Introdução
A relação intertextual entre as palavras pronunciadas sobre o cálice na narrativa da instituição da Eucaristia na tradição marcana1 e o “Quarto Poema do Servo” tem despertado grande interesse dos exegetas, teólogos e liturgistas. A causa maior desse interesse é justamente o termo que constituía o principal indício dessa relação, ou seja, o πολλοὶ de Mc 14,24 e Mt 26,28, o qual, por sua vez, é uma tradução do vocábulo hebraico רַבִּים de Is 53,11-12. Desde quando se começou a traduzir a versão latina desse termo na expressão pro multis, a partir da primeira edição típica do Missal Romano promulgado pelo Papa São Paulo VI, fez-se opção por uma versão interpretativa, a qual era motivada pelo desejo de expressar o valor universal do sacrifício redentor de Cristo, mas que causou uma série de questionamentos e debates. Como exemplo pode-se citar o inglês que adotou o for all, o espanhol e o português o por todos, o alemão o für Alle, restando, no entanto, o francês com uma tradução intermediária, ou seja, pour la multitude2.
Este interesse voltou à tona desde quando se começou a traduzir a terceira edição típica do Missal Romano conforme as normas do documento Liturgiam authenticam3. De fato, nesta nova tradução, algumas Conferências Episcopais dos grupos linguísticos mais significativos optaram por uma tradução mais literal do texto no que diz respeito às palavras da consagração do cálice, como, por exemplo, aquelas de língua inglesa que decidiram traduzir o pro multis como for many, o qual substituiu o for all da antiga versão. Também as Conferências Episcopais dos países de língua espanhola que, substituindo o por todos, traduziram o pro multis como por muchos, além daquelas de língua francesa que mantiveram a tradução mais próxima ao pro multis, ou seja, pour la multitude. Por outro lado, a Conferência Episcopal Italiana fez opção por permanecer com a tradução per tutti, aquelas da área linguística alemã com o für Alle e as de língua portuguesa com o por todos4.
Verifica-se assim, ao contrário do que ocorreu com a tradução da primeira edição típica do Missal Romano, a diversificação das traduções do pro multis nas diversas línguas vernáculas, a qual pede um estudo que, mais do que buscar ser uma solução para a questão da tradução do pro multis, seja um instrumento para sua melhor interpretação e compreensão. Para isso, necessita-se contextualizar o debate destacando seus diversos aspectos, validar essa relação intertextual através de critérios apropriados5, buscar o sentido original do termo que se traduziu por multi no seu contexto veterotestamentário e verificar que sentido o termo adquire no seu novo contexto, assim como os efeitos de sentido produzidos por essa relação intertextual.
1. Contextualização das questões a respeito da tradução do pro multis
Com a promulgação da primeira edição típica do Missal instaurado conforme as diretrizes da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium pelo Papa São Paulo VI por meio da Constituição Apostólica Missale Romanum a 3 de abril de 1969 que entraria em vigor no começo do ano litúrgico seguinte, ou seja, a 30 de novembro de 1969, deu-se início ao processo de tradução do referido Missal no qual optou-se na maioria das traduções, no que se refere às palavras da consagração do cálice, pela expressão “por todos” e equivalentes o que gerou algumas reações6.
Tais reações, as quais mostram que não houve uma aceitação pacífica da referida tradução, podem ser observadas no Boletim Notitiae da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos onde foram publicados questionamentos feitos à mesma Congregação a esse respeito com as respectivas respostas7.
Após constatar que “em certas traduções vernáculas da fórmula de consagração do vinho na Missa, as palavras pro multis são traduzidas deste modo: em inglês ‘for all men’; em espanhol ‘por todos’; em italiano ‘per tutti’” questionou-se, em primeiro lugar, “se existe e qual a razão suficiente para introduzir esta variação?”. Ao que se respondeu que “a variação descrita acima é plenamente justificada”, apresentando como argumento o fato de que “segundo os exegetas, a palavra aramaica que foi traduzida para o latim como pro multis, tem o significado de ‘por todos’: a multidão pela qual Cristo morreu não tem limites, o que tem a mesma força de se dizer: Cristo morreu por todos”8.
O segundo questionamento levantado é “se a doutrina transmitida a este respeito no ‘Catecismo Romano redigido por Decreto do Concílio Tridentino publicado por ordem de São Pio V’ deve ser considerada superada?”. Obtendo-se como resposta que «de modo algum a doutrina do ‘Catecismo Romano’ deve ser considerada superada: a distinção sobre a morte de Cristo como suficiente para todos, mas eficaz somente para ‘muitos’, mantém seu valor»9.
Por fim questiona-se “se todas as outras versões do acima mencionado texto bíblico devem ser consideradas menos adequadas e, ainda, se, na verdade, ao conceder aprovação a esta variação vernacular no texto litúrgico, algo de incorreto passou desapercebido e merece correção ou emenda?”. Ao que se responde simplesmente que «ao dar aprovação a esta variação vernacular neste texto litúrgico, nada de errado passou desapercebido ou que requer correção ou emenda»10.
Contudo, mesmo com as repostas às questões postas, as inquietudes persistem. Como tentativa de dirimi-las, Zerwick elabora um estudo que é publicado no mesmo periódico no qual faz a defesa da tradução “por todos” e equivalentes a partir dos dados dos estudos exegéticos do seu tempo11.
A primeira observação feita por Zerwick diz respeito à declaração contida na resposta aos questionamentos acima expostos, a qual afirma que “segundo os exegetas, a palavra aramaica que foi traduzida para o latim como pro multis, tem o significado de ‘por todos’”. Ele esclarece que essa declaração deve ser expressa com mais cautela, pois, «no idioma hebraico (aramaico), para ser exato, existe uma palavra para ‘todos’ e outra para ‘muitos’”, de modo que “a rigor, ‘muitos’ não significa ‘todos’»12. No entanto, continua Zerwick, «porque a palavra ‘muitos’, diferentemente de nossas línguas ocidentais, não exclui a totalidade, ela a pode conotar e de fato a conota, onde o contexto ou a matéria o sugere ou exige»13.
Depois de expor uma série de textos escriturísticos e de Qumran que confirmam essa sua afirmação, questiona-se por que o “por todos” não é explicitamente utilizado. Após declarar que o “por todos”, considerada a soteriologia e a mentalidade semítica da Igreja primitiva, não traria nenhum mal-entendido e que por uma questão estética preferiu-se o “por muitos”, afirma que «o ‘por muitos’ parece ter sido usado pelo próprio Jesus. Isto porque, evocando o Servo Sofredor que se sacrifica, como em Isaías, sugere-se que o próprio Jesus cumpriria o que foi predito sobre aquele Servo do Senhor»14.
Zerwick se questiona ainda sobre o porquê da substituição do “por muitos” pelo “por todos” e equivalentes nas traduções litúrgicas. Encontra a resposta a esse questionamento no fato de que a mentalidade ocidental, ao contrário da mentalidade semita, excluiria a ideia da universalidade da obra da redenção que o “por muitos” conota. Além disso, a alusão ao Servo Sofredor, que para os antigos era eloquente, seria perceptível apenas aos especialistas15.
Chama a atenção também para um possível mal-entendido do “por todos” que para alguns poderia sugerir que todos serão salvos. No entanto, para Zerwich «esse mal-entendido dificilmente existe entre os católicos, ao que parece»16.
Em julho de 2005, é retomada a discussão com uma consulta da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, em acordo com a Congregação para a Doutrina da Fé, a todos os Presidentes das Conferências Episcopais para pedir seus pareceres sobre a questão da tradução do pro multis. As respostas obtidas foram objeto de um estudo realizado por ambas as congregações e um relatório foi enviado ao Papa Bento XVI. A partir das diretivas emanadas por este é enviada uma carta aos presidentes das Conferências Episcopais17, a qual, na linha da Instrução Liturgiam authenticam, pede que se faça «um esforço de maior fidelidade aos textos latinos das edições típicas»18.
