Introdução
O contexto da complexidade traz entendimentos científicos que sustentam o discurso decolonial, de produção de novos conhecimentos a partir dos locais, das diferenças e das tradições dos lugares. O projeto de sociedade ocidental, com todas as suas características, tem, na Ciência moderna, a sua principal forma de conhecimento, o procedimento mais controlado, sistemático e rigoroso para obter a verdade sobre o mundo. O conhecimento obtido expressa as referências de sua cultura de origem e seria, portanto, universal, válido para todos os lugares e todos os tempos, assim como pretendem ser os seus princípios morais, jurídicos e religiosos. Mas, apesar de pregar a universalidade, a verdade sobre o mundo seria uma conquista particular da cultura europeia, mascarada pela ideia de progresso e humanidade. Assim também é na Ciência, em que o progresso representaria a evolução do conhecimento como uma das facetas da evolução da sociedade. As dominações e as imposições culturais típicas do imperialismo e do colonianismo, da mesma forma, expressaram-se na produção do saber, com a Ciência dos povos colonizados que, necessariamente, deviam se adequar aos paradigmas da Ciência e da Filosofia europeias, vistas como as únicas legítimas, e, em nome disso, se esquecer das tradições dos lugares para acompanhar o movimento "universal" eurocêntrico.
Enquanto o capitalismo se expandia na "idade de ouro dos países industrializados" (Berstein e Milza 2007) e muitas colónias se "libertavam", houve o aprofundamento da crise existencial da cultura ocidental que Nietzsche ([1882] 2006) já colocava no final do XIX e que Freud reafirmou em plena crise de 1929-1930 (Freud 1930), desenvolven-do-se, principalmente, a partir da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Na Ciência, o contexto da complexidade (teoria e ciência) representa o viés científico dessa crise existencial, pela crise de seus paradigmas fundamentais: universalidade, legislação, ordenação, objetivida-de etc. Um dos principais entendimentos trazidos é o limite do conhecimento (Morin 1985), justamente dessa Ciência e Filosofia, visto como "conhecimento modelo" de racionalidade - com a própria ideia de racionalidade perdendo o sentido. A partir desses limites, novas possibilidades estão sendo abertas, que envolvem diálogos horizontais, desconstrução e reconstrução de reflexões e procedimentos, bem como surgimento de formas de conhecimentos originais.
No movimento inverso da universalidade ocidental, agora são os referenciais locais que estão sendo destacados, a partir das singularidades dos lugares, internas às totalidades. As propriedades geográficas das áreas - multiplicidades e singularidades geográfico-históricas próprias dos locais - tornam-se estratégicas para esse projeto. Se o tempo, na modernidade, condicionou o espaço sob o argumento do progresso nas vestes capitalistas, pela leitura da complexidade, o sentido de progresso parece se atrelar às particularidades locais - e, nessa direção, de emancipação das imposições universais do capital e da cultura. O argumento trazido é o de destaque das multiplicidades espaço-temporais pelas particularidades geográfico-históricas, ou seja, pelas diferenciações espaciais. O destaque das diferenciações ressalta tanto o caráter colonizador do conhecimento eurocêntrico, de subjugação das diferenciações locais, quanto a possibilidade de novas construções epistemológicas, no nosso caso, próprias das diferenciações da América Latina e singulares aos países e aos povos. Construções que relevam o quadro geográfico em sua totalidade, e não por uma unilateralidade - social, natural, econômica ou cultural. Nesse sentido, Fals-Borda e Mora-Osejo (2004), ao discutirem a superação do eurocentrismo, já declaravam as possibilidades que o contexto da complexidade podia oferecer para a discussão decolonial, de construções epistemológicas a partir das geograficidades tropicais (e não de zonas temperadas):
Es sabido que las características del medio tropical contrastan con las de las zonas templadas de la tierra. Pero de allí proceden las recomendaciones equivocadas muchas veces para el desarrollo económico, que nos han predicado como suficientes o finales. Los paradigmas cerrados de otras partes llevan con frecuencia a la castración intelectual en nuestro medio y al colonialismo intelectual. [...] Por fortuna, la llegada del nuevo siglo coincide con la disponibilidad de novedosas herramientas intelectuales del tipo abierto, que se derivan de saberes consolidados de diversa índole, como los nuestros. Por ejemplo, teorías como las de la complejidad, sistemas y caos nos ayudarían a analizar dimensiones complejas, irregulares, multilineales y fractales, aplicables a nuestras estructuras tropicales. (Fals-Borda e Mora-Osejo 2004, 15-16)
Pretende-se, neste artigo, desenvolver essa problemática, ou seja, adentrar na relação entre Geografia, complexidade e discurso decolonial, especificando e aprofundando um argumento que alguns autores já observaram (Malanson 1999, Phillips 1999, Rhoads 2006): a relação entre Geografia e complexidade oferece uma importante arena com entendimentos e conceitos abertos e passíveis de referenciar novas propostas epistemológicas.
