homens incorporam o papel de dominador e as mulheres o de oprimidas. Esse constructo social acaba por transformar as mulheres em sujeitos conduzidos pelos homens. No âmbito privado essa desigualdade, baseada no gênero, determina os padrões de relacionamento entre homens e mulheres, podendo resultar em violência doméstica7 , 8 .
Algumas mulheres reconhecem que o exercício desigual de poder é fruto da maneira como foram educadas, de visualizarem o homem como “o soberano” da relação9 . Acreditam vivenciar tal situação como algo normal nas relações conjugais.
Baseados na subalternidade e subserviência feminina, muitos homens adotam a violência como uma forma de moldar os comportamentos considerados incorretos7 . Além disso, o direito da mulher de decidir e fazer escolhas é compreendido como um comportamento errôneo que deve ser penalizado10 .
É como se a violência de gênero fosse constitutiva das relações conjugais e socialmente aceitável. Os homens, por sua vez, acreditam que as mulheres lhes devem obediência10 . Entretanto, para que haja relações de poder, deve coexistir a possibilidade de resistência, o desejo de luta, mesmo que no imaginário da mulher vítima de violência11 .
Nesse sentido objetivou-se investigar a tendência dos estudos científicos acerca das relações de poder presentes nas situações de VDCM.
MATERIAIS E MÉTODOS
A presente pesquisa consistiu em uma investigação exploratório-descritiva, com abordagem qualitativa, desenvolvida por meio de uma Revisão Sistemática de Literatura (RSL). Trata-se de uma síntese objetiva e reproduzível de pesquisas, disponíveis em um determinado momento, acerca de um tema específico. Os princípios norteadores de uma RSL são: exaustão na busca das produções, definição clara dos critérios de inclusão e exclusão das mesmas e avaliação das pesquisas selecionadas12 .
Essa metodologia científica é composta por seis etapas: 1ª identificação do tema e da questão de pesquisa; 2ª delineamento de critérios de inclusão e exclusão; 3ª definição das informações que serão capturadas dos estudos; 4ª avaliação das produções encontradas; 5ª interpretação dos resultados e 6ª apresentação da revisão propriamente dita12 .
Visando atender aos princípios supracitados, inicialmente elaborou-se um protocolo norteador contendo a problemática a ser investigada, os meios de busca das produções, os critérios de inclusão e exclusão do material encontrado e avaliação das pesquisas selecionadas12 . Assim, questionou-se: "qual a tendência dos estudos científicos acerca das relações de poder presentes nas situações de VDCM, no período compreendido entre 2013 e 2017?”. Buscaram-se textos provenientes de pesquisas inéditas, disponíveis integralmente on-line, publicadas entre 2013 e 2017 cuja abordagem contemplasse o objeto deste estudo. A escolha por essa temporalidade ocorreu considerando-se o ano completo de publicações ficando de fora as frações anuais visto a periodicidade de algumas revista para publicar seus artigos.
A coleta de dados foi realizada de junho de 2018 a novembro de 2018 por duas pesquisadoras, de forma independente para garantir objetividade do método, no Portal Regional da Biblioteca Virtual de Saúde (BVSalud) utilizando-se inicialmente os termos: “violência doméstica contra a mulher” associado a “relações de poder”.
Os critérios de inclusão adotados foram: estudos inéditos, gratuitos e disponíveis na íntegra de forma online, nos idiomas português, espanhol ou inglês; entre 2013 e 2017. Foram excluídos: teses, dissertações, monografias, revisões, trabalhos referentes a violência doméstica contra crianças, adolescentes e gestantes, bem como relações de poder associado a outros temas como, por exemplo: no trabalho, nas instituições, dentre outros. Foram realizadas três buscas por produções acerca da temática em questão.
O material selecionado foi submetido, então, a dois testes de relevância. No primeiro, realizou-se a leitura dos títulos e resumos dos artigos. Assim, foram selecionadas pesquisas cujo foco estivesse voltado para as relações de poder em situações de VDCM. Desta forma, com a aplicação do primeiro teste de relevância, foram selecionadas 104 publicações. Para o segundo teste de relevância, os estudos foram lidos na íntegra. Os artigos que se repetiram foram contabilizados apenas uma vez.
Na primeira busca foram encontradas 29 publicações, sendo oito artigos científicos, uma consistia em um editorial, duas eram teses e 18 estavam fora do recorte temporal estipulado. Dos artigos que se enquadravam nos critérios de inclusão foram lidos os resumos. Dos oito artigos selecionados dois se repetiam, porém indexados em base de dados distintas. Um outro artigo versava sobre os fatores que influenciam atitudes de violência no namoro de adolescentes. Assim, obteve-se uma amostra final de cinco artigos que foram lidos integralmente.
