Introdução
«Inquieto está o coração, enquanto não repousa em Ti»1. Ao ouvirmos palavras como estas, poderíamos supor que se trata do refrão da mais recente canção de amor romântico. No entanto, são os renomados versos da abertura de Confissões (397-401), conhecida obra escrita pelo teólogo e filósofo Agostinho de Hipona (354-430). Agostinho certamente não é um cantor ou compositor hodierno, mas um bispo norte-africano do quarto-quinto século vivendo no fim de uma era, diante do decadente Império Romano. Se para seus receptores ao longo dos séculos o corpus agostiniano é uma vasta obra de um dos teólogos mais influentes pensadores não só da história do cristianismo, mas da civilização ocidental, sua obra Confissões enfatiza a trajetória biográfica que culmina em sua conversão. Confissões nos contam, sobretudo, a história da busca do coração de Agostinho - certamente um relato conturbado, visto que seu percurso espiritual também reflete a pluralidade das turbulências de seu tempo. Entretanto, é significativo que em Confissões, Agostinho procure fomentar uma reflexão para além da sua própria narrativa individual. Ele não apenas descreve os desencontros de seu próprio coração, mas busca espelhar um relato que representa uma odisseia dos nossos corações humanos.
O coração em chamas, perfurado por uma flecha, tem sido desde o século XV um símbolo iconográfico de Agostinho e o emblema da sua Ordem (Figura 1).
Este símbolo é baseado em duas fórmulas extraídas da obra Confissões: «tu nos havias transpassado o coração com as flechas do teu amor, e trazíamos tuas palavras dentro das nossas entranhas»2 e «tocaste-me o coração com a tua palavra, e comecei a amar-te»3.
Essas duas citações aludem ao fato de que, em sua busca pela verdadeira felicidade, o jovem Agostinho, posteriormente à sua exploração do maniqueísmo, do ceticismo e do neoplatonismo finalmente se reencontrou com a Bíblia. Através das palavras das Escrituras, Deus havia tocado Agostinho tão profundamente que sua flecha perfurou seu coração e a consequência foi sua conversão a um amor responsivo. Em um nível literal, em sua biografia, ele descreve que as palavras da Bíblia foram o catalisador de sua conversão, ou mais precisamente: o desfibrilador. Assim como o desfibrilador é um equipamento para estimular os batimentos cardíacos em situações de parada cardíaca ou arritmia, o contato com as Escrituras lhe deu a vida em meio a uma crise do coração. Instigado por um comando não identificado, «pegue e leia, pegue e leia», Agostinho abriu a Bíblia e leu Rom. 13.13-14. Ao reconhecer este chamado do apóstolo Paulo para conversão, «infundiu uma luz de segurança em meu coração, todas as trevas da dúvida desapareceram»4. Em um jardim em Milão, em agosto do ano 386, Agostinho se converteu ao cristianismo. As duas citações sobre o coração trespassado também têm um nível mais profundo, mais amplo que o evento do jardim milanês de 386: se refere à conversão do coração, que abrange a totalidade da vida e da pessoa de Agostinho.
O coração é um elemento central, tanto na experiência de vida pessoal de Agostinho quanto em seu pensamento. O uso da palavra latina cor, ou coração, pode, por exemplo, ser contado mais de 8000 vezes em sua obra5. Neste artigo, exploraremos a doutrina agostiniana do coração em três movimentos. Primeiro, o convite agostiniano para um encontro com seu coração, sua câmara secreta. Emerge então a pergunta: como Agostinho concebe o coração humano e onde ele se encontra? Segundo, retorne ao seu coração: uma vez que tenhamos localizado o coração, nós paradoxalmente descobrimos que o abandonamos e que precisamos retornar a ele. Terceiro, ascende-se com seu coração: uma vez retornado ao coração, nos levantaremos com ele. Agostinho, como um cardiologista propondo um tratamento, parece nos prescrever um programa médico de cuidado intensivo. Uma importante fonte em que iremos observar os insights de Agostinho sobre o coração humano é em sua famosa obra Confissões6. Como epílogo de nossa exposição, vamos explorar de forma concisa dois contextos relacionados nos quais Agostinho usa a imagem do coração: vida comunitária e espiritualidade.
1. Primeiro Movimento: Encontre seu Coração, sua Câmara Secreta
Quando pensamos no símbolo do coração na atualidade, o associamos a um tipo de paixões fortes e emoções do tipo que se envolve em um dia das mães ou dos namorados. Esta associação tem um elemento afetivo, mas não tende a ser um alicerce fidedigno do fundamento para reflexão ou ações racionais. O filósofo francês Blaise Pascal expressou isso claramente: «o coração tem suas razões que a própria razão não conhece». Agostinho tem outra visão bem diferente da posição de Pascal. O bispo de Hipona vê o coração como o centro íntimo do ser humano, onde as potências e capacidades humanas estão concentradas7. Consequentemente, ele não distingue a «cabeça racional» do «coração emocional». Para Agostinho, o coração é a sede da razão8 e a sede da vida emocional do homem9. É por isso que Phillipe de Champaigne pintou a Deus, Escritura, Verdade, que inflamou a cabeça e o coração de Agostinho (Figura 2). Duas questões se apresentam: a primeira é onde podemos encontrar este coração e, a segunda, qual é o seu fundamento.