O destaque aqui é sobre o sentido de particularidades geográfico-históricas trazido pela complexidade, com reflexões sobre a possibilidade da construção da epistemologia da Geografia típica de nossas características como latinos; com a Ciência abrindo-se ao diálogo com outros conhecimentos locais. Contudo, é importante deixar claro que o foco não será a Geografia enquanto disciplina, mas em diálogo com a complexidade, com o papel do geográfico na construção de novas epistemologias.
O artigo está organizado em duas partes a fim de refletir a forma como foi tratada a questão. A primeira apresenta entendimentos sobre a relação entre Geografia e complexidade, com vistas a destacar a relevância das particularidades geográfico-históricas, das diferenciações espaciais - expressando um movimento de realce das singularidades internas aos sistemas e da singularidade do arbítrio no seu estudo. A segunda parte discute a crítica ao colonialismo epistemológico e a possibilidade de novas construções características das geografias locais (por exemplo, países, regiões, províncias, cidades etc.). Longe de apresentar caminhos a seguir, o artigo pretende destacar a pertinência da referência geográfica no diálogo com embasamentos científicos e filosóficos que favoreçam novas construções epistemológicas.
Complexidade, decolonialidade e diferenciações espaciais
No período moderno, a Ciência se constitui como a legítima representante de conhecimento do projeto eurocên-trico de sociedade, pautada sobre referências racionais, universais e progressistas. A expansão imperialista típica do eurocentrismo também se expressou no conhecimento, com a Ciência tratando as outras formas nativas de conhecimento como algo atrasado, místico, a ser esquecido em nome da progresso. O espaço considerado vazio de sentido pela modernidade (Giddens 1991) também o foi considerado vazio de conhecimento. Contudo, é a partir da própria Ciência que surge agora argumentos a favor da construção de novas possibilidades epistemológicas, não mais sob referenciais externos ao local, mas com base nele, em suas singularidades e pretensões.
A teoria e a ciência da complexidade são um dos principais representantes desse movimento de questionamento das pretensões universalistas, que carregam, nos dizeres de Morin (1985), os limites do conhecimento. Esses limites não são somente para o método científico, mas também para qualquer modelo de racionalidade e conhecimento que pretenda ser monístico, totalizante e excessivamente reducionista. Tanto os processos da natureza quanto o conhecimento humano são atravessados por multidimensionalidades (biológica, cultural, social etc.) que contêm inerentes elementos de incompletude e incertezas - que fazem autores sugerirem novas alianças e possibilidades (Prigogine e Stengers 1991) para lidar com a incompletude e exclamarem o fim das certezas (Prigogine 1996).
Esses limites trazidos pela complexidade oferecem fundamentais argumentos, numa leitura científica, para a crítica ao imperialismo epistemológico eurocêntrico. Esse contexto destaca os aspectos locais, internos dos sistemas da natureza, e como configuradores dos "universais". Isso leva a repercussões tanto nas pretensões universalistas do conhecimento quanto nas pretensões de progresso para a sociedade, que busca agora se basear em referências locais, internas às totalidades. Cabe, então, uma sucinta apresentação sobre entendimentos da complexidade a partir de seu contato com a Geografia, justamente para observar sua expressão geográfica.
A teoria da complexidade afirma o caráter espaço-temporal localizado dos fenômenos da natureza e a importância das particularidades e das diferenças na configuração dos "universais". O aleatório, o singular, está presente como inerente a todos os processos e sistemas da natureza, o que torna o padrão sempre assentado sobre bases singulares e incertas de manifestação. A heterogeneidade, o desequilíbrio e a diferenciação se realçam no que antes era a busca exclusiva da homogeneidade, do equilíbrio e da semelhança. Abandona-se a busca pelas "leis" gerais para a dinâmica da natureza como única direção de inquérito; são os mecanismos e as relações internas que ganham destaque (Malanson 1999; Prigogine 1978). Essas relações internas se movimentam pelas associações entre semelhança-diferenciação, homogeneidade-heterogeneidades, ordem-desordem, generalidades-singularidades.
