Introdução
No século XIX e ao princípio do XX, os progressos tecnológicos, a expansão do comércio internacional, os fluxos migratórios e a maior velocidade das comunicações estiveram na base da intensificação dos intercâmbios entre a Europa e América. O mundo que se conectava via os modernos cabos submarinos tornavam a imprensa latino-americana cada vez mais integrada à circulação transatlântica de notícias.1 Mais do que avanços tecnológicos, "supõe-se que há a criação de um imaginário e uma memória coletiva que ambos (imaginário e memória) são o resultado da intensa troca de representações do mundo contemporâneo nas páginas dos jornais".2
Pode-se considerar que a dimensão de conexão experienciada nesse contexto adensou o que Marie-Claire Boscq define como "o conceito de 'mundialização da cultura', o qual se aplica à difusão das ideias e dos conhecimentos sobre literatura, filosofia, ciências, arte..." não sendo um fenômeno passível de conclusão, mas de ação contínua inscrita numa perspectiva histórica.3 Considerando que desde meados do século XVIII presencia-se o triunfo do individualismo burguês, é de se esperar que no pacote da mundialização da cultura desse período estivesse contida a propaganda do ideário burguês, o qual incluía, entre outros temas, sua particular noção de honra.
Nesse sentido, percebe-se na imprensa da época a variedade de temas que buscavam atrair os novos interesses do público leitor, os quais eram diversos, assim como o próprio público mencionado. Segundo Pereira, nos jornais desse período, o resultado da tensão entre a proposta editorial dos grupos empresariais que patrocinavam cada folha e as expectativas dos diversos grupos de leitores que podiam ter por elas algum interesse se expressa, em primeiro lugar, na polifonia que caracterizava os jornais do período.4
Nesse profuso noticiário, percebe-se o marcado interesse do público por consumir notícias e outros tipos de publicações sobre crimes e criminosos (revistas policiais, romances, etc.), entre as décadas finais do século XIX e no início do século XX.5 Conforme Elisa Speckman Guerra, a veiculação de notícias sobre crime e violência cumpriam diversas funções, desde envolver os leitores na captura de criminosos, atender o interesse do público por consumir esse tipo de história e servir como instrumento de admoestação e moralização de costumes ao abordá-los de forma condenatória. A autora chama a atenção para que os delitos que mais captavam o interesse do público e recebiam mais veiculação não eram necessariamente aqueles que mais ocorriam, como, por exemplo, os homicídios.6
Nesse contexto, as notícias sobre duelos ocorridos em diversas partes do mundo ganham páginas quase que diariamente em todos os jornais sendo noticiadas e republicadas, reunindo os elementos de uma imprensa de variedades que contempla um público interessado em crimes e contendas violentas. Este artigo se dedica a essa circulação e repercussão de notícias sobre duelos na imprensa brasileira.
Aqui são relevantes algumas considerações sobre a delimitação desse tema. A primeira delas é respeito a dois fatores correlatos: o de que a honra e o duelo, no século XIX, constituíram-se em verdadeiras instituições da vida social que faziam parte da "atmosfera burguesa'7 e o de que esse mesmo contexto foi também o do auge da valorização da virilidade.8 Ambos fatores nos permitem antecipar que a delimitação do tema dos duelos não é aleatória para o período.
Segundo Corbin, o ideal da virilidade trazia a defesa de valores individuais e intransferíveis tais como a grandeza, a superioridade, a honra, o autodomínio e o saber-morrer por seus princípios. Contudo, se de um lado a virilidade é individual, a manifestação e o reconhecimento da mesma devem ser feitos por outros, pelos pares, devendo, portanto, ser público. O sentimento da honra, a qual embasa em grande medida a virilidade, também se coloca de forma relacional, ou seja, a honra deve ser afirmada e sustentada individualmente, mas seu reconhecimento é externo, atribuído por terceiros. Virilidade e honra, portanto, são duas faces de uma mesma moeda que funcionam como uma "religião laica" para homens de elite do século XIX, estendendo-se pelas primeiras décadas do século XX, e que, segundo Pitt-Rivers "matou mais homens do que a peste".9 A virilidade "ordena, irriga a sociedade, cujos valores sustenta [...]. Para o indivíduo dessa época, ela não constitui tanto um dado biológico quanto um conjunto de qualidades morais que lhe convém adquirir, preservar, e da qual o homem deve saber dar provas".10
Dar provas da virilidade, em muitos casos nesse contexto, foi justamente duelar. Nesse contexto, a prática de duelar foi despida da conotação aristocrática11 e recebeu nova compreensão e função enquanto fenômeno concreto que tem sentido dentro da cultura burguesa. A defesa da honra e, por conseguinte, o refinamento12 e a normatização dos duelos se tornaram parte do substrato cultural da elite ocidental entre os séculos XVIII, XIX e princípio do XX, e, em grande medida, esses duelos se distanciam daqueles relacionados ao costume aristocrático em função da ampla elaboração e uso de normas e regras específicas. Os manuais de honra e os livros de conduta cavalheiresca se tornam habituais dessa elite.13 Países como França, Alemanha e Itália indicavam a ocorrência de cerca de 100 a 300 duelos por ano, considerando apenas aqueles que tiveram registro nos anos finais do século XIX.14
Na América Latina, o auge dos duelos se localiza a partir do último quartel do século XIX estendendo-se até as primeiras décadas do século XX.15 Neste período, os enfrentamentos em defesa da honra adquiriam um aspecto modernizador para a construção do ideal de masculinidade burguesa16 e sua alta ocorrência em países latino-americanos corresponde a esse substrato cultural burguês e masculino compartilhado. Haver participado de um duelo passou a fazer parte do repertório de rituais que permitiam a um determinado sujeito reivindicar e fazer parte da elite social, política e cultural.17 Segundo Pablo Piccato, duelar dentro das normas cavalheirescas aceitas amplamente significava converter-se em "membros de um grupo internacional de homens honrados".18
A segunda consideração sobre a delimitação do presente tema, referese à pesquisa sobre os duelos no Brasil e as características que essa prática apresenta nesse país que a vinculam muito ao recurso da imprensa. O caso brasileiro ainda é pouco estudado e consideramos estar desbravando um campo ainda pouco explorado. O presente artigo deriva de outros estudos que o antecederam, nos quais nos dedicamos a questões relativas à honra e a defesa da mesma através de análise de textos literários; análises sobre a legislação referente aos duelos em perspectiva comparada com países sulamericanos e análises a partir de processos criminais de casos de defesas de honra popular. A continuação dessas pesquisas previa o início do levantamento sistemático de fontes criminais e jornalísticas a fim de mapear as ocorrências de duelos em determinadas regiões do Brasil, contudo, o contexto atual da pandemia impossibilitou o andamento pretendido. Nesse sentido, o acervo digital da Hemeroteca Digital Brasileira19 se apresentou como um recurso acessível remotamente e relativamente abrangente para a pesquisa. Embora estejamos cientes que o acervo não esgota as possibilidades de pesquisa em fontes jornalísticas, ele é bastante rico e permitiu a verificação de várias hipóteses de pesquisa.