Depois de deixar claro que na discussão sobre a tradução interpretativa “por todos” e equivalentes “não está absolutamente em causa a validade das Missas com o uso de uma fórmula devidamente aprovada”, a qual “corresponderia, fora de dúvida, à correta interpretação da intenção manifestada pelo Senhor”, sendo que «é dogma de fé que Cristo morreu por todos os homens e mulheres»19, a missiva expõe uma série de argumentos em favor de uma tradução mais literal do pro multis.
Em primeiro lugar afirma que Mt 26,28 e Mc 14,24, mesmo tendo podido utilizar “todos”, utilizam o “muitos” (πολλῶν), “expressão aliás fielmente adotada por muitas traduções bíblicas modernas”, para se referir “àqueles por quem o Senhor oferece seu Sacrifício, e tal expressão foi enfatizada por algumas escolas bíblicas em ligação com as palavras do profeta Isaías (Is 53,11-12)”20.
Afirma também que o Rito Romano sempre utilizou o “por muitos”, assim como as anáforas dos diversos Ritos Orientais em grego, siríaco, armeno, em línguas eslavas, sempre utilizaram o seu equivalente e, ainda, que o “por todos” é uma explicação que propriamente caberia à catequese, enquanto o “por muitos” é uma tradução fiel do pro multis21.
Por fim, declara que
A expressão ‘por muitos’, enquanto permanece aberta à inclusão de toda a pessoa humana, reflete também o fato de que a salvação não é alcançada de forma mecânica, sem a vontade ou participação de cada um; com ela, o crente seria convidado a aceitar na fé o dom que é oferecido e a receber a vida sobrenatural dada aos que participam nesse mistério, vivendo-o nas suas vidas na medida em que é contado entre os ‘muitos’ a quem o texto se refere22.
Alguns anos mais tarde, Bento XVI, em carta ao presidente da Conferência Episcopal Alemã e a todos os bispos da área linguística alemã23, retoma alguns temas da Carta da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, tais como a indiscutibilidade da afirmação de que Cristo morreu por todos e a referência a Is 53,11-12 em Mc 14,24 e Mt 26,28, através da qual o próprio “Jesus Se fez reconhecer como o Servo de Deus de Isaías 53” e «demonstrou ser aquela figura que a palavra do profeta estava à espera» 24. Nessa linha, aponta o «respeito reverencial da Igreja pela palavra de Jesus” e a “fidelidade de Jesus à palavra da ‘Escritura’”, como “razão concreta da formulação ‘por muitos’»25.
Deve-se ressaltar nesta Carta a afirmação de que houve uma mudança no que se refere ao consenso que havia entre os exegetas nos anos sessenta a respeito de que se devia necessariamente traduzir o pro multis como “por todos”. De fato, então era o pensamento dominante que o termo רַבִּים, presente em Isaías 53,11-12, fosse uma forma expressiva hebraica para indicar a totalidade e, portanto, o termo πολλοὶ, presente em Mc 14,24 e Mt 26,28, seria um “semitismo”, o qual deveria ser traduzido por “todos”, sendo este conceito também aplicado ao latim multi. No entanto, continua Bento XVI,
este consenso exegético esboroou-se; deixou de existir. Na tradução ecumênica alemã da Sagrada Escritura, na narração da Última Ceia, lê-se: “Este é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado por muitos” (Mc 14,24; cf. Mt 26,28). Isto põe em evidência um elemento muito importante: a tradução “por todos” de pro multis não era, de fato, simples tradução, mas uma interpretação. Esta tinha seguramente fundamento, e continua a tê-lo; contudo é mais do que uma tradução, é já interpretação26.
Diante do que foi exposto, deve-se sublinhar que a relação de intertextualidade entre Is 53,11-12 e Mc 14,24/Mt 26,28 também é reconhecida por estudiosos que defendem uma tradução menos literal, como, por exemplo, o mesmo Zerwick, que, apesar de reconhecer a sua existência, defende a substituição do “por muitos”, principal indício de contato entre os textos, pelo “por todos”.
Em face disso deve-se questionar se o argumento proposto por Zerwick de que a citada alusão poderia ser percebida somente pelos especialistas seria suficiente para encerrar a questão e privar as demais pessoas da compreensão da relação intertextual que na intenção do autor devia produzir um determinado efeito de sentido, cuja riqueza teológica só pode ser percebida ao se confrontar Mc 14,24//Mt 26,28 com o “Quarto Poema do Servo”, fazendo com que essa riqueza continue propriedade de um pequeno grupo de especialistas? Ou, ao contrário, como propôs Bento XVI na carta ao Presidente da Conferência Episcopal alemã, na qual usa sete vezes a palavra “catequese”, deve-se partilhar o conhecimento adquirido com os estudos exegéticos através da formação de todos os que fazem parte da Igreja?27.
É esta última alternativa o intuito do presente artigo, que busca aprofundar o significado da relação de intertextualidade entre as palavras pronunciadas por Jesus sobre o cálice na Última Ceia na tradição marcana e o “Quarto Poema do Servo”, como contribuição para uma melhor compreensão do efeito de sentido produzido por tal relação, sendo que, qualquer que seja a opção de tradução feita para o pro multis nas línguas vernáculas, não se pode desconsiderar a riqueza teológica produzida pela utilização da referência ao Servo de Is 52,13-53,12 no texto da instituição em Marcos e Mateus, através da qual o próprio Jesus, às vésperas de sua Paixão, com uma alusão ao “Quarto Poema do Servo” nas palavras pronunciadas sobre o cálice, apresenta-se como o Servo do Senhor cujo sofrimento redentor é descrito naquele poema, dando a chave de leitura de todo o seu ministério e, principalmente, daquilo que se dará nas horas seguintes.
2. Identificação e validação das alusões a Is 52,13-53,12 em Mc 14,24//Mt 26,28
Marcos 14,24 | Mateus 26,28 | Isaías 53,11-12 TM |
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14,24a καὶ εἶπεν αὐτοῖς: | 26,28a τοῦτο γάρ ἐστιν τὸ αἷμά μου τῆς διαθήκης | 53,11a מֵעֲמַל נַפְשׁוֹ יִרְאֶה |
14,24b τοῦτό ἐστιν τὸ αἷμά μου τῆς διαθήκης | 26,28b τὸ περὶ πολλῶν | 53,11b יִשְׂבָּע |
14,24c τὸ ἐκχυννόμενον ὑπὲρ πολλῶν. | 26,28c ἐκχυννόμενον εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν. | 53,11c בְּדַעְתּוֹ יַצְדִּיק צַדִּיק עַבְדִּי לָרַבִּים |
14,24a E disse a eles: | 26,28a "Isto, de fato, é o meu sangue da aliança | 53,11d וַעֲוֹנֹתֵיהֶם הוּא יִסְבֹּל |
14,24b "Isto é o meu sangue da aliança | 26,28b que por muitos é derramado para a remissão dos pecados." | 53,12a Pelo esforço da sua vida ele verá, |
14,24c que é derramado por muitos". | 53,12b será satisfeito. | |
53,12c Por seu conhecimento o justo, meu servo, justificará a muitos | ||
53,12d e suas iniquidades carregará. | ||
53,12e Por isso lhe darei uma parte entre muitos | ||
53,12f e com os poderosos partilhará o saque, | ||
53,12g porquanto derramou sua vida até a morte | ||
53,12h e com os transgressores foi contado. | ||
53,12i No entanto, os pecados de muitos ele levou | ||
53,12j e pelos transgressores intercedeu. | ||
14,24a E disse a eles: | 26,28a "Isto, de fato, é o meu sangue da aliança | 53,11a Pelo esforço da sua vida ele verá, |
14,24b "Isto é o meu sangue da aliança | 26,28b que por muitos é derramado para a remissão dos pecados" | 53,11b será satisfeito. |
14,24c que é derramado por muitos." | 53,11c Por seu conhecimento o justo, meu servo, justificará a muitos | |
53,11d e suas iniquidades carregará. | ||
53,12a Por isso lhe darei uma parte entre muitos | ||
53,12b e com os poderosos partilhará o saque, | ||
53,12c porquanto derramou sua vida até a morte | ||
53,12d e com os transgressores foi contado. | ||
53,12e No entanto, os pecados de muitos ele levou | ||
53,12f e pelos transgressores intercedeu. |
A 28ª edição do Novum Testamentum Graece de Nestle-Aland aponta duas referências a Is 52,13-53,12 no que e refere às palavras proferidas sobre o cálice nas narrativas neotestamentárias. As referências são, mais precisamente, a Is 53,11-12: uma em Mc 14,24 e outra em Mt 26,2828, as quais não são citações propriamente ditas, sendo que nas citações a forma textual veterotestamentária é reproduzida diretamente, e isto não ocorre nestes casos, mas, alusões, pois tem-se uma combinação de certo número de palavras e ideias, as quais dependem de uma passagem veterotestamentária em uma combinação única29.
