Introdução
Eis que dias virão - oráculo de Iahweh - em que concluirei com a casa de Israel (e com a casa de Judá) uma aliança nova. Não como a aliança que concluí com seus pais, no dia que os tomei pela mão para fazê-los sair da terra do Egito - minha aliança que eles próprios romperam, embora eu fosse o seu Senhor, oráculo de Iahweh! Porque esta é a aliança que concluirei com a casa de Israel depois desses dias, oráculo de Iahweh. Porei minha lei no fundo de seu ser e a escreverei em seu coração. Então serei seu Deus e eles serão meu povo. Eles não terão mais que instruir seu próximo ou seu irmão, dizendo: ‘Conhecei a Iahweh!’ Porque todos me conhecerão, dos menores aos maiores, - oráculo de Iahweh - porque perdoarei sua culpa e não me lembrarei mais de seu pecado1.
Historicamente, diz-se que os séculos XIV e XV - estendendo-se até o século XX - são perpassados pelo crescimento da autonomia do ser humano, por grandes avanços tecnológico-científicos e pela utilização da razão para explicar o que antes competia às crenças (religiosas). No século XXI, o ser humano - e não mais Deus (como acontecia no Medievo) - passa a ser o centro do universo, dos fenômenos e dos acontecimentos. No projeto da Modernidade, o «sujeito cognoscente» passa a ser fundamento de si mesmo, tornando-se uma consciência adulta e sujeito de seu próprio acontecer histórico (devir).
Destarte, o sujeio cognoscente - emancipado - declara-se responsável por sua felicidade, que depende única e exclusivamente dele, de sua função e reflexão2. Martin Heidegger diz que o «ser humano» - Dasein (ser-aí) - abandonado por Deus esclarece por si mesmo a questão do ser, tragicamente esquecida pela metafísica tradicional - de Platão e Aristóteles até Hegel3. Magistralmente, Maria Clara Bingemer reflete que o cristianismo histórico - religião indiscutivelmente majoritária e hegemônica no Ocidente - tropeçou em fenômenos como o teísmo, secularismo, ateísmo e agnosticismo. Nesta atmosfera de rejeição, foram atingidas - não apenas externamente, mas também enquanto estrutura de pensamento individualista - as próprias categorias mentais dos fiéis4. Por este caminho, restou ao indivíduo rejeitar o mundo moderno e refugiar-se na fé ou entrar em diálogo com o pensamento iluminista, aceitando, em suas apologias, as mesmas formas de pensamento modernas. Mas a religião não chega a ser banida do horizonte humano, tal como pretendiam os «mestres da suspeita»5.
Nesse itinerário, os iluministas, que tanto criticaram os elementos supersticiosos e mágicos da religião cristã, capitularam diante da força do elemento da Transcendência como constitutivo da humanidade e buscaram um outro modelo de Deus e de religião, adequado à visão mecanicista de um mundo físico tecnicamente perfeito, que provinha das novas ciências. Deus começou a receber as denominações de «grande relojoeiro», «supremo arquiteto ou geômetra», dando fé da necessidade teórica proveniente de uma visão racionalista do mundo6. De tudo isso surge a religião como um fenômeno exclusivamente de foro íntimo da consciência humana, ausente de mediação e intermediários. Ela passa igualmente a habitar a esfera do privado, onde cada um acredita e acolhe as verdades que lhe são apresentadas, apreciando-as e discernindo sobre elas, fazendo uso da razão7. No dizer de Frei Carlos Josaphat, crescem as religiões, mas tropeçamos na ausência de Deus8.
Partindo da experiência latino-americana e caribenha de fé, objetivamos refletir sobre a experiência cristã de Deus diante da tentação do vazio cultural de Deus, que assola as «teologias» da secularização e o vazio espiritual de Deus nas «contra-teologias» da sacralização. No percurso investigativo, revisitamos a literatura teológica da tradição católica, mapeando as contribuições das teologias da experiência cristã de Deus como a experiência de uma plenitude. Por este caminho, delineamos uma pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa.
No século XXI, a categoria «povo de Deus», introduzida pela eclesiologia do Concílio Vaticano II como uma categoria teológica central que evidencia a dignidade batismal, a unção própria do «sacerdócio comum», pela qual todos os membros da Igreja participam da profecia, do sacerdócio e da realeza do Senhor Jesus - mesmo sob modos e serviços diversos - ilumina a Igreja no seu agir e encarna-se em cada lugar do mundo: encarna-se a pregação, a espiritualidade, as estruturas e os rostos multiformes que manifestam a riqueza inesgotável da graça. Pensamos que a eclesiologia do Concílio Vaticano II possibilita uma renovação na Igreja, clamando por olhá-la - sensivelmente - sob a perspectiva cristológica, sacramental e antropológica. Humanamente, a Igreja - sacramento de unidade, prefigurada na Criação - tem na Trindade sua origem, estruturação, finalidade e consumação e, por meio do Espírito Santo, prolonga no mundo a ação salvífica ofertada por Cristo.