Numa investigação anterior20 já havíamos nos valido da plataforma de busca da Hemeroteca Digital Brasileira para analisar casos de duelos nos quais os contendores buscaram outros países para realizar o embate a fim de colocarem-se imunes às implicações legais de terem feito uso de um recurso reputado como crime. Nessa ocasião, e nas demais pesquisas preliminares, já havia nos chamado a atenção a presença de uma retórica reiterada a respeito de duelos através da imprensa,21 mas não na mesma proporção se percebem os registros de ocorrência das disputas nas mesmas fontes jornalísticas. As escaramuças frequentes e alusões a duelos na imprensa que nunca chegavam a se realizar, indicam ser essas umas das características particulares da forma de apropriação da questão dos duelos pela elite brasileira. Enquanto essa hipótese ainda demanda a ampliação e aprofundamento da investigação, outro aspecto relacionado ao forte vínculo percebido entre duelos e imprensa no Brasil nos chamou a atenção: a frequente veiculação e circulação de notícias na imprensa brasileira de duelos nacionais e internacionais. Dessa forma, nosso interesse centrou-se em mapear a circulação de notícias sobre duelos em um contexto de comunicação, embora em franca expansão, ainda limitado, demonstrando o quanto esse assunto ocupava o rol de interesses e formava parte de um determinado substrato cultural nesse contexto e, em razão dessa delimitação, nos interessou mais identificar as ocorrências de notícias e seu fluxo, do que verticalizar na análise do conteúdo dos artigos dos jornais propriamente. A presente pesquisa imprimiu os seguintes recortes de análise: a partir de um levantamento preliminar, mapeou a ocorrência de notícias nacionais e internacionais sobre duelos ocorridos entre 1910 e 1930 em jornais do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul.22
A justificativa para o recorte temporal se dá por várias razões. Primeiramente, conforme informado anteriormente, na América Latina, o auge dos duelos se localiza a partir do último quartel do século XIX estendendo-se até as primeiras décadas do século XX.23 No caso da Argentina, segundo Sandra Gayol, foi entre 1880 e 1920 que os duelos se tornaram uma instituição da vida da elite argentina, uma manía.24 O contexto uruguaio também oferece uma consistente justificativa já que o ano de 1920, localizado no meio do período selecionado nesta pesquisa, é o da aprovação da chamada Ley del Duelo que legalizou a prática de duelos nesse país até a década de 1990. O caso brasileiro, por sua vez, tem, na proclamação da república relativamente recente (1889) e seu Código Penal de 1890 considerado moderno, elementos que se destacam nesse período para os fins que delimitamos, enquanto pela primeira vez o duelo aparece tipificado como crime, no capítulo VI do título X, "Dos crimes contra a segurança de pessoa e vida".25 A figuração do crime no Código Republicano aponta para, pelo menos, duas situações ou efeitos: sugere que uma maior manifestação da prática dos duelos decorreu na necessidade de inscrevê-lo explicitamente no código, e/ou que a presença do crime do duelo no código repercutiu no maior registro desse delito em função de que antes não havia como fazê-lo porque não estava tipificado.26 Contudo, embora manifestamente criminalizado, previa penas muito mais brandas do que aquelas para os crimes de homicídio comum. Não é demais salientar que a elite acreditava que o sentimento de honra, bem como a prerrogativa de defesa da mesma, era sua exclusividade, ou seja, os crimes de honra só eram assim compreendidos desde que envolvessem membros da alta sociedade e apenas esses indivíduos podiam valer-se de tal legislação.27 Por fim, mas não menos importante, o recorte de análise nesse período se justifica em função da crescente dinamização das comunicações. O cabeamento submarino para telégrafo que ligou a Europa à América em um tempo quase instantâneo de troca de informação a partir de 1874, foi fundamental para criar uma atmosfera de conexão e simultaneidade enquanto tornava a comunicação independente do transporte e, assim, reformulava a relação tempo e espaço. Dessa forma, o cabeamento de 1874 foi apenas o ponto de partida dessa intensificação de intercâmbios que atravessavam a imensidão líquida, sendo precedido por cabeamentos costeiros, terrestres e até transandinos gradativamente. Em 1910, uma nova conexão ultrama-rítima ligou Buenos Aires a Lisboa, abrindo novas possibilidades para esse contexto de comunicação.28
Os dois lugares escolhidos para a análise, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, justificam-se em função de que o primeiro, circunscrito à cidade do Rio de Janeiro, era a capital política e cultural do país naquele momento. O segundo lugar, que abrange o estado do Rio Grande do Sul, embora majoritariamente as referências sejam da capital do estado, Porto Alegre, consta na pesquisa por sua histórica conexão com os países platinos, o que pode incorrer em algum padrão diferenciado de circulação de notícias.