Uma segunda busca foi realizada neste mesmo portal, porém acrescentando “relações de gênero” aos termos anteriormente utilizados. Foram encontradas 25 publicações, porém 14 encontravam-se fora do recorte temporal estipulado. As demais consistiam de oito artigos científicos, duas teses e um editorial, os mesmos integrantes da primeira busca, não sendo acrescentado nenhum material ao banco de dados.
Uma terceira busca foi realizada neste mesmo site da Biblioteca Virtual de Saúde, porém agora ao invés de “violência doméstica contra a mulher” utilizou-se “violência contra a mulher”. Essa escolha se deu em virtude de alguns artigos referirem a violência por parceiro íntimo (intimate partner violence - IPV) sem atrelá-la a violência doméstica. Ao termo “violência contra a mulher” foi associada “relações de poder”, sendo encontradas 50 publicações. Destas, 32 encontravam-se fora do recorte temporal delimitado. Das 18 restantes, duas estavam indisponíveis em sua forma íntegra, gratuita e online. Uma consistia no informativo que esteve presente nas buscas anteriores e um outro era um informativo do Sistema Único de Saúde (SUS). Seis artigos eram os que já haviam integrado as buscas anteriores sendo que destes, três ainda se repetiram. Outros dois artigos, apesar de serem publicações recentes, não se enquadravam no tema investigado. Um outro artigo versava acerca da vulnerabilidade à infecção pelo HIV/AIDS em mulheres em contextos de violência de parceiros afetivos. Assim, dois novos artigos foram integrados ao banco de dados de artigos da presente revisão.
Construiu-se, então, um banco de dados, elaborando-se para cada artigo um arquivo identificado pela letra A acrescida de números de um a sete, seguindo a ordem cronológica de publicação. Assim, integraram a presente revisão sistemática, sete artigos científicos, identificados pelos códigos A1, A2, A3, A4, A5, A6 e A7 os quais foram submetidos à análise de conteúdo13 ( Quadro 1 ).
Código | Título do artigo | Periódico | Ano de publicação | Idioma | Base de dados | |
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A1 | Articulações entre gênero e raça/cor em situações de violência de gênero | Psicol. soc. (Online); 26(2): 323-334. | 2014 | Português | LILACS | |
A2 | Violência contra a mulher: análise da identidade de mulheres que sofrem violência doméstica | Rev. psicol. (Fortaleza, Online); 5(2): 153-172. | 2014 | Português | Index Psicologia - Periódicos técnico-científicos | |
A3 | Women survivors of intimate partner violence: the difficult transition to Independence | Rev Esc Enferm USP; 48(spe): 7-15. | 2014 | Inglês | LILACS | |
A4 | Sociocultural aspects and violence in depressed women | Ciênc. cuid. saúde; 14(1): 861-869. | 2015 | Inglês, Português | BDENF – Enfermagem | |
A5 | Violence against women and care practice in the perception of the health professional | Texto & contexto enferm; 24(1): 229-237. | 2015 | Inglês | LILACS | |
A6 | Analysis of domestic violence on women's health | Rev. bras. crescimento desenvolv. hum; 25(2): 182-186. | 2015 | Inglês | LILACS | |
A7 | Cuidar mulheres em situação de violência: empoderamento da enfermagem em busca de equidade de gênero | Rev Gaucha Enferm; 36(spe): 77-84. | 2015 | Português | LILACS |
Para a análise adotou-se como critério a frequência de abordagem dos temas apresentados nos artigos. Para cada temática elaborou-se uma categoria.
RESULTADOS
Após análise, permaneceram sete artigos, sendo cinco indexados pela LILACS, um pela BDENF e um outro pela Index Psicologia - Periódicos técnico-científicos. O volume de publicações segundo o ano foi: 2014 com três artigos e 2015 com quatro. Três foram publicados em língua portuguesa, três em inglês e um em ambos idiomas. Os sete artigos foram lidos na íntegra e elaboraram-se três categorias analíticas: “Marcadores sociais que contribuem para a ocorrência da VDCM”, “Construção identitária de mulheres que sofrem violência doméstica”, “Consequências da violência doméstica para a saúde das mulheres e a prática profissional”.