1.1 Interioridade
Em relação ao tempo que vivia, Agostinho era notavelmente bem informado sobre a anatomia e a medicina humana10. Apesar desse interesse sobre medicina, Agostinho raramente se refere ao coração como órgão físico. Ele logo entende cor como referindo-se a uma dimensão espiritual. O coração, para Agostinho, denota o centro da personalidade e a identidade de todo ser humano. A identidade representa aqui a entidade específica de cada pessoa, uma totalidade de características que me tornam eu mesmo. Em Confissões, Agostinho descreve-o da seguinte forma: «meu coração ... onde eu sou o que (de fato) eu sou»11. Os seres humanos são quem são precisamente a partir do seu coração. O coração é o lugar da interioridade e do eu interior12. O coração é uma câmara secreta13, a morada interna, muito mais profunda que a área externa14.
Durante seus estudos, Agostinho se familiarizou com a psicologia clássica, que era atenta ao simbolismo do coração. A antiguidade clássica considerava o coração como o centro vivificante da pessoa humana. É a fonte do calor, da vida e da consciência. O coração é o símbolo do eu interior, em particular dos desejos e pensamentos mais secretos desta vida interior. Através da leitura dos escritos de filósofos neoplatônicos, Agostinho chegou a novas formulações. Ele escreve:
Instigado por esses escritos a retornar a mim mesmo, entrei no íntimo do meu coração sob tua guia, e o consegui, porque tu te fizeste meu auxílio. Entrei e, com os olhos da alma, acima destes meus olhos e acima de minha própria inteligência, vi uma luz imutável. Não era essa luz vulgar e evidente a todos com os olhos da carne, ou uma luz mais forte do mesmo gênero. Era como se brilhasse muito mais clara e tudo abrangesse com sua grandeza15.
O coração é, portanto, o centro íntimo do ser humano, o lugar onde as capacidades humanas estão concentradas16. Isso é ilustrado pelo fato de que, para Agostinho, o coração tinha boca, olhos, orelhas e mãos. O coração, portanto, possui sentidos. Esses sentidos do coração estão relacionados com a experiência de Deus. Em Confissões, Agostinho fala dos sentidos espirituais do coração:
Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz17.
1.2 Imagem de Deus
Qual a essência do coração humano? Através da influência da Bíblia, Agostinho identifica o coração com o ser espiritual do homem, porque é o lugar onde Deus se revela, onde Deus é experimentado pelo homem18. Com base no relato da criação em Gênesis, Agostinho compreende a humanidade como criada à imagem de Deus. É no coração que os humanos repetidamente descobrem e redescobrem que são criados à imagem de Deus. No coração, os humanos são a imagem do Criador19. Os corações expressam a imagem de Deus no ser humano20. Considerando que Deus em sua sabedoria tenha moldado a identidade humana, moldado o coração humano, Agostinho expressa o seguinte: «Ele te é mais íntimo do que tu mesmo»21. Agostinho expressa da mesma forma: Deus interior intimo meo, superior summo meo22, «tu estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima. E eras superior a tudo o que eu tinha de mais elevado». Isso significa que dentro de si mesmo o coração é encontrado. Nas profundezas, somos quem realmente somos. É aqui, mas ainda mais profundamente, que Deus vive. O coração é, em outras palavras, a base para quem um ser humano é como pessoa. E Deus é o pilar para esse alicerce. Essa percepção agostiniana é expressa nesse medalhão de bronze: o jovem Agostinho descobre Deus em seu núcleo mais profundo, seu interior mais íntimo (Figura 3).
Já em suas primeiras meditações escritas, Soliloquios, reflexões feitas durante seu retiro em Cassicíaco após sua conversão e antes de seu batismo, Agostinho escreveu as palavras «Noverim me, noverim te»23, conhecer-me para que eu possa Te conhecer. «Permita-me conhecer-me, permita-me conhecer-te». Agostinho, em sua reflexão filosófica em Cassicíaco sobre sua decisão de se converter ao cristianismo, vai em busca de um ponto de referência em sua dúvida quanto ao objetivo e propósito de sua vida, em que sua própria razão o leva ao autoconhecimento e ao conhecimento de Deus como ponto de partida e alvo. O conhecimento de Deus está, em outras palavras, intrinsecamente ligado ao autoconhecimento. O conhecimento de Deus e o autoconhecimento implicam-se mutuamente. Os dois formam um círculo ininterrupto: se alguém quer vir a conhecer a Deus, deve alcançar um entendimento de si mesmo. Deus é encontrado de uma maneira verdadeira dentro de si mesmo. E se alguém quiser entender a si mesmo, tem que se colocar diante de Deus. Quem, ao contrário, não se encontrar, não encontrará Deus24. Tal pessoa se desconectou de si mesmo e, portanto, também abafou sua experiência de Deus.
