Introdução
Historicamente, as cidades europeias, latino-americanas e estadunidenses contrastam substancialmente no que tange à distribuição das classes sociais no espaço urbano. Virtualmente, nenhuma cidade europeia e latino-americana acusa índices de segregação residencial racial-étnica de similar magnitude às metrópoles americanas. Tampouco se comprova a existência de guetos urbanos acometidos pela deprivação dos recursos socioinstitucionais, nem se delineiam expressivas tendências de desinvestimento pelo Estado ou de perda desproporcional das oportunidades empregatícias em bairros que concentram altas taxas de pobreza e desemprego. Processos de segregação residencial económica produziram uma expressiva divisão socioespacial em ambas as metrópoles estadunidenses e latino-americanas ainda que, no último caso, assiste-se recentemente à (re-)emergência de novas contigui-dades geográficas entre classes socioeconomicamente distantes, fenómeno largamente desconhecido nas metrópoles estadunidenses.
Não obstante, estudos urbanos comparativos vêm assinalando que o acirramento das clivagens socioeconómicas na escala nacional, potenciadas pela etnização das inequidades de renda, produzem uma maior convergência entre os três contextos considerados, dinâmica frequentemente imputada à reestruturação do mercado de trabalho e ao enfraquecimento da capacidade desmercantilizadora do sistema de bem-estar nos países onde existia uma forte tradição de intervenção regulatória no mercado laboral e habitacional.
Posterior às três décadas pós-guerra, período marcado por uma expansão sem precedentes do mercado de trabalho assentada no regime socioprodutivo fordista-keynesiano, acompanhada pela ampliação do sistema de bem-estar social, a reestruturação produtiva e o declínio da demanda do setor industrial-manufatureiro instituíram uma nova divisão social do trabalho, marcada não mais pela inserção diferenciada do indivíduo na sociedade assalariada, senão pelo dualismo entre inseridos e excluídos do sistema produtivo capitalista.
Consoante Castel (2000), os regimes socioprodutivos pós-fordistas tendem a engendrar duas variações de dualização do mercado laboral. No primeiro cenário, geralmente associado com os países europeus de tradição social-democrática, prevalece um alto grau de estabilidade do vínculo empregatício e da segurança social dentro do grupo de trabalhadores assalariados, contrastando com um número elevado de pessoas desempregadas, dependentes dos programas redistributivos.
No segundo cenário, considerando-se o liberalismo capitalista dos Estados Unidos como modelo ideal-típico, registra-se uma redução da taxa de desemprego enquanto o mercado laboral desregularizado produz significantes disparidades em termos de renda e de proteção social ao recorrer largamente a estratégias de flexibilização dos empregos de baixa produtividade e remuneração.
Na América Latina, a implementação do mercado laboral nacional se apresentou como processo inconcluso, resultando da baixa capacidade de absorção da mão de obra pela indústria de substituição das importações e de um sistema de bem-estar que oscila entre altamente estratificado ou abertamente excludente, ambas as constelações reproduzem enormes clivagens socioeconómicas e uma expressiva divisão entre o mercado laboral formal e informal.
Nos Estados Unidos, recorreu-se a um conceito teórico mais específico dentro da discussão sobre a pobreza urbana, a underclass, que remete tanto para uma situação social particular de deprivação socioeconómica -que acomete os afro-americanos e outros grupos étnicos minoritários desempregados ou precariamente inseridos no mercado laboral que habitam os guetos- quanto para um debate ideologicamente polarizado entre conservadores e liberais acerca da responsabilidade do Estado de intervir em favor dos grupos mais vulneráveis.
Na Europa, o conceito de exclusão social deve ser compreendido à luz do enfraquecimento da sociedade assalariada e da erosão do contrato social, e remete, por um lado, à reestruturação do mercado de trabalho ao produzir um crescente contingente de desempregados e, por outro, às alterações na ordem sociointeracional do indivíduo, o que provoca, no ultimo caso, seu isolamento social (Castel, 2000; Paugam, 2008).
Finalmente, na América Latina, o conceito de marginalidade ganha uma dimensão social muito mais ampla devido ao enorme contingente populacional que constitui o "exército industrial de reserva", visualizado ora como parte disfuncional da sociedade pelos exponentes da Teoria de Modernização, ora como "massa marginal" parcial ou aleatoriamente integrada no sistema socioprodutivo pelos proponentes da Teoria da Dependência (Roberts, 2005; Saravi, 2007).