Marcadores sociais que contribuem para a ocorrência da VDCM
Considerada como um fenômeno social e de saúde pública, a VDCM atinge mulheres de diferentes faixas etárias, culturas e classes socioeconômicas(A1,A2,A3). Vivenciada de maneira silenciosa e privada por séculos, a VDCM é fruto das desigualdades de gênero construídas ao longo da história e alicerçadas em categorias hierárquicas(A1,A2,A3,A4,A5,A6,A7). Encontra-se, muitas vezes, associada a questões de raça/cor(A1). Por vezes, a mulher vê o homem como um general ao qual deve obediência e respeito(A5). Trata-se de um problema social grave, frequente, persistente e de difícil enfrentamento(A1). De transmissão intergeracional, é ensinada e aprendida de forma cultural(A1,A2,A5).
O artigo A1 apresenta um breve resgate histórico, narrando algumas das conquistas realizadas, ao longos dos anos, pelos movimentos feministas e apresenta o momento em que foi abordado as especificidades da violência contra as mulheres negras. Em decorrência desses movimentos a VDCM passa a integrar as agendas públicas e deixa de ser “natural”(A1).
O estudo A1 apresenta alguns dos aparatos judiciais, explanando sobre a criação da Lei Maria da Penha e das Delegacias Especializadas no Atendimento a Mulheres(DEAM). Enfatiza a invisibilização do entrecruzamento entre gênero e cor de pele no que concerne à VDCM uma vez que as mulheres negras nunca foram tratadas como frágeis e sempre trabalharam fora de casa. Nesse sentido, os determinantes raça/cor, gênero e extrato social não devem ser vistos como limitantes, mas sim como recursos para ação(A1). Apesar de o Brasil ser um país com miscigenação de povos, existe um racismo brasileiro que segrega as raças demarcando desigualdades sociais. A mestiçagem do povo brasileiro advém da violência sexual perpetrada pelo homem branco colonizador sobre mulheres negras e índias(A1).
Os dados apresentados no estudo A1 referentes a uma pesquisa de campo realizada entre maio de 2010 e junho de 2012, junto ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e à Delegacia da Mulher, revelou a existência de outro determinante social que pode contribuir para a ocorrência de VDCM, a escolarização associada a cor/raça. Os dados indicam que as mulheres autodeclaradas negras e mulatas apresentam maiores dificuldades de dar seguimentos aos seus estudos do que as mulheres brancas(A1).
O artigo A2 entrevistou 28 mulheres em Portugal, a maioria residente em meio urbano, que buscaram ajuda em dois núcleos e atendimento a vítimas de violência por parceiro íntimo. O local de residência das mulheres parece contribuir para o silêncio e invisibilidade da violência contra elas. A investigação A1 constatou que as mulheres negras residem, em sua maioria, em regiões mais pobres e mais vulneráveis ao tráfico. Em localidades onde o tráfico de drogas é acentuado a presença da polícia causa desconfortos visto que não é bem vinda no lugar.
A investigação A1 concluiu que, segundo os dados produzidos, há uma maior prevalência da VDCM em relações de intimidade nas mulheres negras e mulatas. Essa informação além de visibilizar a disparidade na distribuição racial da ocorrência de VDCM revela também quem são as mulheres que buscam os órgãos públicos para denunciar a violência vivida(A1).
Em determinadas situações, o homem tende a minimizar a agressão realizada, bem como seus efeitos sobre a vida e saúde das mulheres justificando seus atos como sendo culpa da conduta dela ou pelo uso de substâncias (i)lícitas(A2, A4).
O artigo A4 denuncia a pobreza como desencadeante para VDCM. Ao entrevistar 10 mulheres com depressão, revelou que elas residiam na periferia de São Paulo sendo nove provenientes da zona rural. A que cresceu na zona urbana apresentava vivência de pobreza e situação de rua na infância.
Apesar do exposto, estudos corroboram com a literatura já produzida de que a VDCM constitui um fenômeno presente em todas as camadas sociais, etnias, idades, religião e grau de escolaridade(A1,A2,A3,A4,A5,A6,A7). Porém os autores do artigo A1 acreditam ser necessário conferir maior visibilidade aos marcadores sociais gênero e raça/cor, a partir de análises qualitativas que enfatizem essas informações(A1).
Construção identitária de mulheres que sofrem violência doméstica
Mulheres que sofrem violência doméstica apresentam dificuldades em conduzir sua própria vida, em construir novas identidades e entender que a violência deve ser combatida através da desconstrução das relações desiguais existentes entre homens e mulheres. Quando as mulheres encontram-se em situação de violência, por vezes, elas tentam pôr um fim nessa vivência, entretanto ficam divididas entre a denúncia e a superação(A2).