Essa presença divina no núcleo mais profundo da vida humana é descrita por Agostinho por meio de várias imagens bíblicas. O coração é o campo que Deus visita e torna fecundo25. É o barco em que Jesus dorme26. É o templo de Deus27. O coração humano é a casa e a tenda de Deus - tabernacula Dei28. Se elevarmos nosso coração a Deus, então, para Deus, esse coração é um altar29 e um incensário30. No íntimo das profundezas de uma pessoa, no coração, Cristo também vive. Agostinho descreve em um de seus sermões sobre o Evangelho de João: «Retorne ao coração; veja aí talvez o que você pode sentir sobre Deus, porque é onde está a imagem de Deus. Cristo está morando no eu interior; no eu interior você está sendo renovado pela imagem de Deus; em sua imagem, conheça seu autor»31. Na ascensão, Cristo desapareceu diante dos nossos olhos - escreve Agostinho - para que pudéssemos retornar ao nosso coração e encontrá-lo lá32. Em nosso coração, descobrimos a verdade sobre quem somos. Nós somos a imagem de Deus. A consciência de ser uma imagem e um ser criado nos torna conscientes da existência da origem dessa imagem, de um Criador.
Em suma, o coração é o centro íntimo da personalidade humana, o princípio que une e ordena toda a existência humana, o ponto de encontro entre Deus e a humanidade. Essa percepção foi fundamental para os Soliloquios de Agostinho no tempo de sua conversão: o conhecimento de Deus e o conhecimento de si são idênticos, porque ambos dizem respeito ao conhecimento do próprio coração. O coração humano, o centro de toda pessoa onde o humano e o divino se encontram, é, desse modo, a interseção e a dobradiça desse conhecimento duplo.
2. Segundo Movimento: retorne ao seu coração!
O doutor Agostinho, como um bom cardiologista, identificou e localizou o coração para nós. Estaria o processo finalizado? De modo nenhum! Nosso coração parece estar em um estado doentio: depois de diagnosticar sua própria doença cardíaca, um coração vazio, Agostinho nos propõe uma terapia: retornar ao coração, a partir de um terapeuta especial, o Cristo; e um remédio potente, o esmagamento do coração.
2.1 Um Coração Vazio
Em um tratamento, a etapa inicial inclui um diagnóstico: para Agostinho, trata-se de um coração perdido e vazio. Quando jovem, Agostinho começou a buscar uma existência significativa e, especialmente, feliz. Sua leitura de um texto filosófico, Hortensius de Cícero, causou-lhe uma grande impressão sobre a importância de buscar sabedoria. Agostinho escreve: «Repentinamente pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a aspirar com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria. Começava a levantar-me para voltar a ti»33. O encontro com Cícero foi o começo de um retorno, uma espécie de incipiente conversão. Que Agostinho concebeu sua conversão como um processo de interiorização é magistralmente entendido por Fra Angelico (Figura 4).
Entretanto, Agostinho não iniciou imediatamente seu retorno, mas sua jornada incluiu um percurso de dispersão e busca exterior. Ele confessa: «Eis que habitavas dentro (intus) de mim e eu te procurava do lado de fora (foris)! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo»34. É assim que Agostinho em Confissões descreve seu estado irrealizado e inquieto. Ele havia saído de perto de Deus e acabado nas vaidades do mundo. A inquietação faz com que as pessoas oscilem entre: foris e intus, fora (o que é externo) e interior (o eu interior); o que é baixo e o que é alto; o mundo e Deus.
O coração humano, frequentemente, se encontra no lugar errado. Agostinho observa que algumas pessoas têm seu coração deslocado para seus olhos. Outros não têm ouvidos no coração, mas têm o coração nos ouvidos. Elas se empenham em busca do que é sensual, do que é material, ao invés do espiritual e consideram o terreno como um objetivo em si e não como um caminho que leva ao transcendente/celestial. Saem de si mesmos para o que é externo e se esquecem de si. Abandonam-se às coisas externas e dessa maneira se perdem. Sem um retorno ao coração, eles afastam-se de si e, como consequência, o coração inquieto não repousa. Tornou-se desvinculado de si mesmo, fugindo de si mesmo. Agostinho expressa seu próprio desarraigamento com muita força: «trazia a alma despedaçada, a escorrer sangue, qual fardo importuno do qual não sabia descartar-me... Para onde o coração me fugiria de si mesmo? Para onde fugiria de mim mesmo? Para onde eu não me seguiria?»35.
Em resumo, Agostinho afirma que seu coração estava vazio da verdade. Por que o coração está distante de si mesmo? Deus é o alicerce do coração humano e aquele que não está mais focado em Deus, está consequentemente distante de si mesmo, de sua própria identidade. Quem não conhece mais a Deus, não conhece mais a si mesmo. Agostinho descreve assim o ato paradoxal de alguém abandonar o seu próprio coração: «meu coração me abandonou» significa que meu coração não está mais em posição de conhecer e compreender a si mesmo. É por isso que Agostinho dá o encorajamento: não se ausentem de Deus, não se ausentem de si mesmos. Onde o autoexame da vida interior é alijado, a pessoa é desvinculada e alienada de Deus e de si mesmo. Agostinho descreve esta alienação em Confissões:
Ó minha esperança desde a minha juventude, onde estavas, para onde te retiraste? Não foste tu que me criaste e me quiseste diferente dos animais, mais inteligente que as aves do céu? E, no entanto, eu caminhava em meio às trevas e por terrenos escorregadios. Eu te buscava fora de mim, e não encontrava o Deus do meu coração. Havia chegado ao fundo do mar, e não tinha mais confiança nem esperança de encontrar a verdade36.
