INTRODUÇÃO
Enraizada e capilarizada nos diversos setores sociais do mundo contemporâneo, a violência configura um fenômeno histórico e complexo, que acompanha a civilização humana desde os primeiros movimentos de sua construção1 . Com origens e mecanismos de ação variados, impacta de modo negativo no processo de viver dos indivíduos e, comprometendo a dignidade humana, torna-se um problema de saúde pública1 , 2 .
A violência pode ser compreendida como qualquer ato que resulte em lesão, morte, dano psicológico, privação de desenvolvimento ou limitação e que seja originário do uso intencional de força ou poder contra si ou outro indivíduo2 . A natureza dos atos pode estar relacionada a diversos fatores, como a cultura, o gênero, a etnia, o nível sócio econômico; e os resultados são distintos, a depender de quem praticou, como o fez e do ambiente social no qual os envolvidos estão inseridos1 , 3 .
Diante da complexidade do fenômeno e das repercussões geradas por ele, a violência é assunto de ampla discussão em diversos campos do saber. Não por coincidência, é possível encontrar uma parcela considerável de autores, majoritariamente vinculados às instituições de ensino superior, que dedicam/dedicaram sua trajetória profissional à investigação deste fenômeno. As preocupações sobre a violência sempre permearam o meio universitário, com especial expansão a partir de 19904 , pois as instituições de ensino superior têm papel importante na sociedade: o de constituir um local fértil para a educação, a socialização e a formação profissional, a partir de aprendizagem calcada em processos éticos e politicamente comprometidos com o bem comum5 , 6 .
Contudo, assim como em outros ambientes da sociedade, as instituições de ensino superior representam um local no qual a violência se faz presente cotidianamente. Neste âmbito, os atos violentos englobam um contingente de ações que vai desde a violência não-física, como o assédio moral, os trotes acadêmicos violentos, a incivilidade, o desrespeito, até investidas de agressão física e estupro7 , 8 .
Resultados de estudos apresentam elementos para compreender com maior propriedade esse fenômeno no meio acadêmico, principalmente durante o período da graduação. Os estudantes de graduação se constituem em um grupo vulnerável, devido às mudanças de vida que ocorrem neste período, caracterizado por transições diversas, como o início de uma vida com maior independência, os desafios de estar longe da família e as adversidades do próprio meio acadêmico9 - 11 . Não obstante, alguns cursos de graduação possuem características específicas que acentuam esse grau de vulnerabilidade, como é o caso da graduação em enfermagem, considerando o fato de a formação ocorrer em âmbito relacional, com outros seres humanos, a partir do desenvolvimento teórico e prático de habilidades e competências. Soma-se a isso as questões relacionadas ao gênero, o baixo status social e as complicadas condições de trabalho da profissão, o que pode gerar grande competitividade e, consequentemente, elevar o nível de estresse e de manifestações de violência entre os estudantes de enfermagem12 , 13 .
Partindo-se do pressuposto de que a violência pode influenciar de modo negativo na formação de futuros enfermeiros/enfermeiras e pela necessidade de investigações para compreender o fenômeno neste âmbito, questiona-se: como o fenômeno da violência se apresenta na graduação em enfermagem e quais as possíveis implicações para a formação dos estudantes? Por meio de investigação na literatura, este estudo objetiva identificar como a violência se apresenta na graduação em enfermagem e as possíveis implicações para a formação dos estudantes.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de uma Revisão Integrativa (RI), a qual busca contribuir para compreender o contexto que envolve o fenômeno da violência no âmbito da graduação em enfermagem. A escolha do tema ocorreu em virtude da relevância do fenômeno nas relações sociais do mundo contemporâneo e devido às implicações que ele pode gerar na prática profissional dos futuros enfermeiros.
Um protocolo de revisão, composto por aspectos como relevância do objeto de pesquisa, assertividade do método, pertinência do período, idiomas e estratégias de busca dos artigos, foi produzido e submetido à análise por duas pesquisadoras com expertise nas temáticas de violência e de educação em saúde e em enfermagem. Mediante a aprovação, o estudo foi conduzido a partir do estabelecimento da questão de pesquisa, da busca dos estudos na literatura, da categorização dos estudos, da avaliação dos estudos incluídos na revisão, da interpretação dos resultados e da síntese do conhecimento14 . Para a confecção da questão de pesquisa, utilizou-se a estratégia PICO, acrônimo para patient, intervention, comparison, outcomes 15 . Essa estratégia dá suporte à formulação da questão de pesquisa e na busca de evidências, as quais auxiliam na localização de estudos relevantes nas bases de dados. Assim, admitiu-se como primeiro elemento da estratégia (P) o estudante de enfermagem; como o segundo (I), seriam os interesses, ou seja, as violências identificadas; e como quarto/quinto elemento (Co) seria o contexto, as consequências e os enfrentamentos relacionados à violência, dando origem a questão: como a violência se apresenta na graduação em enfermagem e quais as possíveis implicações para a formação dos estudantes?
