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Cuadernos de Administración

Print version ISSN 0120-3592

Cuad. Adm. vol.19 no.32 Bogotá Jul./Dec. 2006

 

O referencial teórico-metodológico de Geertz como uma possibilidade para o estudo da cultura das organizaçiões hospitalares*

Helena Heidtmann Vaghetti** Maria Itayra Coelho de Souza Padilha*** Ana Rosete Camargo Maia****

* El artículo es una revisión bibliográfica que fundamenta la reflexión expuesta en forma de ensayo. El artículo se recibió el 16-08-2006 y se aprobó el 05-12-2006.

** Estudante do Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Enfermagem Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, 2005. Mestre em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, 1999. Graduada em Letras-Português-Licenciatura Plena, Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Brasil. Graduada em Enfermagem-Licenciatura Plena, FURG, Brasil, 1992. Especialista em Administração Hospitalar, Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, 1981. Enfermeira, FURG, Brasil, 1980. Correo electrónico: vaghetti@vetorial.net

*** Doutora em Enfermagem, Escola de Enfermagem Anna Néri, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, 1997. Mestre em Enfermagem, Escola de Enfermagem Anna Néri, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, 1987. Especialista em Metodologia da Assistência da Enfermagem, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, 1982. Especialista em Saúde Pública, Universidade do Vale do Itajaí (Univali), Brasil, 1980. Enfermeira, Universidade Federal de Santa Catarina, 1978. Correo electrónico: padilha@nfr.ufsc.br

**** Estudante do Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, 2005. Mestre em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, 1991. Especialista em Enfermagem em Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, 1983. Enfermeira, Faculdade de Enfermagem, Nossa Senhora Medianaeira (FAFRA), Brasil, 1980. Correo electrónico: maia@nfr.usfc.br

RESUMO

O artigo transita por alguns fundamentos da antropologia e da antropologia/hermenêutica/interpretativa, e se baseia em três obras de Clifford Geertz principal representante da antropologia interpretativa: O saber local, A interpretação das culturas e Nova luz sobre a antropologia. Essa leitura fundamentou a reflexão sobre a pergunta: É pertinente a aproximação do referencial teórico-metodológico proposto por Geertz para compreender a cultura em relação com o estudo da cultura das organizações hospitalares? No artigo considera-se que estudar a cultura, de acordo com o pensamento de Geertz, é entender a interpretação dos sujeitos acera de seu mundo social e dos modos de pensamento diretamente observáveis em suas experiências construídas sob a direção do significado dos símbolos compartilhados a partir da etnografia. Conclui-se que esta visão permite compreender a estrutura das relações que ocorrem dentro das organizações hospitalares, o que – ao mesmo tempo – favorece as questões referentes aos trabalhadores, à gestão e – em conseqüência, aos usuários e à sociedade.

Palavras chaves: organizações, organização e administração, cultura organizacional, antropologia cultural, cultura, administração hospitalar.

El referencial teórico-metodológico de Geertz como una posibilidad para el estudio de la cultura de las organizaciones hospitalarias

RESUMEN

El artículo transita por algunos fundamentos de la antropología y de la antropología/ hermenéutica/interpretativa, y se basa en tres obras de Clifford Geertz, principal representante de la antropología interpretativa: El saber local, La interpretación de las culturas y Nueva luz sobre la antropología. Esa lectura fundamentó la reflexión sobre la pregunta: ¿es pertinente la aproximación del referencial teórico-metodológico propuesto por Geertz para comprender la cultura en relación con el estudio de la cultura de las organizaciones hospitalarias? En el artículo se considera que estudiar la cultura, de acuerdo con el pensamiento de Geertz, es entender la interpretación de los sujetos acerca de su mundo social y de los modos de pensamiento directamente observables en sus experiencias construidas bajo la dirección del significado de los símbolos compartidos a partir de la etnografía. Se concluye que esta visión permite comprender la estructura de las relaciones que ocurren dentro de las organizaciones hospitalarias, lo que a la vez favorece las cuestiones referentes a los trabajadores, a la gestión y, en consecuencia, a los usuarios y a la sociedad.

Palabras clave: organizaciones, organización y administración, cultura organizacional, antropología cultural, cultura, administración hospitalaria.

Geertz’s theoretical – methodological teference as an option for studying culture in hospital organizations

ABSTRACT

This paper covers some basic concepts of anthropology and of interpretive anthropology / hermeneutics. It is based on three books by Clifford Geertz, the main representative of interpretive anthropology: Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology, The Interpretation of Cultures, and Available Light: Anthropological Reflections on Philosophical Topics. Reading those works led to reflecting on the question, is Geertz’s theoretical - methodological reference approach for understanding culture relevant to studying culture in hospital organizations? The authors of this paper consider that, according to Geertz’s thought, studying culture consists of understanding the subjects’ interpretation of their social world and of the kinds of thinking that they observe directly in their experiences built, according to the meaning that they give to shared ethnographical symbols. The authors conclude that this view enables understanding the structure of the relations inside hospital organizations, which, in turn, favors issues regarding workers, management and, consequently, users and the society at large.