Visto que os sintomas e a natureza da nossa doença cardíaca estão claros, segue-se um caminho terapêutico como um convite ao retorno ao seu coração (Is. 46:8)37. Seguindo o exemplo do profeta Isaías, Agostinho insiste que o ser humano precisa retornar ao seu cor. O profeta Isaías reage contra aqueles que se afastaram do verdadeiro Deus e que agora adoram falsos deuses, adoram a ídolos. Dentre os escritos de Agostinho, diversas passagens referem-se a este verso de Isaías, «pecadores, retornem ao seu coração». Assim, ecoando o profeta Isaías, Agostinho deixa claro que o pecador vive fora de seu coração. No quinto livro de Confissões, Agostinho escreve a esse respeito: «estavas diante de mim, e eu até de mim mesmo me afastava, e se não encontrava nem a mim mesmo, muito menos podia encontrar- te a ti»38. Agostinho procurava Deus onde Ele não é encontrado. Ao tentar encontrar a felicidade no mundo exterior, em tentações externas e fugitivas, Agostinho, em outras palavras, colocou a criação no lugar de seu Criador, fez um falso ídolo do mundo criado.
Como alguém pode então voltar para Deus? De acordo com o Sermão 311, o caminho de volta a Deus é encontrado por meio do retorno ao coração,
Retorne ao seu coração e dali para Deus. Estás voltando para Deus, veja você, do lugar mais próximo possível, se retornaste ao seu coração. Porque quando se ofendes com essas coisas de que estamos falando, significa que saiu de si mesmo; se tornou um exilado de seu próprio seio. Estás chateado por coisas fora a você e perde a visão de si mesmo. Tu mesmo estás dentro, esses acréscimos fora. Há coisas boas do lado de fora, mas fora é onde elas estão. Ouro, prata, dinheiro em todas as suas formas, roupas, dependentes, servos, rebanhos, honras, todos eles estão fora. (…) Peça-me coisas melhores, peça-me coisas excelentes; peça-me coisas espirituais; pergunte-me por mim mesmo!39.
Não por fora, mas a partir do interior é preciso se refazer. As semelhanças com a parábola do filho pródigo são claras. Em Sermo 96, sobre o filho pródigo, Agostinho apresenta uma interpretação das palavras do evangelho «quando o filho pródigo voltou para si mesmo...» (Lucas 15:17)
Ao retornar para si mesmo, o que ele - o filho pródigo - disse para não permanecer em si mesmo? «Vou levantar e ir para o meu pai» (Lc. 15.17-18). Esse é o lugar do qual ele havia caído de si mesmo; ele havia caído de seu pai, ele havia caído de si mesmo. Ele havia se afastado de si mesmo para as coisas do lado de fora. Ele volta para si e parte para o pai, onde ele pode se manter na segurança definitiva40.
Primeiro, o reconhecimento do erro dos caminhos, depois o retorno. Agostinho tem ele próprio - como o filho pródigo - tomado o caminho de volta ao seu próprio eu interior, e encontrou, no seu coração, o Pai celestial e seu Filho.
2.2 Um Coração Esmagado
Para retornar ao coração de alguém, para descobrir mais uma vez Deus, é preciso se arrepender. Agostinho observa em Confissões que a condição para receber a verdade é que o ouvido do coração se dirija internamente para a boca de Deus41. Nas Confissões, ouvimos: «Ele está no íntimo do nosso coração; mas o coração se afastou dele. “Voltai aos vossos corações, pecadores”, e ligai-vos àquele que vos criou. Firmai-vos nele e sereis estáveis. Repousai nele e tereis a paz»42. Este insight é ecoado nas famosas palavras iniciais de Confissões. «Nosso coração está inquieto até que repouse em Ti»43. Inquietas, a inquietação, simboliza o estado de desequilíbrio e desordem em que o coração está para ser encontrado, se não for mais orientado para Deus. Deus é o ponto natural de orientação para o coração humano. Um coração que é bem orientado, direcionado para Deus, Agostinho chama um coração reto. Um coração direito é antagônico a um coração distorcido44. Um coração que não está focado em Deus é infiel a sua própria constituição.
Em suma, o projeto de conversão humana envolve, segundo Agostinho, um duplo movimento: um afastamento dos desejos autocentrados e a volta de si a Deus. O retorno ao coração é um mandato para todo ser humano, mas este não tem, contudo, que cumprir este mandato sozinho. O próprio Agostinho explica que, na história de sua conversão, que foi Deus quem o ajudou e conduziu o processo. O ser humano pode então afastar-se de Deus, pode ser infiel ao seu próprio coração, mas ainda assim o Criador permanece presente e esperando no centro de sua criatura. Agostinho escreve da seguinte maneira sobre as criaturas que se distanciam de seu Criador:
somente tu sempre estás presente, mesmo àqueles que se afastam de ti. Que voltem atrás e te procurem, porque não abandonas as tuas criaturas, como estas abandonam o Criador. Voltem a procurar-te, eis que aí estás, em seus corações, no coração de cada um que te reconhece e se lança a teus pés, e chora no teu seio, após longa e difícil jornada45.