Na dimensão territorial, as repercussões da reestruturação do mercado laboral para a organização espacial das metrópoles têm sido controverti-damente discutidas a partir das hipóteses da global city (Sassen, 1991), quartered city (Marcuse e Van Kempen, 1997) e layerd cities (Háussermann, Kronauer e Siebel, 2004), entre outras.
A relevância da dimensão territorial como fator de reprodução da pobreza já foi largamente reconhecida nos Estados Unidos e na América Latina, onde a desigual distribuição de renda historicamente têm uma maior expressão na organização socioespacial das grandes cidades (Sampson, 2012; Wilson, 1996).
Desde a década de 1990, a sociologia urbana estadunidense vem explorando as intercausalidades entre a clusterização espacial de determinadas desvantagens socioeconómicas que acometem o bem-estar de pessoas em função da sua inserção em determinados contextos sociorresidenciais e a reprodução da pobreza urbana nas metrópoles.
O conceito sociológico neighborhood effects (efeito-território) se define a partir de uma perspectiva ecológica, sendo que a vizinhança é visualizada como uma configuração transacional que, através de processos socioin-teracionais e institucionais, exercem uma influência no bem-estar e no comportamento dos seus habitantes, independentemente dos atributos atrelados à escala do indivíduo e da família (Sampson, 2012).
As pesquisas conduzidas em distintas cidades europeias frisam a importância de manter a neutralidade do conceito efeito-território que deveria atender às desvantagens que impactam no bem-estar e na mobilidade socioeconómica do indivíduo quanto às redes de suporte social e institucional, capazes de atenuar as situações de vulnerabilidade (Atkinson e Kintrea, 2002).
No entanto, o reconhecimento de causalidades bidirecionais entre o contexto sociorresidencial e o indivíduo, assim como o da estreita imbricação entre uma deficitária infraestrutura do bairro e as dimensões social e simbólica, teve uma série de implicações para as políticas de intervenção nos bairros socioeconómica ou etnicamente homogêneos.
Na América Latina, estudos que analisam as consequências da segregação residencial macrourbana, referindo-se ao padrão de isolamento caraterizado pela distância geográfica entre os bairros periféricos e as centralidades da cidade em relação à oferta de emprego e aos serviços urbanos, vêm assinalando desde a década de 1970 o impacto cumulativo de externalidades negativas no bem-estar dos seus habitantes, com respeito ao acesso ao mercado laboral, ao sistema de educação e ao equipamento urbano.
Recentemente, observa-se um crescente interesse em examinar as relações entre a proximidade geográfica e a distância social que subjazem às interações sociais e económicas entre os habitantes das favelas centrais e os moradores de bairros das classes média e alta, atendendo-se para uma organização socioespacial mais fragmentada das metrópoles.
Neste trabalho, propõe-se a refletir sobre as convergências e dissonâncias dentro da exploração do impacto do efeito-território no bem-estar e desempenho socioeconómico do indivíduo, valendo-se, para isso, nas primeiras três seções, de umajustaposição dos principais desdobramentos teórico-metodológicos dentro da abordagem da pobreza urbana nos três contextos em apreço. Na quarta seção, reflete-se criticamente sobre o valor heurístico do conceito efeito-território para os estudos da sociologia urbana e discutem-se suas implicações para o campo das políticas de intervenção urbana, enquanto as considerações finais sintetizam os principais resultados auferidos neste trabalho.
A contingência de estudos da vizinhança dentro da sociologia urbana estadunidense
Em primeiro lugar, os expoentes da Escola de Chicago correlacionavam a ascensão socioeconómica do indivíduo e seu subsequente deslocamento para as áreas suburbanas ao seu progresso dentro da sequência presumivelmente linear dos processos de competição, acomodação e assimilação ao meio urbano, redundando na concentração espacial de determinados grupos sociais e étnico-raciais em específicas áreas da cidade. Tinha-se como hipótese que o espaço físico espelhava o espaço social, de modo que se estabelecia uma relação de homologia entre a distância geográfica e a distância social de determinados grupos populacionais.
Em segundo lugar, as premissas da Ecologia Social foram criticadas pela vertente da Economia Política que emergiu no final da década de i960. Sob essa ótica, a cidade não era mais visualizada como mero receptáculo ou unidade espacial dissociado de processos macrossociais e macroeconómicas, mas como espaço socialmente reproduzido que reletia a luta de classes sociais e a hegemonia do mercado imobiliário capitalista consolidada pela ãtuãção do Estado através das políticas urbanas (Gottdiener e Feagin, 1988).
