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Lingüística y Literatura

Print version ISSN 0120-5587On-line version ISSN 2422-3174

Linguist.lit.  no.82 Medellìn July/Dec. 2022  Epub Mar 10, 2023

https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n82a11 

Estudios literarios

NAVEGANDO COM ERÊNDIRA NAS AREIAS DO REAL E DO MÁGICO1 *

SAILING WITH ERENDIRA ON THE SANDS OF THE REAL AND THE MAGICAL

Carla Rosane da Silva Tavares Alves1 

1Universidade de Cruz Alta - UNICRUZ (Brasil) ctavares@unicruz.edu.br


Resumo

O trabalho analisa o conto «A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada», de Gabriel García Márquez, revelando como se dão as relações dialógicas. A pesquisa bibliográfica e hermenêutica apoiou-se no conceito do fantástico, para explicitação do realismo mágico e daí percorreu um caminho até a análise da ideologia. O realismo mágico caracteriza-se pela inclusão de elementos do fantástico ou mítico na ficção aparentemente realista. A palavra do emissor endereçada ao receptor mostra uma relação social carregada de ideologia. A narrativa em apreço constitui-se na sobreposição de dois parâmetros: o real e o irreal.

Palavras-chave: literatura latino-americana; fantástico; realismo mágico; ideologia; linguagem

Abstract

The work analyzes Gabriel García Márquez’s «The Incredible and Sad story of Candida Erendira and Her Soulless Grandmother», revealing how dialogic relationships occur. The bibliographic and hermeneutic research was based on the concept of the fantastic, to explain the magical realism and then followed a path to the analysis of ideology. Magic realism is characterized by the inclusion of elements of the fantastic or mythical in apparently realistic fiction. The sender's word addressed to the receiver shows a social relationship loaded with ideology. The narrative in question is constituted by the superposition of two parameters: the real and the unreal.

Keywords: Latin American literature; fantastic; magic realism; ideology; language

1. Introdução

Gabriel García Márquez (1927-2014), autor de «A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada» (1972), conto que constitui o corpus de investigação desta pesquisa, é um expoente da literatura latino-americana contemporânea que tem elevado no cenário das letras não apenas o nome da Colômbia, sua pátria, mas o de toda a América Latina. GGM é um referencial no estudo da estratégia do realismo mágico.

Nessa direção, o objetivo desta pesquisa é oferecer uma visão a respeito dessa obra representativa da produção literária do escritor colombiano, verificando o papel dos elementos mágico-realistas em meio a componentes do mundo natural, e como se estabelecem as relações dialógicas entre as personagens, através dos signos linguísticos ideologicamente comprometidos.

A inserção de elementos da esfera fantástica ou mítica no universo da ficção com feições aparentemente realistas compõe a estratégia do realismo mágico presente no conto «A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada». A base teórica adotada na pesquisa centra-se no âmbito conceitual do fantástico, como pressuposto significativo para melhor entendimento do realismo mágico, e deste, percorre-se um caminho até a análise da ideologia, nas instâncias da história e do discurso presentes na narrativa. Dentre os pressupostos teóricos que fundamentam os procedimentos de análise, utilizam-se as posições de Furtado (1980), Bakhtin (1981) e Todorov (1975), as quais representam bases fundantes nos estudos da temática desta pesquisa.

2. Síntese do enredo e parâmetros teóricos para análise da narrativa

A narrativa apresenta a história de uma menina explorada por sua avó, primeiramente, por meio dos afazeres domésticos, depois, sexualmente prostituída, como pagamento de perdas e danos em seu patrimônio, devido a um incêndio no palácio em que viviam. Erêndira é levada às areias do deserto do Caribe e obrigada a manter relações sexuais com um número absurdo de homens. Obediente, a neta vive oprimida pela avó, até a chegada de Ulisses, seu par amoroso, que será o assassino da avó e libertador de Erêndira. Erêndira, por sua vez, assume, então, uma posição inusitada: livre, desaparece para sempre, levando consigo, apenas o jaleco, no qual a avó guardava as joias obtidas com o seu sacrifício.

Em termos de parâmetros teóricos para a análise da narrativa, discute-se, a seguir, alguns pressupostos acerca do fantástico, do realismo mágico e alguns fundamentos de ideologia, a partir da linguagem.

2.1. O fantástico e o realismo mágico

Em meio à narrativa de cunho realista, encontra-se o fantástico, gênero que vem ocupando um espaço cada vez maior na literatura. Observa-se, entretanto, a existência de pouca reflexão teórica a respeito de sua fundamentação, características e temas, bem como outras peculiaridades, contrastando com a gama de narrativas que tem surgido nessa área. Em vista disso, um grande terreno ainda deverá ser descortinado, não se podendo negar, entretanto, a relevância de muitos trabalhos de base crítica, já existentes, especialmente nas últimas décadas. Como afirma Furtado (1980, p. 7), é prematura a tentativa de categorização de características globais de um gênero ainda tão pouco explorado.

O próprio Rhodes James, expoente na narrativa fantástica inglesa, revelou-se cauteloso quanto à caracterização do discurso desse gênero e sua temática: «Suspeito, na verdade, que o gênero é demasiado exíguo e especial para aceitar a imposição de princípios de grande alcance [...]» (Furtado, 1980, p. 9). O cuidado excessivo em traçar definições normativas do gênero também tem se manifestado no período contemporâneo. Nesse sentido, Furtado (1980) critica os posicionamentos que tentam impingir ao fantástico uma atmosfera hermeticamente impenetrável à análise, ou, em outro extremo, que caem na simples apreciação, em vez de oferecerem propostas que objetivem o conhecimento profundo dos traços diferenciadores desse gênero literário.

A precariedade de análise com teor e profundidade no assunto manifesta-se também na abordagem tangencial, a partir de elementos aleatórios como «[...] artifícios usados, efeitos por eles produzidos ou outros aspectos desintegrados do todo formado pelo gênero» (Furtado, 1980, p. 10). Com isso, um ponto relevante fica de lado que é o fato de o fantástico, a exemplo dos outros gêneros, manter-se através de um ponto em comum, ou seja, das categorias literárias, fazendo, para isso, uso de mecanismos pré-concebidos e distintos.

O fantástico, assim colocado, tem suscitado duas atitudes críticas: de um lado um posicionamento de ordem subjetiva, baseado principalmente na apreciação e efeitos emotivos capazes de serem provocados no destinatário da enunciação; de outro, uma análise do gênero pautada pela objetividade, mais especificamente das formas pelas quais o gênero se realiza. As distinções que se estabelecem entre uma e outra abordagem crítica «[...] correspondem em grande medida à distância [...] que separa a crítica impressionista e parafraseante das mais recentes tendências da análise textual» (Furtado, 1980, p. 13).

O fantástico consiste numa «[...] integração do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados» (Todorov, 1975, p. 36). Decorre daí que a condição preliminar do fantástico está na hesitação do leitor, todavia não precisa estar obrigatoriamente representada no texto, da mesma forma que a identificação do leitor com alguma personagem não é uma condição sine qua non. Tanto um quanto outro são fatores facultativos da narrativa fantástica.

O fantástico traz sua finalidade em si mesmo, ou seja, não apenas a visão do acontecimento sobrenatural, mas da própria reação a que conduz. Conforme esse entendimento, o fantástico implica não somente «[...] a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no herói, mas também numa maneira de ler» (Todorov, 1975, p. 38).

Assim, além de conduzir o leitor ou a personagem a um estado de hesitação, o fantástico requer uma determinada forma de ler, que reúne certas condições. O texto deve ser capaz de levar o leitor a conceber o mundo em que se inserem as personagens como um universo real e, diante disso, deve hesitar entre uma resposta de ordem natural e outra sobrenatural. O segundo passo mostra que essa sensação pode ser também vivida por uma personagem. Neste caso, o que cabe ao leitor é representado pela personagem, assim como a própria hesitação. Finalmente, é interessante a adoção de uma atitude para com o texto, recusando tanto a «[...] interpretação alegórica quanto a interpretação poética» (Todorov, 1975, p. 39). Todorov critica posicionamentos de teóricos que, na tentativa de situar o fantástico, ou o generalizam como uma categoria do sobrenatural ou colocam-se na posição de leitor (não o implícito, mas o real), pois acreditam que o fantástico se localiza na própria experiência do leitor e não na obra em si.

A literatura mágico-realista reúne componentes das dimensões real e fantástica, num contraponto que define os contornos desse gênero literário. Nesse sentido, um ponto a ser considerado diz respeito à gama de nomenclaturas que se coloca ao lado do realismo mágico, muitas vezes compreendida pelos autores como sinônimo; mas essas nomenclaturas aparecem algumas vezes também com uma definição própria e, por isso mesmo, constituinte de uma outra vertente do fantástico. É o caso, por exemplo, do realismo fantástico, real maravilhoso, além da ciência ficção (que não constituem objeto conceitual desta pesquisa). Como se vê, é polêmica a questão da unanimidade ou diferença conceitual, principalmente entre realismo mágico e realismo fantástico.