No Comentário sobre o Salmo 45, Agostinho afirma que Deus vive de tal maneira no coração das pessoas que, mesmo que a pessoa abandone-o e se arruíne, Deus permanece presente neste lugar que é o centro da vida interior. Deus não abandona a pessoa, mas ao contrário, a restaura46. É precisamente a presença permanente de Deus que possibilita que alguém retorne à verdadeira orientação do coração. A presença de Deus no coração não é somente um comparecimento passivo; como exclama Agostinho: «como mediador entre ti e nós, pelo qual nos buscaste quando nós não te buscávamos; no entanto nos buscaste para que também nós te buscássemos. Conjuro-te em nome deste Verbo, por quem fizeste todas as coisas, e a mim entre elas»47. Em um dos seus primeiros diálogos, De Magistro, Agostinho explica que é o próprio Deus quem nos conduz a si mesmo, em etapas graduais que são ajustadas à fraqueza de nossos próprios passos48.
Agostinho prescreve um remédio radical a fim de executar a terapia proposta. Ele aponta que o homem não pode retornar ao seu coração, que este não pode mais se concentrar em Deus, a menos que tenha sido primeiro «quebrado»49. Referindo-se ao Sl. 146 [147],3: o Senhor cura o coração partido e esmagado. Com essa referência à Escritura, Agostinho faz alusão à percepção humana de que apenas um coração humilde, consciente de sua própria miséria e impotência, renuncia à pretensão de existir apenas para si mesmo, de poder lidar com tudo nesta vida por conta própria. Quem volta ao seu próprio coração, torna-se consciente de sua impotência para realizar sua própria salvação sem Deus50. Retornar ao próprio coração significa, paradoxalmente, a permissão para libertar-se de ser apenas orientado para si mesmo. O retorno a si mesmo é ao mesmo tempo um doloroso confronto consigo mesmo, é o embate com o próprio eu despojado de uma fachada. Na figura 5 observa- se um Agostinho chorando - note o grande lenço - dedicando suas Confissões.
Agostinho honestamente admite sua vulnerabilidade,
e tu, Senhor, enquanto ele falava, me fazias refletir sobre mim mesmo, tirando-me da posição de costas, em que eu me havia colocado para não me enxergar a mim mesmo, e me colocavas diante de minha própria face, para que eu visse quanto era indigno, disforme e sórdido, coberto de manchas e de chagas. E eu via, e me horrorizava, e não tinha como fugir de mim mesmo51.
Retornar ao próprio coração envolve tornar-se consciente da própria insignificância e miséria e, com base nessa consciência, confiar-se a si mesmo à compaixão divina. Aqui descobrimos o duplo significado de confessio / confessiones - o título latino de Confissões, admissão do pecado e louvor de Deus. Confessio significa primeiro reconhecer a própria pecaminosidade, isto é, reconhecer a incapacidade fundamental do homem decaído de se restaurar. Na mais profunda consciência de seus próprios fracassos, o homem descobre o Deus misericordioso e compassivo, que o cura e restaura - a razão para louvar a Deus, o segundo significado da confessio. Retornando ao coração ele está redescobrindo Deus no centro do próprio ser e permitindo-se ser recriado por ele.
3. Terceiro Movimento: ASCENDE com o coração
Uma terapia intensiva cura novamente o coração, e um coração saudável, de acordo com Agostinho, é um coração ascendente, com o amor como seu marca-passo.
3.1 Subindo como fogo
Para Agostinho, a redite ad cor vai de mãos dadas com o sursum cor: o retorno ao coração é acompanhado pela subida da alma a Deus. Elevar-se com o coração significa que se chega mais perto de Deus, se aproxima de Deus52. Somos chamados a este movimento no diálogo introdutório da oração eucarística Sursum cor - habemus ad Dominum: «Corações ao alto - o nosso coração está em Deus». O coração descobre em sua intimidade mais profunda em uma dinâmica que leva ao coração continuamente mais alto, «uma subida do visível para o invisível, do temporal para o eterno»53. De forma concisa, Agostinho nos exorta: «Deixe o terreno para o terreno, levante o coração no alto»54. O ambiente natural do movimento do coração é, como o fogo, para as alturas55. O bispo Agostinho exorta seus ouvintes: «Levante seus irmãos e irmãs de coração, levante-os o mais alto que puder»56. E no Comentário de Agostinho sobre o Salmo 132 (133), lemos um texto poderoso a respeito sursum cor: «estás angustiado na terra? Emigra, mora no céu. Como, dirás, habitarei no céu, ainda revestido de carne, sujeito à carne? Precede com o coração; para lá seguirás com o corpo. Não te faças de surdo, ao ouvires: Corações ao alto! Mantém ao alto o coração e ninguém te afligirá no céu»57.