A terceira etapa da abordagem da pobreza urbana remete para a emergência do conceito ideologicamente polarizado underclass, destacando-se três perspectivas divergentes.
A primeira vertente, de linha conservadora, parte do surgimento de uma cultura de pobreza endêmica, compreendida como um sistema de valores desviantes de determinados grupos sociais minoritários, maioritariamente afro-americanos, com respeito à sociedade maioritária. Esta tenderia a se autorreproduzir intergeracionalmente e, portanto, constituiria o maior obstáculo para a superação do seu estado de privação socioeconómica (Lewis, 1968; Murray, 1984).
A segunda vertente, de linha política liberal, argumenta que a underclass adere maioritariamente ao sistema de valores e modelos de referência da sociedade maioritária. No entanto, constrangimentos estruturais e ausência de oportunidades de ascender socialmente teriam exigido a criação de um sistema de valores alternativos e de padrões sócio-organizacionais distintos, capazes de racionalizar e suportar essas deficiências (Gans, 1962; Hannerz, 1969).
A terceira vertente, de cunho estruturalista, correlacionava à deterioração socioeconómica da underclass, ora com as transformações ocasionadas na ordem do mercado de trabalho, na estrutura demográfica da família e na composição de classe nos guetos-(Jargowsky, 1997; Wilson, 1996), ora com os mecanismos seculares de segregação residencial racial institucionalizados no mercado imobiliário e nas políticas habitacionais (Massey e Denton, 1993).
O elemento-chave dentro dessa argumentação remete para o conceito de isolamento social definido como a ausência de contatos e de interações com indivíduos, grupos sociais e instituições que representam a sociedade maioritária (Wilson, 1996).
Conforme Wilson (1996), a saída seletiva dos contingentes populacionais pertencentes às classes média e operária teria ocasionado a erosão das estruturas de suporte dos guetos racialmente segregados mas verticalmente integrados até a implementação das leis antissegregacionistas em 1968, que amortizava os impactos negativos do desemprego prolongado da underclass, assegurava a viabilidade económica da infraestrutura social e comercial no bairro e transmitia valores, referências e comportamentos norteados em modelos de ascensão da classe média americana.
Em quarto lugar, um número pletórico de sociólogos estadunidenses vem dedicando desde a década de 1990 sua atenção a explorar o modus operandi do efeito território neighborhood effects, convergindo no postulado de Wilson (1996), no qual a superposição de constrangimentos estruturais em determinados bairros, como a pobreza, o desemprego e as elevadas taxas de criminalidade, interfere no bem-estar de crianças e adolescentes.
Small e Newman (2001) distinguem entre dois grupos de mecanismos pelos quais o efeito-território opera.
O primeiro grupo examina os mecanismos que impactam o transcorrer dos processos de socialização primária e secundária de crianças e adolescentes por meio da internalização de referências, valores e comportamentos não exitosos através dos pares e da sua naturalização e reprodução, conforme determinados modelos de rol; através da abordagem institucional enviesada que envolve as autoridades públicas como a polícia e os professores de escola; através dos obstáculos enfrentados no processo de assimilação linguística; por meio da criação de uma cultura antagónica aos modelos culturais maioritários da classe média e, finalmente, através da privação relativa dos recursos materiais no bairro.
Já o segundo grupo leva em consideração a composição das redes sociais do indivíduo e os padrões de articulação com indivíduos e instituições que representam a sociedade maioritária, o grau de acesso a recursos e instituições de boa qualidade, e a capacidade de formar alianças políticas para reivindicar intervenções públicas no bairro.
Em quinto lugar, vislumbra-se um distanciamento do paradigma estruturalista que reflete, por um lado, as persistentes dificuldades de desvendar os mecanismos pelos quais opera o efeito-território, em que pese à implementação de uma metodologia que alcançava eliminar o viés de seleção intrínseco aos estudos de cunho dedutivo-observacional, e, por outro, a refutação de uma interferência "homogênea" do efeito-território no bem-estar do indivíduo.
A centralidade do conceito de exclusão social na sociologia europeia
Conquanto exista uma tradição de pesquisas que versam sobre a reprodução da pobreza urbana na Europa (Townsend, 1970), priorizou-se analisar as desigualdades socioeconómicas sob o prisma das transformações das estruturas de classe, dos efeitos redistributivos do sistema de bem-estar social e das consequências económicas, sociointeracionais e psicológicas do desemprego de longa duração para o bem-estar do indivíduo.