Rodrigues (1998), recusa a expressão realismo mágico, considerando-a imprópria para a literatura e optando pela designação realismo fantástico. Entretanto, reconhece a existência do realismo mágico, revelando a necessidade de averiguar sua procedência e fundamentos, ressaltando a importância da discussão das ideias dentro da época atual. Nesse tocante, a autora lembra o crítico latino-americano Emir Rodríguez Monegal como o primeiro a ressaltar tal incongruência. Para ele, a expressão, utilizada, desde o final da década de 1940, para uma espécie de literatura hispano-americana, no gênero romanesco insurgia-se contra o realismo-naturalismo do século XVIII e começo do século XX. Destacando o ponto máximo atingido por essa literatura em torno dos anos 40, Monegal aponta autores do quilate de Alejo Carpentier e Miguel Ángel Asturias, ao lado dos quais ainda refere Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, dentre outros.

No contexto plural de entendimento dessas vertentes narrativas, há que se reafirmar a importância do fantástico como gênero literário e suporte para o estudo de outras estratégias de ficção similares, dentre as quais o realismo mágico. No pensamento teórico que busca a elucidação do assunto, avultam os estudos realizados por autores como o russo Tzvetan Todorov e o português Filipe Furtado.

Voltando a reflexão para a narrativa latino-americana, verifica-se que as questões envolvendo os polos natural e sobrenatural, verossímil e inverossímil assumiram contornos próprios, a partir dos anos 40, reunindo componentes do mundo mágico que se contrapõem ao mundo real de uma forma natural, quase banal, mas com beleza, encanto e poesia, ao lado do humor e da fantasia.

O venezuelano Arturo Uslar Pietri, referido por Rodrigues (1988), foi o primeiro autor a fazer uso da expressão realismo mágico. Na sua concepção, percebe-se o propósito de «[...] incorporar o “mistério” e uma “adivinhação” (ou negação) poética da realidade, corrigindo assim os limites da poética do realismo» (p. 51). Em 1948, na obra Letras y hombres de Venezuela, ele já considerava a denominação como a mais apropriada. A expressão consolidou-se com o passar do tempo, tendo havido, inclusive, uso indiscriminado dela para a designação da nova narrativa e posição contraditória da crítica sobre o assunto (Pietri, 1988).

Relacionando o fantástico e o realismo mágico, é possível estabelecer um paralelo: no fantástico há a presença do sobrenatural negativo como característica, e a hesitação e a ambiguidade são fatores distintivos do gênero, conforme a abordagem de Todorov (1975) ou Furtado (1980). No realismo mágico há a sugestão de um ambiente insólito, o qual, entretanto, não se afasta; nele faz-se uso, contudo, de uma estratégia que leva à deformação da realidade recriada, na qual os acontecimentos se inserem.

A representação constante no realismo mágico revela fatos em um cotidiano comum, em que se mesclam acontecimentos irreais dentro de um tempo marcado pela «fluidez intemporal». Esse tipo de narrativa não busca provocar emoções, porém abre espaço para que elas se manifestem, com a realidade se estabelecendo magicamente. O narrador não possui o propósito de esclarecer os fatos sobrenaturais, apenas provocar a estranheza. A ambiguidade não aparece aqui; o que existe é uma oposição. Não é objetivo do realismo mágico levantar análises de fundo psicológico das personagens; aliás, elas não se desconcertam diante do extranatural. Igualmente, não é sua função despertar emoções como medo ou terror; o insólito assume espaço na realidade sem causar pavor.

2.2. Signo linguístico e ideologia

Bakhtin (1981) estabelece numa das suas obras duas importantes relações entre marxismo e teoria da linguagem, e entre signo e ideologia. O que é dotado de ideologia possui um significado e, por isso, tem a propriedade de remeter a algo localizado fora de si mesmo; é, na realidade, um «signo». Em outras palavras: tudo que apresenta configuração ideológica possui significado, sendo capaz de conduzir a uma compreensão além de si mesmo. Todo signo é, portanto, ideológico, não retratando apenas uma realidade material, mas revestindo-se de um sentido ideológico. É por isso que não há signo centrado na ingenuidade.

Para Bakhtin (1981), na ausência de signos a ideologia não se sustenta, ela simplesmente não existe. Um corpo físico, por exemplo, um instrumento de produção, por si mesmos não adquirem significação, o que só acontece ao serem convertidos em signos, quando, preservando sua integridade física, passam a representar uma outra realidade, a ideológica, que vai além de suas especificidades enquanto objeto.

Entretanto, é necessário destacar que o signo ideológico não representa uma cópia, um reflexo da realidade, mas uma parte concreta dessa realidade, sendo, pois, um «fenômeno do mundo exterior». Sua compreensão implica a remissão de outros signos já apreendidos que, no conjunto, formam uma verdadeira cadeia exclusiva que não se rompe. Essa remissão dá-se de «consciência individual» em «consciência individual». Para Bakhtin (1981), é essa a condição necessária à emersão dos signos. Por outro lado, a consciência só se concretiza quando é apossada pelo conteúdo ideológico, semiótico.

É no universo da linguagem que se observam com maior clareza a semiótica e o papel contínuo da comunicação. «A palavra é o fenômeno ideológico por excelência» (Bakhtin, 1981, p. 36), não apreendendo nada que não esteja vinculado a esse papel, sendo o meio mais genuíno de estabelecimento de relações sociais; nela transcendem os processos ideológico e semiótico, assumindo, assim, uma posição «translinguística». Eis por que a palavra, por si só, assume posto de relevância no conhecimento das ideologias. Além de se caracterizar como o «[...] signo mais puro, mais indicativo, a palavra é igualmente um signo neutro» (Bakhtin, 1981, p. 36), o que possibilita «[...] preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa» (p. 36).

Para a concepção bakhtiniana, a ideologia situa-se no material social dos signos, ou seja, entre seres humanos organizados socialmente. Dessa forma, «[...] a consciência individual é um fato sócio-ideológico» (Bakhtin, 1981, p. 37). O teórico esclarece que enquanto a palavra é neutra, o signo é gerado por uma função que lhe é ideologicamente inerente. A teoria bakhtiniana centra-se na heterogeneidade concreta da parole, isto é, nas múltiplas manifestações da linguagem dentro do universo concreto da realidade social, em meio ao discurso produzido num processo interativo. A linguagem é assim concebida não apenas como um sistema abstrato, mas como um processo coletivo no qual se juntam, cumulativamente, o «eu» com outro e outros «eus» no campo da comunicação. O «eu», não sendo autônomo, existe somente em diálogo com outros «eus».

Nesse processo dialógico, o sujeito pode ver o que o outro não percebe e vice-versa. São essas visões complementares objeto de atenção de Bakhtin, ratificando a construção coletiva do eu, que, entretanto, está sujeito ao impedimento motivado por forças de ordem social. Enquanto signo social, a palavra representa um instrumento da consciência, eis por que «[...] funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for» (Stam, 1992, p. 17). Qualquer signo ideológico possui um valor semiótico, não sendo apenas a sombra da realidade, «[...], mas um fragmento material dessa realidade» (Bakhtin, 1981, p. 37).

A linguagem e o poder entrecruzam-se constantemente, e nesse universo a palavra é o veículo de expressão, que, verbalizada por um sujeito, numa determinada situação social, poderá não ser a mesma pronunciada por outro ou por ele mesmo em contexto diverso. Conforme o pensamento bakhtiniano, isso prova que a linguagem jamais se apresenta num sistema estável, construído, pronto, como preconiza o objetivismo abstrato defendido por Saussure. Ao contrário, a linguagem constrói-se num constante vaivém ideológico. É pela linguagem que o sujeito toma consciência da realidade e age sobre ela, em conformidade com o(s) outro(s) ou contra o(s) outro(s). A palavra como instrumento da linguagem é endereçada a um receptor, que está vinculado a uma relação social da qual faz parte o emissor. Esse interlocutor é alguém situado concretamente, dispondo de tanto, mais ou menos poder que o sujeito falante, e sua fala está irremediavelmente carregada de ideologia. Essas questões são, pois, observadas na análise do texto literário em apreço.

3. Análise e discussão da narrativa

Reafirmando a base teórica que fundamentou a pesquisa, os componentes mágicos interagem com os elementos do mundo real, no conto «A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada», tanto que os principais elementos recorrentes que integram a dimensão mágico-realista presentes na narrativa são: as «laranjas» contrabandeadas pelo holandês, pai de Ulisses; o «tiro ao alvo contra a nuvem» para provocar chuva; a «cor azul» provocada pelo toque de Ulisses nos objetos de vidro; o «pão» não ingerido por Ulisses; o «chamado telepático» da protagonista a seu amado; e o «sangue verde» da avó. Compondo esse estilo literário, os elementos apresentam como contraponto as próprias situações do dia a dia, mesclando realidade e magia para construir sua essência.