Dessa forma, os critérios de busca aplicados nos jornais pesquisados se balizaram por "local" (cidade do Rio de Janeiro e estado do Rio Grande do Sul) e por "período" (1910-1930), no acervo digital da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional, a partir das palavras "duelo" e "duello". Essa busca retornou 71 entradas de notícias sobre duelos de honra (vale mencionar que um sem número de registros foram descartados porque, embora contivessem a palavra duelo ou duello, referiam-se a situações de outras ordens que não exatamente de práticas privadas de justiça por desagravo) em diferentes jornais que circularam no período e locais delimitados.
A circulação de notícias sobre duelos de honra na imprensa brasileira
Os impressos periódicos "remetem aos dilemas do seu tempo e dialogam com outros impressos que lhe são contemporâneos e com os quais compartilham o espaço público",29 e através dessa perspectiva é possível compreender a profusão de notícias sobre duelos de honra na imprensa brasileira, muitas vezes reverberando notícias internacionais, como algo, ou um assunto, que havia entrado para o gosto de pelo menos uma boa parcela dos leitores consumidores de jornais. Conforme Pereira,
No intuito de chamar o interesse do leitor, os jornais comerciais que se afirmam a partir das últimas décadas do século XIX haviam se aberto para diferentes seções e colunas que tentavam contemplar o interesse de certos grupos de leitores. Estas tanto se voltavam para temas e questões específicas, como os crimes, o esporte ou a vida suburbana.30
Segundo Elisa Speckman Guerra, referindo-se a chamada nota roja, gênero de jornalismo popular no México cujo interesse se concentra em histórias relacionadas à violência e crimes, e também considerando publicações de literatura e de impressos soltos (os chamados pliegos), os temas eleitos para publicação e a forma de expô-los relacionam-se a intenção dos autores em vender suas histórias ao atender o gosto de seus consumidores. Contudo, esses mesmos periodistas e literatos também formavam parte de um projeto moralizador e modernizante que se esforçava em inculcar nos leitores determinados padrões presentes em países europeus e nos EUA, "as concepções acerca da criminalidade continham os interesses de seus autores e cumpriam certa função em seu projeto de sociedade".31
Nesse sentido, não se pode afirmar se as notícias sobre duelos eram consumidas exclusivamente por grupos sociais superiores ou se também interessavam a um público geral, mas sua difusão indica ter sido incorporada a um novo ethos da elite, nesse caso, de uma elite burguesa. As notícias eram veiculadas em diversas seções dos jornais. Nos casos de duelos internacionais tendiam a aparecer na seção internacional, em outros casos em seções variadas, na capa para casos de grande destaque (como o caso do duelo Lage-Saguier que veremos a seguir), mas dificilmente essas notícias se encontram na seção policial, espaço reservado aos conflitos entre os subalternos. Ou seja, a defesa da honra por populares é caso de polícia, já os casos da elite transitam em seções mais nobres, como "internacional", "política" e "social".
Ao compreendermos os jornais como instrumentos de repercussão do seu tempo e os duelos de honra como uma manifestação cultural e moral desse contexto, entendemos o porquê que essas notícias se encontram disseminadas em praticamente todos os periódicos que circulavam, e que tivemos acesso através da plataforma da Hemeroteca Digital Brasileira. Mesmo em jornais católicos ou operários, os quais tendiam a ser manifestamente contra a prática de duelos, as notícias circulam, nesses casos com tom de desaprovação ou de sarcasmo, demonstrando que essas notícias nacionais e internacionais se encontravam capilarizadas nos diferentes jornais, de diferentes posturas políticas e escopo.
A seguir estão listados todos os títulos de periódicos nos quais localizamos notícias ou publicações sobre duelos de honra.
Nome do Periódico | Local de publicação | Quantidade de notícias |
---|---|---|
A Federação | Porto Alegre | 39 |
A Opinião Pública | Pelotas | 5 |
Estado do Rio Grande | Porto Alegre | 2 |
Staffeta Riograndense | Garibaldi | 1 |
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira. Biblioteca Nacional (BN), Rio de Janeiro, Brasil.
Nome do Periódico | Local de publicação | Quantidade de notícias |
---|---|---|
O Paiz | Rio de Janeiro | 14 |
Jornal do Brasil | Rio de Janeiro | 4 |
Voz do Povo | Rio de Janeiro | 2 |
Pamphleto de Combate | Rio de Janeiro | 1 |
A Cruz | Rio de Janeiro | 2 |
Voz do Chauffeur | Rio de Janeiro | 1 |
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira. BN, Rio de Janeiro, Brasil.
Conforme mencionado, a lista de jornais inclui periódicos de orientação variada, desde jornais republicanos, até jornais monarquistas (considerando que a proclamação da república no Brasil havia ocorrido recentemente, em 1889) jornais católicos e operários. Segundo Tânia Regina de Luca, a análise desse tipo de fonte demanda localizá-los na história da imprensa, conhecendo as condições de impressão e de difusão da informação a fim de acessar a historicidade do periódico. "É à luz dessa localização espaço-temporal precisa, que os dados provenientes da análise interna podem ganhar novos sentidos, não perceptíveis caso o questionamento se detivesse no âmbito estrito do conteúdo".32
Nesse sentido, parece adequado despender alguns parágrafos para localizar alguns dos jornais listados. Publicações como A Voz do Povo e a Voz do Chauffeur faziam parte da imprensa operária e se somavam às manifestações contrárias à prática de duelos propaladas por periódicos da imprensa católica, como o jornal A Cruz. Contudo, dessa lista, merecem destaque três periódicos: A Federação, O Paiz e o Jornal do Brasil. Nesses periódicos não só se concentram o maior número de notícias, como também representam jornais grandes e sólidos, que tiveram (e ainda tem, no caso do Jornal do Brasil) circulação ampla e regular.