O menor grau de segregação económica ou étnico-racial se atrela à tradicionalmente forte intervenção do Estado no planejamento urbano norteada na premissa de promover um elevado grau de integração das diferentes camadas sociais e grupos minoritários étnicos no espaço urbano (Van Kempen e Murie, 2009).
Contudo, nas últimas três décadas, a reestruturação do sistema de bem-estar social, a contínua chegada de luxos de imigrantes na ausência de um mercado laboral capaz de absorvê-los e a crescente remercantilização do setor habitacional trouxeram desafios para a organização socioespacial.
Desde a década de 1980, delineiam-se tendências de uma maior polarização socioespacial e do recrudescimento das desigualdades socioeconómicas nas cidades europeias. A gradativa marginalização de indivíduos é visualizada como processo de desintegração social que se manifesta espacialmente na concentração de grupos sociais vulneráveis em bairros (semi)centrais ou periféricos acompanhada pela seletiva mobilidade da classe média, que procura um espaço de moradia nos subúrbios (Mingione, 1996; Musterd, 2005).
Concomitantemente, assiste-se a uma crescente etnização das inequi-dades económicas, sendo que um significante contingente populacional de imigrantes se torna desproporcionalmente vulnerável vis-à-vis o declínio do setor industrial-manufatureiro e às práticas discriminatórias inerentes ao mercado laboral e imobiliário.
Dentro da discussão teórica, o debate sobre a pobreza gravita em torno da reestruturação do mercado de trabalho e das alterações na ordem sociointeracional do indivíduo que assinala a gradativa perda de contatos sociais e o seu isolamento social (Castel, 2000).
A exclusão social destaca o processo de distanciamento do indivíduo do estado de participação plena na sociedade maioritária que se manifesta nas dimensões económica, político-institucional, social e simbólica. Portanto, a exclusão social significa que a crise de emprego enfraquece ou inibe a capacidade de integração social da sociedade em determinados pontos do sistema de segurança social, particularmente os mecanismos de redistribuição de renda.
Destarte, ela se torna sinónimo de uma crise dos fundamentos institucionais da sociedade e não indica apenas para pessoas ou grupos minoritários acometidos por processos de marginalização económica, social e política, mas assinala principalmente pelos atores, estruturas e instituições que reproduzem e consolidam esses processos de exclusão.
Conquanto não se trate de uma aproximação teórica ao fenómeno da pobreza urbana, senão de uma série de hipóteses e relexões metodológicas, a linha de pesquisa estadunidense do efeito-território exerceu uma significante influência dentro do panorama de estudos urbanos europeus (Musterd, Marcinczak, Van Ham e Tammaru, 2015).
Particularmente, a exploração das estruturas de segregação residencial a partir de critérios étnicos tem impulsionado a realização de uma pluralidade de estudos que indagam sobre as dificuldades de integração de determinados grupos de imigrantes maioritariamente não europeus na sociedade-hóspede em função da sua inserção em contextos étnicos e socioeconómicos mais homogêneos.
Na tentativa de elaborar uma metodologia para examinar o impacto de potenciais efeito-território-na escala do bairro, Háussermann, Kronauer e Siebel (2004) propõem uma distinção entre três dimensões estreitamente inter-relacionadas pelas quais esses efeitos operam: a dimensão material, a dimensão social e a dimensão simbólica.
Constata-se que tendências de uma retração do suporte público-institucional não se evidenciam no caso dos bairros centrais onde se concentram as minoridades étnicas e os grupos sociais mais vulneráveis.
Contudo, deficiências em termos de estrutura física da moradia e de infraestrutura social interferem na dimensão simbólica ao impactarem a avaliação subjetiva do morador e ao promoverem a estigmatização territorial do local, enquanto a disponibilidade de infraestrutura sociocultural e comercial influencia substancialmente na constituição das redes socioinstitucionais.
A grande heterogeneidade observada dentro dos resultados auferidos em distintos estudos qualitativos e quantitativas exige uma maior cautela na exploração das correlações entre o efeito-território e o desempenho socioeconómico de indivíduos inseridos em contextos sociorresidenciais desvantajosos. A superposição entre o espaço social e o recorte geográfico do bairro na maioria dos casos analisados não se evidenciou, em oposição aos resultados auferidos em estudos empíricos nos Estados Unidos onde prevalecem altas taxas de segregação residencial racial e, crescentemente, económica.