Assim, ao lado das laranjas, cujo recheio é naturalmente diamantes, há a necessidade real de um enamorado furtá-las, a fim de obter recursos financeiros que poderão libertar a amada do jugo de seu algoz. Já a metamorfose das cores se revela aos olhos ávidos da mãe, no momento em que esta pede um remédio ao filho, que, sem querer, toca no copo e, após, brincando, começa a bulir outros objetos de vidro. A partir daí, a índia constata que se trata de coisas do amor e, então, num processo progressivo de convencimento, conclui que o fato de não comer pão é devido ao amor.

Reunindo também ingredientes mágico-realistas, as tentativas de extermínio da avó são uma manifestação do hilário e da ironia que se instala no conto. Na primeira tentativa, a avó, sem saber, comeu bolo recheado com uma quantidade de estricnina suficiente para matar uma geração de ratos, e a única coisa que lhe aconteceu foi perder os cabelos. Na segunda tentativa, Ulisses fez uso de dinamite no piano, o qual, entretanto, ao invés de explodir, apenas chamuscou a peruca que a avó usava, desde que perdera a cabeleira. A terceira investida constituiu-se de golpes cruéis provocados por um instrumento contundente, uma faca.

Como também é possível perceber, o conto configura-se numa narrativa rica no campo do discurso e contradiscursos que se criam. A partir das relações familiares, nas quais a verticalidade da ascendência sobre a descendência se manifesta pela linguagem, visualiza-se um código ideológico discriminador, no qual a recorrência a elementos da literatura mágico-realista compõe um quadro em que a ironia e a hilariedade mitigam uma história marcada por acontecimentos trágicos e cruéis. E nesse contexto, interessante é verificar a passagem do discurso monológico ao dialogismo das personagens, constatando até que ponto o narrador lhes concede poder e lhes tira, como garantia de equilíbrio interno, mas também como possível recuo para nova investida.

A análise da obra permitiu verificar a presença marcante da ideologia na história e no discurso, nos mecanismos de preservação do poder, através da figura caricatural da avó de Erêndira. O conto valoriza a força da palavra, como face externa da ideologia, revelando que a consciência individual das personagens constitui um fato indiscutivelmente sócio-ideológico.

A história de Erêndira e sua avó desalmada mostra bem mais do que relações de poder e dominação do mais forte sobre o mais fraco. É um conto que testifica a importância, o vigor e a beleza do relato de uma menina que, no processo de libertação de seu algoz, transforma sua inconsciência infantil em consciência adulta. Na narrativa, o relato revela-se ideologicamente comprometido com o social e desmesuradamente livre nas inserções mágico-realistas absurdas dentro dos fatos. O convívio ficcional e paradoxal em Erêndira é fascinante e de significação ilimitada.

Nesse contexto, numa aplicação dos princípios bakhtinianos, a análise revela que a consciência das personagens se dá a conhecer somente no espaço interindividual e jamais no isolamento. Na interação social é que se formam as consciências individuais. Com Erêndira não foi diferente. O entrecruzamento constante de linguagem e poder, externados pela palavra de ordem, submissão ou omissão, estabelece o choque de forças entre a avó e Erêndira, com a arbitrariedade e imposição veladas pela antagonista. De igual sorte, o silêncio da neta também é significativo, pois dele se levantará uma voz reivindicante, mais tarde, quando tudo parece sob controle aos olhos da avó.

Ao lado das manifestações mágicas, a obra apresenta uma espécie de realismo feroz, como representação brutal e cruel das relações entre familiares. A história de Erêndira mostra um cenário de horror no seio familiar: de um lado uma avó que faz uso de um discurso coercitivo e imperativo, fazendo valer sua voz de comando sobre a neta que se constitui numa refém dos ditames da matrona. De outro lado, portanto, o silêncio servil de Erêndira, ratificado no «sim avó...» Enquanto a avó simboliza a manutenção do statu quo, a menina simboliza o estado de subserviência que, inconscientemente, contribui para a permanência da situação vigente. Lentamente o discurso monológico vai-se transformando em relações dialógicas, motivadas pela inserção de Ulisses na história.

Por outro lado, a narrativa representa também como preocupação questões de ordem sócio-moral, evidenciando um tipo de sociedade, de atroz desumanidade, expressa na situação de Erêndira, no espaço familiar. Esse desregramento e imoralidade, que alcançam os pontos culminantes na tragédia de Erêndira, se acrescentam na narrativa com registros de outras contravenções comuns na realidade histórico-social da América Latina. É o caso das referências ao contrabando, à violência autorizada, inclusive nos meios religiosos.

O conto, de Gabriel García Márquez, apresenta como tema a exploração sexual da neta pela avó, com o propósito mercenário de pagamento dos danos materiais causados no patrimônio da progenitora. A neta, após um processo de exaustão provocado pelo excesso de atividades domésticas, num ato de negligência, deu motivo a um incêndio na residência da avó, a qual ficou praticamente sem recursos.

Erêndira, a neta, e a avó - cujo nome não é citado, como um indício de que o seu papel social de matrona reside no substantivo avó -, são, respectivamente, a protagonista e a antagonista. A relação que as une, mais que laços familiares, é pautada por um discurso ideológico de poder e persuasão, que se aloja na fala da avó, como símbolo do domínio que se institui entre o par opositivo avó / neta. O exercício do poder no universo familiar revela uma verticalidade na relação ascendente-descendente (avó > neta), através do emprego da linguagem como disseminadora dessa ideologia.

A avó, assim colocada, representa o poder arbitrário que na prática de seu mister se protege de início, aos olhos do leitor, com o manto dos laços consanguíneos. A menina fora criada por ela desde a morte do pai, justificando assim suas diversas atribuições na casa. Vivendo no refúgio da avó, localizado no deserto, Erêndira fazia todo tipo de serviço. Dentre suas árduas tarefas incluíam-se: dar corda nos inúmeros relógios - só para essa atribuição levava seis horas -, banhar e vestir a avó, lavar os pisos, cozinhar, lustrar os cristais, tratar de um avestruz, regar os túmulos. Nesses túmulos, situados na propriedade, jaziam, separadamente o avô e o pai de Erêndira, ambos com o nome de Amadís.

A narrativa inicia sem preâmbulos, com Erêndira em cena, exercendo uma de suas funções dentro de um clima premonitório: «Erêndira estava banhando a avó quando começou o vento da desgraça» (García Márquez, 1972, p. 92). Mais do que uma manifestação comum e real da natureza, a referência ao vento representa metaforicamente o desencadear de acontecimentos que levarão a protagonista à desgraça. Sobre essa situação inicial do conto, o narrador em terceira pessoa porta-se como um demiurgo e antecipa ao leitor o que irá suceder.

Como um indício desse plano mágico que se instala na obra em muitos pontos, de imediato é apresentada a localização espacial onde residem as personagens avó e Erêndira. Trata-se de uma «[...] enorme mansão de argamassa lunar, perdida na solidão do deserto» (García Márquez, 1972, p. 92) repleta de móveis em nada convencionais, povoados de «estátuas de césares inventados». Configurando a visão irreal do ambiente que retrata a personalidade estranha da avó, observa-se o «[...] banheiro, adornado de pavões-reais repetidos e mosaicos de termas romanas». (p. 92) Também se situa no limite do mundo irreal numa residência, a existência de um número tão elevado de relógios de diferentes tamanhos, para os quais são necessárias seis horas de atendimento diário. Fugindo ao hábito de eventual coleção, a avó exigia que a menina acertasse seus ponteiros todos ao mesmo tempo.

Em relação à presença discursiva na obra, é possível perceber duas fases: na primeira, que começa no início da narrativa e se estende até a chegada da personagem Ulisses, que irá formar o par amoroso com Erêndira, há apenas a voz da avó, que profere um discurso arbitrário. Esse discurso assenta-se no autoritarismo, que usa uma linguagem velada, desprovida de agressividade, mas que vai se acentuando até chegar às raias do desequilíbrio e fanatismo. Não há em seu discurso, em nenhum momento, marcas de ética e responsabilidade maternal em relação à neta. Na realidade, ela não demonstra consciência de que era a responsável pela perversão da neta, quando a empurra para a prostituição. Vê-se isso em sua repreensão aos clientes-militares, num momento em que a menina já não suportava mais, dado ao cansaço e exaustão em que se encontrava: «- Atrevidos! Garanhões! - gritava. - O que estão pensando, que essa criatura é de ferro? Eu gostaria de vê-los na sua situação. Pervertidos! Apátridas de merda!» (García Márquez, 1972, p. 95).

Erêndira era uma menina que acabara de completar quatorze anos e, como se observa em seu próprio nome, era pura e cândida, e muito paciente para a sua idade. Em seu quarto - não tão luxuoso quanto o da avó - havia indícios de sua meninice nas «[...] bonecas de pano e animais de corda de sua infância recente» (García Márquez, 1972, p. 124). Também se depreende sua condição de impúbere na voz do narrador e do homem que a possui sexualmente pela primeira vez. Era apenas uma garota, seios nascendo, quarenta e dois quilos e com «[...] tetinhas de cadela [...]» (p. 125).