Key words: Organizations, organization and administration, organizational culture, cultural anthropology, culture, hospital administration.

Introdução

Como profissionais da área da saúde, há muito vivenciamos diversos universos organizacionais de saúde, os hospitais em especial, e vimos –cada vez mais– perceben-do-os como extremamente complexos. Isto é, complexos pela sua forma peculiar de constituição (ao congregar serviços diferentes como nutrição e dietética, manutenção, farmácia, laboratório, lavanderia, almoxarifado, entre outros), pela diversidade de seus recursos humanos (enfermeiros, médicos, assistentes sociais, psicólogos, farmacêuticos, bioquímicos, administradores e todas as outras profissões e categorias funcionais de apoio que convivem atualmente nos espaços nosocomiais), e pela clientela que atende (heterogênea quanto à idade, classe social, sexo, tipo de tratamento), para citar apenas três de tantas outras razões que poderiam compor, aqui, nossa justificativa.

Para além disso, ao vivenciar ativamente estes cenários, notamos que muito se tem culpado, levianamente, a “cultura organizacional” que é –na maioria das vezes– avaliada pelo senso comum, como uma série de descompassos, tanto no atendimento ao usuário do sistema, propriamente dito, como em outras questões relativas ao gerenciamento destes locais.

Se os funcionários chegam atrasados ao trabalho, se não usam uniforme, se não checam as prescrições, é tudo em nome da “cultura”, com afirmações do tipo: “Aqui as coisas funcionam assim, é cultural”. Se há falta de material, se há grande espera para as consultas ambulatoriais, se a limpeza está deixando a desejar, a cultura é responsabilizada. Há uma “aceitação” dos problemas, como se fosse a cultura uma condição externa ante a qual não fosse possível reagir, como se ela existisse como uma entidade “quase física” a espreitar cada canto do hospital.

Todavia, para se perceber a cultura que permeia os hospitais, acreditamos ser necessário um entendimento aprofundado baseado em estudos empíricos e teóricos acerca da temática.

Assim, realizamos algumas incursões na literatura para verificar como a cultura organizacional vem sendo debatida na Teoria das Organizações de uma maneira geral e, em particular, nas organizações de saúde os hospitais.

Deste modo, constatamos que no final dos anos 70, o campo da gestão organizacional foi invadido por inúmeros estudos de “cultura da empresa”, que resultaram em uma vertente da teoria da gestão, que vem crescendo de maneira incisiva, passando, nos dias de hoje, a uma disciplina específica da teoria das organizações, “com seus especialistas, suas escolas, suas tendências e seus ‘clássicos’” (Aktouf, 1993, p. 40).

Nesta seara, observam-se dois modelos1, encontrados, também, nos estudos que tratam da cultura organizacional de hospitais:

o funcionalista e o interpretativista. Ambos os modelos, o funcionalista e o interpretativista, possuem conceitos de cultura e organização, que são próprios de cada concepção epistemológica, que estão fundados na Antropologia Cultural. Esta vem fornecendo uma base de conceitos sobre a cultura organizacional, que se divide basicamente em três correntes, a da Antropologia Cognitiva (conhecimentos compartilhados), a da Antropologia Simbólica (significados compartilhados) e da Antropologia Estrutural (manifestações e expressões dos processos psicológicos compartilhados), suscitando diferentes análises que resultam em alguns pressupostos acerca da organização, cultura e natureza humana. Desta forma, por exemplo, a cultura pode ser observada como uma metáfora –algo que a organização é, e como uma variável– algo que a organização tem. Estas diferentes abordagens dão origem a cinco tendências, classificadas nas seguintes áreas temáticas: Administração Comparativa ou Transcultural, Cultura Corporativa, Cognição Organizacional, Simbolismo Organizacional e Processos Inconscientes e Organizações. Cada uma dessas cinco áreas possui um conceito de cultura e organização que está relacionado, ao mesmo tempo, à Antropologia e à Teoria das Organizações (Smircich, 1983).

A Administração Comparativa ou Transcultural e a Cultura Corporativa assumem a posição funcionalista e vêem a cultura como um instrumento que serve para atender as necessidades biopsicológicas do homem e como uma variável interna capaz de regular e adaptar o homem em suas estruturas sociais, respectivamente. Da mesma forma, estas concepções se orientam sob o ponto de vista de que as organizações são organismos que se configuram como instrumentos sociais para que tarefas sejam realizadas e de que são instrumentos sociais que produzem bens e serviços e subprodutos como artefatos culturais diferentes como rituais, lendas e cerimônias. Igualmente, há a concepção de que as organizações conformam estruturas adaptativas que existem nos processos de troca com o ambiente, respectivamente. Nestes entendimentos, tanto cultura como organização são estudadas por meio de modelos de relacionamento que ocorrem no interior e exterior das organizações e buscam a previsibilidade e o controle organizacional (Smircich, 1983).