O Paiz e o Jornal do Brasil, ambos do Rio de Janeiro, representavam posições políticas opostas. Enquanto o primeiro, que circulou entre 1884 até 1930, estava fortemente associado aos movimentos que atuaram na deposição da monarquia no Brasil, ao abolicionismo e ao Partido Republicano; o segundo, fundado em 1891 pelo jornalista Rodolfo Epifânio de Sousa Dantas, teve, em sua origem, a intenção de defender a monarquia recém deposta. Ambos, contudo, veiculam notícias sobre duelos num tom de aclamação ou em uma linha de jornalismo informativo moderno, de forma supostamente neutra em relação ao conteúdo da notícia.
Contudo, a vinculação já mencionada entre essa nova voga de duelos de honra, localizada no século XIX e ao princípio do XX, e uma honra republicana não é meramente retórica. O jornal A Federação é exemplar nesse sentido. Com o maior número de notícias sobre duelos entre os jornais listados, o jornal A Federação estampa notícias frequentes sobre duelos ocorridos no Rio Grande do Sul, em outras partes do Brasil e em outros países sempre numa perspectiva laudatória da referida prática privada de justiça, fazendo jus a ser o veículo de comunicação oficial do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR).
Fundado em 1884, em Porto Alegre, o jornal A Federação era um "Órgam do Partido Republicano" conforme a descrição constante em todas as capas abaixo do nome do jornal, mantendo, portanto, o padrão jornalístico característico do século XIX de ser um periódico declaradamente político-partidário. Com a proclamação da república, e ascensão do PRR ao poder no Rio Grande do Sul, o jornal se tornou o principal em circulação no estado, chegando a ter uma tiragem de 10 mil exemplares por dia em 1910.33
A predileção do jornal pela pauta dos duelos aparece desde o princípio, servindo, muitas vezes, como instrumento de apoio para seus correligionários, quando estes envolviam-se em contendas, no sentido de demarcar a honradez das suas posturas e dar legitimidade aos conflitos que interpunham. Segundo Vítor Wieth Porto, que analisou notícias de duelos ocorridos, ou de desafios, veiculados pela A Federação envolvendo membros do Partido Republicano entre 1895 e 1910, a tônica do periódico sempre se pautou pela defesa de uma honra republicana que não admitia ofensas a questões envolvendo o trabalho, capacidade, honestidade, manutenção digna da família, etc. Segundo o autor, no período por ele analisado, cerca de doze casos de duelos envolvendo membros do partido republicano, além de demais casos nacionais e internacionais recheiam as páginas do jornal permitindo perceber que a Federação foi um instrumento importante de defesa partidária de correligionários envolvidos em situações de duelos.34
Nosso interesse, por outro lado, se volta para o período subsequente e, principalmente para as notícias de ocorrências em outros lugares. Notícias de duelos ocorridos na própria localidade do jornal que a divulga também foram frequentes na amostra encontrada pela presente pesquisa, mas nos voltaremos às notícias de duelos ocorridos fora dali e replicadas pela imprensa, as quais demonstram exatamente a dimensão da circulação e do interesse disseminado pelas mesmas. Vejamos como se distribuem as notícias.
Das 47 notícias sobre duelos de honra localizadas em jornais do Rio Grande do Sul, pode-se ver que 36 delas são de duelos de outros lugares fora do Brasil, ou seja, 77 % das ocorrências veiculadas sobre duelos correspondem a casos de circulação internacional de notícias. Desses 36 casos, 64 % são notícias oriundas de ocorrências de duelos em países sul-americanos e 36 % da Europa.
No caso das notícias sobre duelos constantes nos jornais do Rio de Janeiro, das 24 entradas, 21 são de duelos de outros países, configurando 91 % do total das notícias como de circulação internacional. Desses 21 casos, 90 % são notícias de duelos em países sul-americanos e apenas 10 % na Europa.
Inicialmente, uma primeira constatação diz respeito a uma obviedade. Serão sempre mais casos se somadas as ocorrências de todos os outros países, do que num único país, e somente por essa razão podemos compreender que existam mais entradas para os casos internacionais do que para aqueles ocorridos no próprio país. Contudo, essa constatação óbvia está repleta de inflexões e precisa ser matizada para uma melhor compreensão do contexto. De um lado, precisamos considerar que em um movimento de circulação, embora compreenda a noção de uma via de mão dupla, pode haver um tráfego mais intenso em uma das vias, e nesse caso, é inegável que a Europa era o berço e a referência desse tipo de prática de desagravo.
Toda a ritualização e a regulação através dos chamados códigos cavalheirescos tem sua emissão inicialmente em países europeus. Obras como Ensayo sobre la Jurisprudência de los Duelos (1836) do francês Conde de Chateauvillard, Lances entre Caballeros. Código del honor en España (1900) do Marquês de Cabriñana, e obras do italiano Jacopo Gelli como Il duello nella storia della giurisprudenza e nella pratica italiana (1886), circulam e são conhecidas pelas elites latino-americanas. Dessa forma, é natural que casos de duelos ocorridos na Europa pululem dentre essas notícias. Conforme mencionado,35 países europeus registravam, nesse contexto, centenas de duelos anualmente, sendo ainda incontável o número de disputas ocorridas sem qualquer registro.
Rio, 4. Telegrammas de Pariz comunicam que as testemunhas nomeadas pelo senador francês Raymond Messimy, a fim de entender-se com o senador brasileiro Índio do Brasil, reconheceram não haver motivo para um duello. Missimy é médico e estava tratando da esposa do senador Índio do Brazil. O estado da enferma é gravíssimo, esperando-se, a cada momento, o desfecho fatal.36
Madrid, 29 (A. A.) - O Inspector geral de polícia de Barcellona desafiou o diretor do "A.B.C.", para um duello devido aos commentarios insultantes que ele fizera no seu jornal contra aquella autoridade.37
Lisboa, 1 (H.) - Está iminente o duello entre o governador civil do districto de Aveiro e o deputado Manoel Alegre.38
Milão, 28 (H.) - Devido a uma polêmica jornalística, bateram-se em duello o deputado Benito Mussolini e o engenheiro Bassegio, sahindo ambos feridos.39
Milão, 15 (H.) - Devido a um artigo de Mussolini contra Missiroli, diretor de "Il Secolo", este desafiou aquelle para um duello, que foi realizado esta tarde. No sétimo assalto, Missiroli foi ferido ligeiramente no braço, sendo dado por findo o duello. Os adversários não se reconciliaram.40
Percebe-se que as notícias de duelos ocorridos na Europa noticiadas em jornais brasileiros dão conta de casos de destaque,41 que por lá também foram noticiados, como os dois que envolvem Benito Mussolini, na época deputado italiano, além de governadores e inspetores de polícia. Constam também alguns casos de duelos que ocorrem entre europeus e brasileiros, como o transcrito acima entre um senador francês e um brasileiro e é justamente essa circulação de notícias que possibilitou que esses duelos internacionais, que envolvem combatentes de países distintos, ocorreram.