A visão de mundo da protagonista era muito restrita, primeiramente ao âmbito do palácio no deserto; depois do incêndio, aos limites da cama e suas experiências sexuais. O alargamento de sua visão só se dá com o ingresso forçado no convento. Lá conviveu com mulheres, porque até então a única era a avó. Lá também conheceu outro tipo de homem, que não os que buscavam seu corpo. «Erêndira vivia na sua penumbra, descobrindo outras formas de beleza e de horror que nunca imaginara no mundo estreito da cama [...]» (García Márquez, 1972, p. 124).

Ao contrário da protagonista «[...] lânguida, de ossos delicados [...]» (García Márquez, 1972, p. 125), a personagem antagonista ocupava tanto espaço físico que parecia «[...] uma formosa baleia branca na banheira de mármore», tomando o dia da neta, atribuindo-lhe e cobrando-lhe funções. «Era tão gorda que só caminhava apoiada no ombro da neta ou de um báculo que parecia de bispo, mas em suas atividades mais difíceis notava-se o domínio de uma antiga grandeza [...]» (p. 94).

No exercício do comando, a avó representa um discurso ideologicamente assinalado pelo poder, ordenando constantemente a neta. Esta, por sua vez, com toda a submissão, retratada «[...] com uma parcimônia que tinha algo de rigor sagrado [...]» (García Márquez, 1972, p. 98), atendia piamente a todas as ordens. Na culminância desse poder, a matrona conferia-lhe missões até mesmo enquanto dormia: «Passe toda a roupa antes de se deitar, para dormir com a consciência tranqüila [sic] [...], examine bem os roupeiros [...] ponha as flores no pátio [...], a comida para o avestruz [...] regue as sepulturas [...]» (pp. 96-97).

Da mesma forma, como efetivação da relação de subserviência incondicional, a neta obedecia cegamente, chegando a adormecer de tanto cansaço, mas não deixando de efetuar o rol de ordens. Exemplo disso se percebe na passagem: «No momento em que servia a sopa, a avó percebeu seus modos de sonâmbula, e lhe passou a mão diante dos olhos [...]. A menina não viu a mão [...] Despertou, [...] deixou cair a sopeira no tapete» (García Márquez, 1972, p. 101).

A tudo o que ouvia, Erêndira respondia simplesmente «sim, avó», num atestado de incontestável obediência e absoluta inculcação ideológica da superioridade da avó sobre ela. No silêncio de sua submissão não se percebia um interdiscurso de revolta; apenas a linguagem da subserviência estampada no cumprimento fiel de suas tarefas, e a resignação do «sim, senhora». Em seu discurso não havia a presença do «não» ou mesmo da justificativa de estresse, muito menos a tentativa de postergar o trabalho; apenas o cumprimento imediato da vontade da matrona. Mas o «vento da desgraça», que se instalou na casa, relaciona-se ao cansaço da menina e ao descuido que motivou o incêndio provocado por um candelabro caído contra as cortinas do quarto dela. Arruinada, a matrona então predisse o futuro da menina: «Você não terá vida bastante para pagar este prejuízo» (García Márquez, 1972, p. 97).

O rito de prostituição da neta, sob o comando da avó, começa a partir daí. Friamente a avó comercializa a virgindade de Erêndira, deixando claro o desejo de valorizá-la ao máximo, como uma boa mercadoria. O sentido prático e mercenário da avó se apresenta em todos os contatos com o público masculino, a começar pelo vendeiro que teve o privilégio de levar a inocência da jovem. «A menina me deu um prejuízo de mais de um milhão de pesos [...]. Nesse passo levaria duzentos anos para me pagar» (García Márquez, 1972, p. 101).

Em meio ao discurso da avó, um interdiscurso se estabelece através do primeiro homem que seduz a menina; é, na realidade comprobatório de que Erêndira era uma criança e não uma mulher. Grosseiramente, ele afirma que o corpo da menina não possuía atrativos, razão por que resistiu tanto em pagar o que pedia a velha: «Por sorte - disse o viúvo -, a única coisa boa que tem é a idade» (García Márquez, 1972, p. 101). A matrona simboliza, no universo familiar, a figura do poder, e seu discurso dissemina não a violência física sobre a personagem, mas a psicológica; indiretamente sofre agressões em razão das ações da avó, como mostra o momento em que a menina é violentada:

Erêndira gritou algo inaudível e tratou de fugir. O viúvo [...] torceu-lhe o braço pelo pulso e a arrastou até a rede. Ela resistiu, arranhou-o no rosto, tornou a gritar em silêncio, e ele respondeu com uma solene bofetada, que a levantou do chão e a fez flutuar um momento no ar [...] (García Márquez, 1972, p. 102).

Apesar do quadro cruel e desumano de exploração da neta pela avó, há que se reconhecer na figura da matrona uma certa dose de comicidade pitoresca. Tais características tornam-se visíveis nos próprios hábitos, seja reunindo móveis de luxo em plena aridez do deserto, seja sendo transportada pelos empregados - índios - como uma rainha numa liteira. É um retrato da incoerência das relações estabelecidas pela antagonista com o mundo ao redor. Se por um lado essa atitude se justifica, dado a sua geriátrica dificuldade de locomoção, por outro, o quadro de flagelo, resultante do incêndio, leva a concluir a ilogicidade do séquito que a acompanha. Está aí um índice da narrativa, que não quebra nenhuma lei do mundo real, todavia se contrapõe ao convencional.

Percebe-se que o cenário de exploração ganha foro maior, após o episódio do incêndio. Esse fato, centrado no mundo real, adquire significação também no plano simbólico, podendo ser visto como um marco na vida de Erêndira, um divisor entre a infância e a fase adulta na qual ela ingressou de forma abrupta. É o fogo que destrói o patrimônio de sua progenitora; é o mesmo fogo que queima sua juventude e sua vida. Na composição do limiar do absurdo, ao leitor é possível «ver» a imagem de Erêndira, em meio às areias do deserto, praticando sexo ininterruptamente com uma fila interminável de homens, sob a supervisão militante da avó. Assim,

No fundo, em uma cama de lona, Erêndira não podia controlar o tremor do corpo, estava maltratada e suja de suor de soldado.

- Avó - soluçou, estou morrendo.

A avó tocou-lhe a testa e, ao verificar que não tinha febre, tratou de consolá-la.

- Agora só faltam dez militares - disse (García Márquez, 1972, pp. 111-112).

O discurso que se estabelece na narrativa, através da personagem antagonista transcende o plano verbal, assumindo uma dimensão prática; mais do que palavras, traduz as ações que compõem o seu dia a dia. Na realidade, a avó ao falar se revela como pessoa; seu estilo de vida é representado nos mínimos detalhes através da linguagem empregada. Assim, da arbitrariedade de seu discurso emerge um «[...] conjunto de coerções semânticas [...]» que rege não apenas as palavras, mas todas as suas ações (Fiorin, 1996, p. 160).

Considerando o parâmetro da negatividade na avaliação das personagens, o conflito que se levanta entre as personagens principais permite ao leitor uma leitura do outro. Dependendo do ângulo pelo qual se veja (avó ou Erêndira), uma será sempre dialeticamente a negação da outra. E as modificações que vão ocorrendo ao longo da história são o produto dessa dialética. Essas modificações podem ser sintetizadas através do quadro abaixo2, a partir do entendimento de que uma e outra são, no decorrer da história, beneficiadas ou lesadas:

Quadro 1 Sequência de acontecimentos do conto e suas beneficiárias. Fonte: elaboração própria. 

Beneficiária: avó Beneficiária: neta
1. A neta assumindo as tarefas da casa. 2. O incêndio interpretado, também, como destruição do ambiente opressor.
3. A prostituição de Erêndira como pagamento dos danos materiais. 4. A chegada de Ulisses em meio ao ofício da prostituição.
6. O casamento de Erêndira como artifício para tirá-la do convento. 5. O recolhimento anterior de Erêndira ao convento.
7. A continuidade da exploração sexual de Erêndira. 8. As diversas tentativas de assassinato da avó (enquanto plano).
9. As diversas tentativas frustradas de assassinato da avó (enquanto ação). 10. A morte da avó.

Quanto às vozes sociais ocultas na discursividade narrativa, elas apontam para duas vertentes: a arbitrariedade do poder, na figura da avó, símbolo do mundo adulto, chefe de família, detentora do fator econômico; e o contradiscurso da oposição, que vai se insurgindo e ganhando corpo na pele de Erêndira e Ulisses. Reforçando essas relações surgem, respectivamente, os homens que, no anonimato, pagam pelo prazer de possuir Erêndira, e os missionários que buscam a purificação do corpo e a retomada de valores sócio-morais. O conto não oculta esses contradiscursos.