Já a Cognição Organizacional, Simbolismo Organizacional e Processos Inconscientes e Organizações têm a visão de que a cultura é uma metáfora e estão associadas ao modelo interpretativista. Estes flancos concebem a organização como uma maneira peculiar da expressão humana e como um mecanismo epistemológico que fundamenta o estudo das organizações como um fenômeno social. Soma-se a isto a visão de que o mundo social e organizacional existem como relacionamentos simbólicos que possuem significados que são sustentados pela interação humana (Smircich, 1983).

A Cognição Organizacional pressupõe a cultura como um master contract onde está incluso a auto-imagem da organização e as regras que constituem e regulam as crenças e ações à luz desta sua auto-imagem. A perspectiva simbólica procura interpretar, ler ou decifrar o discurso simbólico com o qual a experiência se torna significativa. Os Processos Inconscientes e Organizações enfa-tizam as expressões dos processos psicológicos inconscientes, sendo que as organizações são entendidas como uma projeção dos processos inconscientes e analisadas tendo por referência o jogo entre dois processos: o de fora da consciência e o de suas manifestações conscientes (Smircich, 1983).

Reafirmando estes pensamentos de Smircich, pode-se dizer que a “corrente predominante”, de inspiração funcionalista e instrumental, representada por autores como Deal e Kennedy, Peters e Waterman, Schein, Pettigrew, Weick, Allaire e Firsirotu, advoga que “cultura pode ser eficiente e bem sucedida”, que ela é “‘diagnosticável’, reconhecível e –desde que se tomem certas precauções metodológicas– pode ser transformada, manipulada e mudada, até ser inteiramente criada por líderes, campeões, heróis e modelos, que lhe imprimem valores e símbolos” (Aktouf, 1993, p. 40).

Entretanto, a grosso modo cada qual adjetivando uma linha de pensamento, podese afirmar que estes conceitos não são precisos e carecem de conformidade, inclusive no interior das disciplinas onde tiveram berço –a antropologia e a administração, respectivamente–, pois a construção de conceitos implica em uma relação efetiva entre o físico e o conceitual, o que, muitas vezes, é extremamente complexo. Adicio-na-se a isto, o fato de que ao unir os termos cultura e organização sob a denominação de cultura organizacional, os estudos organizacionais lançaram mão ainda de outras abordagens para alicerçar seus estudos sobre o tema, o que vem gerando algumas discussões bastante acaloradas, que dizem respeito aos modelos teóricos, epistemológicos e mesmo metodológicos utilizados.

Na área da saúde, como exemplo do emprego da corrente funcionalista, apresento o estudo de Forte (1996) intitulado “Cultura organizacional em saúde: padrões culturais em emergências hospitalares”, que buscou compreender os padrões culturais das organizações de emergências hospitalares de For-taleza-Ceará2. Para tal, a autora utilizou os enfoques teóricos metodológicos de Schein (1982). Para esse, cultura organizacional é um conjunto de pressupostos básicos que um grupo inventou, descobriu ou desenvolveu ao lidar com problemas de adaptação externas e integração interna e que, por funcionarem bem, são ensinados a novos membros do grupo. Ainda para este autor, a cultura organizacional surge, evolui, sobrevive e se modifica numa abordagem dinâmica e funcional, que pode ser criada, transformada e destruída (Schein, 1992).

Este mesmo referencial teórico baseado em Schein é amplamente divulgado por Fleury (1996) e Freitas (1991), estudiosas brasileiras de relevância, para o estudo da cultura das organizações em geral, com formação em sociologia e em administração, respectivamente.

Reiterando o já enfocado, pode-se dizer que a segunda abordagem está ancorada na perspectiva interpretacionista e autores como Chanlat (1993) e Aktouf (1993) têm uma compreensão aproximada de que as organizações devem ser vistas como grupos que constroem significados (cultura), que podem ser reconhecidos através da leitura e da interpretação das ações simbólicas expressas pelos seus sujeitos. Este olhar tem resultado em uma maneira diferenciada de perceber os fenômenos das organizações, qual seja a de captar a dinâmica organizacional a partir das interações cotidianas do grupo que está sendo estudado (Jaime Júnior, 2002; Mascarenhas, 2002).

Como exemplo da utilização da visão interpretacionista no estudo da cultura das organizações de saúde, tem-se a tese de doutoramento de Prochnow3 (2004) em que esta interpretou o exercício da gerência do enfermeiro e evidenciou a cultura das enfermeiras gerentes, o que, indiretamente, revelou artefatos culturais da organização de saúde onde esses sujeitos estão inseridos. Prochnow sustentou teoricamente seu estudo em Clifford Geertz, principal representante da Antropologia Interpretativa, que caracteriza a cultura como sendo um con-junto de idéias comuns a determinado grupo, que são retrabalhadas continuamente de maneira imaginativa, sistemática, explicável, mas não previsível (Geertz, 1989).