Deve-se notar que o levantar-se e a ascensão do coração é tudo menos um movimento orgulhoso ou pretensioso. Agostinho comenta em seu Comentário sobre o Salmo 93 que Deus deve ser encontrado no alto, mas «humilha-te e ele descerá a ti»58. Agostinho sugere que somente o coração humilde é atraente para Deus. Algumas pessoas imaginam que estão mais próximas de Deus em uma alta montanha; essas pessoas esquecem, no entanto, que Deus está mais próximo de uma pessoa humilde: temos que nos curvar para alcançar o Altíssimo59. Essa aparente contradição de humilhar-se para ser levantado60 é articulada por Agostinho em uma de suas maiores obras, A Cidade de Deus: «É bom ter no alto o coração, não elevado a si mesmo, o que é privativo da soberba, mas ao Senhor, o que é próprio da obediência, exclusiva dos humildes. É próprio da humildade elevar o coração, e exclusivo da soberba abaixá-lo»61.
Na perspectiva do coração esmagado e humilhado, Roberto De Santis nos mostra um Agostinho nu e vulnerável, abrindo a praça fechada de sua própria vida, e contemplando avidamente a luz de cima (Figura 6).
3.2 Amor Múltiplo
A orientação ascendente do coração, sursum cor, é uma orientação ad Dominum, em direção a Deus. Esta orientação não é um levantar-se a si mesmo de modo autocentrado, mas é a travessia do próprio centro para um Outro para além de si mesmo, para um Outro que me ultrapassa. A orientação do coração em Deus, no entanto, não significa que os seres humanos devam ou possam negligenciar o mundo. O mundo é criado a partir de um princípio único de bondade e, portanto, é essencialmente bom. O mundo e as coisas terrenas não devem, contudo, ser mal utilizadas e se tornarem um ídolo que substitua o verdadeiro Deus. O mundo é o único caminho pelo qual o homem tem para se aproximar gradualmente de Deus, pois o homem é obrigado a se entregar ao que está no mundo externo para viver. No entanto, ele deve voltar para o seu centro interior, onde encontra Deus. É o seu Criador quem mantém e sustenta a criação, sendo reconhecível em todas as coisas criadas. Estes são, no entanto, apenas vestígios do Criador e não ainda o próprio Criador. «Volte para onde quiser, a sabedoria fala contigo pela marca que deixou em suas obras, e, quando estás deslizando de volta para o exterior, ela o atrai a voltar para dentro pela beleza daquelas formas encontradas nas coisas externas»62. Temos deveres a cumprir que nos são ditados pelo amor ao próximo. Nosso próximo é uma trilha que leva ao Criador, uma vez que todas as pessoas humanas são criadas à imagem e semelhança de Deus. Como o próximo é a imagem de Deus, ele é uma referência a Deus. Já que nosso próximo é uma imagem de Deus, eu devo amá-lo como amo a Deus.
Se hoje perguntamos sobre o que o coração representa, a resposta será quase unânime: amor. Para Agostinho, o coração em chamas é a expressão de seu duplo amor a Deus e a seus semelhantes. Nós lemos em seu comentário sobre o Salmo 118:
terminados estes séculos já não poderia existir mandamento algum. De fato, não haverá mandamento escrito em tábuas ou livros visíveis; nas tábuas do coração, contudo, permanecerá o amor de Deus e ao próximo eternamente; deste duplo mandamento dependem a lei e os profetas. Quando este mundo acabar, não haverá mais nenhum mandamento legal. É verdade que não haverá nenhum se pensarmos em comandos escritos em tábuas visíveis ou em livros. Mas nas tábuas do coração a lei do amor a Deus e ao próximo permanecerá eternamente; neste duplo mandamento, toda a lei e os profetas dependem63.
Agostinho se refere aqui à mensagem central de Jesus, descrita em Mt 22: 37-40, para o cumprimento dos mandamentos do Antigo Testamento:
Você deve amar o Senhor seu Deus com todo o seu coração, e com toda a sua alma e com toda a sua mente (Dt. 6:5). Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é como isso. Você deve amar seu próximo como a si mesmo [Lev. 19: 8]. Nestes dois mandamentos, toda a lei e os profetas dependem64.
Este duplo mandamento do amor é um fio condutor que Agostinho retorna continuamente em seu pensamento. Amor a Deus e amor ao próximo. O duplo mandamento para o amor gira em torno desses dois amores, que juntos formam uma unidade. Para Agostinho, o amor a Deus é a forma mais elevada de amor; e o amor ao próximo, é secundário a ele. O vizinho não pode tomar o lugar de Deus. A posição aparentemente subordinada do amor pelo próximo deve ser qualificada de duas maneiras. Primeiro, Agostinho distingue duas ordens de amor: a ordem do que é exigido e a ordem de ação. A subordinação do amor ao próximo ao amor por Deus só pode ser encontrada no nível do que é prescrito, no nível teórico. Em relação ao que é prescrito, Deus vem em primeiro lugar, o próximo em segundo. No nível da vida cotidiana, em relação às atividades humanas, o amor pelo próximo vem em primeiro lugar. Na prática, o próximo vem primeiro, depois Deus. Durante esta vida terrena, só se pode amar a Deus através de seu semelhante. Segundo, como já foi indicado, Deus já é amado no próximo, que carrega a imagem de Deus. O amor por Deus é, portanto, amor pelo próximo. O amor pelo próximo é amor a Deus. Ambos os amores são iguais e exigem um ao outro. São dois lados da mesma moeda: podem ser distinguidos, mas não separados. Eles não podem existir sem o outro. Juntos eles carregam as partes complementares da mesma moeda.