Estas possíveis alusões devem ser, porém, validadas. Para tanto, aplicar-se-ão os critérios para discernir a presença de referências às Escrituras de Israel no Novo Testamento sugeridos por Hays na obra Echoes of Scripture in the Letters of Paul, e assumidos por Beale na obra Handbook on the New Testament Use of the Old Testament. Tais critérios se aplicam basicamente a partir dos seguintes questionamentos:
No que se refere ao critério da “Disponibilidade” a pergunta a ser feita é se a fonte veterotestamentária da alusão estava disponível ao escritor e aos leitores?
Naquele do “Volume” deve-se questionar a respeito do grau da alusão; qual a intensidade de repetição verbal e dos padrões literários?
No critério da “Recorrência” pergunta-se com que frequência o escritor faz referência à mesma passagem das Escrituras de Israel?
Naquele da “Coerência temática”, questiona-se se a alusão se encaixa e esclarece o tema da passagem do Novo Testamento?
Ao aplicar-se o critério da “Plausibilidade histórica”, pergunta-se se o escritor poderia ter pretendido produzir aquele determinado sentido de efeito provocado pela suposta alusão?
No critério da “História da interpretação” 30 questiona-se se leitores posteriores levaram em conta a alusão?
No critério da “Satisfação”, questiona-se se a utilização da presumida alusão faz sentido no seu contexto imediato e ilumina tal contexto?31
No que diz respeito ao critério da “Disponibilidade”, o uso de Isaías e, particularmente, do Dêutero-Isaías tanto do ponto de vista semântico quanto daquele temático nos Evangelhos de Marcos e Mateus indicam claramente que os autores destes Evangelhos tinham familiaridade com o texto de Isaías, e, de modo especial, com o Dêutero-Isaías cujas promessas eram o fundamento da espera de Israel da realização da redenção através de um novo êxodo que a comunidade cristã acredita ter sido realizado por Jesus de Nazaré32.
No que se refere ao conhecimento do texto de Isaías por parte dos destinatários, deve-se recordar a forte ligação das comunidades cristãs primitivas com o judaísmo e suas práticas, como, por exemplo, a leitura sinagogal das Escrituras que constava de textos da Torah, mas também de textos dos livros proféticos, entre os quais Isaías. Este uso era muito mais comum entre as comunidades da diáspora cujas práticas eram preferencialmente seguidas pelas comunidades cristãs, entre as quais as comunidades marcana e mateana que tinham na diáspora o seu contexto vital33.
Quanto ao critério do “Volume”, a tradição comum a Marcos e Mateus a respeito das palavras pronunciadas sobre o cálice no relato instituição da Eucaristia (Mc 14,24; Mt 26,28) compartilha várias semelhanças verbais com Isaías 53,11-12. O que mais se destaca é o uso do termoהָרַבִּים absoluto de Is 53,11c.12ae, “os muitos”, traduzido na forma πολλῶν em Mc 14,24c e Mt 26,28b.
Destaca-se também o uso do vocábulo ἁμαρτία (pecado), o qual, no entanto, é próprio de Mateus (26,28b) e tem contato com o particípio masculino plural פֹּשְׁעִים (transgressores) que aparece em Is 53,12df. No entanto, em Is 53,12f o aparato crítico da Biblia Hebraica Stuttgartensia, apoiado nos testemunhos de 1QIsa, 1QIsb e da Septuaginta, propõe que aí se leia o substantivo comum masculino singular no status constructus com sufixo da terceira pessoa do masculino plural פִּשְׁעָם, forma bem mais próxima a ἁμαρτία34.
Tem-se também uma referência a Is 53,12c, não tanto à leitura παρεδόθη εἰς θάνατον (entregou à morte) da Septuaginta, mas ao texto hebraico que contém a leitura הֶעֱרָה לַמָּוֶת נַפְשׁוֹ (porquanto derramou sua vida até a morte) onde a raiz ערה traz a ideia de derramar, a qual está em contato com ἐκχέω presente em Mc 14,24c e em Mt 26,28b que contém o mesmo significado. Tem-se ainda o contato semântico entre αἷμα (sangue) que se encontra em Mc 14,24b e em Mt 26,28a e o vocábulo נֶפֶשׁ de Is 53,12c que aqui se traduziu como vida. Sendo que no Antigo Testamento o sangre é o portador da נֶפֶשׁ, ou seja, da vida, da força vital, o sangue é considerado a alma da vida e até mesmo identificado com ela (Gn 9, 4; Lv 17, 11.14; Dt 12, 23). Na tradição marcana do termo “vida” de Isaías é substituído pelo termo “sangue”. Assim sendo, enquanto o Servo derrama sua vida, Jesus derrama seu sangue35.
Quanto ao critério da “Recorrência”, pode-se afirmar que em Marcos, embora não havendo citações diretas do “Quarto Poema do Servo”, tem-se uma série de alusões que visam identificar a Jesus como sendo o Servo Sofredor, tais como a alusão a Is 53,3 em Mc 9,12; a Is 53,7 em Mc 14,49.61; a Is 53,12 Mc 14,49; a Is 53,10-12 Mc 10,45, texto que faz referência à entrega da vida de Cristo para a redenção dos “muitos” como em Mc 14,24 e Mt 26,2836.
Mateus, por sua vez, faz uma citação explícita de Is 53,4 em Mt 8,17. Além disso várias outras passagens aludem a Is 52,13-53,12, tais como a alusão a Is 53,6 em Mt 15,24, a Is 53,7 em Mt 26,63 e a Is 53,10-12 em Mt 20,28, passo paralelo de Mc 10,4537.
No que se refere ao critério da “Coerência Temática”, como no “Quarto Poema do Servo”, em Marcos e Mateus a redenção dos “muitos” vem não através dos poderosos, de um Messias com características reais e militares que vem libertar o povo dos seus opressores e restaurar a glória do trono de Davi, mas através do Servo Sofredor que os Evangelhos identificam com Jesus Cristo. De fato, a declaração de Jesus em Mc 10,45 e Mt 20,28, corroborada por Mc 14,24 e Mt 26,28, situada no contexto da subida para Jerusalém onde anuncia a sua paixão, dá a entender que ele se identifica com o Servo Sofredor de Isaías que dá a sua vida pelo resgate dos “muitos”38.