Essas diferenciações, sempre percebidas nos fenômenos geográficos (em termos modernos desde B. Varenius-Vitte 2013) e que buscaram ser articuladas e submetidas às leis totalizantes do saber universal, reconheceram-se como inerentes (ontológico) à dinâmica dos fenômenos geográficos e à forma de serem conhecidos (epistemológico) - e não manifestações de caráter subjetivo, ligadas apenas à percepção limitada do sujeito perante as leis fundamentais da natureza. A Geografia reconhece-se como a área do conhecimento que trata das particularidades geográfico-históricas (Manson e O'Sullivan 2006; Spedding 1997) que requerem um novo sentido de universalidade geográfica. Para lidar com essa situação na Geografia, exige-se a retomada da discussão filosófica e ontológica tal como realizou A. V. Humboldt, e epistemológicas como Hartshorne, e que tornam suas contribuições uma das possíveis para dialogar com as reflexões no período atual (Gomes e Vitte 2014) - sobre como eles pensaram a tensão universal-particular, totalidades-diferenciações, areais etc.
No movimento moderno, com a hegemonia do progresso universal e com o espaço considerado como vazio e submetido a esse progresso (Giddens 1991), o estudo das diferenciações e das multiplicidades espaciais, assim como praticado pela Geografia clássica, embora realçasse o particular, não o considerava como algo fundamental da dinâmica da natureza. Serviu mais como discernimento para inseri-lo na lógica da racionalidade voltada ao universal e à lógica universalista do "progresso histórico capitalista", do que para meios de emancipação e libertação (tal como pregavam os iluministas). Nesse sentido, na produção dos bens materiais, a acumulação flexível pós-década de 1960 se tornou flexível justamente para se adaptar às particularidade locais (de gostos, estruturas locais de produção, de contrato de trabalho etc.), ou seja, como forma de inserir os locais na lógica universalista do progresso (Harvey 1992). Em termos de conhecimento, as particularidades das áreas foram lidas com o objetivo de encontrar suas homogeneidades e seus padrões. Essa subjugação das diferenciações espaciais expressou todo o projeto eurocêntrico da universalização do conhecimento; com as "leis da natureza" sendo consideradas como algo evidente e demonstrativo da verdade "descoberta" pela Ciência. Portanto, esvaziou-se a singularidade dos fenómenos e conteúdos dos lugares, tornando-se uma das formas de dominação cultural do conhecimento.
De acordo com Maldonado-Torres (2010, 397), uma das raízes do imperialismo epistêmico decorre de uma concepção de espacialidade vazia de conteúdo, que tratou as diversidades naturais e sociais do mundo apenas como contingências desconsideráveis do raciocínio filosófico universal - o universal seria desprovido de singularidades no espaço. Nesse contexto, o capital se aproveitou desse sentido para adentrar nos lugares. Maldonado-Torres (2010, 397), aproximando-se do sentido do "esvaziamento do espaço" de Giddens (1991), destaca que houve demasiada simplificação das diversidades expressas, o que levou a considerar o espaço como pouco relevante para a filosofia da Ciência. A imparcialidade da objetividade que a racionalidade europeia dizia ter tendeu a reproduzir uma cegueira que não necessariamente era com respeito ao espaço enquanto tal (já que os recursos naturais e humanos foram utilizados), mas dos modos não europeus de pensar e da produção e reprodução da relação colónia-império, da cultura da colonialidade. E isso acabou revelando a tendência dos pensadores em afirmarem suas proposições sempre em vínculo à região onde estavam enraizadas suas próprias tradições, no caso, a Europa. Esta foi considerada, pelos pensadores do ocidente, como o "local" epistêmico privilegiado; nesse sentido, as filosofias do homem ocidental foram e permaneceram cúmplices da formação espacial de matriz imperialista. Maldonado-Torres chama essa cumplicidade de "o esquecimento da condenação":
O esquecimento dos condenados faz parte integrante da verdadeira doença do Ocidente, uma doença comparável a um estado de amnésia que por sua vez leva ao homicídio, à destruição e à vontade epistêmica de poder - mantendo sempre uma boa consciência. A oposição à modernidade/ racismo tem de saber lidar com esta amnésia e com a invisibilidade dos condenados (2010, 409). [...] dir-se-ia que a modernidade implica a colonização do tempo pelo europeu, [...] o conceito de modernidade faz é esconder, de forma engenhosa, a importância que a espacialidade (colónias) tem para a produção deste discurso. [...] tendem a adotar uma perspectiva universalista que elimina a importância da localização geopolítica. (Maldonado-Torres 2010, 411)
Se a autoridade e a certeza de um sentido histórico governaram a modernidade pela ideia de progresso (e ajudou a Europa a ter a "boa consciência"), Murphet (2004, 116) lembra que agora, no chamado pós-modernismo, ocorre a reafirmação de nossa imaginação espacial para a leitura do mundo. E isso é dar destaque às diferenças, tal qual já preconizava Deleuze (2000), se espraiando para os diversos domínios da sociedade - moral, político, científico, filosófico. Considerado, por alguns, como o viés científico do pós-moderno (Cilliers 2000), o contexto da complexidade parece dar o mesmo destaque para as propriedades espaciais, idiográficas e corológicas dos fenómenos.