Há uma tendência, bem demonstrada por diferentes autores do tema,42 de que muitos desafios para duelos começavam frequentemente através da imprensa. O que chama a atenção nos casos aqui destacados é que a circulação internacional de notícias permitiu que, muitas vezes, ocorressem casos de desafios entre figuras latino-americanas e europeias, em função de artigos considerados ofensivos que eram publicados em seus países e acabavam ganhando essa notoriedade pela replicação internacional de notícias. Sem dúvida, essa circulação de notícias é causa e efeito da febre dos duelos desse período. Repercutir uma prática estrangeira que também se verifica localmente incide em criar uma atmosfera de sentir-se parte de algo maior e isso inspira e retroalimenta novos casos.
O cabeamento submarino para linhas telegráficas, inaugurado em 1874, que ligou Lisboa a Pernambuco (litoral do Brasil), é considerado o responsável, em grande medida, por essa dinamização da informação. Sabe-se que, em fins do século XIX, o mercado de notícias internacionais através do cabeamento submarino com origem na Europa foi repartido entre quatro agências de notícias: Reuters (da Inglaterra), Havas (da França), Associated Press (dos EUA) e a Wolf (da Alemanha). Nessa divisão, a francesa Havas ficou responsável pela distribuição de informações para o continente sul-americano. Contudo, o monopólio de informações detido pela Havas para a América do Sul costuma ser superestimado, já que todas as dificuldades do telégrafo a princípio não deixaram de lado o valioso trabalho dos correspondentes que ainda enviavam a maior parte das notícias internacionais que aqui chegavam através da via tradicional, através de malas que iam se enchendo de notícias até que, quando estivessem repletas, eram despachadas em embarcações transoceánicas. Não está demais dizer que essas notícias careciam enormemente de atualização, mas ainda foram a forma mais recorrente de disseminação de notícias até as primeiras décadas do século XX.43
Dessa forma, é importante reforçar que a conexão telegráfica não teve imediatamente um efeito pleno. Segundo Lila Caimari,44 o cabo que partia de Lisboa fazia duas conexões, Ilha da Madeira e Cabo Verde, antes de chegar em Pernambuco. Depois de chegar em solo sul-americano, a velocidade do cabo se perdia e vias terrestres e marítimas de transporte eram retomadas para disseminar pelos países aquilo que chegava da Europa. Além disso, os altos custos do telégrafo, os limites da tecnologia (até 1889 se estima que era capaz de transferir apenas 350 palavras por mês) e que essa via telegráfica não servia apenas à imprensa, antes o contrário, demandas de estado e de economia eram priorizadas em detrimento da imprensa, permitem perceber o quanto havia de ser relevante uma notícia para ser transmitida pelo telégrafo.
E muitos casos de duelos foram considerados relevantes a ponto de serem transmitidos via telégrafo vencendo uma enorme disputa por transmissão com outras informações que também demandavam o recurso do cabo submarino. Entre os cinco exemplos de notícias europeias de duelos veiculadaos em jornais brasileiros referidos antes, três delas trazem a indicação "(H.)" que aponta serem oriundas da agência Havas. Considerando o total das 15 notícias localizadas que envolvem casos de duelos ocorridos na Europa -sendo treze de jornais do Rio Grande do Sul e dois de jornais do Rio de Janeiro (ver tabelas 3 e 4) -, pelo menos cinco delas foram transmitidas pela Havas.
No entanto, ao mesmo tempo que precisamos considerar que diversas vezes notícias de duelos europeus foram consideradas importantes, ou interessantes ao público, a ponto de ganharem emissão via cabo telegráfico ultramarino, não podemos deixar de ressaltar que desse total das quinze notícias de casos de duelos ocorridos na Europa, se cinco delas foram transmitidas pela Havas, e de cinco não foi possível precisar a origem, outras cinco foram transmitidas via "A. A.", a Agência Americana, a qual estima-se, dentre muitas imprecisões, que já estava em funcionamento no ano de 1910.45
A Agência Americana tinha o objetivo de "estreitar e desenvolver as relações de imprensa entre todas as Repúblicas da América" conforme noticiado na primeira página do jornal O Paiz (Rio de Janeiro) de 10 de outubro de 1909, e certamente se beneficiou da conexão via cabo ultramarino de Buenos Aires com Lisboa inaugurada também em 1910, a qual promoveu uma nova alteração na dinámica de disseminação da informação porque, até aquele momento, Uruguai e Argentina dependiam da conexão via Brasil para a Europa.
O que chama a atenção, nesse sentido, é que até mesmo notícias de duelos ocorridos na Europa chegaram ao continente sul-americano através da agência local de notícias. Ainda, segundo Lila Caimari,46 o cabo havia cumprido seu objetivo de aproximar o mundo, mas esse mundo não estava restrito ao "velho mundo" e o que se verifica é uma intensa circulação de notícias entre os países sul-americanos. Dessa forma, retomando os dados contidos nas tabelas 3 e 4, é possível constatar que as notícias de duelos sul-americanos significam a maioria das notícias internacionais em circulação. No noticiário do Rio Grande do Sul, das 36 notícias internacionais sobre duelos de honra, 64 % são notícias oriundas de ocorrências em países sul-americanos e apenas 36 % da Europa. Já nos jornais do Rio de Janeiro, das 21 notícias de duelos estrangeiros, 90 % são notícias de duelos em países sul-americanos e apenas 10 % na Europa.