Em relação a Ulisses, pode-se dizer que era jovem loiro, com «olhos solitários» e aparência de anjo. Ulisses surge como um anjo vingador que abrirá a oportunidade de reversão da realidade e, como anjo, sua ação está quase sempre relacionada a signos centrados na dimensão mágico-realista. Par amoroso de Erêndira, surge como uma personagem de cuja ação se promovem mudanças na realidade social. Instigado pela protagonista, é ele o responsável pelo desiderato da avó - a morte violenta -, antes, porém muitas situações hilariantes acontecem, decorrentes das tentativas frustradas de extermínio da matrona. São elas: o bolo recheado com arsênico; a dinamite colocada no piano até ocorrer a morte a facadas.

No âmbito do contradiscurso ligado a Ulisses, aparece a posição da mãe dele, no afã de descobrir por quem seu filho estava sofrendo de amor: «- É melhor que você me diga quem é - disse - ou vou-lhe dar uns banhos de purificação a força» (García Márquez, 1972, p. 130). A reação protetora materna é visível e a impositividade ganha espaço, quando ela faz uso da ameaça de poderes e crenças.

Na visão bakhtiniana, todo signo é ideológico. No conto em estudo, encontram-se muitos signos que indicam uma situação social determinada. O vento da desgraça e o jaleco da avó com as joias, por exemplo, são signos que, dentro do contexto em que se encontram, adquirem o poder de representar outra realidade, que não apenas a literal desprovida de maior significação. Revestem-se, portanto, de um sentido ideológico e traduzem, respectivamente, o marco inicial do processo decadencial da personagem protagonista e a diferença entre a continuidade da vida de escravidão sexual e a possibilidade de ir embora para bem distante em condições de subsistência.

É pela palavra que a antagonista exerce o domínio sobre Erêndira. É pela ideologia impressa em sua linguagem firme, determinada e ao mesmo tempo sem rispidez, que a matrona manipula a menina. Na aparente fragilidade de avó, ela precisa do auxílio da neta para continuar o estilo de vida luxuoso e estranho em meio ao deserto. Para isso, seu poder de persuasão se dá pelo exercício da palavra, numa relação familiar que se apoia no binômio opressão-subserviência. É a palavra que dá a conhecer o signo que armazena essa ideologia, a exemplo do recorte a seguir: «- Aproveite amanhã para lavar também o tapete da sala - disse a Erêndira -, que não vê o sol desde os tempos da briga. - Sim, avó - respondeu a menina» (García Márquez, 1972, p. 97).

Partindo do pressuposto de que a ideologia se localiza no material social dos signos, a narrativa revela justamente a visão de mundo das personagens. A avó, tirada de um prostíbulo por um homem - Amadís -, que a levou para uma vida de luxo e reclusão no deserto, após a morte do amado procura explorar os serviços da neta para manter o padrão de vida. Os laços familiares dissimulam a relação patrão-empregado-escravidão. Erêndira nada recebe e tudo deve fazer.

Há apenas uma passagem em que a voz do narrador capta carinho na linguagem da avó: «- Não é nada, filha - disse-lhe a avó com uma ternura verdadeira. - Você dormiu caminhando» (García Márquez, 1972, p. 97). Também é o narrador que percebe a comoção da avó diante da neta, após o incêndio: «[...] olhou a neta com pena sincera. - Minha pobre pequena - suspirou - Você não terá vida bastante para me pagar este prejuízo» (p. 97). Há aqui uma fusão de pena e ironia, pois é ela, a avó, a responsável pelo castigo cominado a Erêndira, que será prostituída para saldar o prejuízo causado.

O posicionamento da avó é produto de uma consciência social. É ela, como pessoa, representante de um meio que estabelece e mantém essas relações sociais que exprimem um tipo de comunicação ideológica com a neta. Criam-se, assim, de imediato, dois polos distintos, que metaforicamente podem ser interpretados como positivo e negativo. A avó no comando, imprimindo sua hegemonia e visão de mundo, e a neta na omissão de uma posição de defesa, reforçando o poder vigente da autoridade.

É essa mesma visão de mundo que leva a avó a prostituir a neta, num rito de negação total de afeto maternal que habitualmente se vê entre esses laços consanguíneos, ainda conjugado com uma excentricidade que beira o cômico e o absurdo. A instalação de uma barraca em meio às areias desérticas, nas quais Erêndira é anunciada, por músicos, aos homens dos diversos cantos do mundo, reúne ingredientes trágicos e cômicos, fugindo aos parâmetros da realidade e ingressando no terreno do mágico, em razão do número absurdo de transeuntes que aguardam o momento do atendimento. O pragmatismo e mercantilismo da matriarca também se torna visível, ao dizer que não lhe interessava fazer caridade, e sim o contrabando.

Ao responder ao carregador que desejava levar Erêndira consigo, a avó revela mais uma vez sua concepção de mundo, quando diz que não se opunha, desde que ele saldasse a dívida de «[...] oitocentos e setenta e um mil, oitocentos e noventa e cinco pesos que ainda restava» (García Márquez, 1972, p. 108). Como ele não dispunha do valor, que voltasse quando o arranjasse. Finalizando, disse-lhe que fosse embora, pois ainda lhe poderia ficar devendo dez pesos, se ela refizesse os cálculos.

Na voz do narrador, a percepção do mundo na ótica da matriarca vislumbra-se em passagens como: «A única coisa que a interessava era a ordem na fila de clientes que esperavam vez e a exatidão do dinheiro que pagavam adiantado para estar com Erêndira» (García Márquez, 1972, p. 108).

Nesse contexto, o calar de Erêndira é também uma forma de comunicação, é um interdiscurso que se cria. E isso é uma prerrogativa de que se vale a personagem, como qualquer ser humano. E ela virá a falar; sua voz ganha força com a chegada de seu par amoroso. Assim, apesar de todo o cenário de horror que aprisionava a protagonista, de seus lábios não se ouvia lamento, nem é o narrador porta-voz de seus pensamentos. Seus pensamentos vêm à tona no momento em que, no convento, é conduzida por «[...] uma música de cordas que parecia uma luz mais diáfana que a luz do deserto. Erêndira escutou a música sem pestanejar, com a alma por um fio, até que soou o sino para comer» (García Márquez, 1972, p. 124). No convento, seu silêncio assume proporções totais, até o momento em que, após o almoço, depois da audição da música, disse: « Sou feliz» (p. 124).

Por outro lado, a ideologia opressiva da antagonista, na realidade, não reside propriamente no exterior de suas palavras. Está nos signos existentes nas palavras. Sua linguagem só se efetiva porque existe um universo concreto que forma a sua realidade social. O discurso da matrona se produz na interação com Erêndira, que permite a concretude de sua ideologia, a tudo acatando, sem contestar. O domínio avó x neta não existe no abstrato; só faz sentido inserido no processo coletivo: progenitora + Erêndira + empregados. É a cumulação do «eu» da avó com outros «eus» que gera essa comunicação-ação.

O duplo funcionamento dos aparelhos ideológicos atinge o ambiente familiar, perpassando suas relações, seja pela figura da repressão ou da ideologia. A história concentra ambos, como se depreende das diversas peripécias nas quais a voz da avó sintetiza sua atuação ditadora. Na prática dessa habilidade, a avó revela a consciência de que atingiria seus propósitos recorrendo a pessoas ingênuas, com receptividade para a exploração - a exemplo da própria neta. Para isso usava dos ingredientes de suavidade e educação na linguagem. Mostrava-se uma raposa astuta em pele de cordeiro:

[...] passou um rapaz de coração inocente, de cabelo índio cortado como um coco e vestido de andrajos, que levava na mão um círio pascal [...]

A avó o chamou [...]

- Diga-me uma coisa, filho - perguntou-lhe com sua voz mais educada. - O que é que você vai fazer nessa festança? [...]

- Quanto lhe pagaram?

- Cinco pesos [...]

- Eu dou vinte - disse a avó. - Não para que faça a primeira comunhão, mas para que se case [...] (García Márquez, 1972, p. 158).

E assim, como mostra a narrativa, Erêndira casou-se sem saber o nome do esposo, o qual fora comprado pela avó. Configura-se aí um dos índices que compõem, o absurdo que se instala na obra, respectivamente, elementos que encontram apoio no real e no imaginário, numa correlação com os do realismo mágico. Casamento arranjado, noivo comprado são signos da realidade; o desconhecimento do nome do nubente só se torna possível nas malhas da imaginação. Dentro da licitude das regras civis e religiosas isso seria racionalmente impossível diante das autoridades de qualquer país.

Esse comportamento da avó situa-se no padrão ideológico de expressão sumária do mais fraco com vistas ao crescimento do poder pessoal do elemento dominante. A avó mascara a realidade aos olhos de Erêndira, tornando plausíveis as propostas que lhe fez. Em momento algum se propôs a discutir com a neta o prejuízo sofrido. Sequer buscou outra saída, que não a mais fácil para si própria e cruel para a menina: a prostituição, sua velha conhecida. Com o diferencial de ser a empresária e não a empregada. Em contrapartida, essa arbitrariedade deu margem ao surgimento do contradiscurso de Erêndira, que se consubstancia na relação dialógica que mantém com Ulisses.