Na perspectiva latino-americana e caribenha, o ato de superação da amarga herança de injustiças, hostilidades e desconfianças deixadas pelos inúmeros conflitos históricos a partir da teologia não constitui tarefa fácil. No eixo do mundo, diagnosticamos o vazio de um Deus - tão humano que só possa ser Deus - que se relacione, intimamente, com o ser humano, assumindo os dramas da existência, gerando vida em abundância. No nosso querer- fazer teológico, insistimos na teimosia da gratuidade do amor de Deus, esquivando-nos de atitudes farisaicas (imaturidade espiritual). Deus ama cada ser humano com amor infinito, conferindo-lhe dignidade. Na América Latina e no Caribe, o imperativo de ouvir o clamor dos pobres desvela-se como a via que a Igreja anuncia, horizontando-se como luz para o mundo e irradiando alegria e esperança.
1. Deus, onde está você agora?
Se a ti, vizinho Deus, eu incomodo às vezes
com rude batimento no meio da noite,
é que quando em quando te ouço respirar
e sei que estás sozinho no salão.
E, se careces de algo, lá não há ninguém
que te ofereça um gole às mãos tateantes...
Sempre atento estou eu: ao menor sinal teu
eu estou muito perto.
Só existe entre nós uma fina parede,
por acaso: se houvesse, por acaso,
de tua boca ou da minha algum chamado,
ele se desfaria
sem alarde ou ruído.
De imagens tuas ela é toda feita:
imagens que em tua frente se põem - nomes.
E, tão logo se acende em mim a luz
com que te reconhece a profundeza minha,
ela some como um reflexo na moldura.
E meus sentidos, que em pouco se debilitam,
desligados de ti - ficam sem pátria9.
Nos últimos dias da humanidade, diagnosticamos um obscurecimento de Deus e uma da crise da civilização ocidental e da Igreja. Para Walter Kasper, essa não é uma opinião só de teólogos/as, o que é evidenciado - ao longo de muitas outras coisas - pela sentença «Deus está morto» de Friedrich Nietzsche, pelo que Martin Heidegger indicou sobre a «falta de Deus» e Martin Buber chamou de um «eclipse de Deus»10. Na Igreja, erros e comportamentos equivocados contribuíram para que se chegasse ao ofuscamento da Verdade. Não obstante, as raízes da questão da crise de Deus e de fé são mais profundas, remontando-se a tempos longínquos da história espiritual da Europa. Na perspectiva da história da humanidade, «a Europa trilhou um caminho particular, do qual nem de longe se sabe se vai chegar a bom termo»11.
Com efeito, Deus não está oculto de nós. Deus está reservado12. No dizer de Riobaldo: «Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto! A força dele, quando quer - moço! - me dá medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho»13.
Para Karl Barth, o que e como deveríamos ser em Cristo, e o que e como o mundo será em Cristo é o que não nos é revelado. Isto sim está oculto. Não sabemos o que dizemos quando falamos da volta de Cristo no julgamento e da ressurreição dos mortos, da vida e da morte eternas14. Mas, que tudo isso estará associado a uma revelação pungente - uma visão comparada à qual toda a nossa visão presente terá sido cegueira, exigindo de nós enxergar quando todos perderam a visão15 - é demasiado atestado nas Escrituras para que sintamos o dever de nos preparar16.
Na nossa caminhada pelo mundo, desconhecemos o que será revelado quando a última venda for subtraída de nossos olhos, de todos os olhos. Diante disso, como contemplaremos uns aos outros, isto é, a humanidade de hoje e a humanidade de séculos e milênios atrás, ancestrais e descendentes, maridos e esposas, sábios e tolos, opressores e oprimidos, traidores e traídos, assassinos e vítimas, Ocidente e Oriente, alemães e outros, cristãos, judeus e pagãos, ortodoxos e hereges, católicos e protestantes, luteranos e reformados? Sob que divisões e uniões, que conexões e confrontos, cruzados os lacres de todos os livros, serão abertos? Tendo em vista que muitas coisas parecerão pequenas e sem importância, que coisas parecerão grandes e importantes? Para que surpresas de todos os tipos devemos preparar-nos? Mistério é o que a natureza, como o cosmos em que vivemos e continuamos a viver aqui e agora, será para nós. Então, o que as constelações, o mar, os amplos vales e colinas que vemos e conhecemos nos dias de hoje dirão e significarão?17.
Laudato si’, mi’ Signore - Louvado sejas, meu Senhor, «com todas as tuas criaturas18 louva São Francisco de Assis no “Cântico das Criaturas”, evocado pelo Papa Francisco19.