Os critérios de inclusão adotados foram artigos científicos disponíveis online , full text , escritos em português, espanhol ou inglês, que abordassem o fenômeno da violência na graduação em enfermagem, publicados no período de 2014 a 2018. Excluíram-se os artigos duplicados, revisões de literatura, teses, dissertações, monografias, livros, anais de congresso, editoriais e outras pesquisas cujo escopo não estivesse alinhado ao objetivo do estudo.
O período de busca compreendeu os meses de outubro e novembro de 2018. Utilizou-se a biblioteca SciELO®, as bases ERIC®, LILACS®, Web of Science ®, MEDLINE®, CINAHL®, Scopus® e o Google Acadêmico® como fonte de dados, consultados via Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A seleção da amostra foi realizada a partir da busca booleana por artigos com a conjugação e combinação dos seguintes termo controlados de busca, indexados nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS): violência AND enfermagem AND educação; violência AND enfermagem AND estudante; violence AND nursing AND education; violence AND nursing AND student; violência AND enfermeira AND educación; violência AND enfermeira AND estudiante. O percurso de busca e seleção dos artigos está ilustrado na Figura 1 .
Para a extração das informações foi construído um instrumento próprio, contemplando: identificação do manuscrito, base de dados, periódico, ano de publicação, autores, título, país de origem, palavras-chave, objetivo principal, desenho metodológico, principais resultados, considerações finais, natureza da violência abordada, contexto da graduação ao qual a violência estava relacionada, atores envolvidos com a violência e observações finais. O processo de extração de dados foi realizado por dois pesquisadores de modo independente. Os dados foram confrontados e, quando da existência de divergências na extração das informações de determinado artigo, realizou-se uma terceira análise do material, objetivando conferir maior fidedignidade às informações.
A análise dos dados ocorreu por meio da síntese das informações dos artigos, que foram classificadas por critério de similaridade e agrupadas de acordo com a abordagem da temática. Emergiram três tópicos de discussão: compreensão e natureza da violência, espaços nos quais a violência ocorre e principais perpetradores, e consequências geradas pela violência e movimentos de enfrentamento do fenômeno, os quais evidenciam aspectos da violência e sua relação com a graduação em enfermagem, em âmbito nacional de internacional.
RESULTADOS
Caracterização dos estudos e dos autores
Foram analisados 21 estudos, dentre os quais 47,61% (10) possuem abordagem quantitativa, 47,61% (10) utilizam delineamento qualitativo e 4,76% (1) são pesquisas de delineamento misto. No Tabela 1 observa-se com maior riqueza de detalhes a codificação criada para cada trabalho, título, ano, país de origem e método apresentado.