Essa dicotomia leva-as a problemática da identidade. Ora elas lutam pelos seus direitos e buscam sua emancipação através da denúncia, ora retornam ao papel assumido de esposa-vítima. Buscam meios para justificar a violência sofrida esquecendo-se de que a problemática da violência é muito mais complexa e envolve inúmeros fatores ecossociocuturais(A2).
A construção da identidade agrega valores e papéis ensinados e aprendidos desde a infância, já na família, constructo social segregante que faz as mulheres aceitarem e reproduzirem a submissão e obediência como algo natural, atributos único e verdadeiro do ser mulher(A2).
Entretanto, algumas mulheres buscam transformar sua identidade de “mulher que sofre violência doméstica” para “mulher em busca de liberdade” e encontram na realização da denúncia dos agressores um dos caminhos para esse objetivo. Não querem mais conviver com uma identidade estagnada, de mesmice e sem metamorfoses, almejam por mudanças, por novas personagens para suas identidades(A2). Outras, tentam revidar as agressões ou idealizam o suicídio, pondo em risco suas vidas na tentativa de sufocar e não reviver mais a personagem “mulher agredida”(A2,A3). Por mais que decidam pôr um fim no relacionamento conflituoso algumas mulheres não tem para onde ir, obrigando-se a permanecer convivendo com o agressor(A3).
Porém ainda existe uma parcela significativa que após a denúncia se arrependem e frente a toda pressão externa de familiares, filhos, marido e sociedade como um todo, retomam seus papéis de mulher, mãe, esposa dentro de uma família tradicional, ressuscitando a identidade de “mulher que sofre violência doméstica”. Os papéis assumidos pelos indivíduos determinam suas identidades uma vez que é a partir deles que as pessoas buscam constantemente engendrar metamorfoses(A2).
A consciência de que a vivência de violência pode ser modificada no futuro, que sua história pode ser recriada possibilita essas transformações. Aquelas mulheres que conseguem engendrar metamorfoses identitárias alcançam a emancipação tão desejada e vivem, então, novas personagens: “a mulher liberta da violência”, “a mulher independente financeiramente”, “a mulher consciente”, “a mulher emancipada”, “a mulher não suicida”, “a mulher não doente”, dentre outras(A2).
Consequências da violência doméstica para a saúde das mulheres e a prática profissional
A VDCM apresenta inúmeras repercussões para a saúde e qualidade de vida das mulheres(A7) que apresentam sua saúde física e mental comprometidas(A4,A6). Os agravos causados pela VDCM ultrapassam os danos físicos, interferindo na qualidade de vida e oprimindo-as(A6). Essa situação contribui para o aumento na procura das mulheres pelos serviços de saúde(A5).
Mulheres em situação de violência apresentam sentimentos ambíguos o que, por vezes, as faz ignorarem o acontecimento contribuindo para a invisibilidade da violência de gênero(A5). Ficam prejudicadas em sua vida social, reprimidas e psicologicamente abaladas(A6). A preocupação com os aspectos emocionais da mulher exige que ela seja tratada de forma multiprofissional(A5).
Os profissionais compreendem que a VDCM existe devido à hierarquia nas relações entre homens e mulheres, que confere maior poder ao homem, situação que o legitima a praticar a violência(A5). Reconhecem a existência de situações de VDCM, porém suas intervenções restringem-se ao biológico, ao cuidado técnico, tratando lesões, sintomas ou disfunções orgânicas sem abordagem de questões relacionadas ao ambiente sociocultural(A5,A7).
Dentre os motivos para o desenvolvimento dessas práticas pautada no modelo biológico e medicalizante estão: formação profissional; organização do Sistema Único de Saúde (SUS) cujo assistencialismo centra-se no modelo biologicista; número reduzido de profissionais da saúde; falta de tempo para a escuta, de qualificação dos profissionais, de suporte institucional e de equipe multidisciplinar. Essa situação acaba gerando uma invisibilidade da violência nos serviços de saúde(A5,A7).
Quando se trata de problemas arraigados em questões socioculturais, como é o caso da violência, os profissionais da saúde apresentam dificuldades para agir(A5,A6). Contudo, essas mulheres são acolhidas pelos profissionais que as escutam, orientam, encaminham para setores especializados quando necessário(A5). Buscam desenvolver uma prática ampliada, intersetorial e multiprofissional com vistas a solucionar esse problema complexo que é a VDCM(A5,A6,A7).