Entre as notícias oriundas de ocorrências em países sul-americanos, também chama a atenção que a maioria se concentra no Uruguai e na Argentina. Bem, esses países se destacaram de fato em relação aos demais no que se refere ao alto número de disputas de honra ocorridas.47 Além disso, o Uruguai é o único caso de descriminalização da prática de duelo que se tem notícia, o que denota a larga ocorrência de lances de honra nesse país.
Semelhante ao que ocorre com a circulação de notícias entre Europa e América, verifica-se que o mesmo também ocorre em relação ao circuito sul-americano, o qual possibilitou a ocorrência de duelos internacionais, que envolveram contendores de países distintos. Um caso de grande repercussão na imprensa brasileira, com publicações locais e em periódicos argentinos, foi o do duelo, que poderia ter ocorrido em Montevidéu, envolvendo João Lage, diretor do Jornal O Paiz (Rio de Janeiro), e o senador argentino Fernando Saguier. Vejamos a seguir o caso Lage-Saguier, exemplo dessas contendas que atravessavam países sul-americanos via imprensa.
1920 e os rumorosos duelos internacionais em destaque na imprensa brasileira
O ano de 1920 foi agitado no que se refere às notícias de caráter internacional que circularam na imprensa brasileira sobre duelos de honra. Recém a imprensa havia acompanhado o caso de duelo entre Batlle e Beltran, ocorrido dia 02 de abril de 1920, quando já corriam as notícias do possível duelo entre Lage e Saguier.
O primeiro caso, ocorrido entre o ex-presidente colorado, mas ainda líder político, José Batlle y Ordoñez e Washington Beltran Barbat, político blanco em ascensão e jornalista do El País, teve um desfecho trágico. Só naquele último ano, Batlle já havia batido-se em duelo outras duas vezes além dessa, rendendo pauta ao noticiário internacional, mas o desfecho fatal para Beltran e uma possível condenação a Batlle pela morte do contendor, já que naquele momento não usufruía de foro privilegiado por não ocupar nenhum cargo político formal, foram os ingredientes necessários para uma notícia com um potencial de circulação ainda maior. Além disso, havia teorias de que o desfecho do duelo entre Batlle e Beltrán teve contornos de assassinato porque teria desrespeitado os acertos prévios de atirar sem fim letal, já que os primeiros tiros das duas partes foram para cima, mas a seguinte rodada iniciada por Batlle, desferiu tiros em direção a parte superior do corpo de Beltrán.48
Pois nem bem essa notícia do duelo ocorrido no Uruguai foi explorada em todas suas potencialidades jornalísticas, quando já emergia nas páginas dos jornais o desafio a bater-se em duelo entre o jornalista brasileiro João Lage e o senador argentino Fernando Saguier, um repto que só foi possível em função do circuito internacional de notícias, nesse caso sul-americano, que viabilizou a necessária dimensão pública de uma questão de honra.
O Rio de Janeiro começa o sábado 3 de abril de 1920 com a manchete bombástica veiculada em caixa alta no Jornal do Brasil, "Duello em perspectiva. O Director do 'O Paiz' quer bater-se com o senador Saguier da Argentina", segue a notícia:
A capital uruguaya, que hontem foi theatro de uma scena de duello, com desenlace trágico e deplorável, parece que vae ser de novo o ponto escolhido para um outro encontro, pelas armas, entre dous contendores estrangeiros. Desde ante-hontem que a nossa reportagem tivera conhecimento do desafio que ao Senador Saguier, da Alta Cámara Argentina, enviou o Sr. João Lage, director do "Paiz". A princípio, suppuzemos tratar-se de um inocente "Poisson d'Avril", mas hontem chegamos a apurar, com toda a segurança, a veracidade das informações que colhêramos dias atraz, em boa fonte.
O caso se prende aos artigos que o director do "Paiz" publicou no seu jornal, de regresso de Buenos Aires, acerca da personalidade do presidente Irigoyen. Os comentários feitos pelo Sr. Lage, parece, não ecoaram sympathicamente nos círculos radicais portenhos, e o Senador Saguier, em cuja residência se encontrou aquelle jornalista com o chefe do Estado argentino, dirigiu uma carta à "Nacion", estranhando a conducta de seu hospede. O director do "Paiz" telegraphou ao Sr. Saguier, dizendo não acreditar que elle houvesse escripto semelhante carta. Em resposta, o parlamentar argentino telegraphou-lhe, afirmando que a confirmava em todos os seus tópicos. Nada tinha a retirar. Era expressão fiel da verdade e dos seus sentimentos o quanto escrevera. Replicando, é que o Sr. Lage lhe enviou a promessa de desafio, para duello, em território neutro, que no caso é o Uruguay.
Ao que sabemos, uma das testemunhas do director do "Paiz" irá daqui do Rio, a fim de desafiar o Senador Saguier, em Buenos Aires. Dizia-se hontem, na Avenida, que essa testemunha seria o Conselheiro Camelo Lampreia.49
Tão extensa quanto a citação é a polêmica que durou vários dias e gerou páginas de matérias e debates na imprensa dos três países envolvidos, Brasil, Argentina e Uruguai. Afinal, o caso envolvia personagens da elite da imprensa e da política de dois países, tratava-se de um senador da República Argentina e de um diretor de importante jornal da capital federal brasileira. No lado brasileiro, uma ampla gama de jornais do país replicou as matérias, da grande imprensa da capital federal aos jornais das capitais de província, passando por jornais católicos e operários. Aqui nos interessa, além das notícias do caso rumoroso, observar os posicionamentos sobre a prática dos duelos de honra. É notável, para além de posições a favor ou contra o duelo, a presença desse assunto no cotidiano da imprensa e como a honorabilidade de uma certa elite e a sua defesa pelos duelos de honra mobilizava o debate público na imprensa.