ID | Título | Ano | País | Método |
---|---|---|---|---|
A1 | Vivências de violência no processo de formação em enfermagem: repercussões na corporeidade dos jovens16 | 2018 | Brasil | Qualitativo |
A2 | Violência no contexto de jovens universitários de enfermagem: repercussões na perspectiva da vulnerabilidade17 | 2018 | Brasil | Qualitativo |
A3 | Estudantes de enfermagem diante do sofrimento moral: estratégias de resistência18 | 2018 | Brasil | Qualitativo |
A4 | Vivências dos acadêmicos de enfermagem diante das ocorrências de assédio moral19 | 2017 | Brasil | Qualitativo |
A5 | Workplace violence experienced by nursing students: a UK survey20 | 2016 | Reino Unido | Quantitativo |
A6 | Seeing students squirm: nursing students' experiences of bullying behaviors during clinical rotations21 | 2016 | USA | Qualitativo |
A7 | Student nurses' perception of agression: An exploratory study of defensive styles, agression experiences, and demographic factors22 | 2016 | Turquia | Quantitativo |
A8 | Manifestação da violência no ambiente universitário: o olhar de acadêmicos de enfermagem23 | 2015 | Brasil | Qualitativo |
A9 | Midwifery student exposure to workplace violence in clinical settings: an exploratory study24 | 2015 | Austrália | Quantitativo |
A10 | Factors affecting nursing students' incivility: As perceived by students and faculty staff25 | 2015 | Egito | Quantitativo |
A11 | Bullying Behaviors and Self Efficacy among Nursing Students at Clinical Settings: Comparative Study26 | 2015 | Egito | Quantitativo |
A12 | Incivility as Bullying in Nursing Education27 | 2015 | USA | Reflexão teórica |
A13 | Australian nursing students' experience of bullying and/or harassment during clinical placement28 | 2015 | Austrália | Quantitativo |
A14 | Learning challenges of nursing students in clinical environments: a qualitative study in Iran29 | 2015 | Irã | Qualitativo |
A15 | Pre-registration nursing students' perceptions and experiences of violence in a nursing education institution in South Africa30 | 2014 | África do Sul | Quantitativo e qualitativo |
A16 | Application of an empowerment model to improve civility in nursing education31 | 2014 | USA | Reflexão teórica |
A17 | A study of incivility in the Iranian Nursing Training System based on educators and students' experiences: a quantitative content analysis32 | 2014 | Irã | Quantitativo |
A18 | Community of practice in healthcare: an investigation on nursing students' perceived respect33 | 2014 | Itália | Quantitativo |
A19 | Prevalence and characteristics of aggression and violence experienced by Western Australian nursing students during clinical practice34 | 2014 | Austrália | Quantitativo |
A20 | Application of the Symphonological Approach to Faculty-to-Faculty in Nursing Education35 | 2014 | USA | Reflexão teórica |
A21 | Effects of Incivility in Clinical Settings on Nursing Student Burnout36 | 2014 | Canadá | Quantitativo |
Com relação ao local de publicação, 76,19% (16) artigos foram publicados em periódicos internacionais e 23,80% (5) foram publicados em periódicos brasileiros. No que diz respeito às autorias, todos os autores principais estão vinculados a instituições de ensino superior, sendo que em 95,23% dos artigos há menção de que os autores pertencem ao corpo docente de graduação em enfermagem da respectiva instituição. Além disso, uma pesquisadora é autora principal em dois estudos.
Compreensão e natureza da violência
Os estudos indicam que estudantes, professores, instrutores e demais agentes no âmbito da graduação em enfermagem compreendem a violência como uma série de atos ou de situações capazes de interferir negativamente no modo de pensar e agir de um indivíduo ou de uma comunidade. Além disso, entendem que se trata de um fenômeno constante e acreditam na existência de um processo de banalização dos atos violentos em diversos setores sociais16 , 17 , 22 , 32 .
Os estudos indicam a incivilidade como o princípio dos atos violentos, pois, quando se assume tal comportamento, os indivíduos produzem uma comunicação pautada pela falta de respeito, agressividade, grosseria e rudez. A incivilidade é capaz de gerar situações danosas para os indivíduos, tendo em vista que, geralmente, não ocorre de modo isolado, tornando-se uma ação frequente e culminando em desgaste físico e emocional25 , 32 , 36 . Esse comportamento decorre de fatores como preconceito, principalmente de ordem sexual, religiosa e racial, distintas posições hierárquicas, falta de preparo dos professores para atuar com as demandas da carreira docente, desinteresse e apatia dos estudantes e busca desenfreada pela excelência acadêmica, todos estes contribuindo para a constituição de processos de violência17 , 30 , 32 , 36 .
As violências de ordem psicológica são as que mais afetam os estudantes de graduação em enfermagem. Nota-se que a ocorrência de assédio moral é comum na graduação, sendo representada por atitudes de descrédito ao conhecimento do estudante, principalmente no contexto clínico, brincadeiras de mau gosto, impedimento de expressar as opiniões, utilização de tom de voz aumentado para corrigir os estudantes e bullying18 , 19 .
Especificamente sobre o bullying , estudos indicam que os estudantes vivenciam com frequência situações de isolamento em função de cor, raça ou etnia, são ignorados e humilhados, têm notas ruins como uma punição, são intimidados, não se sentem bem vindos na classe ou nos serviços de saúde e não são tratados como parte importante da equipe de saúde. Além disso, observa-se que os estudantes compreendem como uma prática de bullying quando têm negada a oportunidade de aprender21, 26 , 28 .