A ideologia, dessa forma, infiltra-se na realidade, provocando um mascaramento da realidade, enganando em favor do interesse da manutenção do poder da avó. Por outro lado, abre-se um espaço para o surgimento de uma contraideologia, vista como um processo de desmascaramento da ideologia dominante. Em choque, encontram-se, assim, duas forças, em decorrência da dialética nas relações de poder: de um lado o discurso da avó, como representante da classe hegemônica, de outro o contradiscurso da oposição, que aos poucos vai se construindo na voz de Erêndira.

Assim, a anciã dita o que a garota deve fazer, quase como um receituário, intuindo-se de que sentimentos por qualquer homem seria a ruína. Esperta no assunto, a avó certamente saberia que, se a neta viesse a amar algum homem, poderia perder a chance de explorá-la sexual e financeiramente. O amor para a avó, embora não dito, simboliza a possibilidade de perda, de prejuízo, de ruína.

Nas relações dialógicas explícitas, estampa-se o discurso e o contradiscurso de Erêndira sobre um mesmo fato, dependendo de seu interlocutor. Esse jogo duplo, índice da reação contra a hegemonia da avó, pode ser comprovado na passagem em que a progenitora conta à neta que tivera um sonho com um pavão-real numa rede branca. A menina, por sua vez, demonstrando certo conhecimento na interpretação onírica, capta e mente dizendo-lhe: “É um bom aviso. [...] Os pavões-reais dos sonhos são animais de vida longa” (García Márquez, 1972, p. 156). Já, para Ulisses, a jovem preveniu-o de que tivesse cuidado ao tentar matar a avó, pois ela havia tido um aviso de morte.

É a dialética social que permite a simbólica libertação de Erêndira, a partir da morte da avó, que concentrava em si todo o poder instituído. Para que haja a renovação, é necessária a queda do tradicional e arbitrário. E é no interior dessa relação que Erêndira e Ulisses passam a ser autores das mudanças sociais traduzidas pelo discurso. Ressalva-se, contudo, que não se está respaldando o crime cometido por Ulisses - que mata a avó com vários golpes de faca - que, dentro do ordenamento jurídico do mundo real, não apresenta excludentes de criminalidade, porém, no plano simbólico, a morte da antagonista pode ser compreendida como um processo de efetiva concretização do interdiscurso construído na soma do eu + eu (Ulisses + Erêndira), resultante da dialética social.

A fuga da protagonista ao final da narrativa, levando consigo apenas o jaleco no qual a avó guardava as joias e do qual não se separava nem mesmo para dormir, pode, à primeira vista, se apresentar ao leitor, como um contrassenso. Entretanto, não há incoerência na atitude de Erêndira; é, na realidade, a expressão, embora silenciosa, de um interdiscurso. Sua reação, levando somente o ouro tão valorizado pela avó e deixando o par amoroso que lhe permitiu a libertação trágica de sua opressora, representa um indício da assimilação da ideologia inculcada pela avó no decorrer de toda uma vida. Ou ainda, na leitura mais óbvia, o medo de vir, no futuro, a sofrer o que estava sofrendo: por razões econômicas era obrigada a pagar os danos materiais com o próprio corpo. E o ouro, o mais nobre dos metais, certamente lhe daria garantia de sobrevivência sem cair na humilhação novamente.

Diante da morte da progenitora, Erêndira não encontra saída, senão fugir para o mundo exterior, já que o interior, simbolizado pelo próprio ambiente em que vivia era sua prisão. O medo não confessado, o apego repentino aos valores materiais são elementos que podem ser questionados, embora seu comportamento no âmbito da história e do discurso nada revele nesse sentido. Também é de se refletir a respeito da possibilidade de sua ação constituir-se numa réplica da avó, ou seja, de tanto ser oprimida introjetou o discurso da opressão, usando as mesmas armas que passam a ser as suas. Seria Erêndira a continuidade da avó? Eis uma questão que se depreende do final. Por outro lado, o fato de nada se saber de seu paradeiro leva a crer que não, pois se assim o fosse, dela o mundo teria notícias. E «[...] jamais se voltou a ter a menor notícia dela, nem se encontrou o menor vestígio de sua desgraça» (García Márquez, 1972, p. 158).

A morte, enquanto signo ideológico, possui também um valor semiótico. Não é apenas o retrato trágico da realidade: o fim de um ser, mas, metaforicamente, o término da dominação, da opressão e sua coadjutora, a injustiça. Corroborando com isso, há que se lembrar: o organismo social existe no âmbito da história como o resultado da conjugação do produzir, reproduzir e transformar das relações já existentes. Assim, a matrona provocou efeitos nefastos em Erêndira - mas como prostituta que fora, infere-se a possibilidade de igualmente ter a avó sofrido a produção de tais efeitos, para depois reproduzi-los no meio familiar. A protagonista em seu final inesperado abre possibilidade para uma interpretação que se volta para o reproduzir ou transformar das relações.

Por meio da linguagem, Erêndira conscientiza-se diante da realidade que divide com a avó. Pela linguagem ela cala e depois se rebela contra a avó, buscando em Ulisses um aliado e um executor de seu plano. E é pela linguagem que novamente se cala num final que se abre para diferentes interpretações. A linguagem é apreendida no campo social; o signo não se explica no abstrato e no terreno individual. É o que se observa na fala de Erêndira a Ulisses, quando lhe diz: «[...] você não serve nem para matar uma pessoa» (García Márquez, 1972, p. 153). Com essas palavras, a personagem externa o seu processo de assimilação da cultura da avó, de que, a exemplo dela própria, as pessoas precisam ter uma utilidade prática. No caso, Ulisses deveria servir para matar a matrona.

Apesar do predomínio da ideologia dominante, a polifonia vai se construindo ao longo da narrativa. O discurso monológico da matrona, aos poucos, vai sendo preenchido pelo dialogismo que se instaura, a partir da chegada de Ulisses. O fato de o discurso também comportar o não dizível permite a delimitação de certa identidade, isto é, o silêncio e a fala da protagonista compõem o seu perfil ideológico enquanto falante.

Também é de se ressaltar a representação da heterogeneidade constitutiva do discurso. Na fala de Ulisses, numa recorrência a citações de sua mãe, vê-se o exemplo: «Minha mãe diz que os que morrem no deserto não vão ao céu, mas ao mar [...]» (García Márquez, 1972, p. 114). Também ilustra a referência do rapaz ao fato de seu pai ter conhecido um homem que era capaz de caminhar sobre as águas. Neste caso, há uma alusão às manifestações mágicas que se apresentam na narrativa, da mesma forma quando traz a informação de que seu avô possuía asas, embora ninguém acreditasse.

O diálogo entre as duas personagens centrais já é, em si, a prova de sua posição enquanto sujeitos que ocupam um determinado espaço social. A fala da matriarca centra-se nos verbos de mando. Como assinala o recorte, a seguir, são todos imperativos, ao passo que a protagonista se limita a reafirmar a posição socioideológica, através do emprego reiterado do advérbio de afirmação, acompanhado sempre do vocativo avó. Trata-se de uma alusão mais que recorrente da força, do poder que exerce sobre si: «- Passe [...]/ - Sim, avó. / - [...] ponha [...]/ - Sim, avó. / - Regue [...]/- Sim, avó. /- Veja [...]/- Sim, avó. / - Avise-os [...]/- Sim, avó» (García Márquez, 1972. p. 115).

Também merece destaque o fragmento a seguir, que mostra outra fase da história, no qual se verifica a continuidade do ordenamento proferido pela antagonista, como se fora um rosário ininterrupto. Da mesma forma, a passividade estampada na resposta autômata da garota: «- Você tem de madrugar [...] para ferver a infusão do banho antes que chegue o pessoal. / - Sim, avó. / - Com o tempo que sobrar lave a roupa suja dos índios, e assim teremos algo mais para descontar [...]» (García Márquez, 1972. p. 137).

Como prova de que no espaço do discurso a avó não é única autora de suas enunciações, nem Erêndira das suas, verifica-se que os discursos não se resumem ao mero aspecto semântico; são demarcadores das posições que ocupam e ocuparam no âmbito de suas relações. Erêndira, em especial, seduz sexual e emocionalmente Ulisses, que passa a buscar, atavicamente, um meio eficaz para exterminar a matrona. Embora não use da linguagem impositiva da avó, a partir dos laços que se criam entre ambos, ele age com o intuito de atingir o fim desejado por ela. Dessa forma, na fala de Erêndira, há índices do próprio discurso de sua opressora.

Quanto à avó, conforme comentário no povoado, fora tirada de um prostíbulo por Amadís. É possível intuir daí que, talvez, a linguagem usada com a neta tenha sido antes utilizada consigo mesma. De igual sorte, é possível enxergar nas entrelinhas sua preocupação com um eventual interesse afetivo da menina por algum homem em especial. Comprovando essa ideia, na hora da morte, diz, embora tarde «anjo traidor». Assim, o já dito passa a integrar o que é dito. É o exterior constitutivo que se espelha na fala das personagens, constituindo o seu discurso.