Ao longo daquele mês de abril, cada movimento desse caso foi atentamente acompanhado e relatado na imprensa. Por vezes as notícias sobre duelos veiculadas nos jornais, muito em função das restrições impostas pelos meios de comunicação, são curtas e trazem poucas informações. Ainda assim, frequentemente se encontram nelas referências às regras contidas em manuais e códigos de conduta frente a um desafio, as quais demonstram esse conhecimento compartilhado de um ethos burguês: os rituais prévios de escolha de testemunhas, lugar, armas e forma de combate, o respeito a decisão dos padrinhos, o respeito às hierarquias. O caso envolvendo Lage e Saguier revelou o emprego de diversos aspectos dessa ritualização pelos envolvidos.
O desafio girava em torno de que o Senador Fernando Saguier havia entendido que João Lage teria abusado de sua confiança, ao tê-lo sido recebido como convidado em uma recepção na sua casa em Buenos Aires, e nesta ocasião tê-lo apresentado ao presidente argentino Hipólito Yrigoyen com quem conversou bastante, mas não na qualidade de jornalista. Ocorreu que, no retorno de Lage ao Brasil, este publicou artigos em seu jornal que deram publicidade a essas conversas. Em decorrência disso, o Senador Saguier se manifestou através do jornal La Nación acusando Lage de deslealdade. Lage ainda tentou entender-se com Saguier, o qual se mostrou irredutível, levando a ser desafiado por Lage. Todo esse preámbulo ocorreu nos últimos dias do mês de março, mas ganharam as páginas da imprensa somente nos primeiros dias de abril.
Durante toda a primeira quinzena de abril os jornais continuam atentos e relatam todas as ações do caso: a escolha dos padrinhos de cada um dos lados, a comunicação entre os lados informando os padrinhos e quando e onde se encontrariam para tratar das circunstáncias do lance, e a reunião ocorrida entre os mesmos em Buenos Aires no dia 14, na qual chegaram a um impasse, necessitando nomear um árbitro externo, Carlos Rodriguez Larreta, para encaminhar a situação. O laudo do árbitro foi dado no mesmo dia e decidiu não haver motivos para que o duelo tivesse lugar uma vez que os contendores teriam encaminhado a questão pelas vias do cavalheirismo. No dia 16, jornais do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul divulgaram o fim da contenda "Lage X Saguier" sem a ocorrência de um duelo.50
Certamente, restaram ainda muitos boatos e suposições sobre esse desfecho que levaram o Sr. João Lage a manifestar-se a respeito nas páginas do seu jornal. No dia 28, pretendendo dar por finda a intriga, publicou todas as cartas e telegramas trocados entre Saguier e ele, bem como entre os padrinhos, e o laudo final do árbitro do conflito que indicava de fato não existir razões que legitimassem o duelo.51
Dias antes, em 5 de abril, o jornal operário a Voz do Povo, sempre contrário à prática de duelos, sem ainda saber o final dessa contenda, já predizia o que ocorreria em um tom bastante irônico. Fora mais um duelo que não ocorreu, restrito à troca de farpas através da imprensa, que serviu para satisfazer a vaidade de uma elite que podia gastar tempo e dinheiro em conflitos de alcova, enviando padrinhos para outros países para reuniões formais, a fim de discutirem questões de relevância questionável.
Os duelos sensacionais
Ainda bem não voltou a gente da emoção do encontro fatal entre o Sr. Batlle y Ordoñez e o Sr. Washington Beltran, em Montevidéo, e já falam as folhas no próximo duelo entre o Sr. João Lage e o senador argentino Saguier. O cándido João Lage tão do nosso conhecimento sentiu-se melindrado (ora, vejam isso!) com uma carta do senador Saguier, publicada em La Nación de Buenos Aires e vae dahi desafia-lo para um duelo.
Mas este será mesmo um duelo absolutamente sensacional. Porque Saguier está em Buenos Aires e João Lage está aqui no Rio. Parece que o conselheiro Lampreia foi encarregado por este último a ir a Buenos Aires desafiar o outro. Naturalmente o senador Saguier acceitará o desafio. Mas como se realisará o encontro? A revolver não pode ser, a espada muito menos. Será a telegramma? Dahi pode ser que seja a canhão. Será um encontro inédito e absolutamente de estrondo.
Desejamos sinceramente um exito completo a ambos os contendores. Que não erre a pontaria do Sr. João Lage, que não falhe a pontaria do Sr. Saguier. e que ambos levem o diabo.52
Se o tom sarcástico do jornal acertou em antever o malogro do duelo, por outro lado, zombava equivocadamente em atribuir a não ocorrência do duelo ao fato de que, por estarem os contendores em países diferentes, o duelo só poderia acontecer a distáncia, por telegrama ou canhão. Acompanhando a série de notícias sobre o caso, sabe-se que a distáncia nunca foi um empecilho para a realização do duelo. Assim como João Lage foi à Argentina, e com facilidade comunicou e enviou seus padrinhos a Buenos Aires para se encontrarem com os padrinhos de Saguier e acertarem os termos do combate, o desafio lançado por João Lage, conforme se lê na notícia de 3 de abril do Jornal do Brasil anteriormente transcrita, chamava para o duelo a realizar-se "em território neutro, que no caso é o Uruguai".
O ano de 1920 ainda guardava outra grande notícia sobre o universo dos duelos: a lei de descriminalização da prática no Uruguai, promulgada em 6 de agosto de 1920, durante o governo colorado de Baltasar Brum, sucessor político de José Batlle. Rejeitada no ano anterior, quando foi apresentada pelos blancos, retornou pelas mãos dos colorados gerando um debate que se ampliou para além das tradicionais divergências partidárias, revelando divisões e diferentes concepções sobre honorabilidade na sociedade uruguaia.53 O envolvimento do ex-presidente Batlle em um duelo fatal com o jornalista Beltran, colaborou no furor das discussões, mas não foi o único fator motivador da aprovação da Lei, mas sim uma compreensão dessa sociedade de que a prática de duelos era legítima, a despeito da legislação vigente e evidenciando a existência de outros códigos morais que tinham peso real ao lado das leis formais.54
Entre as notícias que chamam a atenção, está a manifestação de um jornal católico.