A teologia do amor de Agostinho também ensina a forma adequada de amor-próprio. Com uma alusão à história bíblica do Filho Pródigo, Agostinho referenda que sua posição de entregar-se a Deus não significa perder-se, mas sim (re) descobrir-se. A preferência do filho pródigo por determinar sua própria companhia o afastou de seu pai. Ele se distanciou de seu pai e também de si mesmo. O Filho Pródigo precisava primeiramente retornar a si mesmo. Depois de reconhecer os erros de seus caminhos, ele decidiu não permanecer sozinho, mas retornar para o pai e a si mesmo. Amar a Deus é reencontrar-se consigo mesmo: ame a Deus com tudo o que você tem, só assim você pode amar a si mesmo, e portanto amar seu próximo como a si mesmo65.
A inquietação do coração humano cria uma certa dinâmica que direciona os humanos para uma determinada meta. O objetivo do coração humano é o amor. Para Agostinho, esse amor é um nome para Deus - «Deus dilectio / caritas est», de acordo com o apóstolo João66. No entanto, o amor não é apenas o objetivo mais elevado, mas é ao mesmo tempo a dinâmica que conduz e leva os seres humanos a esse amor,
Em teu dom repousamos e nele gozamos em ti. Ele é o nosso descanso, é o nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata. O Espírito Santo nos eleva a humildade, afastando-a das portas da morte. Na tua boa vontade temos a paz. Todo corpo, devido ao peso, tende para o lugar que lhe é próprio, porque o peso não tende só para baixo, mas também para o lugar que lhe é próprio. Assim, o fogo tende para o alto, a pedra para baixo. Por seu peso são impelidos para o seu justo lugar. O óleo derramado sobre a água aflora à superfície; a água, jogada sobre o óleo, submerge. São ambos impelidos por seu peso a procurar o próprio posto. Onde há desordem reina a agitação, e na ordem reina a paz. Meu peso é o amor; por ele sou levado para onde sou levado. Teu dom nos inflama e nos leva para o alto; nós nos inflamamos e nos movemos. Subimos os degraus do coração, cantando o cântico dos degraus. É o teu fogo, o teu fogo santo que nos inflama e nos move, enquanto subimos para a paz de Jerusalém67.
A conversão do coração ocorre em amor a Deus e amor pelo próximo. O amor purifica os olhos do coração para que alguém possa ver a Deus. Agostinho ensina que quem não vê a Deus é alguém que não ama a Deus. E se não houver amor por Deus, não haverá amor pelo próximo. Em seus sermões sobre a primeira epístola de João, Agostinho diz: «Assim, quem tem o amor, vê a Deus, porque “Deus é amor”. E aquele olho interior se purifica mais e mais, pelo amor. Tornar-se-á capaz de contemplar essa substância imutável cuja presença sempre o alegrará, pois dela gozará na eternidade»68.
Retornar ao seu coração significa, portanto, voltar ao que é o núcleo de uma autêntica existência humana. Retornar ao seu coração é, em outras palavras, o chamado para não se fechar em si mesmo. Voltar ao centro de nós mesmos é descobrir que há algo ou alguém que é muito maior que nós mesmos. Retornar ao nosso verdadeiro eu é se reabrir para aquele que em todos os sentidos nos ultrapassa. Voltar para nós mesmos é redescobrir a verdade sobre o nosso próprio ser, e essa verdade é amor, o amor que é Deus. Experimentamos em nossas próprias vidas que o amor ultrapassa nosso entendimento humano, assim como Deus o faz. Esta verdade sobre o amor - nosso coração é verdadeiramente determinado pelo amor - é ao mesmo tempo um convite, a saber, amar o próximo. O amor a Deus e o amor pelo próximo são intrinsecamente entrelaçados e juntos formam o coração da nossa existência.
Este artista contemporâneo maltês representou a transformação holística do amor de Agostinho, alcançando um descanso autêntico (Figura 7).
Antes de concluir, vamos explorar dois usos agostinianos relacionados a cor, que também se concentram em torno de encontrar paz e descanso de coração, ou seja, a unidade da comunidade e da oração.
4. A unidade do coração
Formem uma comunidade religiosa para colocar em prática os seguintes preceitos. Antes de tudo, «vivam em harmonia» (Sl 68:7), «sendo de uma mente e um só coração» (Atos 4:32) no caminho para Deus. Pois não é precisamente por esta razão que vieram morar juntos? (…) Todos vós devem viver juntos, portanto «uma mente e um no coração» (Atos 4:32) e honrar a Deus uns nos outros, porque «cada um de vocês se tornou seu templo (2 Coríntios 6:16)»69.