O artigo de Cavedon e Fachin “Homogeneidade versus heterogeneidade cultural: um estudo em universidade pública” (2002), é o exemplo escolhido para demonstrar o uso da antropologia em estudos dedicados à compreensão das organizações em geral. Nele, os autores buscaram, através de um referencial metodológico –que privilegiou a etnografia–, as significações que uma universidade pública possui para aqueles que nela atuam. Os resultados alcançados evidenciam: que alunos e professores partilham da significação da escassez de recursos e Universidade renomada; que professores e funcionários partilham do mesmo significado em relação à falta de perspectivas profissionais voltadas aos funcionários; que dificuldade de conciliar estudo e trabalho é uma significação para os alunos; que liberdade é uma significação exclusiva dos professores e que a representação da Universidade sob a ótica da deficiência é co-mum aos três segmentos- professores, alunos e funcionários.

As idéias pertinentes à segunda abordagem (interpretativista) nos inquietaram e suscitaram nossa curiosidade sobre a concernência de sua aplicabilidade no estudo da cultura das organizações hospitalares e fizeram com que pesquisássemos, inicialmente, alguns fundamentos da antropologia e da antropologia interpretativa/hermenêuti-ca para basear nossa próxima investida. Esta se constituiu na leitura de três das obras de Clifford Geertz (1989, 2001a y 2001b), principal representante da Antropologia Interpretativa, “O saber local”, “A interpretação das culturas” e “Nova luz sobre a antropologia”, que serviram para alicerçar nossa reflexão sobre a pertinência de uma aproximação do referencial teórico metodológico proposto pelo autor, para o entendimento da cultura, com o estudo da cultura das organizações hospitalares, exposta nas considerações finais.

Esta aventura ao mundo da antropologia, ao encontro da interdisciplinaridade –que articulasse as questões da cultura, administração e saúde– foi respaldada pelos dizeres de Japiassu (1981) citado em Cavedon de que “(o interdisciplinar) [...] cultiva o desejo de enriquecimento por enfoques novos, o gosto pela combinação das perspectivas, e alimenta o gosto da ultrapassagem dos caminhos já batidos e dos saberes adquiridos, instituídos e institucionalizados” (2003, p. 14).

1. Alguns fundamentos da antropologia e da antropologia interpretativa/hermenêutica

Vários estudiosos, no decorrer dos tempos, têm se inquietado com a questão da diversidade dos modos de comportamento existentes entre diferentes povos, como Heródoto (484-424 a. C.), que se ocupou em descrever o sistema social do povo Lício, Tácito (55-120 a. C.), que compôs um trabalho acerca das características das tribos germânicas e Padre José de Anchieta, no Brasil, no século XVI, que discorreu sobre os costumes pratrilineares dos índios Tupinambás, para citar alguns dos autores mais remotos (Laraia, 1997).

A antropologia se ocupa em estudar “todas as sociedades humanas (a nossa inclusive), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas” (Laplantine, 2000, p. 20) e constituiu-se em saber pretensamente científico somente ao final do século XVIII, quando tomou “o homem como objeto de conhecimento e não mais a natureza” e adquiriu legitimidade como ciência na segunda metade do século XIX, “durante o qual a antropologia se atribui objetos empíricos autônomos: as sociedades ditas ‘primitivas’, ou seja, exteriores às áreas de civilização européias ou norte-americanas” (Laplantine, 2000, p. 13).

No início do século XX, a antropologia firmou seus próprios métodos de produção de conhecimento e passou por uma crise de identidade, uma vez que percebeu “que o objeto empírico que tinha escolhido (as sociedades ‘primitivas’) está desaparecendo; pois o próprio universo dos ‘selvagens’ não foi de forma alguma poupado pela evolução social” (Laplantine, 2000, p. 14).

Esta crise proporcionou uma transforma-ção/auto-reflexão tanto do papel da antropologia em si quanto do seu objeto, fazendo com que a antropologia adquirisse uma legitimidade afirmando a especificidade de sua prática, “através de uma abordagem epistemológica constituinte”. Assim, a antropologia passou, então, a tecer um olhar, “um certo enfoque que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas” (Laplantine, 2000, p. 16).

Entretanto, Geertz (2001b), em Nova luz sobre a antropologia discute a natureza da antropologia como ciência e questiona seus limites, seu objeto, sua relação com as ciências sociais e sua condição diante da diversidade cultural, demonstrando que a antropologia permanece em erupção. Em relação ao objeto, o autor posiciona-se afirmando que o objeto primeiro da antropologia, o primitivo, o exótico, existiu somente até o século XIX, visto estar havendo uma diminuição das diferenças culturais, fazendo com que se opere constantemente, no seu interior, debates metodológicos e teóricos.

Geertz (2001b) também disserta sobre a possibilidade da antropologia constituir-se em uma ciência e alega que a mesma está mais voltada a enfatizar a etnografia como método do que saber se realmente é uma ciência. Por outro lado, ele dispõe que existem antropólogos que consideram haver uma falta de coerência interna na antropologia, o que vai de encontro à visão das pessoas externas de que a antropologia é uma força poderosa dos estudos sociais e humanos.