No século XXI, «falar de Deus e com Deus»20 e narrar a experiência cristã de Deus beira um anacronismo, sob o olhar de uma época que se proclama pós-teísta. Historicamente, a questão de Deus perdeu sua especificidade teológica, admitindo apenas uma formulação «honesta», articulada-se em termos etnológicos, sociológicos, psicológicos e políticos:
Desafio ao revedicto que parece aceito sem discussão em amplas áreas da cultura contemporânea e segundo o qual a assim chamada experiência de Deus não pode ser senão a persistência ou a sobrevivência de uma ilusão. A ilusão de Deus seria a última, entre todas as grandes ilusões que abrigaram inicialmente o homem em face de uma natureza misteriosa e hostil, que ainda resite tenazmente. Ilusão que se decompõe, no entando, e torna irrespirável o mundo da cultura moderna. Remover o cadáver de Deus, eis a empresa que tomam para si os grandes construtores da cultura pós-teísta, um Marx, um Nietzschee, um Freud21.
No século XXI, exatamente em face da tentação do vazio cultural de Deus nas teologias da secularização e o vazio espiritual de Deus expresso nas contra-teologias da sacralização, refletir sobre a experiência cristã de Deus como a vivência de uma plenitude constitui conditio sine qua non para a lucidez e o vigor da vida cristã. Trata-se de um risco que pode fazer-nos estremecer diante da gigantesca e fantástica operação da negação de Deus - dissimulada, sutil e agressiva - que invade toda nossa cultura e todas as fibras de nosso ser que nela e por ela subsiste: um risco essencial da fé que busca a inteligência. Não nos dispondo a corrê-lo, revelamos que em nós mesmos a negação de Deus terminou sua tarefa: perdemos a nossa fé em Deus, apesar de continuarmos a oferecer em espetáculo ao mundo o alarido de nossas «teologias»22.
Meister Eckhart, teólogo místico alemão do século XIII, escrevia:
‘Saulo ergueu-se do chão. Mas, embora tivesse os olhos abertos, não via nada.’ A mim me parece que essas palavrinhas têm quatro sentidos. Um sentido é: quando ele se levantou do chão, nada via com os olhos abertos, e esse nada era Deus; ver Deus ele chama, pois, de nada. O outro sentido: quando ele se levantou, não via nada a não ser Deus. O terceiro: em todas as coisas, ele não via nada a não ser Deus. O quarto: quando via Deus, via todas as coisas como sendo nada23.
É como diz Henrique C. 24de Lima Vaz, teólogo jesuíta: «Precisamos dizer sem equívocos que buscamos uma experiência de Deus na sua Verdade»25 «Humanamente, desprovidos da verdade experiencial de Deus, nossa vida andará errando entre muitos deuses e muitos senhores - ídolos ou imagens enganosas da Verdade que perdemos». Meister Eckhart diz que «Deus se derrama em todas as criaturas, e mesmo assim permanece intocado por todas elas»26.
Magristralmente, Karl Rahner reflete que o ser humano, quer o afirme expressamente ou não o afirme, quer reprima esta verdade ou a deixe aflorar à superfície, acha-se sempre exposto, em sua existência espiritual, a um Mistério Sagrado que constitui o sentido último da existência humana. Este Mistério é o mais primitivo e evidente; todavia, o mais oculto e ignorado - um Mistério que se diz enquanto guarda silêncio, que «está aí» enquanto, ausente, reduz nossas próprias fronteiras. Tudo isto porque - como horizonte inexprimível e inexpressado - este Mistério abrange e sustenta o pequeno círculo de nossa experiência cotidiana, cognitiva e ativa, o conhecimento da realidade e o ato da liberdade. Existencialmente, «este mistério único pode plenamente fazer-se entender pelo homem, caso este se entenda a si mesmo como alguém que está orientado e remetido ao mistério a que chamamos Deus»27.
2. Nós só cremos em um Deus que sofre
É totalmente impossível para mim imaginar, filha querida, que não voltarei a ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus braços ansiosos. Quisera poder pentear-te, fazer-te as tranças - ah, não, elas foram cortadas. Mas te fica melhor o cabelo solto, um pouco desalinhado. Antes de tudo, vou fazer-te forte. Deves andar de sandálias ou descalça, correr ao ar livre comigo. Sua avó, em princípio, não estará muito de acordo com isso, mas logo nos entenderemos muito bem. Deves respeitá-la e querê-la por toda a tua vida, como o teu pai e eu fizemos. Todas as manhãs faremos ginástica... Vês? Já volto a sonhar, como tantas noites, e esqueço que esta é a minha despedida. E agora, quando penso nisto de novo, a ideia de que nunca mais poderei estreitar teu corpinho cálido é para mim como a morte28.
Nesse sentido, convém mencionar esta frase: «Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar»29. Nos últimos dias da humanidade, depois das atrocidades que se abateram sobre o mundo contemporâneo em Auschwitz, no comunismo radical dos Khmer vermelhos, no Cambodja e na vitória do capitalismo selvagem, em uma época de totalitarismo na qual a liberdade do ser humano é violada e a pessoa humana - um eu consciente e livre, que possui um corpo-vivente (Leib), uma psique (Seele) e um espiríto (Geist)30 - o/a teólogo/a vê-se diante da questão de como conciliar a existência de Deus com o fato da Shoá ou de algum mal excessivo semelhante: «como conciliar a existência de um Deus bom e onipotente ao sofrimento apavorante de milhões de inocentes, como as crianças mortas nas câmaras de gás?»31.