Ainda no campo da violência psicológica, importa destacar a presença de assédio moral e bullying no contexto docente. Os dados indicam a existência de relações interpessoais complexas, devido às questões profissionais e pessoais, capazes de gerar desrespeito e desvalorização entre os professores. Exemplos de situações geradoras de bullying são as discussões com tom de voz alterado, risadas com o intuito de deboche, tentativa de criar dúvidas sobre a capacidade profissional do outro, perseguição e competitividade acadêmica demasiada27 .
Com relação à violência física, aparece com menor frequência nos resultados dos estudos, ocorrendo, em grande parte, no campo de aprendizagem prático. Alguns estudantes vivenciam situações de agarramentos, empurrões, mordidas, tentativas de soco, socos, tapas e chutes durante a prática clínica20 , 24 , 30 , 34 .
Com relação à violência sexual, as características dos atos estão relacionadas à perseguição do estudante pelo assediador e aos comentários com intenção sexual, em ambiente privado e público, aos gestos sugestivos de convite sexual, ao toque corporal de forma inadequada, ao pedido indesejado de contato físico íntimo e a ameaça com agressão verbal24 , 28 . Assim como a violência física, aparecem com menor frequência do que a violência psicológica.
Além dos atos citados, outras ações e situações podem configurar atos de violência, neste caso, não estão relacionadas a danos físicos ou psicológicos, mas ao fato de ter uma oportunidade de aprendizagem negada ou negligenciada. Exemplos disso são: processo de avaliação distorcido, ambiente de aprendizagem que não oferece suporte ao estudante, tradicionalismo da prática clínica, lacuna de acesso às experiências diretas de aprendizagem e competência insuficiente dos instrutores/professores29 .
Espaços nos quais a violência ocorre e principais perpetradores
A violência não está presente em um único momento da graduação, bem como não possui agente causador específico. Os atos de violência ocorrem no contexto teórico e prático de aprendizagem, e os indivíduos presentes no meio ora padecem em decorrência dos atos, ora são os próprios perpetradores.
No âmbito teórico, a violência psicológica, natureza de maior frequência, se expressa a partir da rigidez nas relações hierárquicas entre professores e estudantes, principalmente pela utilização das notas e da reprovação como um meio de controle dos acadêmicos, da negligência no ensino e da falta de paciência na abordagem dos conteúdos. Além disso, existe a violência horizontal, que ocorre em virtude da demasiada disputa pela excelência acadêmica e devido ao desrespeito às características individuais de cada pessoa16 , 17 , 34 .
A violência psicológica também é a de maior prevalência nos campos práticos, com características semelhantes àquelas existentes nas aulas teóricas. No entanto, nestes ambientes, os estudantes estão mais vulneráveis a vivenciar violências na presença dos pacientes e familiares, como enfrentamentos, xingamentos, desmoralização, negligência, ridicularização, dentre outros. Com relação à violência física, alguns estudos20 , 34 indicam relatos, contudo, com menor frequência.
No que diz respeito à violência sexual, observa-se equivalência nos contextos teórico e prático. Essa natureza da violência parece afetar mais as pessoas que se identificam como mulheres do que aquelas que se identificam como homens. Apesar disso, importa ressaltar que as implicações decorrentes da violência sexual, apesar do baixo número de eventos, são de tamanha intensidade que podem resultar no afastamento definitivo do estudante do meio acadêmico. Os principais perpetradores são membros da equipe de saúde do sexo masculino, principalmente médicos e pacientes20 , 24 , 27 , 28 .
A respeito dos perpetradores, as informações evidenciam a não existência de grupos que sejam apenas autores ou apenas vítimas dos atos violentos, pois, a depender do contexto e das circunstâncias, um indivíduo pode assumir ambas posições. Os estudos apontam os estudantes, professores e enfermeiros dos serviços como os principais perpetradores da violência, aparecendo também trabalhadores de outras categorias profissionais, em especial os médicos, como potenciais agressores dos estudantes de enfermagem. Com menor frequência, os estudos também revelam pacientes e familiares como agentes que praticam violência16 , 20 , 22 - 24 , 26 , 34 . No âmbito docente, as situações de violência geralmente ocorrem durante os encontros e reuniões de departamento, pois são momentos de tomadas de decisões acerca de diversos assuntos, o que pode estimular a competitividade entre os educadores27 .
Além disso, um estudo identificou relação direta entre o abuso de álcool e outras substâncias e a frequência dos atos violentos na graduação, neste caso, com maior frequência de violência de estudante para estudante30 .