Com o exposto, verifica-se que os antropólogos estão questionando suas verdades e criticando seu conhecimento, revitalizando a antropologia pela re-construção de novas teorias, o que possibilita sua evolução:

As tendências acadêmicas da antropologia conhecidas como modernismo, posterior-mente, como pós-modernidade, sediaram uma forma de reflexão que se inclina ao debate sobre a vida humana e seus processos e atravessam as fronteiras das ciências. A transposição das linhas demarcatórias entre especializações disciplinares indica estarem os saberes antropológicos seguindo a direção de uma humanização ‘por dentro’, rumo a um reconhecimento da verdade. (Godoy, 2004, p. 22).

O conhecimento antropológico organiza-se em diversas áreas, que mantêm relações entre si e indicam os aspectos que são evidenciados em particular: (1) a antropologia biológica (antigamente designada de antropologia física), que enfoca os aspectos genéticos e biológicos do homem no tempo e no espaço, levando em consideração os fatores culturais. (2) A antropologia pré-his-tórica, ligada à arqueologia, que estuda as questões das condições de existência dos grupos humanos desaparecidos, pelas ossadas humanas enterradas no solo e quaisquer marcas de atividade humana. (3) A antropologia lingüística que se interessa pelos dialetos e técnicas de comunicação moderna. (4) A antropologia psicológica, “que consiste no estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo”. (5) A antropologia social/cultural, “que diz respeito a tudo que constitui uma sociedade” e a maneira com a qual “seus modos de produção econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia, suas criações artísticas” estão relacionados “e através da qual aparece a especificidade de uma sociedade” (Laplantine, 2000, p. 19).

A antropologia simbólica, uma das áreas da antropologia cultural, possui uma vertente interpretativa ou hermenêutica. A hermenêutica vem servindo de base para alguns estudos na área da saúde e da enfermagem, em especial, que têm como objetos a compreensão dos significados expressos pelo homem imerso em sua realidade. Como exemplo, podemos citar Boehs (2000), que discutiu em “A narrativa no mundo dos que cuidam e são cuidados”, onde a autora apresenta a narrativa como uma possibilidade para a enfermagem interpretar e agir sobre sua prática e Jesus, Peixoto e Cunha (1998) que trataram de dissertar sobre “O paradig-ma hermenêutico como fundamentação da pesquisa etnográfica e fenomenológica”.

A palavra hermenêutica etmologicamente deriva de Hermes, deus grego considerado o intérprete das mensagens dos deuses para os mortais e provém do verbo grego herméneuein, que significa declarar, anunciar, interpretar ou esclarecer, traduzir. A hermenêutica constituiu-se como disciplina a partir do século XIX, quando o conhecimento passou a ser dependente da compreensão e da interpretação. Neste período, Friedrich Scheleiermacher (1768-1834) foi o pensador que conduziu a hermenêutica à ciência e arte da compreensão, que desde então se tornou o conceito básico e a finalidade da hermenêutica. Após, Wilhelm Dilthey (18331911) levou a hermenêutica ao estatuto de base metodológica de todas as ciências humanas, geisteswissenschaften (ciências do espírito), que incluíam todas as disciplinas que interpretavam as expressões da vida interior do homem, tais como gestos, atos históricos, leis codificadas, obras de arte ou literatura. Dilthey estabeleceu a distinção entre a explicação das ciências da natureza, que procuram a causalidade dos fenômenos, e a compreensão das ciências do espírito, que visam extrair os sentidos dos processos da experiência humana, que se formam na própria experiência do investigador. Estes senti-dos, para Dilthey, poderiam –também– ser apreendidos pela experiência do outro, como uma transposição de experiências. Heidegger e Gadamer, já no século XX, mostraram a hermenêutica como filosófica, em que a compreensão ocorre como uma maneira de se conhecer o humano e de ser humano, em um contexto histórico. Jürgen Habermas e Apel fundaram a hermenêutica crítica de ideologias que remonta, através de Marx, ao século XVIII. Esta abordagem critica as condições sóciopolíticas e culturais através de interpretações que as desmistificam. Paul Ricouer desenvolveu a hermenêutica fenomenológica, onde o agir humano é a base da reflexão (Palmer, 1989; Bleicher, 1992; Schleiermacher, 1999; Minayo, 2002).

A antropologia interpretativa ou hermenêutica tem como um dos principais representantes Clifford Geertz (1989, 2001a y 2001b), que vem desenvolvendo suas idéias, principalmente, a partir da segunda metade do século XX, e expressou-as em obras como A interpretação das culturas e O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa, Nova luz sobre a antropologia, entre outras.