Os conceitos de marginalidade e vulnerabilidade social no contexto Latino-americano
A pobreza urbana já ganhou forte relevância dentro do debate sociológico nos anos 1950, em virtude do explosivo crescimento espacial e demográfico das grandes cidades que acarretou desafios para a integração social e para o planejamento urbano.
Nesse contexto, o conceito de marginalidade se constituiu como pedra angular do debate sobre a questão social na América Latina nas décadas de 1950 e i960, antes de não ser abandonado em favor de uma leitura estruturalista da pobreza que correlacionava a reprodução das desigualdades sociais com a estratégica intervenção do Estado no planejamento urbano em defesa dos interesses imobiliários privados.
Conforme Bayon, Roberts e Saravi (1999), as intrínsecas limitações do modelo latino-americano de integração pelo viés de direitos da cidadania social devem ser atribuídas ao desenvolvimento de um sistema de bem-estar social inconcluso ou parcialmente excludente. Dentro dessa concepção, a ampliação da proteção social que beneficiava um número reduzido de pessoas estavelmente inseridas no mercado de trabalho contrastava com a relegação da provisão do bem-estar às esferas da família e da comunidade, no caso da população urbana desvinculada do mercado laboral formal.
Em dimensões espaciais, a relação dicotómica de integração e exclusão socioeconómica reproduzida dentro das estruturas do mercado laboral e habitacional se traduzia em fortes assimetrias entre, por um lado, bairros centrais contemplados pelo planejamento urbano, onde se concentravam as classes média e alta, assim como as principais oportunidades de emprego, e, por outro, uma dispersa área periférica habitada por populações de perfil socioeconómico baixo, procedentes das imigrações campo-cidade e desprovida de infraestrutura e equipamento urbano.
Não obstante as disparidades económicas e socioespaciais, a pobreza era então visualizada como condição transitória, à medida que havia uma perspectiva de integração das camadas baixas à base de vínculos clientelistas com o poder político e a partir da ampliação dos direitos da cidadania e dos investimentos na criação de postos de trabalho na indústria e no setor público, em educação, saúde e infraestrutura urbana.
A relação "sinérgica", porém profundamente assimétrica, entre o setor formal e informal do mercado de trabalho consolidou a mútua interdependência entre os grupos socioeconomicamente distantes em particular pelo viés de vínculos empregatícios com forte destaque do setor de serviços pessoais ou domésticos, enquanto o Estado, durante três décadas, permitia a ocupação informal das regiões periféricas e (semi)centrais pelas camadas baixas, mesmo sendo de forma precária.
Uma série de desdobramentos sociais, económicos e políticos mais recentes têm provocado profundas alterações na mobilidade social e nas condições de vida da população de baixa renda, nomeadamente a crise do regime do ramo da indústria de substituição de importações assim como a retração do já precário sistema de bem-estar social.
O repasse intergeracional das desvantagens socioeconómicas evidenciado em distintos casos empíricos sinaliza pela maior rigidez da estratificação social e pela reduzida permeabilidade do mercado de trabalho formal, prejudicando a mobilidade social de pessoas inseridas em contextos residenciais e socioeconómicos desfavoráveis, ao mesmo tempo que diminue as trocas de sociabilidade interclasse no ambiente das instituições de socialização pública e nos espaços de uso comum.
Com respeito à organização socioespacial das metrópoles, delineia-se uma tendência de maior fragmentação do espaço, manifestando-se particularmente no seletivo abandono do centro pela classe média e alta para áreas mais periféricas configuradas por uma maior proximidade espacial entre as classes socialmente distantes, cuja hierarquia, no entanto, se reafirma através de barreiras físicas e dispositivos de segurança (Caldeira, 2000).
No plano teórico, Roberts (2005) assinala pelo deslocamento do debate que gravitava em torno do dualismo estrutural e do conceito de marginalidade nas décadas de i960 e 1970 para uma exploração da nova pobreza à luz dos conceitos de vulnerabilidade e estruturas de oportunidades.
Parafraseando Kaztman e Filgueira (2006), a vulnerabilidade se atrela tanto à composição dos ativos das famílias -que remete à disposição e à capacidade de controle ou mobilização dos recursos materiais, sociais e simbólicos que permitem o indivíduo enfrentar determinadas situações de risco -quanto às alterações nas estruturas de oportunidades em termos de acesso ao bem-estar.