Percebe-se que suas ações compreendem elementos clínicos e não clínicos. Os clínicos englobam procedimentos e técnicas de enfermagem, ou seja, voltados ao cuidado das lesões provenientes da violência sofrida e administração de medicações prescritas enquanto que os não clínicos relacionam-se ao diálogo, a escuta, as orientações e os encaminhamentos(A7). O primeiro atendimento que a enfermagem deve prestar a mulher que sofreu violência precisa ser voltado ao tratamento das lesões e do trauma, para as questões biológicas porque esse é o cuidado que a mulher necessita no momento. Em sequência desenvolve-se, então, o cuidado não clínico, de conversa, escuta e orientações. Ambas formas de cuidar são fundamentais para a prática do profissional da enfermagem uma vez que se complementam(A7).
DISCUSSÕES
Questões ecossocioculturais e de gênero se encontram intimamente relacionadas a violência doméstica contra a mulher14 . A VDCM não se justifica, contudo, existem fatores considerados precursores, dentre eles: desigualdade entre os sexos, sentimento de posse do homem sobre a mulher, pobreza, baixa escolaridade, pouca idade do casal, consumo excessivo de álcool, desemprego, possuir filhos, dependência econômica e emocional aos companheiros, entre outros7 . Esses determinantes sociais apontam para a necessidade de repensar a categoria “mulher” de forma não homogeneizante, considerando-se as vivências e singularidades15 .
A condição de pobreza leva muitas mulheres a ingressarem no mercado de trabalho ainda quando crianças para auxiliarem no sustento das famílias, impedindo-as de estudar e qualificar-se. A pobreza e a falta de estudo torna-as indivíduos vulneráveis16 . Todavia, em determinadas situações, mesmo a mulher possuindo uma renda proveniente de trabalho remunerado, ela não consegue perceber sua autonomia. Apesar de sua contribuição financeira para sustento do lar ela não se sente com condições de enfrentar a violência. O fato da mulher trabalhar fora de casa pode tencionar a relação em virtude da mudança de papéis sociais. No imaginário masculino, as incumbências femininas são voltadas para lar e não para o mercado de trabalho. A tensão gerada pode desencadear a ocorrência de violência pois o homem percebe que seu papel de provedor da família está ameaçado17 .
O uso de substâncias psicotrópicas atua como catalisador dos eventos violentos. Por vezes, as próprias mulheres consideram que os maridos são pessoas “boas” quando não estão com seus comportamentos alterados devido ao uso de tais substâncias18 . Porém essa situação gera tristeza, sofrimento e nervosismo nessas mulheres16 .
Frente aos movimentos feministas, no Brasil, os serviços direcionados às mulheres em situação de violência aumentaram significativamente nas últimas três décadas19 . Denunciam as estruturas sociais ainda enraizadas no patriarcado em que a mulher ocupa posições de subordinação e submissão aos homens16 - 20 .
A violência de gênero, por muito tempo, foi considerado como algo natural atrelado as diferenças biológicas sexuais ligando o homem à força física e a mulher à sua capacidade de procriação16 - 20 . Baseada nessas diferenças biológicas, essa construção social é ensinada e aprendida, de forma “natural”, desde o início da vida e talvez até antes do nascimento21 . Embora a diferença entre homens e mulheres seja apenas uma condição anatômica, são as questões de gênero vigentes que distinguem o que é ser homem e o que é ser mulher hierarquizando as relações de poder22 .
Contudo, as relações de gênero não se encontram inscritas em uma matriz biológica17 . Tratam-se sim de jogos de verdade entre saber e poder, ou seja, algo é tomado como verdadeiro a partir de construções sócio histórica que as ditam como sendo verdades6 . A violência nas relações conjugais revela a dinâmica de afeto e poder e denuncia situações de subordinação e dominação17 - 20 . Esse desequilíbrio de poder nas relações conjugais confere ao homem a condição de opressor e à mulher de subordinada, acarretando em violência contra elas17 ; 19 - 20 .
A VDCM, parte do cotidiano das mulheres, se desenvolve de forma gradual iniciando com ações de controle do homem sobre a mulher, evoluindo para a imposição da obediência e submissão dela aos mandos dele17 . Por vezes a violência inicia com a expressão da modalidade psicológica atingindo a forma física16 - 21 . O início do desenvolvimento da VDCM perpetrada por parceiro íntimo ocorre de maneira sutil que, por vezes, torna-se de difícil identificação. Em determinadas situações a violência começa na fase de namoro onde ocorrem crises de ciúmes, controle, agressões verbais e pressão para manter relações sexuais e se intensificam após a entrada na vida conjugal22 . O ciúme e as ofensas verbais que diminuem a autoestima das mulheres, por vezes, são as primeiras manifestações. Entretanto, muitas mulheres desconhecem as demais formas de violência somente identificando a física18 .