A antropologia interpretativa (AI) ou hermenêutica tem como objeto o estudo da cultura, através da interpretação dos significados apresentados pelos sujeitos em suas práticas sociais e da descrição microscópica e densa da realidade em questão. A tarefa da hermenêutica, atualmente, é a de “entender, de alguma forma, como ‘entendemos entendimentos’ diferentes do nosso” (Geertz, 2001a, p. 12). Geertz sustenta que a organização da vida social acontece através de símbolos, como sinais, representações, e que seu sentido deve ser captado se quisermos entendê-la e formular princípios a seu respeito. Assim, a explicação interpretativa “con-centra-se no significado que instituições, ações, imagens, elocuções, eventos, costumes –ou seja, todos os objetos que normal-mente interessam aos cientistas sociais– têm para seus ‘proprietários’”. Da mesma forma, “o estudo interpretativo da cultura re-presenta um esforço para aceitar a diversidade entre as várias maneiras que seres humanos têm de construir suas vidas no processo de vivê-las” (Geertz, 2001a, pp. 37 y 29).

A AI também utiliza a etnografia como forma de interpretar o fluxo do discurso social, de maneira a salvar aquilo que foi dito, e que pode ser perdido, fixando-o para futuras pesquisas. A etnografia é uma descrição densa da realidade que está sendo pesquisada e “Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado” (Geertz, 1989, p. 7).

2. A cultura e a etnografia na perspectiva de Geertz

Clifford Geertz visualiza a cultura como um conjunto de mecanismos de controle, como planos, receitas, regras, instruções, que ordenam o comportamento do homem, tornando-o dependente de tais mecanismos e sem os quais este comportamento seria fatalmente ingovernável. Entretanto, essa cultura não é acrescentada ao homem acabado (no decorrer de sua existência); ela é, sim, um ingrediente essencial na produção desse homem, levando ao entendimento de que a natureza humana depende, também, da cultura. Deste modo, “Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens”, o que aponta na direção de que o ser humano é inacabado e que se completa “através de formas altamente particulares de cultura” (Geertz, 1989, p. 36).

Este autor defende um conceito ampliado de cultura, essencialmente semiótico, baseado na sociologia clássica de Max Weber, que entende que o homem só é capaz de viver em um mundo que tenha significado para ele. Geertz, assim, traduz a cultura como sendo a produção desse sentido, ou seja, uma indestrinçável teia de significados tecida pelos homens, em suas interações do cotidiano, cartografando a ação social: “um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”, sendo a cultura uma ciência interpretativa, que busca a análise do significado daquelas teias (Geertz, 1989, p. 4).

Geertz, também, propõe um conceito de cultura que “denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”, imputando à cultura um caráter público e compartilhado (1989, p. 66).

Os símbolos são pré-requisitos da existência biológica, psicológica e social e não suas simples expressões, instrumentalidade ou correlatos e armazenam seus significados. Entretanto, estes significados não são intrínsecos aos objetos, atos, acontecimentos, qualidades ou relações (símbolos) que os possuem, mas lhes são impostos pelos homens que vivem em sociedade. De maneira semelhante, símbolos “são formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças”, que servem como vínculo a uma concepção, que é o significado do símbolo (Geertz, 1989, p. 68).

O pensamento consiste em um “tráfico de símbolos significantes” sendo que amontoados ordenados de símbolos significantes dão origem a padrões culturais, através dos quais “o homem encontra sentido nos acontecimentos”, que o faz viver. Por conseguinte, “O estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupo de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de outra forma seria obscuro” (Geertz, 1989, p. 150).

Na obra A interpretação das culturas, Geertz (1989) enuncia que a cultura seja vista como um texto passível de leitura e interpretação, em busca do significado expresso na lógica informal da vida real. Sob esta perspectiva, o papel do antropólogo é de um intérprete do discurso social, traduzindo os significados que são cultural e socialmente construídos pelos sujeitos. Entretanto, para o autor, esta interpretação é operada a partir da interpretação que os próprios sujeitos fazem de sua cultura, isto é, existe uma intersubjetividade, que se dá a partir da intersecção de dois universos, o do pesquisador e do pesquisado.

Para possibilitar essa tradução dos textos culturais, as interpretações de “segunda mão”, Geertz defende o trabalho de campo etnográfico, como forma de propiciar uma leitura das entrelinhas e uma descrição minuciosa dos eventos em questão, mesmo que essas interpretações sejam provisórias e sempre passíveis de questionamentos. Para o autor, ao realizar etnografia, o pesquisador depara-se com “uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar”. Para tal, em seu trabalho de campo, o investigador deve “entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico [...] escrever seu diário” (Geertz, 1989, p. 7).

Deste modo, percebe-se que a etnografia é, em primeira instância, um exercício da sensibilidade e da paciência, em que na proximidade com o estranho, o etnógrafo absorve-o a ponto de descrevê-lo minuciosa e densamente, isto é, “começamos com as nossas interpretações do que pretendem nossos informantes, ou o que achamos que eles pretendem, e depois passamos a siste-matizá-las” (Geertz, 1989, p. 11).