Consequências geradas pela violência e movimentos de enfrentamento do fenômeno
As repercussões das violências vivenciadas pelos estudantes envolvem tristeza, nervosismo, desmotivação, vontade de desistir do curso, absenteísmo, dificuldade de comunicação, diminuição da produtividade, ansiedade, depressão, obesidade e isolamento. Além disso, a violência interfere significativamente na corporeidade dos jovens, pois ela cala o estudante, impede a manifestação e limita o jovem, dificultando sua própria identificação no meio social e acadêmico e, consequentemente, produz danos psicológicos16 , 19 ,21, 23 , 24 , 28 , 34 .
No contingente de impactos psicológicos está incluso também a Síndrome de Burnout , condição de exaustão extrema causada pelo acúmulo excessivo de situações de estresse. Um estudo confirmou a relação entre incivilidade e o desenvolvimento de Burnout nos estudantes, principalmente com relação aos atos incivis produzidos pelos enfermeiros e demais trabalhadores no contexto prático de aprendizagem36 .
Ainda com relação às consequências dos atos violentos, nota-se que alguns estudantes procuram vislumbrar na violência algum resquício de aprendizagem, pois acreditam que essa experiência pode auxiliar no desenvolvimento de empatia para com o outro, diminuindo a chance de que no futuro reproduzam ações semelhantes17 . Por outro lado, estudo revela que os estudantes, por vezes, têm sentimentos que indicam o desejo de praticar violência como um modo de revidar o assédio moral vivenciado19 .
Os estudos indicam que o enfrentamento individual depende de fatores diversos, desde o autoconhecimento do educando até a sua compreensão do fenômeno e do contexto social no qual está inserido. Do mesmo modo, os resultados exprimem que ao não aceitar as situações de violência e revidar o assédio moral, os estudantes parecem ser menos atingidos pelas repercussões da violência, contudo, sofrem mais punições de outras naturezas18 .
Como estratégias estruturais e coletivas para enfrentar a violência, aparece o uso de um modelo de empoderamento, baseado nos conceitos de comunicação, colegialidade, autonomia e na assunção das consequências de seus atos para si e para os demais envolvidos, que pode influenciar positivamente na promoção da civilidade na educação em enfermagem31 . Outra estratégia indicada é o incentivo às comunidades de prática no cuidado em saúde, baseadas no respeito mútuo, nas relações horizontais e no reconhecimento da importância da função de cada indivíduo33 . Há também um modelo teórico, em inglês Symphonological Approch , que fomenta a civilidade entre os docentes a partir dos conceitos de autonomia, liberdade, objetividade, beneficência e fidelidade35 .
DISCUSSÃO
A maioria das pesquisas foi realizada por integrantes do corpo docente das universidades. Isso indica a preocupação dos professores acerca do fenômeno da violência no contexto acadêmico, o que é importante para o aumento gradativo de dados capazes de fomentar e sustentar estratégias de enfrentamento do fenômeno, para o crescimento de investigações com este direcionamento, tendo em vista que em alguns países, como no Brasil, a violência é considerada uma prioridade de pesquisa37 . Além disso, importa destacar o predomínio de publicações em revistas específicas da área da enfermagem, demonstrando o interesse dos periódicos em pesquisas com este objeto de estudo.
Em relação à natureza da violência, nota-se que as denominações de violência adotadas pelos estudos convergem para conceitos universalmente aceitos, como a violência psicológica, violência física e violência sexual. Essas definições são assumidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde o ano de 2002, por meio da publicação do Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde2 , e exprimem um modo importante de identificar e caracterizar os atos de violência, buscando criar padrões de análise para estudos que investigam a temática.
Além destas três naturezas, a violência envolvendo a privação ou o abandono também integra as definições da OMS2 . Embora não tenha sido evidenciada com este termo específico pelos artigos, pode estar relacionada aos momentos nos quais os estudantes são negligenciados, têm suas experiências/vivências desconsideradas e/ou quando são privados de realizar atividades para as quais já estão capacitados, representando um contingente de atos encontrado frequentemente nos resultados dos estudos analisados.