A complexidade se refere às interações espaço-tempo-rais particulares, realizadas a partir do local, de relações internas que configuram os sentidos de regras universais. Ou seja, pelas distribuições e pelas interações das diferenças que coexistem horizontalmente, desenham-se as especificidades das regras de um fenómeno em determinado espaço-tempo. Assim, as regras, o universal, não são mais fundamentais que as diferenças, mas coexistem em simbiose. Toda a manifestação na natureza detém, ao mesmo tempo, propriedades "universais" e "singulares" que são atravessadas por padrões, regras, aleatoriedades e acasos. Em termos amplos, os argumentos são assim de superação das subjugações universalistas -capitalistas, morais, científicas - e da busca de um novo sentido de universal, que se apoie também na autoconstrução pelas singularidades locais.
O espaço torna-se a coexistência da multiplicidade, das espaço-temporalidades, das diferenças; antevê-se uma nova postura de reconstrução do projeto de humanidade, agora relevando a contribuição espacial, quanto à convivência das diferenças e à necessidade do respeito à coexistência. O progresso histórico, herdado do Iluminismo, deixa de ser uma referência externa e impositora, válido a todos de uma mesma forma, para vincular-se aos objetivos e às pretensões específicas em cada caso. O progresso precisa ser pensado e construído de acordo com as finalidades locais, de cada pessoa e grupo, que, a partir das interações particulares, percebem e constroem seu próprio espaço geográfico. Produzem também o seu próprio sentido de evolução, ou melhoria, e, assim, de humanidade e cidadania, emergidas a partir das pretensões e dos anseios locais. As diferenciações espaciais construídas da escala do indivíduo à sociedade, bem como do topológico aos morfoclimáticos, devem ser consideradas e relevadas, no que diz respeito às diferenciações culturais, naturais, epistemológicas que constroem singularmente o espaço geográfico.
Diante desse contexto de reajustes, o atual momento permite realizar novas leituras, novas reflexões. É o momento de novas "vozes", novas "epistemologias" (Santos e Menezes 2010), que não necessariamente negam os avanços da tecnociência e dessa natureza construída, mas que ressignificam esses avanços e essas crises. Agora, os esforços são os de busca de um novo projeto de conhecimento e humanidade, ligados a essa nova concepção de natureza (Bak 1996), num novo contrato natural (Serres 1991) e tendo o espacial e a diferença como referência, e não um espaço e tempo vazios movidos por um progresso uniforme. Para recorrer à tradição, convém não esquecer que conceitos como os de "diferenciações areais" de Hartshorne (Gomes e Vitte 2014), social, antropológica e metafisicamente ressignificados, podem se constituir em uma importante arena onde diferentes manifestações (físicas-causais, humanas-simbólicas) e abordagens na Geografia (quantitativa-explanativa, qualitativa-inter-pretativa) possam encontrar um arcabouço em comum para conversações, debates e novas propostas.