Projecto monstro
Os jornais diarios desta capital deram há bem pouco tempo uma notícia, que si não revestiu o cunho do sensacional, com letras garrafaes, nem por isso deixa de provar à luz meridiana que estamos num século de surpresas, tanto mais imprevistas quanto aberrantes da velha norma da moralidade [...]. O senado uruguayo, passando por sobre as tradições dos povos civilizados, que ainda respeitam, nos seus códigos e ordenações o "não matarás" da Bíblia e da natureza, pelo menos em tempo de paz, sancionou definitivamente um projecto já aprovado pela Cámara dos deputados abolindo as penalidades que existiam para os participantes em duellos.55
Segundo François Guillet,56 católicos e protestantes se posicionavam contra a prática de duelos. Da mesma forma, o movimento operário, através de seus meios de comunicação, também se posicionava contra essa prática que apenas colocava em evidência a vaidade e futilidade das contendas de elite, repercutindo esse posicionamento em jornais operários brasileiros que publicam textos ácidos e cômicos em relação à lei uruguaia. A chamada Ley del Duelo serviu também como atrativo para que contendores de outros países buscassem o território uruguaio para duelar a fim de realizarem um lance legalizado, a exemplo do caso Lage-Saguier. Sabe-se que a prática de duelar, embora fosse reputada como crime nos demais países, desfrutava de certa condescendência jurídica, sendo os envolvidos dificilmente indiciados e quando o eram, em geral em caso de haver morte envolvida, havia atenuantes para que não fosse enquadrado como homicídio comum.57 Mas, embora os duelistas não fossem considerados como criminosos comuns pela opinião pública, havia uma preocupação com a ilegalidade do ato e, nesse sentido, sabe-se que vários duelistas buscaram o chamado "território neutro" para realizar suas disputas deslocando-se para duelar em outros países onde mais dificilmente seriam incursos em qualquer infração.58
Considerações finais
Podemos dizer, portanto, que participar de um duelo significava para essa elite latino-americana uma marca de distinção e pertencimento a um grupo seleto e cosmopolita. E, certamente, seu espelho era a Europa. Segundo Gayol, ter um duelo, ou mais, na sua biografia elevava o indivíduo a outro patamar social. Contudo, duelar exigia coragem para tal e, apesar da propalada retórica da virilidade desse período, para muitos esta ficava apenas no discurso. É verdade que os duelos não se destinavam propriamente a ferir e matar o oponente. Era como se houvesse um acordo tácito entre os contendores de que nenhuma das partes queria sair ferida, muito menos morta, então o ato em si não deveria ter intenção letal de nenhuma das partes. Eram comuns que os duelos com arma de fogo ocorressem com tiros disparados para cima, bem como, os duelos de espada fossem de "primeiro sangue", considerados resolvidos ao primeiro ferimento. Mas por isso os duelos se traduziam em mera formalidade ou encenação. Era preciso denodo, desejo de reparação da honra, para enfrentar um duelo porque, além dos acidentes, nada garantia que a outra parte cumpriria o referido acordo.
Portanto, a análise das práticas privadas de justiça representadas pelos duelos através da veiculação de suas repercussões na imprensa, seja o desafio público, o debate da legitimidade da prática ou os resultados dos embates, busca a compreensão de alguns fenômenos que circundam essas práticas de defesa da honra ultrajada, ou seja, para além do fenômeno em si. O desafio, que colocamos e ainda caminhamos na sua resolução, é entender os caminhos que conformavam a moral, o ethos, da burguesia do Brasil e da América Latina e suas relações com a Europa. Ainda podemos observar que além das trocas através dos escritos e impressos circulantes, existe o contato direto, o confronto, a troca presencial, como podemos ver, por exemplo, nas notícias do duelo entre o jornalista brasileiro e o senador argentino, ou na busca de territórios em que o duelo estivesse descriminalizado, caso do Uruguai. Certamente, não podemos falar de uma honra latino-americana genérica, mas também não podemos falar de um afastamento total entre estas elites nacionais e suas formas de defesa da honorabilidade. Da mesma forma, a privatização da defesa da honra era um ponto comum de tensão na construção do Estado nacional por estas mesmas elites.
Nesse contexto, a imprensa e a circulação de notícias despontam como recurso fundamental dessa cultura. Cada vez mais, eventos distantes provocavam ondas de sensações representadas pelo mundo da informação sincrônica, como o sentimento de união do indivíduo com o todo, e ter seu nome simplesmente referido na imprensa em um caso de desafio de duelo já deveria implicar em distinção social. Contudo, o que se percebe é que esse contexto cultural compartilhado, que exalta a honra e a prática de duelos, sustenta-se em grande medida em função da difusão da comunicação, a qual surpreendentemente acabará funcionando como recurso legítimo de desagravo. Essa sociedade burguesa conseguiu a façanha de ter como prioridade a manutenção da honra individual, bem como, a necessidade de repará-la quando necessário, e fazê-la de tal forma pautada pelos preceitos da normatização, fazendo triunfar a ideia da civilidade, que retratações apenas no plano retórico e público através da imprensa são consideradas aceitáveis e legítimas. Certo que duelos de fato continuavam ocorrendo em diferentes partes por razões consideradas legítimas pelos seus contendores, contudo, parece que se não fossem noticiados, não teriam o mesmo peso na honorabilidade dos envolvidos. Por outro lado, duelos jamais ocorridos, mas repercutidos na imprensa, podiam funcionar como instrumento de distinção social apenas por terem ganhado tal publicidade dada a projeção da circulação da informação desse contexto.
Por fim, estas são as conclusões parciais de uma pesquisa em andamento, mas que sugere a necessidade de aprofundamento para melhor entender esse fenômeno histórico nos ámbitos regional e internacional. Também reconhecemos a necessidade de outros recortes de análise, tais como gênero, classe, culturas regionais, para que possamos apreender a maior complexidade do tema da honra e de sua defesa pública.