Recentemente, estudos que exploram o efeito-território têm ganhado maior relevância, particularmente no campo dos estudos sobre a reprodução das inequidades sociais dentro do acesso às oportunidades educativas (Kaztman, 2002) e a partir da análise dos padrões de sociabilidade (Marques, 2010).
A polarização do sistema ocupacional, educativo e residencial em conjunção com a acumulação de desvantagens estruturais condensadas à escala do bairro se traduzem em maiores constrangimentos de mobilizar os ativos e recursos necessários para mitigar ou eventualmente superar as situações de vulnerabilidade social (Torres, Bichir, Gomes e Pavez-Carpim, 2008).
Nesse contexto, a relação entre a estrutura de oportunidades e a perda de capital social familiar e comunitário ocupa um lugar proeminente na medida em que remete para o enfraquecimento das formas pré-capitalistas de proteção social na América Latina.
Em função da baixa capacidade de absorção do mercado laboral formal e do deficitário sistema de bem-estar social, havia incumbido tradicionalmente um papel preponderante à família e à comunidade, particularmente no caso das camadas baixas, na gestão dos riscos da reprodução social assim como na construção de uma rede de apoio pelo viés do associativismo étnico, religioso e migratório.
A relevância da dimensão territorial da pobreza urbana para as políticas públicas
Dentro do panorama dos casos aqui analisados, delineiam-se duas distintas, porém não mutuamente excludentes, leituras da pobreza urbana, uma culturalista, outra estruturalista, com diferentes implicações metodológicas e político-institucionais.
Seguindo a perspectiva culturalista da pobreza, existe o perigo de uma deturpação das suas causas sempre quando atributos desagregados do indivíduo pobre ou o ambiente sociorresidencial do bairro como unidade analítica descontextualizada se colocam no cerne do debate para explicar sua deterioração socioeconómica sem que as transformações relevantes no mercado de trabalho e no mercado imobiliário sejam levadas adequadamente em consideração.
Nos Estados Unidos, a polarização da sociedade a partir de critérios raciais e, crescentemente, económicos coaduna com uma elevada divisão espacial em virtude da hegemonia de princípios mercantológicos e de práticas racialmente discriminatórias inerentes ao mercado imobiliário, e do baixo grau de intervenção do Estado no planejamento urbano e no setor da habitação social, cenário que se confirma também pelo caso latino-americano, ressalvando-se que os padrões de segregação residencial obedecem preponderantemente a critérios económicos.
A medida que o mercado livre se converte em princípio organizador dominante no setor habitacional, consolida-se a convicção que o lugar de moradia relete o mérito pessoal do indivíduo e sua posição no mercado laboral. Esse axioma do liberalismo económico fortemente arraigado na cultura estadunidense se relete nos programas de mobilidade residencial que visam promover uma maior equidade no acesso às estruturas de oportunidades à escala do indivíduo através de estratégias de dessegregação (people-based policies).
Enquanto isso, a perspectiva estruturalista parte da pressuposição que alterações na ordem do Estado, mercado e família/comunidade teriam ocasionado disrupções nas estruturas e instituições de suporte social que anteriormente haviam garantido uma participação plena na sociedade maioritária.
Inserida em um debate mais amplo sobre a polarização da estratificação social, a nova pobreza na sociologia europeia é visualizada como um déficit de integração que existe independentemente do desempenho e do comportamento dos grupos sociais minoritários e remete para uma ruptura com um sistema redistributivo pautado no compromisso fordista de crescimento económico solidário e em uma forte tradição de intervenção do Estado no planejamento urbano e na demercantilização do setor habitacional.
E oportuno ressaltar que o conceito de exclusão social não sugere uma dissociação absoluta com as relações funcionais da sociedade (Castel, 2000) nem remete para um grupo social estático e permanente análogo à underclass, mas deve ser compreendido como um processo dinâmico de desintegração do mercado laboral estável, suscetível de se estender para as demais esferas de participação económica, sociocultural, institucional e política na sociedade maioritária, conforme estipulada nas normas e convenções sociais coletivamente definidos em um dado momento (Townsend, 1970).
Na Europa, os programas de intervenção à escala do bairro têm crescentemente atendido à necessidade de que, para alavancar a mobilidade socioeconómica dos seus habitantes, é imperativo promover melhorias no próprio contexto sociorresidencial através do investimento em infraestrutura habitacional e social (placed-based policies).