Quanto aos espaços e períodos da graduação permeados pela violência, os estudos não descrevem se há mais episódios nos anos iniciais ou no final da graduação. Contudo, ao analisar os artigos, verifica-se uma maior tendência para ocorrência de violência nos contextos clínicos, durante as aulas práticas e estágios, podendo indicar um predomínio desses eventos nas fases finais da formação. Nesta direção, estudo realizado na Coreia do Sul38 demonstrou que os estudantes de enfermagem se sentem negligenciados e desrespeitados durante as aulas práticas e estágios, assim como, presenciam comportamentos hostis e de recusa por parte dos instrutores. Do mesmo modo, estudo realizado no Brasil evidenciou a presença de assédio moral em diferentes estágios da graduação, especialmente durante os componentes práticos realizados nos serviços de saúde39 .
As violências sofridas, tanto em âmbito teórico como na prática clínica, geram diversas repercussões na formação dos estudantes e, possivelmente, em sua futura prática profissional. Neste sentido, julga-se imprescindível observar o modus operandi dos movimentos educativos na graduação, pois, quando a violência se torna uma ação constante e banal, a prática educativa incorpora um caráter excludente e limitador, capaz de impedir os estudantes do protagonismo de seus próprios itinerários formativos, o que prejudica o aprendizado e configura uma condição nítida de opressão40 .
Da necessidade de enfrentamento destas situações, propostas interessantes podem ser observadas nos estudos analisados, como o incentivo ao empoderamento e a aplicação de modelos teóricos que estimulem a civilidade. Além dessas, outras estratégias podem ser encontradas na literatura, como a introdução de componentes curriculares específicos sobre violência41 , elaboração de módulos de aprendizagem online que abordem o tema42 e a utilização de simulação clínica para que os estudantes possam identificar o ato de violência de modo mais fácil e executar as medidas cabíveis43 . Quando inseridas no contexto de aprendizagem, essas estratégias podem auxiliar na diminuição da ocorrência e dos impactos dos atos agressivos na formação profissional dos estudantes.
Cumpre destacar, ainda, a ausência de discussão acerca da violência autodirigida, uma tipologia que também é adotada pela OMS, contudo, raramente mencionada nos artigos analisados. Os principais atos que refletem este perfil da violência são a autoagressão, principalmente as automutilações, e o comportamento suicida2 . Estudos44 , 45 indicam a existência de pensamento suicida e tentativa de suicídio entre jovens universitários, cuja ocorrência se dá em função de características individuais, da pressão gerada pela vida acadêmica e das particularidades do contexto social no qual os estudantes estão inseridos. Neste sentido, considera-se importante investigar se essa forma da violência também se faz presente na graduação em enfermagem.
No que diz respeito aos limites desta revisão de literatura, acredita-se que escassez de investigações recentes sobre a violência, especificamente no processo de aprendizagem no contexto da graduação em enfermagem, se mostrou como um desafio e restringiu, em certa medida, a investigação sobre o tema. Tal realidade demonstra a necessidade de elevar o número de investigações científicas com este objeto de estudo.
CONCLUSÕES
A educação em enfermagem é permeada pelo fenômeno da violência de diversas formas. As violências de ordem psicológica são as mais frequentes no decorrer do percurso formativo, com destaque para a incivilidade, a agressão verbal e o bullying . Não obstante, os atos de violência física e sexual também afetam os estudantes, ocorrendo com menor frequência, entretanto, gerando repercussões mais intensas.
Considera-se que não há um período na graduação no qual a violência seja mais constante, pois existe equivalência dos atos nos contextos teórico e prático. No entanto, observa-se que as violências de natureza física e sexual são mais comuns durante a prática clínica, o que pode indicar que estejam mais presentes nas fases finais do curso.
Os estudos demonstram estratégias interessantes de enfrentamento, aplicadas com o objetivo de diminuir a ocorrência de atos agressivos ou de amenizar as repercussões causadas por eles. Neste sentido, reitera-se a importância destes movimentos e a urgência em olhar para a violência a partir de uma perspectiva pautada pela contraposição aos atos, em virtude de produzirem fragilidades na formação e implicar sentimentos de desvalorização, ansiedade, baixa autoestima e intenção de abandono do curso em alguns estudantes.
Os resultados descritos nesta revisão poderão auxiliar estudantes, docentes, profissionais dos serviços e quem mais estiver envolvido nos cenários educativos da enfermagem, a compreender que se trata de uma temática com necessidade de abordagem nos componentes curriculares e de ampliação da discussão no contexto da vida acadêmica nas instituições de ensino superior. Do mesmo modo, ao observar a frequência e amplitude dos atos, as pessoas podem ser sensibilizadas e estimuladas a refletir sobre possibilidades e estratégias de ação conjunta para o enfrentamento da violência.