No critério da “Plausibilidade histórica” pode-se dizer que outros escritores do Novo Testamento falam dos sofrimentos de Jesus fazendo referência a Is 53,11-12. Uns simplesmente identificando-o com o Servo Sofredor de Isaías, outros, indo mais além, explicam o sentido da morte de Jesus a partir de Is 53,11-12 como sendo um “sacrifício de expiação” pelos pecados.
Como representantes do primeiro grupo tem-se Lc 22,37, passagem que merece destaque, pois nela Jesus aplica a si mesmo palavras do “Quarto Poema do Servo”, não fazendo, porém, menção à sua morte vicária. Outras passagens que falam do sofrimento de Cristo fazendo alusão a Is 53,11-12, mas sem referir-se a ele como um sacrifício de reparação são Lc 23,34, At 3,13 e Fl 2,739.
Os textos de 1Cor 15,3 e Rm 4,25, por sua vez, falam do sentido da morte de Jesus como sendo “por nossas transgressões” (1Cor 15,3) ou “por nossos pecados” (Rm 4,25), ideia presente em Is 53,12, como também o fazem Hb 9,28, onde se afirma que “Cristo ofereceu-se uma só vez para levar os pecados de muitos”, e 1Pd 2,24, onde se diz que “os nossos pecados ele mesmo levou em seu corpo sobre o lenho”, além de Rm 5,15.19 onde Jesus Cristo, o novo Adão, por sua obediência, constitui os “muitos” justos. Deve-se destacar aqui 1Cor 15,3 e Fl 2,7 que trazem uma tradição anterior ao Novo Testamento40.
Por fim, no que diz respeito à “Satisfação”, pode-se afirmar que o uso de uma alusão em Marcos e Mateus a Is 52,13-53,12, texto que descreve o Servo cuja fidelidade a Deus e cuja compreensão dos seus sofrimentos como um “sacrifício de expiação” leva a justificação dos “muitos”, somada a uma alusão a Ex 24,8, que no judaísmo, mais especificamente na literatura targúmica, também vem interpretado como um “sacrifício de expiação”, no contexto da Última Ceia, ou seja, no contexto imediatamente anterior à Paixão e Morte de Cristo, dá a chave de leitura para todos os acontecimentos posteriores que devem ser interpretados à luz do texto aludido como a entrega consciente da vida de Cristo entendida como um אָשָׁם 41, “sacrifício expiatório”, em reparação pelos pecados dos “muitos” em consonância com a linha narrativa de ambos os Evangelhos42.
3. O pro multis no seu contexto original
Tendo-se presente as questões que envolvem a tradução e interpretação do pro multis, buscar-se-á ir à fonte dessa expressão, ou seja, ao “Quarto Poema do Servo” e ao seu contexto histórico e literário no qual se tentará perceber o significado da expressão רַבִּים no seu contexto original. No entanto, devido à complexidade da história da redação do Dêutero-Isaías é necessário antes de tudo estabelecer quando se deu a redação de Is 52,13-53,12.
A visão tradicional que atribuía unidade literária a Is 40-55 e situava todo esse bloco no período exílico tem sido questionada. Com base em fortes indícios, como o fato de que nos capítulos 40-48 de Isaías o povo vem quase sempre chamado de “Jacó” ou “Israel”, enquanto em 49-55 utiliza-se os termos “Sião” e “Jerusalém”, como também o fato de que as referências ao rei Ciro, o gênero literário “rib”, as polêmicas contra os ídolos e as referências às antigas profecias encontrarem-se somente nos capítulos 40-48, vê-se a possibilidade de que os capítulos 40-48 e 49-55 tenham um contexto vital diverso43.
Como representante dessa visão sobressai o nome de Berges, o qual foi capaz de fazer uma síntese das novas contribuições em um estudo que contempla tanto a forma final do livro quanto faz uma análise diacrônica do mesmo, compreendido por Berges como uma «abordagem síncrona que reflete a diacrônica»44, o qual propõe um processo redacional para o Dêutero-Isaías em quatro etapas45.
A primeira delas se limitaria a uma coletânea dos ditos de um profeta anônimo no contexto do Exílio da Babilônia provavelmente entre os anos 550 e 539 a.C. Teria como característica o anúncio de Ciro como instrumento do Senhor para a libertação dos exilados, ideia que se desvanece com a conquista da Babilônia, quando Ciro, frustrando as expectativas de quem o considerava como o “ungido” do Senhor, favorece o culto de Marduk. O material deste período contido em Is 40,12-46,11 é denominado por Berges de «Estrato Literário Básico do Dêutero-Isaías»46.
A segunda etapa do processo de formação do Dêutero-Isaías é denominada de “Redação da Golah”. Estimando-se que o ministério profético do profeta anônimo exílico se deu entre 550 e 539 a.C. e tendo presente que um retorno mais significativo dos exilados da Babilônia se deu durante o reinado de Dario como resultado da supressão de duas grandes revoltas, é provável que a “Redação do Golah” seja datada entre 539 e 521. Esta teria sido realizada por um grupo de exilados dispostos a retornar a Jerusalém. Além da inserção de alguns textos no estrato básico, adicionaram a este a maioria do material contido em Is 47-48 e uma conclusão convidando ao retorno: Is 48,20-2147.
A terceira etapa da formação de Is 40-55, segundo Berges, teria sido a “Primeira Redação de Jerusalém” cuja maioria dos textos estaria contida em Is 49-52, capítulos que seriam uma expansão da “Redação da Golah”. O contexto subjacente desta redação seria o dos exilados que fizeram o seu retorno a Sião-Jerusalém depois de 521 a.C. e o seu tema principal a restauração de Sião. Além disso, esta redação também anunciaria o retorno a Jerusalém dos exilados, os quais seriam identificados com o Servo que tem por finalidade proclamar a todos aqueles que ainda estão na diáspora que, tendo o Senhor retornado a Jerusalém (Is 52,8), também estes devem regressar48.
Na quarta etapa, diante do não cumprimento das promessas contidas nas redações anteriores, fez-se necessário uma “Segunda Redação de Jerusalém”, a qual teria buscado responder aos questionamentos que surgiram pelo atraso no cumprimento das profecias utilizando para isso o tema da eficácia da palavra de Deus (Is 40,6-8; 55,10-11). Tal redação seria responsável pela composição da maior parte do material contido em Is 54-55 e pela inserção de alguns textos novos nos capítulos 40-52. Encerra sua obra literária com um apelo aos judeus da diáspora para uma peregrinação a Sião (55,12-13)49.
Para Berges, o “Quarto Poema do Servo” é cronologicamente posterior às duas redações de Jerusalém, sendo o último passo da formação do Dêutero-Isaías a sua inserção no bloco50. Prova disso seria o fato de sua redação pressupor a composição dos outros três “Poemas”, os quais teriam sido elaborados para o contexto no qual estão inseridos concomitantemente às várias etapas de formação de Is 40-55, e o fato de estar perfeitamente encaixado no seu contexto, ou seja, logo após Is 52,10-12, final da “Primeira Redação de Jerusalém”, com seus contatos semânticos com o primeiro Êxodo e a ordem para “sair” e empreender o Novo Êxodo e a “Segunda Redação der Jerusalém” (Is 54-55) que tem como tema principal a repovoação de Sião. O posicionamento do Is 52,13-53,12 entre a ordem para partir e os oráculos de salvação a respeito de Sião, indica que o seu foco está essencialmente relacionado com a restauração de Sião, tanto no espaço interno de Israel quanto com relação às nações, na qual o Servo Sofredor tem um papel fundamental como instrumento nas mãos de Deus para a sua realização51.