Por não deixar danos físicos, muitas vezes, a violência psicológica não é percebida como agressão, permanecendo invisível. Entretanto, inúmeras mulheres que a vivenciam a consideram como sendo a mais difícil de suportar apesar de demorarem anos para reconhecê-la como uma das expressões da violência22 . Infere-se que a violência psicológica pode se apresentar de forma mais sutil, mas tão graves quanto as outras formas de violência.
Para que a violência física ocorra é quase um pré-requisito que a psicológica/moral já esteja presente, desestruturando a relação conjugal de forma, muitas vezes, devastadora danificando a saúde mental das mulheres23 . Apesar dos episódios violentos, muitas mulheres não cogitam a possibilidade de separação sendo apenas considerada por algumas quando a vida de seus filhos está em jogo. Essa situação revela que as mulheres desconsideram que a gravidade da violência exercida contra elas é tão importante quanto a desferida contra sua prole18 . Entretanto, um fato que pode fazer com que busquem ajuda qualificada é quando sofrem uma violência severa ou quando a ameaça as suas vidas é iminente17 .
A falta de apoio familiar ou do aparato policial obriga as mulheres as suportarem as agressões como se fosse destino de gênero. Essa situação condena e aprisiona-as a uma identidade socialmente designada, de mulher submissa e obediente17 . Algumas mulheres reconhecem que sempre estiveram submetidas aos mandos de algum homem como se fosse algo natural. Primeiramente, era o pai que mandava nas filhas, depois maridos nas mulheres7 .
Muitas mulheres não denunciam seus agressores devido ao medo, vergonha, situação financeira, dependência emocional e afetiva, papéis sociais assumidos, constrangimento de ter sua vida exposta, dentre outros18 . A falta de um lugar seguro para ficar e o sentimento de impunidade também impedem a denúncia. O medo aterroriza a vida das mulheres que sofrem violência pelo medo do marido, de perder os filhos, a casa, a família, ou ainda da estigmatização social24 .
Em determinadas situações, as mulheres buscam ajuda de pessoas mais próximas, em geral familiares e amigos. Contudo, devido as questões socioculturais e de gênero alicerçados em modelos tradicionais, algumas pessoas não ajudam para não se expor ou para não criar atritos com o agressor reforçando a ideia de papéis sociais e subordinação do feminino ao masculino17 .
Esse exercício de poder, de uns sobre os outros, produz assujeitamentos, sendo capaz de gerar também a necessidade de luta e resistência levando a elaboração de estratégias com o intuito de reverter esse jogo de opressão. Segundo o pensamento foucaultiano, o exercício de poder é constitutivo das relações humanas6 .
Dentre as incumbências sociais inerentes aos papeis atrelados ao sexo feminino está a manutenção das relações matrimoniais. O casamento, evento social e religioso, contribui para a crença de que a mulher é propriedade do marido podendo tratá-la como achar adequado18 . Esta situação pode ser fruto também das expectativas das mulheres em relação ao casamento, uma vez que ao atribuírem grande importância ao matrimônio se sentem obrigadas a manter esse compromisso, além de considerarem a união como uma parceria que garante a condição de vida, sua e de seus filhos. A ideia de que o casamento é indissolúvel e que deve ser mantido de qualquer forma ainda é muito resistente17 .
Desde a entrada até a saída de relacionamentos permeados pela violência as mulheres percorrem quatro fases sequenciais. A primeira fase é constituída pela triste dualidade entre amor e violência. Nela, a mulher idealiza a relação íntima enraizada no amor, porém a violência presenteia-a com a desilusão. Contudo, a esperança e desejo de mudança de comportamento do parceiro ainda é forte impedindo-a de detectar o início dessa fase que pode demorar anos22 . Quando a mulher, finalmente, identifica a presença de violência na sua relação conjugal inicia-se a segunda fase. Nela, a mulher não assume, frente aos outros, o que está vivenciando e cala-se, muitas vezes por medo ou vergonha. Infeliz e insatisfeita, começa a se questionar sobre a continuidade na relação decidindo, então, pôr um fim no relacionamento. A terceira fase é composta por um processo denominado de separação emocional e física, momento este que a mulher avalia a condição e as possibilidades de sair de casa22 . Na quarta e última fase, de (re)equilíbrio, a mulher busca se adaptar à nova vida se (re)inventando, (re)construindo uma nova identidade. Considerada uma etapa difícil, muitas vezes é superada a partir das experiências de autonomia aumentando a autoconfiança das mulheres auxiliando-as a resgatar a identidade que um dia fora perdida. Cada tomada de decisão, cada sucesso, cada conquista fortalecem as mulheres para que sigam firmes e fortes em sua decisão, em sua nova jornada22 .