Gregory (1989, 71) já havia declarado a pertinência do retorno da noção de diferenciações de áreas no contexto pós-moderno para a Geografia. O autor discute que, apesar da diminuta presença na nova Geografia pós-Segunda Guerra, as diferenciações areais sempre foram requeridas para o tratamento das relações particulares entre as pessoas e os lugares. Atualmente, a noção é revisada pela "sensibilidade às diferenças" (Lyotard 1998) que as perspectivas pós-modernas trazem no contexto de uma crise mais geral de representação. Gregory (1989) sugere, então, uma desconstrução e reconstrução da noção dentro de novos arcabouços teóricos, amplos o suficiente para acolher a tradição e sustentar novas criações, sob novas bases e critérios.
Que essas propostas sejam postas em um novo projeto, em que o geográfico em suas diferentes manifestações - espaço, lugar, paisagem, região - possa participar na possibilidade de transformação e, ao mesmo tempo, demonstrar a potencialidade de seus múltiplos conteúdos na prática das relações socioambientais e na forma de se produzir conhecimento.
Da crítica ao colonialismo à presença do geográfico nas construções epistemológicas na América Latina
A teoria da complexidade traz, basicamente, o ceticismo em relação a qualquer pretensão metanarrativa, constituída e direcionada a uma verdade absoluta (Morin 1985). Se extrapolarmos isso para o conhecimento ocidental em geral, diz respeito ao ceticismo às pretensões do conhecimento rigoroso, das superioridades culturais, morais e éticas entre as sociedades humanas em comparação umas com as outras. Os frutos do avanço da Ciência ocidental colocaram em desnudo que o conhecimento de origem europeia, da colonialidade europeia, é apenas um dos infinitos possíveis e já praticados e produzidos pelas sociedades humanas. Apesar de deter uma incontestável funcionalidade prática, em seu sentido fundamental, não é nem melhor nem pior para a explicação da "verdade" do mundo. Longe de ser um conhecimento objetivo, isento de influências externas, a Ciência torna-se uma criação humana, com seus princípios mesclados com influências morais, sociais, económicas, culturais, mitológicas, características do ser humano (Morin 1999). Um exemplo é a simbiose colonialidade, capitalismo e modernidade.
Como destaca Quijano (2010, 85-86), a colonialida-de europeia foi constituída no movimento de formação da América Latina, que envolveu, ao mesmo tempo, a estruturação do poder capitalista e a constituição da cultura da modernidade; com os três, de acordo com o autor, nascendo todos no mesmo dia. A partir do século XVI, a nova experiência geográfica trazida pelas descobertas continentais, novas identidades societais da colonialidade (índios, negros, brancos, amarelos, mestiços) e geoculturais (América, África, Extremo Oriente, Próximo Oriente) foram se estabelecendo nas colónias a partir de relações intersubjetivas de dominação sob a hegemonia europeia. Foi nesse universo intersubjetivo que se elaborou e se formalizou um modo de produzir conhecimento que sustentava as necessidades cognitivas e ideológicas da modernidade e do capitalismo, como as leis, a medição, a ordenação, a hierarquia, a externalização, a objetivação do mundo. Isso permitiu um controle das relações entre os indivíduos com a natureza e entre si próprios, com esforços voltados para os recursos da produção. Pertencentes ao mesmo processo de constituição produtiva e de afirmação cultural, houve, então, nas colónias, a naturalização das identidades e das relações históricas da colonialidade e da distribuição geocultural do poder capitalista mundial.
A hegemonia territorial se fortaleceu com a dominação cultural, com os próprios europeus acreditando serem os "predestinados" a impor, em nome de Deus, da Razão, a sua cultura sobre as outras, bem como o conhecimento produzido por essa cultura. No século XVIII, no Iluminismo, consolidou-se a mitologia de que a Europa era preexistente aos padrões de poderes modernos (que colonizou o restante do mundo no movimento de construção da modernidade e de sua racionalidade) e que a cultura europeia já existia muito antes de se tornar um centro mundial do capitalismo. Essa leitura superlativa de sua própria cultura os fazia crer que eram realmente representantes do nível mais avançado possível das sociedades humanas, e isso se espalhou pelas colónias, com os próprios colonizados - índios, negros, mestiços na América Latina -, que concebiam tal sentido de avanço e almejavam alcançálo. Como Quijano (2010) destaca, o eurocentrismo não é exclusivamente uma perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas também de todo o conjunto dos educados sob essa hegemonia.