De fato, no “Quarto Poema do Servo” pode-se perceber os conflitos próprios desse contexto, ou seja, a relação entre o judaísmo de Sião e o da diáspora na parte central do “Poema” (Is 53,1-11aα), onde se tem um grupo denominado “nós” que se expressa, e entre Sião e as nações nas partes estruturais (Is 52,13-15; 53,11aβ-12), que são dois oráculos divinos, sendo Is 52,13-53,12 provavelmente uma reflexão literária sobre o conflito entre os que retornaram do Exílio e os que permaneceram em Judá em 586 a.C.52.
Neste contexto está inserida a discussão a respeito do significado de רַבִּים, dos quais, para diversos autores, o grupo “nós” faz parte, ou seja, o grupo dos que reconheceram e confessam o Servo como instrumento nas mãos de Deus, para que com o seu sofrimento, com o oferecimento da sua vida como um אָשָׁם, pudesse justificar aos “muitos”. Deste modo, a relação entre o grupo “nós” e os רַבִּים é fundamental para a identificação destes últimos53.
De fato, nos dois oráculos divinos (Is 52,13-15; 53,11aβ-12) encontra-se um paradoxo que é fundamental para a compreensão do “Quarto Poema”, o anúncio definitivo de Deus “é que o Servo terá sucesso, mas o caminho que conduz à exaltação é aquele de um sofrimento até a morte, por amor aos pecadores, tão terrível a ponto de encher de horror os observadores”54. No entanto, o que faz emudecer as nações e seus reis não é a atrocidade dos sofrimentos do Servo, é um fato sem precedentes, uma absoluta novidade, ou seja, «naquilo que se mostra mais improvável, vale dizer, entre os indefesos hebreus no Exílio, e em modo particular ante aqueles em condição mais humilde entre eles, as nações e os reis se esbaram com o tremendo poder que rege o universo e determina a sorte dos povos»55.
Em 53,1-11, continua-se a descrição do Servo que enche de estupor as nações e seus reis, a qual é feita pelo grupo “nós”. Mas, poder-se-ia identificar quem faria parte desse grupo que contempla o Servo “acrescentando a clamorosa afirmação de que através dos seus sofrimentos, Deus perdoou os seus pecados e os curou”? Seria este formado pelos reis e as nações nomeados nos versículos precedentes entendidos como os povos da terra? No contexto dos “Poemas do Servo” esta ideia não é estranha (Is 42,4; 49,6)56, «porém, seguindo a maioria dos comentaristas hebreus e cristãos, parece mais exato reconhecer, naqueles que descrevem o Servo, a voz da comunidade hebraica»57, ou, para ser mais exato, de parte dela. «A expressão רַבִּים, portanto, designa provavelmente a comunidade maior da qual o Servo foi excluído; isso significa, primeiro e acima de tudo, Israel. O ‘nós’ de Is 53,1ss é então um grupo limitado que fala de modo representativo em nome dos muitos a todo Israel»58. De fato, afirma Berges
aqueles que se expressam na primeira pessoa do plural pertencem ao povo de Deus e são uma parte dos “muitos” (rabbîm) (52,14; 53,11-12). Na linguagem do AT, esta expressão linguística designa a totalidade do povo, como acontece, entre outros casos, nos cânticos de lamentação e ação de graças do Saltério (Sl 3,2s; 31,12-14; 40,4; 71,7; 109,30). Neles, o orante libertado por Deus de suas angústias é novamente incorporado à comunidade dos “muitos”. É precisamente o que acontece no final do quadro em Is 53,11b-12, onde a peculiaridade desta reintegração é preservada pela afirmação da exaltação em 52,13. (...). Aquele do conjunto de Israel, ou seja, dos “muitos”, que chegue à nova avaliação dos que retornem do Exílio, pertence ao “nós”, ou seja, aos descendentes do Servo e da mulher Sião, da “devastada” (šmm), cujos filhos são mais numerosos (rabbîm) do que os da mulher casada (54,1). Potencialmente, qualquer um dos “muitos” pode pertencer ao “nós” daqueles que professam, na medida em que reconhecem o sofrimento vicário59.
Essa ideia da identificação dos “muitos” com a totalidade do povo vem corroborada pela análise da situação do povo no Exílio e no Pós-exílio, o qual vivia uma profunda crise provocada pela destruição por parte de uma potência estrangeira daquilo que constituía o coração da sua identidade, ou seja, as suas instituições e os seus costumes60.
Ao se perguntar sobre como seria possível a ocorrência de tamanha tragédia, uma resposta emerge de uma reflexão inspirada pelo Dêutero-Isaías: «Israel se tinha refutado a ser fiel aos termos da aliança com Deus insistindo na desobediência aos mandamentos e voltando-se a outros deuses. Se um pecado e uma apostasia tão flagrantes fossem deixados impunes, a estrutura ética do mundo seria colapsada no caos (Is 42,23-25)»61.
Porém, entendendo alguns a tragédia do Exílio como manifestação da misericórdia de Deus, como único modo encontrado por Deus para fazer com que o povo retornasse a Ele, perguntam-se sobre como se poderia «romper o trágico círculo de pecado e punição, para substituí-lo por aquela restauração que se produz abraçando de todo coração a compaixão e a justiça de Deus»62. Toda essa reflexão «gira em torno ao conceito de Servo do Senhor, cujo abandono à vontade de Deus era assim total a ponto de o fazer assumir sobre si as consequências do pecado da comunidade, embora fosse inocente»63.
Sendo assim, diante da incapacidade dos “muitos”, ou seja, a totalidade do povo de Deus, de reconhecer a própria situação de pecado, situação essa que os sacrifícios dos animais não foram capazes de expiar, Deus tomou o seu Servo inocente e permitiu que a punição merecida pelos “muitos” caísse sobre ele, fazendo com que, deste modo espantoso e extraordinário no qual Servo reconhece os seus sofrimentos como um אָשָׁם, o povo de Deus retornasse à fidelidade64.
No entanto, no Pós-exílio, a questão da pertença a Israel, e, portanto, aos “muitos”, se mostra muito complexa. Quem, de fato, faz parte dos “muitos”? Se de um lado, os judeus da diáspora, reconhecem, ao observar a revitalização de Sião que esta consegue superar a difícil situação em que se encontrava, que o Servo pagou com seus sofrimentos pela sua culpa, e, à medida que fazem o caminho de volta para a terra, os reis das nações reconhecem que o Senhor está do lado do seu Servo, por outro lado, essa revitalização de Jerusalém, antecipada pelo retorno de judeus da diáspora, mas também pelos justos das nações que os seguem, levantou a questão da posição sociorreligiosa da população de Sião: quais critérios devem ser levados em consideração para a admissão no povo de Deus? Um critério estritamente étnico para delinear seus limites tornou-se impraticável desde a perda da condição de Estado e o fim da monarquia, especialmente porque a administração central persa provavelmente não teria interesse em tal “nacionalização”, de modo que a busca pela identidade do Israel pós-exílico não se mostrou isenta de tensões65.
4. O pro multis em seu novo contexto: palavras pronunciadas sobre o cálice na tradição marcana e na liturgia
4.1. Contexto histórico do Evangelho de Marcos
É geralmente aceito que o Evangelho de Marcos foi composto por volta dos anos 60 e 70 d.C.66. Partindo-se do princípio de que como «Marcos escreveu seu evangelho para encorajar e estimular seus leitores a refletir sobre a própria vida à luz da história de Jesus, o evangelho também pode servir como uma ‘janela’ sobre as circunstâncias nas quais o evangelho foi escrito»67, pode-se afirmar que o Segundo Evangelho parece ser destinado a uma comunidade ou mais comunidades constituídas essencialmente por cristãos provindos da gentilidade. Disto vem a necessidade não só de se traduzir alguns termos técnicos do judaísmo (Mc 7,11), mas também de se explicar a noção judaica de impureza ritual (Mc 7,2) e de se prolongar na explicação dos detalhes das abluções judaicas (Mc 7,3-4). Vê-se ainda indícios da forte presença de gentios convertidos no combate contra a pureza levítica em benefício da pureza moral (Mc 7,14-23), na liberdade que Jesus toma em relação ao sábado e na subordinação a que o submete ao afirmar que o Filho do homem é Senhor também do sábado (Mc 2,27-28)68.
