Estimada Editora,
O contexto rural é um cenário marcado por especificidades próprias, inerentes aos modos de viver e de produzir de seus povos. Historicamente, são cenários marcados por embates populares, disparidades sociais e iniquidades em saúde. A população que re(existe) nessas localidades enfrenta, cotidianamente, vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas.
Na atual emergência de saúde pública ocasionada pelo SARS-CoV-2, causador da COVID-19, doença viral aguda com alto poder de disseminação e com repercussão em diversas realidades globais1 , deparamo-nos com a seguinte inquietação: os sistemas de saúde, que em muitas realidades já enfrentam um colapso sistemático, conseguirão absorver as demandas de saúde de populações rurais e remotas provocadas pela COVID-19?
Perante às incertezas provocadas por esse questionamento, há de se destacar que a saúde rural já enfrenta um déficit na existência de profissionais de saúde disponíveis, dificuldades de locomoção para a busca de serviços de saúde (grandes distâncias, ausência de transportes) e a própria incipiência desses serviços nas comunidades rurais já é uma realidade consolidada em muitos cenários2 , 3 .
A pandemia da COVID-19 agrava essas dificuldades, pois o isolamento social, necessário ao bloqueio da transmissão, implica em diminuição dos transportes já insuficientes para a locomoção da população para os serviços, bem como no deslocamento de profissionais de saúde, que, na maioria das vezes, transitam de outras localidades até a zona rural para atender à população.
Ademais, os serviços de atenção à saúde presentes nos contextos rurais são, majoritariamente, serviços de Atenção Primária à Saúde (APS). No entanto, a atual conjuntura tem enfatizado, recrutado esforços e colocado seu foco na Atenção Terciária.
São investimentos maciços em tecnologias como respiradores mecânicos e construção de hospitais de campanha localizados, em sua quase totalidade, em grandes centros urbanos. Apesar da necessidade existente e da importância inegável desses esforços, a APS, que poderia atuar com protagonismo na prevenção, educação sanitária da população e reabilitação dos indivíduos acometidos pela COVID-19, sobretudo em meio rural, em que representa o único serviço disponível na maioria dos cenários, não tem recebido a atenção merecida.
No entanto, os gestores responsáveis pela formulação das políticas públicas e elaboração de intervenções no sentido de frear o novo coronavírus parecem não se atentar para o óbvio: todo problema de saúde tem início, meio ou fim no território, área de atuação da APS.
Nessa perspectiva, é necessário dar voz a esse nível assistencial de saúde, cujo potencial de resolutividade das demandas de saúde pode chegar a 90%4 . Em meio rural, sobretudo, necessita-se fortalecer a APS, para que os problemas de saúde ocasionados pela COVID-19, que já se encontra presente em áreas rurais de diversos países5 , 6 , possam ser absorvidos e seu impacto seja atenuado.
A saúde rural é fonte fundamental de conhecimento para o desenvolvimento da APS, a qual é imprescindível para garantir o cuidado de saúde à população rural. A saúde praticada no contexto rural e rururbano possui o potencial de auxiliar na ampliação do conhecimento e desenvolvimento de tecnologias essenciais para o cuidado centrado nas necessidades de saúde, em uma concepção longitudinal e sistêmica, que valoriza a prevenção quaternária7 .
Assim, necessita-se da elaboração de políticas públicas que garantam a seguridade social do trabalhador rural, o que perpassa, além da garantia de apoio financeiro, por traçar estratégias que possibilitem seu acesso à saúde, como a otimização de vias de acesso e de transportes, aumento do número de profissionais de saúde disponíveis em áreas rurais e aumento dos turnos de trabalho ou adequação destes à dinamicidade da rotina da população (muitos serviços funcionam apenas em único turno).
Paralelamente a essas medidas, deve-se garantir o fortalecimento da APS, e sua integração com as outras modalidades assistenciais, para salvaguardar a integralidade no acesso da população rural. Ainda que a inquietação inicialmente indagada não possa ser facilmente respondida, acreditamos que a adoção dessas estratégias e o fortalecimento supramencionado podem constituir-se nos passos iniciais a serem trilhados para alcançar a equidade em saúde no caminho da roça, diante do atual contexto pandêmico.