Por vezes, esse longo e sofrido processo de transição é permeado por questões de gênero que sustentaram desigualdades, dificultando sua progressão e saída da situação violenta. É uma luta não só contra o agressor, mas a todo um constructo sociocultural patriarcal. Isso exige que a mulher tenha muita força, coragem e autodeterminação para resistir e (re)iniciar uma nova etapa de sua vida22 .
A autonomia, o empoderamento e a liberdade podem constituírem-se em metas a serem alcançadas, sendo a própria mulher a protagonista principal nessa mudança e no alcance desses objetivos transformando sua realidade e tornando-se dona da sua própria vida25 . Toda mulher é passiva de mudanças e não necessita reviver amargamente personagens e identidades que lhes causam sofrimentos. Elas podem e devem buscar por sua emancipação18 .
Dentre as consequências que a VDCM acarreta na vida das mulheres estão a depressão, o absenteísmo ao trabalho, ansiedade, ideação suicida, insegurança, crises nervosas, perda de apetite, dificuldades com novos relacionamentos, sono prejudicado, cefaleia, problemas na coluna cervical, náuseas frequentes, tonturas, picos hipertensivos, insatisfação com a vida, com o corpo e com a vida sexual15 ; 17 . A depressão vivenciada por mulheres em situação de violência pode ser fruto de uma sociedade machista cujo poder androcentrista é legitimado e visto como algo natural16 .
Para alguns autores o sofrimento é mais acentuado no campo mental do que no físico acarretando em danos mais intensos à mulher uma vez que ocasiona a degradação psicológica25 . No que concerne à saúde mental, as lembranças de uma vida marcada por violência física, adoções, separações de suas famílias de origem, abusos sexuais na infância, fome, trabalho infantil, abandono, levou algumas mulheres a condição de risco e vulnerabilidade à VDCM e desenvolvimento de depressão na vida adulta24 . Por vezes é necessário encaminhá-la a um setor de psicologia. Em algumas situações existe a necessidade de encaminhar a mulher ao serviço de assistência social para atender suas necessidades de benefícios que auxiliem a melhorar sua qualidade de vida. A complexidade do problema exige uma prática assistencial multiprofissional de saúde e intersetorial17 .
Uma situação que gera a invisibilidade da violência nos serviços de saúde é o não relato espontâneo das mulheres acerca do vivido. Por vezes elas não expõe a situação e os(as) enfermeiros(as) não questionam19 . Identificar a VDCM nos serviços de saúde exige a implementação de outras formas de intervenção direcionadas àquilo que não é meramente patológico. Entretanto, os cuidados que alguns profissionais desenvolvem não direcionam-se somente ao tratamento das lesões físicas, eles trabalham com a escuta, orientação à denúncia e encaminhamento a setores especializados de saúde e assistência social17 .
Porém, essa escuta não deve ser paliativa26 . Este é um momento em que a mulher desabafa e alivia seu sofrimento19 . Por isso não basta o profissional simplesmente ouvir a mulher e encaminhá-la para outro serviço. Ele deve construir, junto com ela, um projeto de enfrentamento à violência para que a mulher possa resolver essa problemática em sua vida, transformando o padrão de relacionamento familiar17 .
Uma das dificuldades dos profissionais que atendem mulheres em situação de violência é a inexistência de protocolos de atendimento e fluxo de encaminhamentos a outros serviços especializados, devendo atender de forma empírica. Por vezes as ações desenvolvidas ficam apenas no âmbito da unidade de saúde que acolheu essas mulheres17 . Os protocolos servem para nortear as ações dos profissionais de modo a tornar sua assistência mais efetiva e voltada para as reais necessidades das mulheres. Constituem-se em ferramentas potentes para guiar as práticas e dar maior segurança a eles17 . A inexistência de serviços articulados em rede contribui para a invisibilidade da VDCM, dificulta a realização de encaminhamentos necessários bem como o acompanhamento das mulheres em outros serviços. A incerteza da continuidade do atendimento às mulheres que sofrem violência causa sentimento de impotência e insegurança nos profissionais da enfermagem17 ; 19 .