Slavoj Žižek e Boris Gunjević refletem que as respostas teológicas constituem uma sucessão de tríades hegelianas. No caso dos/as teólogos/as que desejam manter intacta a «soberania divina», atribuindo a Deus toda a responsabilidade pela Shoá,
primeiro oferecem: [1] a teoria «legalista» do pecado-e-punição (a Shoá tem de ser uma punição pelos pecados passados da humanidade - ou dos próprios judeus); depois passam para [2] a teoria «moralista» do caráter-e-educação (a Shoá tem de ser ententida nos termos da história de Jó, como o teste mais radical de nossa fé em Deus - se sobrevivermos a essa provação, nosso caráter manter-se-á firme...); por fim, refugiam- se num tipo de «juízo infinito» que salvará a situação depois de todo divisor comum entre a Shoá e seu significado ruir, apelando para [3] a teoria do mistério divino (na qual fatos como a Shoá atestam o intransponível abismo da vontade divina)32.
Partindo do lema hegeliano de um «mistério dobrado» - o Mistério que Deus é, para os seres humanos, tem de ser Mistério para o próprio Deus -, Slavoj Žižek e Boris Gunjević dizem que a verdade desse «juízo infinito» só pode se negar a plena soberania e onipotência de Deus33. Teólogos/as que - imersos/as na incapacidade de combinar a Shoá com a onipotência de Deus - optam por alguma forma de limitação divina acreditam que:
[1] Deus é diretamente posto como finito ou, pelo menos, contido, e não onipotente, não oniabrangente: ele se encontra oprimido pela densa inércia de toda sua criação; [2] essa limitação é refletida de volta para Deus como seu ato livre: Deus é autolimitado, ele restringiu voluntariamente o próprio poder para deixar um espaço aberto para a liberdade humana, de modo que nós, seres humanos, somos totalmente responsáveis pelo mal no mundo - em suma, fenômeno como a Shoá são o preço supremo que pagamos pela dádiva divina da liberdade; [3] por fim, a autolimitação é exteriorizada, os dois momentos são postos como autônomos - Deus é controvertido, há uma força contrária ou princípio do Mal demoníaco ativo no mundo (a solução dualista)34.
Magistralmente, Slavoj Žižek e Boris Gunjević conduz-nos à terceira posição: a de um Deus que sofre, que ultrapassa o «Deus soberano» e o «Deus finito»:
não um Deus triunfalista, que sempre vence no final, embora «seus caminhos sejam misteriosos», uma vez que ele controla tudo em segredo nos bastidores; não um Deus que exerce a justiça fria, uma vez que, por definição, ele está sempre certo; mas sim um Deus - como o Cristo que sofre na cruz - está atormentado, um Deus que assume o fardo do sofrimento e da solidariedade à miséria humana35.
No Evangelho de Mateus, está escrito:
Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono de sua glória. E serão reunidas todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos bodes, e porá as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo! Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e vistes ver-me. Então os justos lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos forasteiro e te recolhemos ou nú e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso e fomos te ver?’ Ao que lhes disse o rei: ‘Em verdade vos digo: cada vez que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’. Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer. Tive sede e não me destes de beber. Fui forasteiro e não me recolhestes. Estive nu e não vestistes, doente e preso, e não me visitastes. Então também eles responderão: ‘Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso, e não te socorremos?’ E ele responderá com estas palavras: ‘Em verdade vos digo: todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses mais pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer’. E irão estes para o castigo eterno enquanto os justos irão para a vida eterna36.
Partir da teologia - latino-americana da libertação - de um Deus que sofre exige de nós falar de um Deus e com um Deus envolvido na história, afetado por ela, e não é apenas um mestre transcendente que controla tudo lá do céu: a teologia do Deus que sofre diz que a história da humanidade não é apenas um teatro mas o lugar de uma luta real, a luta em que o próprio Deus -Absoluto - está envolvido e em que seu destino é decidido37.
Na Pedagogia do oprimido, Paulo Freire expressa que: «aí está a grande tarefa humanística e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores»38. Do ponto de vista teológico, aqueles que oprimem, exploram e violentam - em razão de seu poder - não podem ter neste poder a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos39.
Nos últimos dolorosos dias da humanidade, assolados pela pandemia de coronavírus (COVID-19), não pode haver mais atalhos para a reflexão crítica da práxis histórica de um Deus que sofre na América Latina e no Caribe: «só o poder que nasça da liberdade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos»40. Por este motivo, o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a ultrapassa. Existencialmente, os opressores - falsamente generosos (comportamentos farisaicos) - têm necessidade, para que a sua «generosidade» continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça41. Nas periferias do mundo, o lema «ordem e progresso social» - injusto - edifica- se sobre as pilhas de cadáveres42.
3. A ação teológico-libertadora da Igreja
Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?