No livro de Atos, o termo cor unum - um único coração - é usado para descrever a primeira comunidade cristã em Jerusalém, «sendo uma só mente e um só coração» (Atos 4:32). Agostinho usou essa formulação para descrever seu ideal da vida religiosa. Em latim, a unidade é denotada pelo termo concordia. Con significa juntos, cor significa coração. Em latim, a unidade é, portanto, descrita como uma solidariedade de coração. Assim como em uma orquestra, os diversos instrumentos são sintonizados para tocar a mesma peça musical, da mesma forma que todos os corações daqueles em uma comunidade humana, em sua respectiva diversidade e singularidade, precisam ser sintonizados em cada um deles. Outro para tocar uma sinfonia, ou seja, a canção de amor a Deus e ao próximo.
Em sua obra Soliloquia, Agostinho explica sua escolha de vida comunitária da seguinte maneira: a verdade não pode ser encontrada no indivíduo, mas só pode ser encontrada em uma comunidade de pessoas cujas almas / corações estão sintonizadas com cada um dos outros. Em uma comunidade harmoniosa, o egoísmo não abunda. Em tal comunidade, ama- se voluntariamente o que é o bem comum e a unidade interna do próprio coração leva a uma união entre muitos corações, através dos quais uma verdadeira comunidade se desenvolve. As pessoas amam a Deus, amam-se e amam a Deus umas nas outras. Esta experiência comunitária que une singularidade e unidade em amor será a vida na cidade de Deus em toda a eternidade. Por esta razão, a unidade era para o bispo de Hipona uma das características mais essenciais da Igreja, tanto para a Igreja universal como para as comunidades da igreja local.
5. A Oração do Coração
A vida interior exige paz, descanso e quietude. Agostinho chama isso de «sábado do coração», um tempo de descanso, serenidade, calma, liberdade de preocupações. A ideia de Agostinho de «orar com o coração» pode ser resumida em dois pontos focais.
Orar com o coração significa, em primeiro lugar, que nossa oração precisa ser genuína e sincera. No segundo capítulo da Regra de Agostinho, lemos: «Quando estais orando a Deus com salmos e cânticos, repassai no coração o que proferis com os lábios»70. Encontramos o mesmo tom mais uma vez no Comentário sobre o Salmo 39: «Estejam de acordo teus lábios e teu coração. Se pedes a paz de Deus, sê pacato para contigo mesmo; não haja discórdia entre tua boca e teu coração (...) Bem o sabes, Senhor, que tenho no coração o que os lábios proferem»71.
Um segundo significado da oração do coração é a consistência entre nossa oração e nosso fazer, entre nossa espiritualidade e nossa vida ativa e concreta. Nossa vida cotidiana pode não estar em contradição com nossa oração. A linguagem do coração deve ser traduzida em ação. No Comentário sobre o Sermão da Montanha, lemos:
«O que ora acabará por suscitar em si mesmo o desejo de que habite nele Aquele a quem invoca, e, sentindo este afeto, cumprirá a justiça, com cujo oferecimento melhor se convida a Deus a habitar a alma»72.
Conclusão
Embora este artigo não recomende Confissões de Agostinho como um manual para cardiologistas, espera-se ter demonstrado como o coração inflamado e perfurado de Agostinho oferece uma análise fascinante da pessoa humana. De acordo com o bispo de Hipona, o símbolo do coração denota nossa mais profunda intimidade e identidade. Agostinho aqui prenuncia um dos principais pontos de interesse do dogma filosófico do personalismo do século XX, a subjetividade humana ou autoconsciência, experimentada nos próprios atos e acontecimentos internos de uma pessoa.
Muitas vezes, porém, perde-se a noção do centro interior e, consequentemente, o coração fica inquieto, à deriva, infeliz. Essa alienação do coração exige uma reconfiguração, uma reorientação, denominada teologicamente como «conversão». Voltando ao verdadeiro eu, abre-se para um Amor que em todos os sentidos nos ultrapassa. Em suas Confissões, Agostinho expressou poeticamente: Deus é interior intimo meo, e superior summo meo, mais interno do que parte mais interior e superior ao elemento mais alto dentro de mim.
De fato, os seres humanos permanecem com demasiada frequência na superfície da existência, abandonam o coração e se esquecem daquele que vive no coração. A busca contínua de distrações ou a imersão no trabalho podem ser mecanismos que evitam a reflexão sobre o significado da vida, atitude corriqueira na sociedade contemporânea. Pode-se não tolerar um silêncio autêntico, descansar verdadeiramente, porque então alguém é confrontado com si mesmo. Porém, é possível que, assim como Agostinho, nossa humanidade tome consciência do vazio da existência. Ao perceber que a vida é preenchida de maneira sem sentido para não sentir seu vazio, é o momento de ouvir o convite de Agostinho: retorne para seu coração. Levante-se com o seu coração! Conheça a si mesmo, conheça a Deus! Ame a Deus, ame seu próximo e ame-se! Ore e aja de acordo com o seu coração! Seja uno de coração.