O produto da etnografia, aquilo que o etnógrafo inscreve e anota, resgata o acontecimento passado, possibilitando seu estudo. Entretanto, “A vocação essencial da antropologia interpretativa não é a de responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa disposição as respostas que outros deram [...] e assim incluí-las no registro de consultas sobre o que o homem falou” (Geertz, 1989, p. 21).

A tradução, a que se propõe o autor, deve reunir dois tipos de descrições –observações detalhadas e caracterizações sinópticas–, que juntas “se conectam na mente, formam um retrato vívido e verossímil de um tipo de vida humana”. Então, essa tradução mostra a forma com que se expressam os sujeitos, com uma fraseologia própria daquele que realiza o resgate (Geertz, 2001a, p. 20).

A verossimilhança é uma propriedade imprescindível à tradução, que busca fornecer uma visão contextualizada da realidade em voga, para que esta faça sentido, seja plausível. Neste caso, para a compreensão da cultura de determinada organização, concomitantemente à inscrição daquela interpretação que os sujeitos têm sobre a vida nesta organização, devese transitar na e por esta, para que a tradução ocorra com a fidedignidade que os sujeitos permitem e em uma realidade concreta que é, também, traduzida pelo pesquisador.

Destarte, “a antropologia sempre teve um sentido muito aguçado de que aquilo que se vê depende do lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram vistas ao mesmo tempo. Para um etnógrafo, remexendo na maquinaria de idéias passadas, as formas do saber são sempre e inevitavelmente locais, inseparáveis de seus instrumentos e invólucros” (Geertz, 2001a, p. 11).

A leitura do texto etnográfico propicia ao leitor uma visão esmiuçada da realidade que está sendo disposta, tanto em referência às relações que se processam entre os atores, quanto ao mundo que os circunda, incluindo aí, impressões sobre o ambiente, clima, vestimentas, que produzem no consumidor do texto a certeza de estar “vivenciando” o momento descrito. Esta construção é quase uma “dissecação”, em que o pesquisador vai mostrando, passo a passo, uma realidade social específica.

Todavia, “o etnógrafo não percebe –principalmente não é capaz de perceber– aquilo que os informantes percebem. O que ele percebe, e mesmo assim com bastante insegurança, é o ‘com que’, ou ‘por meios de que’, ou ‘através de que’ (ou seja lá qual for a expressão) os outros percebem” (Geertz, 2001a, p. 89). Portanto, a cultura, exposta nestes sentidos, é visualizada em sua dimensão de historicidade, uma vez que os universos simbólicos compartilhados entre os membros dessa realidade são resgatados através da trajetória histórica de sua construção (Geertz, 1989).

3. Considerações finais

Geertz indica que o objeto de pesquisa da antropologia não está mais nos povos primitivos e intocados e sim dentro das nossas sociedades (Geertz, 2001b). Isto corrobora o pensamento de que é possível estudar a cultura no cenário das organizações hospitalares segundo o referencial da AI de Geertz e tendo a etnografia como abordagem metodológica, visto que esses podem vir a produzir um maior e melhor entendimento da experiência e da realidade humana naqueles espaços, que são, também, espaços históricos e sociais.

Contudo, compreender a dinâmica cultural das organizações hospitalares, através dos seus processos sociais, examinando-a minuciosamente, em pequenos recortes, a partir da ciência social interpretativa e do método etnográfico, parece ser um trabalho árduo, mas desafiador. Desafiador porque os caminhos a percorrer são incertos, uma vez que “... quanto mais organizado e simples nos parece um certo caminho, mais temos a impressão de que estamos errados” (Geertz, 2001a, p. 13).

Nas obras consultadas para essa revisão, Geertz deixa claro que para se chegar a uma análise cultural, não se deve apenas percorrer as formas simbólicas mapeando-as. O estudo deve se processar a partir do mundo social dos sujeitos, dos seus modos de pensamento diretamente observáveis em suas experiências construídas, sob a direção dos símbolos e seus significados.

Então, ao buscarmos a compreensão da cultura de uma organização hospitalar deve-se atentar não para os símbolos em si, mas para a utilização que os envolvidos fazem deles, na constituição de sua vida social. A análise cultural aí se processará a partir de uma “pesquisa dos símbolos significantes, feixes de símbolos significantes e feixes de feixes de símbolos significantes”, que são “os veículos materiais da percepção, da emoção e da compreensão e a afirmação das regularidades subjacentes da experiência humana implícitas em sua formação” (Geertz, 1989, p. 181).

Desta forma, busca-se o funcionamento dessa maquinaria, pela interpretação que os sujeitos realizam sobre a mesma, ou seja, como orientam e dão significado as suas ações nas práticas de saúde-isto é, tenta-se “identificar com que materiais é feita a experiência humana” (Geertz, 2001a, p. 37).