Não precisamos aqui discutir as conhecidas perversidades que vieram dessa concepção - encontradas em livros como Santos e Menezes (2010, 637) -, ligadas, por exemplo, ao controle e à subordinação de pessoas e visões de mundo. Acreditamos que, para a presente ocasião, também não precisamos, nesse sentido, demonstrar a influência dessa concepção no conhecimento mundial. Via colonização europeia na modernidade, a construção do conhecimento nas colónias latinas, asiáticas e africanas se enraizaram a fim de se adequarem e evoluírem dentro da concepção eurocêntrica, e buscam, até hoje, inclusive de forma injusta e pouco competitiva, se adequarem aos modelos europeus de conhecimentos e instituições. Isso não quer dizer que propostas originais não tenham surgido nos países latinos (ou colonizados) e repercutido internacionalmente, mas é hegemónica a tradição de subordinação na qual estão apoiadas.
A própria ideia de América Latina é uma construção territorial e ideológica eurocêntrica - que caracteriza o poder ideológico no ato de nomear a terra habitada por outros. O Novo Mundo foi visto como o quarto elemento inferior responsável pela quebra da cosmologia medieval tripartite cristã, com a constituição da ideia de América baseada em diferenças nas relações sociais e de poder a partir da ideia de raça, articulada com formas de controle do território, do trabalho e da produção. A própria expressão "Novo Mundo" também carrega um sentido de anterioridade dos europeus, de superioridade no tempo, descrevendo os povos como avançados ou atrasados sob a sua própria referência. Antes detendo denominações como "Tawantisuyu", "Anáhuac" e "Abya-Yala", o que veio a se chamar de "América Latina", longe de ser algo autóctone da região, é fruto de denominações que advêm dos projetos políticos territoriais entre franceses e anglo-saxões, nos quais distinguir essas especificidades regionais era um caráter essencial e estratégico. No caso da América Latina, os franceses a diferenciaram para se contrapor diretamente a uma América Anglo-saxã, no caso, devido às intenções imperialistas francesas sobre o continente sul-americano. Contudo, na perspectiva dos países da Europa do Norte e dos Estados Unidos, essa expressão foi justamente vista como a afirmação da ideia de uma superioridade de uma raça anglo-saxã sobre as raças e as línguas de uma américa de latinos (Mignolo 2003; Porto-Gonçalvez e Quental 2012).
Diante desse contexto, em que o próprio nome da região é fruto de perspectivas de subordinação, será que podemos nos referir a uma epistemologia latina em seu sentido original e amplo? Obviamente, no âmbito local, as epistemologias acabam por se adequar às características dos seus sujeitos-propositores, assim como discutido pela teoria autopoiética (Maturana 1997; Maturana e Varela 1997), de forma que podemos falar de uma epistemologia latina por ser praticada, e por isso sofrer influências, por latinos. Logicamente, não é isso a que nos referimos. Mas sim, se temos as nossas próprias crenças e princípios (paradigmas) sobre o que conta como conhecimento válido, se temos nossa própria teoria do conhecimento, bem como nossos próprios critérios de verdade. Se essas crenças, princípios, teorias e critérios são característicos das tradições, das paisagens e da mestiçagem das raças e das culturas do povo latino. Se carregam as intensidades com que a energia solar incide sobre os trópicos e sub-regiões, e que é diversa dos climas temperados. Temos uma direção de caminhar de humanidade e conhecimento pautada em nossa própria utopia? Mesmo que haja conflitos e antagonismos, temos alguma proposta de utopia latina, assim como a Europa carregava a partir do Iluminismo?
Com o desvelamento do caráter utópico da Ciência e sociedade-progresso pelo que se chama de "pós-moderno", ocorre a necessidade de se construir novas utopias, pautadas em nossas -colombianas, brasileiras, mexicanas, latinas, africanas etc.- pretensões. E, nesse caso, parece ainda não haver - pelo menos não como alvo de discussões constantes - uma proposta clara e conhecida de utopia latina para os conhecimentos e sociedades. Nesse sentido, como pode então haver uma epistemologia da Geografia na América Latina se não temos definida, de forma clara, qual direção a seguir? Como definiremos e proporemos novas ideologias, filosofias, ciências, conceitos, categorias e ferramentas do pensamento sem tal direção? E como se constrói essa direção utópica e se começa a caminhar? Com base em quais pressupostos? Sabemos que uma proposta universal e única para a América Latina não é algo desejável, em vista do perigo de novamente repetir a imposição da uniformidade do geral (leis, morais, progresso etc.) sobre a diversidade do local. O caminho contrário, a partir da diversidade, das diferenças, parece ser uma das direções sugeridas pelos autores Gregory (1989) e Murphet (2004), mas que, contudo, levado às últimas consequências, beira a unilateralidade e o isolacionismo.