(…) A pior coisa do mundo é a fome.43
Partindo da eclesiologia do Concílio Vaticano II, pensamos como o cardeal Walter Kasper, que a Igreja não é o «deserto espiritual» tal como muitos intelectuais insitiram em pintá-la: «ela é jovem e vital, em todo caso, possui mais vitalidade do que imaginam seus críticos detratores»44. No século XX, instalou-se uma certa paralisia e estagnação na Igreja. Teologicamente, carecemos de uma eclesiologia da esperança, que ponha a Igreja a caminho, pari passu com os pobres45. Temos de cavar mais, profundamente, uma vez que:
Um novo pôr-se a caminho só será possível se, a exemplo do que ocorreu com o movimento que levou ao Vaticano II, três coisas confluírem: uma renovação espiritual que se nutre das fontes, uma sólida reflexão teológica e uma mentalidade eclesial46.
Historicamente, a Igreja já sobreviveu a muitas tempestades. Perseguida, cruelmente, sobreviveu a todos os seus perseguidores - de Nero a Stálin, Hitler e Mao - e a todos os regimes hostis que se arrogaram tão poderosos. No século XXI, os desafios com os quais se defronta a humanidade são enormes e globais:
Os desenvolvimentos científicos e tecnológicos acelerados penetram cada vez mais no mistério da vida e a tornam cada vez mais manipulável; a unificação da humanidade no processo da globalização abriga muitos conflitos manifestos e, mais ainda, muitos conflitos ocultos de um choque de etnias, culturas e religiões; a questão da paz e da segurança depende de conseguirmos chegar a uma distribuição justa e solidária dos bens da Terra que pertencem a todos os seres humanos e a um respeito universal pelos direitos humanos fundamentais; somam-se a isso, os problemas ambientais e do equilíbrio natural da Terra, ou seja, a questão da preservação da criação como ambiente humano digno de viver; por fim, em virtude dos novos meios de comunicação, temos essa torrente de informações que ninguém mais consegue controlar significativamente, na qual a realidade e sua trnamissão midiática perdem a nitidez e, por essa via, estão expostas a múltiplas manipulações47.
Destarte, mercadoria escassa é uma mensagem de esperança. Pensamos que essa mensagem não é avessa à razão, tampouco não é um sonho vazio, uma simples utopia; ela busca e exige a compreensão. Pode ser decifrada racionalmente e alçada ao plano da compreensão. Dela resultam perspectivas para a construção de um mundo mais justo, solidário e pacífico e de um futuro para todos. Do ponto de vista eclesiológico, ela não tem respostas técnicas, econômicas e políticas concretas a oferecer, mas coloca-nos na via em que tais respostas são possíveis e, concomitantemente, transmite confiança e coragem para buscar também encontrar soluções para essa via48.
Pela excelência das palavras, vale realçar que:
A Igreja só terá relevância e futuro se for insubstituível, se tiver identidade em si mesma e se souber quem e o que é como Igreja. Essa identidade é possível como Igreja de Jesus Cristo e isso quer dizer: só a partir de Deus, que transmite a ela por meio de Jesus Cristo no Espírito Santo. Isso ganha expressão nas imagens do povo de Deus, do corpo de Cristo, da construção no Espírito Santo e em outras metáforas. A Igreja possui identidade como sinal escatológico, isto é, como presentificação de ordem sacramental o éschaton, daquilo que é a razão última e o destino último de toda a realidade49.
Podemos dizer, então, que a eclesiologia só é possível como teo-logia: horizonte da questão de Deus. Para esta colocação, é decisivo que a Igreja não é, ela própria, o éschaton. A Igreja é o Reino de Deus na Terra50.
Na nova era pós-teista, é preciso ter coragem para falar de Deus e com Deus de um jeito novo e testemunhá-lo como fundamento e alvo de toda a realidade, como realização plena da aspiração e do anseio do ser humano e verdadeira felicidade. Nos dias atuais, o obscurecimento de Deus é a crise fundamental a ser enfrentada pela Igreja. No dizer de Walter Kasper, «a Igreja não tem de testemunhar a si mesma e falar continuamente só de si mesma. Ela nem é tão interessante assim e jamais poderá sê-lo para os que estão fora dela»51. A Igreja, que é parte da sociedade, é um sinal da presença de Deus em meio à nossa vida. Nossa missa é de corpo presente: se as pessoas não se interessam por Deus, interessar-se-ão pela Igreja? Na perspectiva eclesiológica, «Deus mantém e sustenta tudo; sem ele, tudo retorna ao nada. Sem o Deus vivo, tudo o mais paira no ar, tudo começa a balançar e desmorona sobre si mesmo»52.
Deus desde o início da relação com o ser humano está presente conosco e em nosso meio, de modo infinitivo e isuperável em Jesus Cristo:
A mensagem de Deus é uma mensagem de esperança, uma mensagem de vida, uma mensagem que nos faz respirar aliviados e que nos dá coragem. Contudo, ela só será isso se não a tornarmos insignificante, inócuo ou até banal. O começo da sabedoria é o temor do Senhor (Sl 111, 10; Pr 1, 7; 9, 10). Temor, nesse caso, não é medo, mas reverência, reverência diante de Deus enquanto sagrado, exaltado acima de tudo que puramente mundano, que justamente por isso é um fascinosum, que, no entanto, também resiste a toda injustiça, a toda violência e a toda mentira e de cada um pede contas, fazendo com que todas as máscaras caiam e todas sejam realmente iguais; é ele que, no final das contas, fará com que o direito, a verdade, a vida e o amor imperem definitivamente53.