Entende-se que um estudo que se ocupe com a cultura das organizações hospitalares, apreendida da forma como manifesta Geertz, possibilita, também, a compreensão da estrutura das relações que ocorrem no interior destas organizações, o que pode suscitar o favorecimento das questões referentes aos trabalhadores e à gestão.

Em relação aos trabalhadores de saúde, no momento em que as organizações hospitalares são consideradas como padrões de discursos simbólicos, que precisam ser traduzidos para serem entendidos, toman-do-se para tal os símbolos e seus significados emanados das interações sociais, interpreta-se esta realidade e, como decorrência, pode emergir a forma como esses sujeitos entendem suas experiências na prática e como essas experiências se relacionam com a prática que é efetivamente operacionalizada por eles. O produto deste exercício pode vir a promover uma refle-xão/discussão dos sujeitos acerca do seu mundo/ trabalho-mundo do trabalho.

Os gestores, por sua vez, têm a possibilidade de virem a compreender melhor e mais profundamente a realidade cultural e o universo simbólico das organizações hospitalares em suas mais variadas dimensões, provocando uma articulação de todos os processos organizacionais, favorecendo, quem sabe, um exame sobre o quadro de anomia em que muitas dessas organizações se encontram atualmente.

Cabe salientar, porém, que em uma organização, em especial uma organização hospitalar –composta de diferentes sujeitos– a cultura pode ser interpretada de diferentes maneiras, uma vez que os atores possuem distintos papéis na sociedade e mesmo na própria organização (divisão social do trabalho), que vão repercutir em sua versão acerca da cultura organizacional.

Neste sentido, a cultura de uma organização hospitalar deve ser observada como um texto que reúne múltiplos sentidos, em virtude dos sujeitos exercitarem suas interações tanto no seu interior (em suas experiências no trabalho), quanto em suas relações externas a essa, possuindo, conseqüentemente, interpretações diversas acerca da vida e do mundo, que vão repercutir na interpretação que eles possuem sobre a organização na qual estão inseridos, aliando-se a isso, ainda, a construção/tradução que o pesquisador elabora sobre essas significações.

Portanto, ao se aproximar da realidade de uma organização hospitalar, a fim de estudar sua cultura, o pesquisador deverá utilizar toda a sua sensibilidade em busca da essência que deve procurar reproduzir. O resultado deste esforço é uma leitura que proporciona uma imersão em um universo distante resgatado e tornado próximo, vívido, na forma do texto etnográfico.

Conseqüentemente, o ambiente das organizações hospitalares, com todas suas peculiaridades, seus assentamentos geográficos, seus acessos muitas vezes familiares somente para seus nativos e suas conspirações, entendidas enquanto sua dinâmica, deve através do estudo etnográfico, vir à tona, como forma de conduzir o leitor e principalmente os sujeitos envolvidos a um desvelo daquela realidade, muitas vezes encoberta. Deste modo, os rituais expressos pelas diversas maneiras de se tomar decisões, de se realizar reuniões, de se estabelecer comunicação entre os diversos setores, entre outros tantos e específicos “rituais” que permeiam a vida diária de qualquer organização de saúde são reproduzidos e podem vir a auxiliar o entendimento das operações que envolvem o complexo ambiente hospitalar.

Finalmente, abrigar a cultura, conforme o pensamento de Geertz, através da AI/ hermenêutica e da etnografia, é um das maneiras de se avançar nas discussões acerca das tão complexas organizações hospitalares que fazem parte do nosso cotidiano e que fornecem sentido as nossas próprias experiências enquanto trabalhadores da saúde. É, igualmente, entendermos essas tão controversas organizações através de entendimentos diferentes daqueles que possuímos, exercitando, continuamente, nossa condição humana:

A largueza de espírito, no entanto, sem a qual a objetividade é nada mais que autocongratulação, e a tolerância apenas hipocrisia, surge através de uma conquista muito mais difícil: a de ver-nos, entre outros, como apenas mais um exemplo da forma que a vida humana adotou em um determinado lugar, um caso entre casos, um mundo entre mundos. Se a antropologia interpretativa tem alguma função geral no mundo, é a de constantemente re-ensinar esta verdade fugaz. (Geertz, 2001a, p. 30)

Notas de rodapé

1. Neste estudo utilizamos o conceito de modelo proposto por Alves (1993) que indica que “Um modelo é um artefato construído pelo cientista. Quando falamos em artefatos, pensamos em coisas fabricadas com o auxílio de materiais sólidos, como relógios, máquinas de moer carne, cortadores de unha, satélites artificiais. Todos são artefatos produzidos pela arte dos homens. [...] Para se construir um modelo, fazemos uso não de materiais sólidos, mas de conceitos” (p. 59).

2. Em seu estudo a autora identificou fatos que acabaram por construir os padrões culturais em emergência hospitalar e, além disso, verificou a existência de um número bem grande de padrões negativos que, sendo prejudiciais ao funcionamento do serviço, conduzem a uma cultura disfuncional (Forte, 1996).

3. “O exercício da gerência do enfermeiro: cultura e perspectivas interpretativas”.

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