Por outro lado, a distância em relação às origens é menor em comparação com os outros dois evangelhos sinóticos. Deduz-se isso da forte ligação que o Evangelho de Marcos tem com as realidades do tempo de Jesus ou das primeiras comunidades da Palestina: Marcos conserva os nomes dos filhos de Simão de Cirene (Mc 15,21), suprimidos, por sua vez, por Mateus (Mt 27,32), provavelmente por considerá-los sem interesse para seus leitores; ao contrário dos outros sinóticos, omite-se o nome do sumo sacerdote, o que parece apontar a um ambiente e a uma época em que se sabia que seu nome era Caifás; localiza os escribas em Jerusalém, preservando uma situação anterior ao ano 70 d.C. quando as academias rabínicas estavam prevalentemente na Judeia; os saduceus são apresentados no Templo fazendo oposição a Jesus (Mc 12,18) como algo que ainda mantem contato com a realidade, enquanto em Mateus, estes fazem as suas intervenções na Galileia (Mt 16,1), mostrando ser apenas uma memória adequada para encarnar a oposição a Jesus (Mt 16,1.6.11)69.
Pode-se deduzir também a partir dos temas recorrentes no Evangelho de Marcos, tais como o tema da cruz, da oposição por parte dos poderosos, das divisões internas, das perseguições, das traições, que se tratava de uma jovem comunidade cristã que muito havia sofrido por causa do nome de Jesus e ainda esperava mais sofrimento70.
Todo isso confluiria, somando-se os testemunhos e os dados históricos, para um consenso no que se refere à localização da redação do Evangelho de Marcos em Roma por volta do ano 70 d.C.71. De fato, «esses temas se encaixam bem na experiência dos cristãos de Roma no final dos anos 60 do primeiro século d.C. Há evidências históricas confiáveis de que a comunidade cristã de Roma sofreu perseguições, condenações brutais e traição entre familiares em um certo período depois do grande incêndio de 64 d.C. sob Nero»72.
No entanto, desde o final da década de 1950 esse consenso foi se desfazendo com o surgimento da tendência em deslocar a composição do Evangelho de Marcos mais para o leste, para o Levante, mas especificamente para a região da Galileia, para alguma cidade helenística da Palestina ou para o sul da Síria, em um período posterior às guerras judaicas (66-73 d.C.), evento do qual a comunidade marcana se encontraria próxima geográfica e temporalmente e que teria exercido grande influência sobre ela principalmente no que se refere a uma certa tendência sectária e apocalíptica de sua parte. Certamente essas propostas têm a vantagem de explicar melhor a proximidade de Marcos com o ambiente das origens e o seu forte viés apocalíptico, mas o fato de considerarem os textos apocalípticos de Marcos como profecias ex eventu, como também o apelo que fazem ao caráter e experiências das tão pouco conhecidas primeiras comunidades cristãs da Palestina devem ser tratadas com muita cautela73.
Quanto à afirmação da Galileia como lugar de origem do Evangelho, o desconhecimento de sua geografia que o autor demonstra depõe contra essa localização. As outras regiões que foram propostas, delas não se encontra pistas sérias no Evangelho. A favor de Roma, tem-se vários argumentos que, juntos, têm seguramente o seu peso. Deve-se lembrar dos contatos, relatados acima, do Evangelho com os dados da história romana e da comunidade de Roma. A isso se somam, no plano da linguagem, os numerosos latinismos espalhados pelo texto de Marcos. Embora muitos empréstimos linguísticos também estejam presentes em outros textos - incluindo Lucas-, sua quantidade em Marcos continua impressionante e os exemplos não se limitam à vida administrativa ou militar, da qual se teria termos técnicos. Explicando aos seus leitores que as duas pequenas moedas gregas equivalem a um quadrante romano (Mc 12,42), o evangelista deixa claro que está escrevendo para pessoas que não conheciam o primeiro termo. Ao designar uma mulher, em Mc 7,26, como “siro-fenícia” recorre a uma forma latina somente atestada em grego a partir do séc. II d.C., mostrando ser um latinismo74. Além disso, a necessidade que encontra o autor do Evangelho de Marcos de traduzir termos aramaicos para o grego sugere que escreveu em uma área onde o aramaico não era familiar75.
4.2. Contexto histórico do Evangelho de Mateus
A estrutura do Evangelho de Mateus, os seus contatos linguísticos com a Septuaginta, a ênfase que dá ao cumprimento das Escrituras de Israel, às questões relacionadas à compreensão judaica da Lei, às tradições farisaicas e às interpretações dos escribas, a atenção dada às controvérsias com líderes religiosos judeus, apontam para a composição deste evangelho em ambiente de cultura judaica. Corroboram essa constatação o destaque dado às raízes judaicas de Jesus, “filho de Abraão”, e ao seu messianismo, “filho de Davi” (Mt 1,1) e às questões legais. Além disso, o evangelho contém muitos semitismos, palavras e expressões da língua hebraica e costumes judaicos para os quais nenhuma explicação é dada ao contrário de Marcos e João e pressupõe nos seus leitores o conhecimento das Escrituras de Israel76.
No entanto, apesar de deixar claro que a missão primeira de Jesus era reunir “as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24), insiste no tema de Israel como “luz das nações”, mostrando estar totalmente aberto à missão aos gentios, tendência essa que já se vislumbra desde o começo do evangelho com a vinda dos Magos (Mt 2,1-12) e vem confirmada com mandato missionário (28,19-20). A partir disso pode-se identificar o ambiente da composição do Evangelho de Mateus com uma comunidade cristã judaico-helenística ainda ligada às suas origens judaicas, mas em um processo de abertura aos gentios com base no universalismo encontrado nas próprias Escrituras de Israel77.
Boa parte dos estudiosos defendem que o Evangelho de Mateus foi composto por volta de 80-85 d.C. Porém, essa datação após a guerra judaica e a exclusão dos cristãos da sinagoga foi questionada por Leske78. Como argumentação para uma datação mais tardia de Mateus defende-se que Mt 22,7 e Mt 24 pressupõem a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. Porém, para Leske a linguagem de 22,7 é baseada em textos veterotestamentários (Is 5,24-25; Ml 3,19) e Mt 24 é formulado em termos apocalípticos gerais que não pressupõem um conhecimento particular dos acontecimentos de 70 d.C. Por outro lado, ressalta uma familiaridade do Evangelho com o culto e a cobrança do imposto do Templo (5,23-24; 23,16-22; 17,24-27)79.
Do mesmo modo, para alguns as discussões sobre a Lei e a referência às “suas sinagogas” indicariam que Mateus foi escrito após a exclusão dos cristãos das sinagogas. No entanto, segundo Leske, devido à influência farisaica, alguns temas teriam permanecido importantes em qualquer ambiente de cultura judaica, por este motivo o Evangelho, inserido nesse contexto, trata do tema da Lei e da relação de Jesus com ela. Quanto à referência às “suas sinagogas” poderia indicar o controle exercido pelos fariseus nessas instituições. Além disso, Mt 23,2-3 não faria sentido se a comunidade de Mateus já não frequentasse as sinagogas. Sendo assim, ao se inserir Mateus no seu próprio contexto judeu-cristão, pode-se perceber que as questões levantadas nesse evangelho são questões que mantiveram uma importância constante para os judeus-cristãos que não romperam os laços com a sua herança judaica. Deste modo, Leske defende que o ambiente subjacente ao Evangelho de Mateus reflete bem o tempo de Jesus e da geração apostólica e não necessariamente o período posterior à exclusão dos cristãos da sinagoga80.