De igual forma, objetiva-se alcançar um maior grau de diversificação social e étnica à escala do bairro para impedir a polarização entre as camadas altas e baixas e a emergência de enclaves étnicos socioespacialmente isolados.
Na América Latina, a política de tolerância da invasão das regiões periféricas no período pós-guerra legitimou a construção de moradias da população pobre, no entanto através da difusão de práticas ilegais e improvisadas de autoempreendimento, cujo resultado foi a institucionalização de dois sistemas de acesso ao mercado habitacional.
Existia, portanto, certa homologia entre, por um lado, o dualismo estrutural inerente ao mercado de trabalho altamente estratificado, e a polarização entre o mercado laboral formal e informal, e, por outro, uma expressiva divisão socioespacial que se manifestava nas estruturas de segregação residencial económica.
Desde a década de 1970, as políticas públicas se deslocaram de uma tácita tolerância para estratégias mais intervencionistas, implicando a remoção das favelas localizadas em áreas urbanas valorizadas, a consolidação de assentamentos informais através do investimento em infraestrutura e equipamento urbano e da regularização do seu título de posse. Entretanto, a construção de conjuntos habitacionais nas regiões limítrofes das metrópoles para as camadas médias ou baixas largamente reproduz os padrões de segregação residencial anteriores.
Abstraindo-se dessas intervenções do Estado que, na sua maioria, não proporcionavam maiores estruturas de oportunidades para sua população nem seguiam estratégias de dessegregação, a desregularização da economia e do mercado imobiliário na década de 1980 reforçou a hegemonia dos interesses privados na organização socioespacial que se manifesta em processos de gentrificação e na proliferação de condomínios privados, produzindo as novas contigüidades geográficas entre as classes socialmente distantes.
Considerações finais
Este artigo objetivou, em um primeiro lugar, examinar as distintas trajetórias de abordagem da dimensão territorial da pobreza e das suas repercussões na organização socioespacial nos contextos urbanos estadunidense, europeu e latino-americano.
Ajustificativa dessa leitura comparativa reside na assunção de convergências dentro da construção das três narrativas teóricas, com consenso que a crescente polarização socioespacial se atrela: a) ao acirramento das desigualdades socioeconómicas apesar da conjuntura nacional positiva; b) à reestruturação do sistema produtivo; c) à retração ou reconfiguração do Estado de Bem-estar social acompanhada pelo endurecimento dos critérios de elegibilidade que condicionam o acesso aos programas de transferência de renda; d) à estigmatização de determinados grupos minoritários sociais ou étnico-raciais no mercado laboral e habitacional.
Se bem existe convergência com respeito à aceitação dos mesmos desafios para o planejamento urbano contemporâneo e à capacidade integradora da sociedade, as estratégias e políticas de intervenção do Estado divergem substancialmente entre os três contextos aqui contemplados.
Em um segundo lugar, o debate gravitou em torno da questão de como o processo de segregação residencial se converte em um mecanismo retroalimentador da pobreza através do seu impacto no bem-estar e no desempenho socioeconómico do indivíduo.
Pleiteia-se por uma aproximação condicional ao efeito território dentro dos estudos urbanos, que atende pelo fato que o contexto sociorresidencial interfere no desempenho socioeconómico e no comportamento do indivíduo de forma heterogênea.
Essa premissa concorda largamente com os pressupostos teóricos de Sampson (2012), que advoga por uma leitura bidirecional das causalidades do efeito território que atende pelas decisões e atributos sociodemográficos do indivíduo sem desconsiderar o contexto socioespacial local e sua inserção em estruturas sociais, económicas, culturais e políticas mais amplas. A ênfase nesse modelo explicativo reside na exploração dos mecanismos e em processos sociointeracionais, sociopsicológicos, organizacionais e culturais que operam à escala do bairro, considerando-se a vizinhança como dimensão intermediária entre estrutura e agência.
Estas considerações também se refletem na proposta metodológica de Kaztman e Filgueira (2006), que trazem à discussão o possível desajuste entre os ativos potencialmente mobilizáveis pela família em situações de vulnerabilidade e as estruturas de oportunidades engendradas pelo mercado, o Estado e a comunidade.
Dentro desse modelo explicativo, a dimensão intermediária da vizinhança deveria ganhar maior relevância no contexto latino-americano em virtude da interferência de altas taxas de criminalidade e violência na coesão intracomunitária, e em consideração das transformações ocasionadas nas estruturas de suporte pré-capitalistas, às quais tradicionalmente incumbia a gestão dos riscos da reprodução social.