Por outro viés, verifica-se um novo contradiscurso que defende um tipo de ideologia até então não levantado, apoiado numa visão humanista dos princípios e bons costumes. Isso acontece quando a caravana da avó atravessava o deserto e encontrou um grupo de missionários. Um deles traçou uma linha divisória no chão, impedindo-os de cruzar. Estabelece-se aí o contradiscurso dos missionários em oposição ao comportamento da avó que explorava sexualmente a neta. Argumentava a matrona não ser o deserto propriedade de ninguém: «- É de Deus - disse o missionário -, e estais violando suas santas leis com vosso tráfico imundo» (García Márquez, 1972, p. 118).

Através da linguagem escorreita do religioso, a avó reconhece a autoridade e recua, como registra o narrador: «A avó reconheceu então a forma e a dicção peninsulares do missionário, e evitou o encontro frontal para não se ferir contra sua intransigência. Voltou a ser ela mesma» (García Márquez, 1972. p. 119), ou seja, voltou a falar macio e calmamente, pois, matreira, sabia que com calma poderia ter mais sucesso e, assim obter seus fins, como mostra o recorte: «- Não entendo seus mistérios, filho. /O missionário apontou Erêndira. /- Essa criatura é menor de idade. /- Mas é minha neta. /- Pior ainda - replicou o missionário. - Deixe-a sob a nossa custódia, por bem, ou temos que recorrer a outros métodos» (p. 119).

Necessário se faz esclarecer que a ideologia perpassada pelos missionários não veiculava os dogmas da espiritualidade como objeto primeiro de seu discurso, mas a moral esquecida nas terras longínquas do deserto. Nesse mister, o trabalho braçal era o meio empregado para promover o resgate da ordem social.

O discurso matriarcal, igualmente, acha oposição no caminhoneiro, encontrado nas estradas do deserto. Acreditando exercer poder na região, por ter sido mulher de Amadís, a velha tenta lembrá-lo de que era a dama de Amadís, o Grande. Inutilmente, pois o contrabandista não a conhecia, não lhe concedendo o auxílio pedido para tirar a neta do convento. Eis a voz do interlocutor, que flagra seu temor ao espaço divino: «Se pensa que somos capazes de nos meter nas coisas de Deus, a senhora não é a que diz que é, nem sequer conheceu os Amadís, nem tem a mais puta idéia [sic] do que é o contrabando» (García Márquez, 1972, p. 157). Pode parecer um paradoxo o respeito vindo de um contrabandista, porém é mais provável que seja justamente uma precaução de quem tanta experiência possua no mundo da ilegalidade.

Infere-se da história que o vento soprava forte sempre que algo de trágico iria acontecer, envolvendo a protagonista. Foi assim com a desgraça e assim com a presença de um grupo de missionários que a levaram para o convento, com o diferencial de que na segunda vez, Erêndira sentia-a bem fazendo as atividades que lhe mandavam, tanto que nem sequer perdeu uma noite de sono, mesmo recebendo um rol cansativo e absurdo de tarefas.

Erêndira, ficando só no convento, chegou até a dizer que era feliz, considerando a vida que levava de escrava da avó, da cama e do sexo. Quanto à inserção de elementos da esfera fantástica ou mítica no universo da ficção com feições aparentemente realistas compõe a estratégia do realismo mágico presente no conto «A incrível e triste história da Cândira Erêndira e sua avó desalmada», de Gabriel García Márquez.

Além dos já citados, os elementos recorrentes que integram a dimensão mágico-realista presentes na narrativa são, respectivamente: as laranjas contrabandeadas pelo holandês, pai de Ulisses; o tiro ao alvo contra a nuvem para provocar chuva; a cor azul provocada pelo toque de Ulisses nos objetos de vidro; o pão não ingerido por Ulisses; o chamado telepático da protagonista a seu amado e o sangue verde da avó. Compondo esse estilo literário, os elementos apresentam como contraponto as próprias situações do dia a dia, mesclando realidade e magia para construir sua essência. Assim, ao lado das laranjas, cujo recheio é naturalmente diamantes, há a necessidade real de um enamorado furtá-las, a fim de obter recursos financeiros que poderão libertar a amada do jugo de seu algoz.

Entre a voz da avó e a do militar que exercia o poder civil em um dos vilarejos visitados, constata-se a fusão desses elementos dos universos real e mágico, configurando o cenário do realismo mágico. De um lado, a consciência de que a menoridade de Erêndira é tutelada por uma instituição séria, a missionária. De outro, a dimensão irreal do prefeito, cuja função era provocar chuva a tiros de espingarda.

Também na voz do narrador há índices que ilustram o clima mágico, como por exemplo, o fato de a personagem, durante dias, não ter movido a cabeça, não afastando o olhar do convento.

Só o contexto mágico encontra explicação para a personagem, que mal conseguia se locomover, ficar imóvel - numa cadeira feito trono - durante dias a fio, observando atentamente um convento, no meio do deserto, sendo que sua teimosia era um ponto inquestionável. No plano real não há justificativa, mas, na ficção mágico-realista, a verossimilhança interna permite ao leitor visualizar a matrona na sua imponência e persistência imperturbáveis. De igual sorte, embora encontrando identidade com a personagem protagonista, é com a antagonista que o leitor se deleita durante momentos hilariantes, conforme já ilustrado.

Inserindo-se na narrativa, a personagem mãe de Ulisses - uma índia guajira muito mais jovem que o marido - na inter-relação com o filho, abre espaço para a compreensão de elementos do realismo mágico. Assim, ela está presente, seja na vigilância direta de Ulisses enquanto poda os laranjais, cujas frutas eram objeto de contrabando por terem como miolo diamante, verdadeiros; seja na observação do efeito provocado nos vidros quando tocados pelo filho, ou ainda na abstinência de pão por parte do rapaz.

Enquanto as «laranjas» como elementos mágicos estão voltados para a explicação da atividade econômica da família: o contrabando, a «cor azul» provocada pelo toque de Ulisses nos objetos de «vidro», bem como o fato de «não comer pão» são justificados pela mãe como índices de que o rapaz havia sido tomado pelo amor. E isso, na voz do narrador, é apresentado porque ela, a índia, conhecia os segredos de seu povo.

Reafirmando a base teórica, os componentes mágicos interagem com os elementos do mundo real, tanto que, por exemplo, as «laranjas» furtadas por Ulisses têm como destino angariar recursos para libertar Erêndira - um fato real -; a metamorfose das cores se revela aos olhos ávidos da mãe, no momento em que esta pede um remédio ao filho, que, sem querer toca no copo e, após, brincando, começa a bulir outros objetos de vidro. A partir daí a índia constatou que se trata de coisas do amor e, então, num processo progressivo de convencimento, concluiu que o fato de não comer pão é devido ao amor.

Reencontrando Erêndira, Ulisses mostra-lhe as três laranjas que conseguira furtar; abre uma delas, revelando o diamante em seu interior, que lhes daria condições econômicas de fugir, além de contar-lhe que possuía uma pistola e a camioneta do pai. Novamente um componente mágico se instala: a exemplo das «laranjas», a jovem estava com o corpo nu toda cor de laranja. Nesse instante, ela externa verbalmente o que sempre se soube, ou seja, o seu total domínio pela avó.

Na primeira parte do enunciado, a análise pode apontar para uma posição cônscia da menina, de que sua «dívida» deveria ser integralmente paga, e só após estaria livre para partir. Na segunda, entretanto, ela perpassa a ideia de que não apenas a sua, mas qualquer avó - como se fora uma autoridade máxima - dispunha desse poder. Isso mostra até que ponto sua mente era governada pela progenitora, que, aliás, dispunha do «de» sonhar o que iria acontecer, como a própria neta lembra ao rapaz.

Contra-argumentando, ele salienta que se isso acontecesse já estariam bem longe. E foi o que aconteceu, porém, foram resgatados pela força política da avó. Esta, fazendo uso de um atestado de boa moralidade, assinado pelo senador Onésimo Sanchez, entregou ao comandante local, que foi obrigado a caçá-los. Os vestígios de seu paradeiro foram justamente as penas dos pássaros que estavam na camioneta, um índice calcado na realidade da profissão do pai, que camuflava o contrabando com uma carga de pássaros.

Num atestado de absoluta incongruência das leis locais com os parâmetros da realidade - embora não se trate de um reflexo do contexto mágico - percebe-se o contrabando como uma prática social comum do local. No penúltimo capítulo do conto, o narrador assume a posição testemunha, em primeira pessoa, fazendo um abrupto corte na narrativa e, como tal, afirma ter visitado a barraca onde Erêndira recebera tantos homens. Então, o narrador assume-se como autor, que confessa se tratar de uma narrativa, feita anos após o ocorrido. Também em sua inserção na história, traz consigo personagens de outros contos constante da obra, dentre os quais Blacaman, o Bom, a mulher convertida em aranha devido à desobediência aos pais.