Porém, não obstante essa argumentação, que tem a vantagem de ampliar os horizontes da discussão, mas não é suficiente para fechar a questão, seja digna de menção, estudos como o realizado por Sicre, Fabris, Luz e Levoratti defendem uma datação mais tardia para este Evangelho81. A respeito disso, Levoratti, após descrever o judaísmo anterior ao ano 70 d.C. dividido em diversos grupos e seitas e a grande transformação pela qual passou após a destruição de Jerusalém, afirma com termos categóricos:
A comunidade de Mateus colidia com a forte oposição de um judaísmo unido e hostil. Este grupo monolítico, totalmente dominado pelos fariseus, era um Judaísmo sem Templo, centrado no estudo e observância da Torá, e dirigido pelos rabinos que estavam na origem (ainda distante) da Mishná e do Talmude. Portanto, a imagem que Mateus traça corresponde às características do judaísmo que conseguiu sobreviver à crise do ano 70 d.C.82.
Quanto ao local da composição, os que defendem que o Evangelho de Mateus fosse uma comunidade judaico-cristã sugeriram vários locais na Palestina, na Síria ou em outras localidades da diáspora, tendo suscitado maior consenso, porém, Antioquia da Síria83.
4.3. A compreensão do pro multis no seu novo contexto literário
Volta-se a atenção em um primeiro momento para o contexto literário neotestamentário de πολλοὶ objeto deste estudo, ou seja, as narrativas da instituição da Eucaristia em Marcos e Mateus e a relação entre elas. Para Pesch um exame crítico dos quatro testemunhos neotestamentários da Última Ceia (Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-26) leva à premissa literária menos controversa, ou seja, à afirmação de que a versão de Mateus depende daquela de Marcos da qual é, não uma adaptação que levou a uma estilização para uso litúrgico, mas reflete as intenções redacionais, podendo-se afirmar que é uma forma tardia secundaria, a qual deve ser entendida em todos os seus traços como continuação da forma tradicional contida na versão de Marcos, sendo portanto ambas agrupadas naquilo que usa chamar de tradição marcana84.
Tendo-se posto essa premissa, deve-se afirmar que o termo πολλοὶ presente nas palavras pronunciadas sobre o cálice em Marcos e Mateus no contexto da Última Ceia (Mc 14,24: ὑπὲρ πολλῶν; Mt 26,28: περὶ πολλῶν) e o efeito-de-sentido que produz, ou seja, a identificação de Jesus com o Servo de Is 52,13-53,12 que veio dar a sua vida pelos “muitos”, não é algo isolado, mas faz parte da dinâmica de ambos os Evangelhos. Prova disso é o fato de foi utilizado também no contexto da subida para Jerusalém em uma expressão quase idêntica àquela da Última Ceia nas palavras de Jesus dirigidas aos filhos Zebedeu: «O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (λύτρον ἀντὶ πολλῶν)» 85 (Mc 10,45; Mt 20,28).
Sendo assim, a relação intertextual entre o texto isaiano e a tradição marcana da instituição lança uma luz no que se refere à compreensão dos Evangelhos de Marcos e Mateus naquilo que diz respeito à missão de Jesus em sua totalidade, pois esta relação dá o sentido tanto da subida pra Jerusalém com tudo o que ela engloba, na qual Jesus é entendido como o Servo que vai ao encontro da sua missão redentora, como da sua paixão e morte que, entendidas a partir do “Quarto Poema do Servo”, são o ápice da entrega da vida de Jesus Cristo para a justificação dos “muitos”.
Porém, no que se refere a essa interpretação do sentido dos sofrimentos e a morte de Jesus à luz do “Quarto Poema do Servo”, a Igreja nos seus primórdios fez um percurso até chegar a tal entendimento. Em um primeiro momento esses eventos foram vistos como algo negativo, fruto da maldade de alguns, sendo superados apenas pela ação divina ressuscitadora (At 2,23-24). Em uma segunda fase passa-se a entender a paixão e morte de Jesus como uma passagem obrigatória para que ele chegasse à glória da ressurreição (Lc 24,26). Somente em uma terceira fase dá-se um salto qualitativo e consegue-se chegar à compreensão de que a paixão e morte de Jesus tinham um valor por si mesmas, sendo o cumprimento de um desígnio divino preanunciado nas Escrituras de Israel, e, de modo especial, na figura do Servo Sofredor do “Quarto Poema do Servo” de Isaías. «Com toda probabilidade, o próprio Jesus já tinha compreendido a sua morte à luz dessas figurações bíblicas. Os discípulos recordaram-se delas, avançando na mesma direção. Deus quis que seu Filho sofresse e morresse na cruz para que nos fosse concedido o perdão dos pecados»86.
Este entendimento é explicitado nas narrativas da instituição da eucaristia da tradição marcana, de modo que Pesch, referindo-se à narrativa de Marcos em um contexto que faz referência a Is 52,13-53,12, pode afirmar que
nosso texto é um dos documentos teologicamente e cristologicamente mais significativos da tradição sinótica. Durante o banquete pascal, em que se recorda o resgate de Israel do Egito e se invoca a sua salvação escatológica por parte do Messias, Jesus mantém-se fiel ao próprio mandato como a missão de salvação até à sua morte, interpretando a sua própria morte como morte expiatória. Na sua morte, Deus concede a expiação a Israel também pela culpa de ter rejeitado o seu Filho (...), o Cristo; concede a expiação somente pela graça numa manifestação extrema do seu amor, que chega até à morte. A expiação do Messias tem uma qualidade nova, a qualidade da incondicional disponibilidade divina a perdoar, que Jesus havia proclamado no anúncio do reino de Deus. Com a morte de Jesus, Deus coloca em ato uma “nova aliança”, que consente aos mensageiros de Jesus convidar todos os povos a participar desta comunhão87.
No que se refere propriamente ao entendimento de πολλοὶ nas palavras pronunciadas sobre o cálice em Marcos e Mateus, passa-se de uma compreensão veterotestamentária que não obstante seja inclusiva, mostra-se menos ampla em relação ao novo contexto sendo que abrangeria somente a totalidade do povo de Israel, embora não se deva esquecer toda a discussão pós-exílica sobre quem fazia parte do povo de Deus diante da inaplicabilidade de um critério meramente étnico, a um entendimento mais amplo que compreenderia a totalidade dos povos da terra, os quais são os destinatários da salvação trazida por Cristo. Corrobora esse entendimento a própria constituição das comunidades marcana e mateana formadas também por pessoas provindas da gentilidade, o que aponta para uma abertura dessas comunidades ao universalismo salvífico explicitado no mandato missionário presente em ambos os Evangelhos onde os discípulos são enviados a dar continuidade à missão de Jesus, que está e atua com eles, de anunciar a salvação a todos os povos/criaturas e a convidá-los a fazer parte do novo povo de Deus (Mc 16,15-20; Mt 28,16-20)88.