No mundo secularizado, falta-nos experimentar Deus: uma virada teocêntrica, a partir de Jesus Cristo54. Walter Kasper diz que:
na mensagem sobre Deus não se trata de algum sentimento vago, de alguma essência suprema, de uma transcendência vaga nem de uma mistura de todos os tipos possíveis de religiões. Trata-se do Deus de Abraão, Isaac e Jacó, do Deus que apareceu para nós concretamente na face humana de Jesus Cristo e que em Jesus Cristo se tornou ser humano entre nós, seres humanos55.
Por conseguinte, escreve que:
As palavras iniciais da Constituição Eclesiástica do Concílio Vaticano II chamam a atenção para esse ponto que decide tudo; são elas: “Lumen gentium cum sit Cristo” - Cristo é a luz dos povos. Não diz que a Igreja é a luz dos povos, não é ela que está no centro, não é ela que deve querer brilhar, é Cristo que deve vir a brilhar e reluzir por meio dela. A Igreja é como a luz, que só reflete a luz que recebe do sol que é Cristo. Por isso, a Igreja só poderá ter futuro se refletir Jesus Cristo e sua mensagem do Reino de Deus vindouro56.
Do ponto de vista da teologia latino-americana, Jesus é um novum, que extrapola os nossos parâmetros e liberta-nos da ditadura daquele que determina o espírito de nossa época, tido como politicamente correto57.
Vendo ele as multidões, subiu à montanha. Ao sentar-se, aproximaram-se dele os seus discípulos. E pôs-se a falar e os ensinava, dizendo:
‘Felizes os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus.
Felizes os mansos
Porque herdarão a terra
Felizes os aflitos,
Porque serão consolados.
Felizes os que têm fome
e sede de justiça,
porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Felizes os puros no coração,
Porque verão a Deus.
Felizes os que promovem a paz,
Porque serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que são perseguido
por causa da justiça,
porque deles é o Reino dos Céus.
Felizes sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas, que vieram antes de vós58.
Nesse trecho, evidenciamos que as bem-aventuranças do Sermão da Montanha são a verdadeira revolução. Por este motivo, devemos atentar plenamente para a demanda de Jesus e não omitir o aspecto que já para os seus contemporâneos era escandaloso. Walter Kasper reflete que «só conseguiremos subsistir às histórias da paixão do nosso tempo se nos aventurarmos na noite da sua paixão, para partilhar com ele o caminho até a ressurreição, para chegar a uma nova vida»59. Na caminhada pelo mundo, resta ao ser humano de hoje voltar a aceitar o convite para andar no discipulado de Jesus. Por este caminho, a virada teocêntrica nos endereça à concentração cristológica60.
4. Um novo jeito de ser Igreja
Na Igreja de Sant’Egídio, em Roma, lar de uma comunidade extraordinária de pessoas leigas e devotadas a trabalhar pelos pobres, há um antigo crucifixo que retrata Cristo sem os braços. Quando perguntei sobre a importância que a imagem tinha para a comunidade, me disseram que ela serve para mostrar como Deus confia em nós para realizar sua obra no mundo61.
No século XX, o Concílio Vaticano II indicou-nos a direção a ser seguida no momento histórico de despedida de formas nacionais de Igreja que estão desaparecendo e de se pôr a caminho rumo a um novo jeito de ser Igreja. Deu-nos uma luz para o caminho que não é como um holofote que clareia toda a pista até o futuro; ele como que deu na nossa mão uma lanterna. Como toda lanterna só ilumina à medida que nós mesmos avançamos, na caminhada do ser humano no mundo, esta laterna proporciona luz sempre só para o próximo passo, ao qual poderão e deverão seguir-se outros passos62.
Não se pode predeterminar a renovação da Igreja por meio de um programa bem arquitetado. Para Walter Kasper, a renovação da Igreja só é possível por meio de um Pentecostes renovado, do qual falou João XXIII por ocasião da convocação e depois no momento da abertura do Concílio Vaticano II, no dia 11 de outubro de 1962. Hoje, o futuro da Igreja é determinado em primeira linha por aqueles que rezam e a Igreja do futuro será uma Igreja dos que rezam63.
No século XX, houve muitas reações contra a concepção eclesiológica que se tinha na teologia católica - caracterizada pelo «cristomonismo» -, provocando a necessidade de uma renovação na Igreja. Destacando não o aspecto visível, mas o seu aspecto «mistérico», essas reações foram acolhidas e desenvolvidas no Concílio Vaticano II. Neste cenário, Bruno Forte - debruçando-se sobre uma verdadeira renovação - diz que todo esse evento foi permeado pela reflexão eclesiológica a partir da fidelidade a Jesus Cristo, Senhor e Luz das nações. Historicamente, o olhar da Igreja para a Igreja, numa perspectiva cristológica, sacramental e antropológica fez superar muitos reducionismos eclesiológicos e a levou a se ver como «mistério», cuja fonte é o Mistério Trinitário. Na interpretação de Bruno Forte, a eclesiologia concliliar é - essencialmente - Trinitária, e a Igreja tem na Trindade sua origem, estruturação, finalidade e consumação64.