Também surgem mulheres da zona de tolerância, entediadas por perderem seus clientes para Erêndira. Em razão disso, reúnem-se e vão verificar o que ela possui de diferente; invadem a barraca e, no âmbito do absurdo, carregam a cama - na qual a garota, que estava nua, encontrava-se acorrentada desde a cena da fuga - instalando em praça, e expondo-a à vergonha e humilhação. Nesse momento, fugindo ao comportamento habitual, a progenitora, em defesa da neta e de seus interesses, faz uso de uma linguagem agressiva e de baixo calão.

Especificamente quanto à «corrente de cachorro» usada para prender a jovem, pode-se dizer que se situa no limiar da loucura da avó. Não deixa de ser um símbolo real da prisão em que vive, mas, considerando-se o ambiente do prostíbulo, configura-se como um ícone do realismo mágico.

A situação socioeconômica da «família» melhora consideravelmente, sendo anunciada pelo narrador a opulência traduzida num desfile, no qual bois puxavam carretas. Julgando as roupas de rainha usadas pela jovem, sua cama de luxo e os índios que tinha, a avó diz a neta que não tinha do que se queixar. E, pela primeira vez faz referência ao fato de no futuro - quando ela, avó, faltar - a garota não teria que se submeter aos homens, pois teria muitos bens, viveria numa cidade importante e poderia ser livre e feliz. É essa conversa que desperta a garota para a possibilidade de exterminar a avó. Primeiramente, fica no plano da intenção de jogar água fervendo no tubo que chega até a banheira, mas é interrompida no momento exato em que está com a panela na mão. O elemento impeditivo é justamente a voz da avó que a chamava.

Prosseguindo, telepaticamente é responsável pela chegada de Ulisses, que, vencendo as leis do mundo real, atravessa o deserto sem perguntar a ninguém sobre seu paradeiro, e a encontra perto do mar. Nesse ínterim, é significativo o diálogo do holandês com o filho, na hora da partida. Sem impedi-lo, afirma que sua maldição o acompanhará, sentindo, entretanto, num misto de orgulho pelo filho. Em lá chegando, Erêndira e Ulisses acariciam-se e amam-se com ternura.

Assim, tiveram início as tentativas de homicídio, fomentadas pela pergunta da jovem se ele teria coragem de matá-la. Devolvendo-lhe a questão, ela lhe responde que não poderia, pois se tratava de sua avó. Dizendo isso, percebe-se que sendo Ulisses o executor, ela acreditava se eximir de sentir culpa.

Como já dito, reunindo ingredientes mágico-realistas, as tentativas são uma manifestação do hilário e da ironia. Depois de ter ingerido quase um bolo inteiro recheado com arsênico, a velha tocou piano, cantou e dormiu tranquilamente. Como efeito, apenas os cabelos caíram, ficando completamente careca. Com o detalhe de ser o bolo de aniversário de setenta e dois anos da avó, Ulisses conseguiu sua simpatia.

Na descoberta de que ela continuava viva, Erêndira revelou-se cruel também com seu parceiro, ao dizer que ele não servia sequer para matar alguém e, por meio do narrador, externa o ódio que sentia, mantido secreto, fazendo crer que o rapaz representava apenas um instrumento em suas mãos. Por ironia do destino, ao acordar, a velha olha a neta desejando-lhe que Deus a proteja.

Na segunda tentativa, Ulisses fez uso de dinamite no piano, entretanto, ao invés de explodir, apenas chamuscou a peruca que a avó usava, desde que perdera a cabeleira, além de destruir a blusa, provocando-lhe queimaduras nos ombros, vista somente no dia seguinte, quando retirou o jaleco inseparável, no qual escondia as joias acumuladas.

A terceira investida constituiu-se de golpes cruéis provocados por um instrumento contundente, uma vaca. Ulisses, sem premeditação, mas usando de violência e frieza, mata violentamente a matrona, fazendo jorrar seu sangue oleoso, brilhante e verde, sem ter a menor chance de defesa. Antes de sucumbir, pronunciou: «- Filho da puta [...]. Muito tarde vejo que você tem cara de anjo traidor» (García Márquez, 1972, p. 123). Simbolicamente, pode-se compreender o verde de seu sangue como a própria esperança que sua morte representa para a neta, assim como também pode ser compreendido como o sangue de um animal peçonhento, que ao ser esmagado mostra a coloração esverdeada. Com esse desfecho, Erêndira assume uma atitude inesperada, abandonando tudo, inclusive seu amado, abrindo também margem para se questionar, se teria sido ele amado ou usado. Erêndira leva consigo apenas o jaleco com o ouro.

4. Conclusão

Na análise do conto «A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada», os elementos mágico-realistas são, portanto, considerados como manifestações do universo extranatural dentro de um contexto aparentemente normal, sem implicações com o sobrenatural negativo. Não se exclui, com isso, a hesitação própria do gênero fantástico, de acordo a visão de Todorov (1975), sem a qual se instalariam os gêneros vizinhos, a exemplo do estranho e do maravilhoso. Do mesmo modo, o contraste dos componentes empírico e metaempírico, como propõe Furtado (1980), é alvo da avaliação, ainda que sem constituir ambiguidade na trama.

Na pesquisa realizada, recorreu-se aos pressupostos do gênero fantástico, uma vez que eles formam a base necessária ao esclarecimento do componente sobrenatural também presente no realismo mágico. O realismo mágico, como uma vertente da nova narrativa latino-americana, sobrepõe os mundos real e imaginário, os mundos objetivo e subjetivo, que são naturalmente ligados por uma fronteira.

Os recursos teóricos utilizados oportunizaram à análise feita reconhecer o teor de elaboração do conto «A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada». As personagens, avó e neta, são construídas de tal forma que é possível compreender cada uma pela negação da outra. Elas representam a própria heterogeneidade constitutiva que Bakhtin implicitamente propõe na sua teorização do dialogismo: o discurso e o contradiscurso.

Assim, não surpreende o final em aberto, quando o discurso da avó poderá passar a ser a fala e a ação ideológica da neta. Nova situação social, nova consciência. A situação social é que determina a enunciação. E o realismo mágico é a porta para o possível e o impossível, bem como um mecanismo de expressão das relações ideológicas. Na verdade, a narrativa não termina ao final. A obra abre-se a indagações e reflexões que podem sempre ser ainda cotejadas com o cenário mágico-realista presente na história.

O conto de Erêndira constitui-se, assim, na sobreposição de dois parâmetros, nos quais se fundam a vida e o pensamento do homem: o real e o irreal. O primeiro assentado na realidade referencial, onde prevalecem as relações ideológicas da estrutura social. O segundo fixado nas manifestações do mundo mágico. São universos que não se repelem nem se antagonizam; alinham-se lado a lado numa convivência pacífica e natural, como peças de um jogo que possibilita diferentes interpretações. O jogo continua além da narrativa, abrindo-se, portanto, para novas leituras, num processo de contínua descoberta deste que é um dos melhores contos de Gabriel García Márquez.

Esta obra de Gabriel García Márquez configura-se numa narrativa rica no campo do discurso e contradiscursos que se criam. A partir das relações familiares, em que a verticalidade da ascendência sobre a descendência se manifesta pela linguagem, visualiza-se um código ideológico discriminador, no qual a recorrência a elementos da literatura mágico-realista compõe um quadro no qual a ironia e a hilariedade mitigam uma história marcada por acontecimentos trágicos e cruéis. E nesse contexto, interessante é verificar a passagem do discurso monológico ao dialogismo das personagens, constatando até que ponto o narrador lhes concede poder e lhes tira, como garantia de equilíbrio interno, mas também como possível recuo para nova investida.

Por outro lado, a presença de tantos signos do universo mágico-realista permite comprovar que esse gênero literário não encontra definição exclusivamente nos componentes do campo mítico ou fantástico, mas pela associação indispensável com o mundo real. E seu contraponto encontra-se justamente no seu oposto, criando um espaço interativo com gêneros vizinhos.

Referências bibliográficas

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3. Furtado, F. (1980). A construção do fantástico na narrativa. Horizonte. [ Links ]

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7. Todorov, T. (1973). As categorias da narrativa. Em Barthes, R. et al. Análise estrutural da narrativa (pp. 218-264). Vozes. [ Links ]

1. Este artigo foi elaborado a partir de parte da dissertação de mestrado, intitulada Cândida Erêndira: do realismo mágico à ideologia (2001), de nossa autoria, ainda não publicada.

2. Quadro elaborado por esta pesquisadora. A numeração das ações compreendidas como modificações resultantes da dialética social foi feita de acordo com a sequência em que aparecem na narrativa.

*Cómo citar: Carla Rosane. (2022). Sailing with Erendira on the Sands of the Real and the Magical. Lingüística Y Literatura, 43(82), 249-271. https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n82a11

Recebido: 16 de Fevereiro de 2022; Aceito: 22 de Junho de 2022

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