A clusterização de múltiplas desvantagens à escala do bairro sinaliza a importância de levar em consideração a estratificação espacial das desigualdades socioeconómicas nas cidades e regiões metropolitanas dentro da elaboração de políticas de intervenção urbana, destacando-se três propostas (Sampson, 2012) descritas a seguir.
Os people-based policies providenciam uma assistência temporária a determinados grupos residuais que habitam bairros desfavorecidos através dos programas de dessegregação e de mobilidade residencial, da fiscalização rigorosa das leis antidiscriminatórias no mercado imobiliário e da concessão de créditos imobiliários que beneficiam as pessoas de baixa renda.
Os place-based policies focalizam o bairro como unidade de intervenção, ora ao investir em infraestrutura e equipamento urbano e na criação de postos de emprego em atendimento às demandas da população local, objetivando ampliar as estruturas de oportunidades e aumentar a atratividade para os grupos da classe média, ora ao exigir a construção de imóveis acessíveis para as camadas baixas nas regiões suburbanas, promovendo uma maior heterogeneidade social e étnico-racial na composição populacional do bairro.
Finalmente, o indirect approach visa remediar as próprias causas da polarização socioespacial. Advoga-se por uma maior intervenção regulatória do Estado no mercado laboral e habitacional em adequação às transformações do regime socioprodutivo pós-fordista e à implementação de programas integrativos que promovam o acesso equitativo às instituições de ensino e aos serviços sociais capazes de mitigar as desigualdades sociais.
Partindo de uma abordagem holística da pobreza urbana norteada no conceito da deprivação relativa do indivíduo em termos de participação nos sistemas económico, social e político na sociedade maioritária, a distinção dicotómica entre underclass e sociedade maioritária, exclusão e integração, e centro e periferia - topologia social dualista intrínseca ao conceito de marginalidade - não deveria promover o isolamento discriminatório de determinados grupos minoritários sociais ou étnico-raciais dentro de categorias estáticas que favorecem a residualização dos programas sociais e a intervenção repressiva ou dessegregacionista pelo Estado, mas deveria incitar a reletir sobre os desafios para a capacidade integrativa da sociedade contemporânea.
E oportuno recuperar, neste momento, as considerações de Polanyi (1944) sobre as transformações advindas da imposição do sistema socioprodutivo capitalista no século XIX, observando-se a passagem de uma concepção integrada da sociedade, sob a qual as atividades económicas estavam embasadas em um complexo sistema de reciprocidade e de interdependência que assegura a coesão social, para uma sociedade desprovida das suas estruturas primárias de proteção coletiva, em que as forças de um sistema de livre mercado autorregulador se tornaram hegemónicas em detrimento da ordem social anterior.
Posteriormente ao período pós-guerra, no qual uma singular era de expansão económica assentada no sistema socioprodutivo fordista-keynesianso viabilizou a ampliação dos direitos de cidadania e a implementação de um sistema de bem-estar social capaz de promover uma desmercantilização do indivíduo vis-à-vis as forças do mercado livre e de recompensar parcialmente o desmantelamento do sistema de proteção primária pré-capitalista -ainda com substanciais variações conforme esboçado nessa sucinta reflexão comparativa-, ressurge a necessidade de repensar as articulações entre a economia, o Estado e a sociedade civil no enfrentamento comum das alterações produzidas no regime socioprodutivo pós-fordista.
A discussão sobre a deteriorização socioeconómica de determinados grupos residuais - subsumidos em categorias classificatórias supostamente homogêneas de underclass, excluídos, marginais/vulneráveis e confinados às suas respectivas topologias geográficas gueto, banlieue e favela -tende a deslocar o enfoque analítico da vulnerabilidade social para as zonas periféricas da sociedade em vez de atender pela dependência mútua das posições sociais dentro da estratificação da sociedade.
Enquanto estudos comparativos que indagam sobre as consequências da estratificação das inequidades socioeconómicas no espaço urbano promovem uma melhor compreensão dos mecanismos e processos de reprodução da pobreza que operam simultaneamente a partir das dimensões da agência, do contexto sociorresidencial e das estruturas económicas, político-institucionais e socioculturais mais amplas, é mister para abstrair das divergências esboçadas neste trabalho para identificar suas causas em comum, quais sejam: a erosão da sociedade assalariada, o declínio da capacidade desmercantilizadora dos sistemas de bem-estar social e a dissociação do indivíduo vis-à-vis as estruturas de suporte primárias.