É dever do profissional identificar situações de VDCM e oferecer suporte para a reabilitação da mulher visto que os serviços de saúde, muitas vezes, são os primeiros locais procurados pelas mulheres que sofreram violência20 . Sendo assim, dentre os atributos dos(as) enfermeiros(as) está o empoderamento das mulheres para que estas possam se fortalecer e transformar suas realidades. Para tal é necessário desnaturalizar as desigualdades de gênero não somente junto às mulheres, mas incluir os profissionais que as atendem19 .
A qualificação dos profissionais que atuam diretamente no atendimento a mulheres em situação de violência pode contribuir para a melhoria das práticas assistenciais, subsidiando suas ações17 ; 19 - 20 .
A enfermagem é uma profissão que diariamente luta pelos direitos humanos e pela diminuição das desigualdades. Nesse sentido, os(as) enfermeiros(as) não devem atuar somente como intervencionistas nos agravos físicos, mas como agentes promotores da saúde19 .
CONCLUSÕES
Corrobora-se com a literatura existente de que a VDCM constitui um grave problema social e de saúde pública arraigado no constructo de papéis sociais do ser homem e ser mulher. De magnitude mundial, constitui-se em uma violação dos direitos humanos com graves repercussões à saúde e qualidade de vida das mulheres.
Inúmeros são os determinantes sociais que podem contribuir para a ocorrência da VDCM. Contudo, ela está presente em diferentes contextos não discriminando questões socioculturais encarcerando as mulheres a uma figura construída socioculturalmente acerca do feminino. Romper com as situações de violência requer força e coragem uma vez que vai de encontro a toda uma sociedade patriarcalista centrada no andorcentrismo e na falocracia. O apoio que a mulher necessita para abdicar de uma vida de violência nem sempre é fornecido pela rede sócio humana constituída por familiares, amigos e parentes levando-a a procurar os serviços de saúde a fim de conseguir o apoio necessário.
Os profissionais que trabalham nas instituições de saúde atuam na linha de frente no enfrentamento da violência. Em geral são os primeiros a prestar cuidados as mulheres que sofrem violência doméstica. É neste momento que os enfermeiros(as), devem acolher a mulher que busca ajuda em função da violência sofrida, ouvir com atenção suas queixas e desabafos sem julgar, respeitando-a, garantindo sua privacidade e realizando os cuidados clínicos e não clínicos.
A formação profissional, o assistencialismo centrado no modelo biologicista, o número reduzido de profissionais da saúde, a falta de qualificação profissional e de equipe multidisciplinar, entre outros. não podem atuar como barreira ao atendimento de qualidade a essas mulheres. Ressalta-se, aqui, que a abordagem de cunho biologicista ou medicalizante que emergiu nos resultados é oriundo tanto da estrutura curricular dos cursos da saúde que discutem de forma sucinta o tema da violência contra as mulheres nas formações, como da escassez de treinamentos e capacitações para que as equipes de saúde possam atuar junto às mulheres em situação de violência. Contudo, a enfermagem, cotidianamente, busca defender os direitos humanos bem como prestar um atendimento pautados nos princípios do SUS (Sistema Único de Saúde), de universalidade, integralidade e equidade e por isso deve-o garantir às mulheres que sofrem violência.
A VDCM merece ainda muita atenção dos pesquisadores em virtude de seus altos índices de ocorrência, das graves consequências que pode acarretar para a vida e saúde das mulher que a vivenciam bem como das distorções que pode acarretar na identidade delas. Os objetivos propostos para este estudo foram contemplados, uma vez que foi constatado que o conhecimento produzido acerca das relações de poder presentes nas situações de violência doméstica contra a mulher é diminuto. Apesar da relevância do tema, apenas sete trabalhos foram encontrados. Isso revela que o exercício do poder nas relações de conjugalidade é pouco estudado exigindo que outros estudos sejam realizados com este foco.
A contribuição do presente estudo para a enfermagem relaciona-se com o aprofundamento do tema estudado bem como o desvelamento da necessidade de outros estudos que considerem as relações de poder no que concerne à violência doméstica contra a mulher. Sabe-se que esta é uma triste realidade mundial e que para empenhar forças a fim de erradicá-la urge trabalhar as questões de gênero para que as relações de poder sejam transformadas.