No plano teológico, a origem da Igreja faz parte dos desígnios de Deus, realizados por Jesus Cristo e confirmados pelo Espírito Santo. A Igreja é sacramento de unidade prefigurada na Criação e tendente à consumação final. Trata-se de uma realidade manifestada plenamente por Jesus Cristo, de quem a Igreja recebeu as graças necessárias para prolongar no mundo sua ação salvífica, por meio do Espírito Santo. Por esta via, a Igreja desejada pelo Pai, criada no Filho e vivificada no Espírito Santo é - essencialmente - Trinitária, tendo aí sua fonte, origem, características e dinamicidade. A Igreja tende à consumação no seio Trinitário. Nas palavras de Bruno Forte, «a Igreja é ícone da Trindade Santa: por uma ‘não-medíocre analogia’, ela e comparada ao mistério do Verbo encarnado»65.
Na Igreja Católica, a eclesiologia pré-conciliar privilegia o elemento hierárquico na concepção e na prática da vida eclesial - «hierarcologia». Não à toa, dizia a respeito Johann Adam Möhler - com fina ironia - que «Deus criou a hierarquia e, assim, proveu mais do que o suficiente às necessidades da Igreja até o fim do mundo»66.
De acordo com Bruno Forte, a «Constituição Dogmática Lumen Gentium» assinala uma autêntica «revolução copernicana» ao antepor ao tratado sobre a hierarquia o capítulo sobre o «povo de Deus». Isso corresponde pôr em total evidência a dignidade batismal, a unção própria do «sacerdócio comum», pela qual todos os membros da Igreja participam da profecia, do sacerdócio e da realeza do Senhor Jesus - mesmo sob modos e serviços diversos. Destarte, o próprio ministério hierárquico passa a ser visto na e para a Igreja e não para além dela. Quando o Concílio Vaticano II definiu a Igreja como «povo de Deus», referiu-se à revelação histórica do mistério da Trindade na humanidade, isto é, à realidade escatológica concreta e autêntica, social, histórica, política e cultural tanto quanto espiritual e religiosamente - uma eclesiologia que abrange todas as dimensões antropológicas do ser humano67.
Na eclesiologia conciliar, a palavra «povo» torna-se uma categoria teológica central. Isto é de suma importância para o presente estudo porque a Igreja é constituída por batizados- não-ordenados e batizados-ordenados: pessoas humanas concretas - homens e mulheres. De fato, esse aspecto era o que os padres conciliares mais almejavam. Pode-se dizer que um dos traços decisivos do pensamento eclesiológico que se descobre neles, ao longo deste estudo, é este: uma eclesiologia - mais saudável, justa e equilibrada - que engloba uma antropologia. Na interpretação de José Comblin, o Concílio Vaticano II, ao definir a Igreja como «povo de Deus», confirma a grande descoberta da Modernidade: a realidade humana da Igreja. Nas épocas anteriores - Medievo - o mundo sagrado escondia as dimensões da realidade humana. Na Idade Média, tudo vinha de Deus - ou dos deuses; o ser humano não tinha consistência própria, vivia como que conduzido - animado - por forças sagradas numa dependência vivencial total. Na teologia do Concílio Vaticano II, o mistério da Igreja torna-se real, visível, concreto na realidade humana. Dito de outro modo: o Mistério invisível torna-se o Corpo humano palpável no mundo da humanidade68.
De modo magistral, Bruno Forte - diante da pergunta «o que é a Igreja?», levantada em A Igreja ícone da Trindade: breve eclesiologia - aponta, num primeiro momento, o aspecto hierárquico e piramidal, tão determinante na Igreja antes do Concílio Vaticano II. Por conseguinte, mostra a mudança brusca da compreensão da Igreja na sua totalidade como «povo de Deus», batizados, que formam a comunidade dotada de carismas e ministérios. Na Igreja, a hierarquia permanece, mas não mais a única realidade visível, representante da Igreja. No povo de Deus, identificamos clérigos e leigos, que participam do sacerdócio comum de Cristo ao seu modo, exercendo o que lhe é próprio69.
No novo jeito de ser Igreja, evidenciamos como uma das grandes novidades a valorização do leigo no mundo, com reconhecimento do seu lugar na vida de santidade da Igreja, conferindo-lhe direitos e deveres. No interior da Igreja, esta guinada resultou numa profunda eclesiologia de comunhão, tendo como fonte, modelo e impulso a Trindade - uma comunhão que se expressa misteriosamente, de modo privilegiado, na Palavra e nos sacramentos, especialmente no batismo e na eucaristia. Trata-se de uma comunhão ministerial chamada à tríplice função profética, sacerdotal e régia. No plano eclesial, sua visibilidade é concretamente e plenamente realizada nas Igrejas locais, na pessoa do bispo, unido ao Romano Pontífice, através dos meios necessários. Pelo fato de cada Igreja local encontrar-se em relação com as demais, realiza-se assim a universalidade da Igreja que tem no Primado de Pedro o sinal visível dessa união70.