Também houve uma mudança na compreensão da figura do Servo Sofredor que no seu contexto original veterotestamentário, provavelmente, era entendido em termos coletivos, ou seja, como sendo os membros do povo que foram exilados e que através dos seus sofrimentos fizeram mudar a sorte de Sião, passando-se no contexto neotestamentário a uma compreensão individual, onde o Servo Sofredor de Isaías é identificado com a pessoa de Jesus de Nazaré que oferece a sua vida como אָשָׁם pela justificação dos “muitos” carregando sobre si as suas culpas (Mc 14,24; Mt 26,28; Is 53,11-12). Deste modo, é Jesus Cristo aquele que, com a oferta total de sua vida, abre a possibilidade da salvação a todos os povos. Além disso, assim como no contexto do “Quarto Poema do Servo” o Servo Sofredor ao entregar-se como אָשָׁם é aquele que produz uma mudança radical na situação de Sião/Jerusalém, Jesus realiza o Novo Êxodo (Is 52,11) libertando a humanidade do poder do pecado e da morte. Esta identificação de Jesus com o Servo e sua missão é o principal efeito de sentido produzido pela relação intertextual entre o texto isaiano e a tradição marcana das palavras sobre o cálice89.
Põe-se agora o foco nos textos da liturgia romana, na qual tem-se uma especificidade, ou seja, o pro multis, próprio da tradição marcana (Mc 14,24; Mt 26,28), aparece unido na fórmula da consagração do cálice ao pro vobis, que provém da tradição paulino-lucana e vem utilizado por Lucas para o pão e o cálice (Lc 22,19-20) e por Paulo somente para o pão (1Cor 11,24). Isso ocorre pela primeira vez no Sacramentário Gelasiano onde acrescenta-se após Mysterium fidei as palavras qui pro vobis et pro multis effundetur in remissione peccatorum. Perceba-se a presença do complemento in remissione peccatorum, o qual indica a finalidade do sacrifício de Cristo e provém de Mt 26,2890.
No que diz respeito à diferença de termos utilizados pela tradição marcana e pela paulino-lucana, ambas as tradições supõem uma atualização litúrgica das palavras da narração institucional, atualização esta que é a melhor explicação para tal diferença91. Sendo assim, o “vós” de Lucas e Paulo, próprio do âmbito litúrgico e celebrativo, deve ser posterior ao “muitos” de Marcos e Mateus que trazem uma tradição mais arcaica, pois «na práxis litúrgica, a forma interpelativa substitui a enunciativa; por conseguinte, o pronome hymón deve produzir o efeito de que cada um dos participantes se considere pessoalmente interpelado pelo Senhor»92.
Porém, no “contexto da Última Ceia o ‘por vós’ identifica-se com o ‘por muitos’”, pois “o sacrifício de Cristo não estava direcionado apenas àqueles que estavam com Ele no cenáculo (vobis)”93, ou seja, à «comunidade pascal concreta que Jesus, como pai de família, tem diante de si na Última Ceia»94, «mas a todos os homens (multis)»95, o que denota aquele caráter inclusivo amplo de πολλοὶ assumido por Marcos e Mateus a que acima se fez referência, mas também por outros escritos do Novo Testamento96. De modo que “os presentes são incluídos sem perder a ‘tensão’ universal do sacrifício”, ou seja, o «vobis inclui os presentes que, porém, devido à atualização do sacrifício, serão todos aqueles que estejam participando ao longo de toda a história, e multis destaca o propósito de dar os frutos de sua morte na cruz a todos os que creem ao longo de todos os séculos»97.
Sendo assim, Giraudo defende a ideia de que para explicar a fórmula pro vobis et pro multis se deve ter presente a técnica própria de recepção dos formulários litúrgicos, os quais «preocupados em não omitir nenhum dado escriturístico sobre a narrativa da instituição eucarística, combinaram e justapuseram a expressão pro vobis da tradição lucano-paulina e a expressão pro multis da tradição mateano-marcana, consideradas como duas variantes de significado idêntico, que se confirmam e se reforçam mutuamente»98.
Conclusão
Ao realizar-se este percurso, em um primeiro momento, pôde-se perceber nas discussões a respeito da tradução do pro multis que há um consenso no que diz respeito ao valor universal da ação salvífica de Cristo, de modo que no debate entre os que defendem a tradução “por muitos” e os que defendem o “por todos” este dado da fé cristã é uma premissa inquestionável.
Outro consenso entre as partes do debate apresentadas neste artigo é que nas palavras proferidas sobre o cálice na tradição marcana, a expressão ὑπὲρ πολλῶν de Mc 14,24 e περὶ πολλῶν de Mt 26,28 são uma referência ao “Quarto Poema do Servo”. Porém, se para uns essa relação intertextual é o principal motivo para que se deixe evidente o seu principal indício através de uma tradução mais literal, ou seja, o pro multis que deveria ser traduzido como “por muitos” e seus equivalentes nas diversas línguas vernáculas, auxiliando assim aos leitores/ouvintes a percebê-la; para outros, o eco intertextual de Isaías nas palavras pronunciadas sobre o cálice em Marcos e Mateus seria somente ouvido por especialistas, motivando este fato uma tradução interpretativa.
Deve-se ainda salientar a constatação de que a alusão a Is 52,13-53,12 em Mc 14,24 e Mt 26,28, tendo superado todos os critérios utilizados para a sua verificação, se mostra bastante contundente, se encaixa perfeitamente e auxilia na compreensão da linha narrativa desses Evangelhos que apresentam a Jesus Cristo como o Servo que oferece a sua vida como אָשָׁם em favor dos “muitos” como o fazem outros escritos neotestamentários.
Ao adentrar no contexto histórico e literal do qual se originou a expressão pro multis, pôde-se perceber que no “Quarto Poema do Servo” o termo רַבִּים, do qual provém a citada expressão, tem um sentido inclusivo, ou seja, não é visto como o contrário de todos, sendo entendido como a multidão formada pela totalidade do povo de Deus que é justificado pelos sofrimentos do Servo, o qual, neste contexto, é visto em sentido coletivo, ou seja, como aquela parcela do povo que foi para o Exílio da Babilônia.
No contexto do relato institucional de Marcos e Mateus o termo רַבִּים, traduzido para o grego como πολλοὶ, permanecendo com um sentido inclusivo, sofre, porém, uma ampliação no seu entendimento, ou seja, não é mais visto como somente a totalidade do povo hebreu, mas engloba todos os povos da terra que são os destinatários da ação salvadora de Jesus Cristo, o Servo Sofredor que carrega sobre si os pecados dos רַבִּים e ao mesmo tempo realiza o Novo Êxodo prometido pelo Dêutero-Isaías, do qual ele é o instrumento para a sua realização.
No que se refere ao pro multis na liturgia da Igreja latina deve-se salientar o fato de que este é precedido pelo pro vobis paulino-lucano no relato anafórico institucional, o qual, para além do debate meramente filológico, “torna a missão de Jesus absolutamente concreta para os presentes. Estes não são simples elementos anônimos de uma enorme totalidade, mas cada indivíduo sabe que o Senhor morreu precisamente por ele: morreu ‘por mim’, ‘por nós’”. Mais ainda, “‘por vós’ engloba o passado e o futuro, referindo-se a mim de modo absolutamente pessoal; nós, que estamos aqui reunidos, somos conhecidos e amados como tais por Jesus”. Sendo assim, pode-se afirmar que o «‘por vós’ não é uma restrição, mas uma concretização, válida para cada comunidade que celebra a Eucaristia e, nela, se une concretamente ao amor de Jesus»99.
Da mesma forma, a dialética “muitos”-“todos” que diz respeito ao pro multis100, tão presente no contexto da tradução da terceira edição típica do Missal Romano, tem o seu significado próprio. O termo “todos” situa-se no plano ontológico e transmite a ideia de que o ser e agir de Jesus de Nazaré abrange toda a humanidade de todas as épocas, engloba o passado, o presente e o futuro. Porém, historicamente, a ação salvífica de Cristo chega à comunidade concreta daqueles que a Ele aderem pela fé e, participando da Eucaristia que atualiza a entrega da vida de Jesus “por muitos” ao longo dos séculos, colhem o seu fruto redentor101.