Considerações finais
Teus dons infinitos vêm a mim
apenas sobre estas minhas mãos
tão pequenas,
passa o tempo, contínuas derramando,
e sempre há lugar a preencher71.
Para nós - teólogos/as latino-americanos/as -, a nova era do pós-teísmo revela-se surpreendente, trazendo a religião de volta, até com alguma ostentação, mais umas boas carradas de promessas de prosperidade: «as religiões vão surgindo e florescendo de maneira luxuriante»72. No seio da sociedade contemporânea, os fenômenos ateísmo e a irreligião ocultaram-se. Diante disso, convém ressaltar que:
olhado nas perspectivas e nas dimensões do mundo universalizado pela tecnologia e pela economia, o fenômeno religioso em toda sua pujança é hoje antes de tudo o triunfo da sacralização do imaginário em vias de globalização73.
Partindo da vivência latino-americana e caribenha, a experiência cristã de Deus é a experiência de relação íntima com um Deus que sofre, envolvendo-se na história de pessoas humanas concretas (de corpo-vivente, psique e espírito), deixando-se afetar por ela, e não é apenas um mestre metafísico, que do alto controla tudo: o sofrimento de Deus significa que a história da humanidade não é um teatro de sombras, mas sim o lugar de uma luta real, a luta na qual Deus está totalmente envolvido e em que seu destino é decidido74.
Teologicamente, com a origem trinitária e a estruturação à imagem da Trindade, «povo de Deus» e «comunhão», o Concílio Vaticano II redescobre a destinação Trinitária da Igreja e sua índole escatológica: o povo peregrino rumo à glória da Jerusalém celeste, cuja imagem e antecipação é a figura de Maria. Não é indiscutível que a índole escatológica evidencia a provisoriedade de todas as realizações eclesiais: a Igreja ainda não se constituiu de todo, ao contrário, é - de modo constitutivo - pobre e serva, semper reformanda et purificanda. Ela não se identifica com o Reino, é dele apenas a forma inicial. Por esta via, a meio caminho entre o dom já recebido e a promessa ainda não cumprida, a Igreja cresce em direção à manifestação final do Reino de Deus, auxiliada na peregrinação temporal pela comunhão com a Igreja celeste75.
No dizer de Bruno Forte, «a Igreja não nasce “de baixo”, isto é, de uma exigência de sociabilidade amadurecida na história: a Igreja vem “do alto” e é a realização, já iniciada e ainda não acabada, do plano divino da aventura humana»76. Historicamente, a comunhão eclesial constitui-se na unidade e diversidade dos carismas e ministérios. Para o autor, Trindade não é só a fonte dessa realidade, como também é o seu cume. Por meio da Trindade, o dinamismo da Igreja é impulsionado para uma abertura ao futuro escatológico que ela já experimenta, mas ainda não totalmente. Nesse itinerário, Maria desvela-se Mãe e Modelo ícone da Igreja77.
Magistralmente, Bruno Forte reflete sobre a união entre a Igreja militante, padecente e triunfante, que futuramente encontrar-se-ã0 no seio Trinitário. Nesta tensão entre o já e o ainda não, situa-se a realidade do pecado na Igreja que não a mancha, pois ela é indefectivelmente santa, mas necessita de contínua purificação. A partir dessa constatação, o caminho de «união» com a Trindade passa a ser compreendido mais amplamente, considerando também aqueles que não fazem parte da perfeita comunhão da Igreja. Na realidade militante, todas essas coisas são consideradas, rezadas e trabalhadas na tensão escatológica final, na esperança da suprema e perfeita união de tudo na Trindade. Ela é que é a fonte, a ordem e o fim da Igreja - a Igreja é ícone da Trindade78.
Na tentativa de superar a identificação visibilista entre a Igreja Corpo de Cristo e a Igreja Católica Romana, o Concílio Vaticano II afirma que a única Igreja de Cristo que no Símbolo confessamos una, santa, católica e apostólica subsiste na Igreja Católica. Historicamente, o subsistit corrige o et do texto original, reconhecendo a plenitude da realidade eclesial na Igreja Católica, sem excluir a possibilidade de realização da plenitude em outras igrejas cristãs. Funda-se aqui a doutrina conciliar de “graus de comunhão” que, abandonando a lógica do «tudo ou nada»; a Igreja Católica é a Igreja, as outras comunidades cristãs não o são; reconhece a efetivação do mistério eclesial em vários graus nas várias comunhões cristãs, de acordo com os elementos de eclesialidade: Palavra de Deus, sacramentos, ministério ordenado etc. presentes nelas79.