A referência geográfica pode ajudar na definição de tal utopia, de tal direção, como apoio para as definições e para as construções epistemológicas. Com base em referências da teoria da complexidade em sua relação com a Geografia, podem ser reconhecidas considerações para auxiliar e contribuir como embasamento para uma leitura integrativa, de diálogos socioculturais e epistêmicos. Entretanto, não propomos necessariamente colocar a Geografia, ou o geográfico, como a principal referência de construção, de tal modo "mais importante" que outros campos ou fenómenos. Mas sim, como ajuda e apoio para construções pelo diálogo com outros campos e tradições. A perspectiva dialógica da complexidade é sustentada pela convergência de entendimentos com outras tradições e campos do conhecimento, como é o caso da relação entre Filosofia e complexidade.
O contexto da complexidade anda em direção harmoniosa com as propostas de Gilles Deleuze. Esse filósofo "pós-moderno" buscou dar um estatuto ontológico para as diferenças e as multiplicidades pela análise de suas submissões, seus modos e sua preeminência no pensamento ocidental (Craia 2005, 58). A aproximação entre a complexidade e Deleuze foi buscada por De Landa (2002, 232), que encontrou diversas convergências que valem a menção - em vista de apresentar aberturas para a reflexão de novas epistemologias e possíveis diálogos. Ambos, por exemplo, revertem o sentido do pensamento da modernidade das "essências", que expressam propriedades imutáveis da realidade, para as multiplicidades da convivência das singularidades (espaço-tempo), que, via complexidade, são descritas em termos de atratores, bifurcações, instabilidades etc. A continuidade é posta sob a primazia da heterogeneidade, num fluxo de interações que, assim como o "rizoma" de Deleuze e Guattari (1980), a partir da multiplicidade, as diferenciações vão progressivamente, por eventos não lineares, intensificando-se e, cada vez mais, se singularizando, num processo sem hierarquias ou escalas dominantes, mas fluidas entre dimensões e domínios. Pelas singularidades, as multiplicidades se compreendem detendo fluxos qualitativos de diferenciação que não são necessariamente métricas e exatas como fluxos quantitativos. No plano macroscópico, o intensivo interno-vontade-pulsante é mascarado pelas qualidades extensas, que foram tratadas como propriedades primeiras pelo pensamento moderno. Como nota De Landa (2002), para Deleuze, um dos principais objetivos da Filosofia é descobrir e investigar o intensivo, que, como prega a física do não equilíbrio (Prigogine 1989), e em consonância com os processos de auto-organização (Debrun 1996; Prigogine 1996), os comportamentos chamados "regulares" emergem de processos de interação em nível local entre diferentes, e que, em reverso à perspectiva moderna, expressam, no nível macroscópico, o resultado do processo progressivo de intensificação de diferenciações - como se fosse um rizoma.
Diferentemente do referencial dedutivo-nomológico, o processo de conhecer pode ser baseado em "well-posed problems" (De Landa 2004, 135), que entra em notável conformidade com o que vêm propor os modelos computacionais Agent-Based Models, os ABM, na ciência da complexidade (Bankes 2002; Clifford 2008). Em vez de leis fundamentais como baliza, as formas de conhecer os fenómenos direcionam-se a adaptar a generalidade das teorias e das modelagens à gama de relações específicas discernidas pelo sujeito de cada fenómeno estudado, e não o contrário. Ou seja, mesmo pautada em parâmetros regulares de pensamento e processamento, a investigação parte do princípio que o estudo tem que ser específico para cada caso - tratando dos fatores, dos processos, dos agentes etc. específicos de cada caso.
Como na pós-modernidade, na complexidade, não existe mais um discurso que mereça ser tratado como mais evoluído, ou que possa ter a pretensão de se tornar a referência para um conhecimento monístico - como queria a racionalidade ocidental. Os discursos se tornaram todos, não importando a natureza e o contexto so-ciocultural, "jogos de linguagem" - para remetermos ao conhecido sentido de Wittgenstein (2009). No diálogo entre complexidade e pós-modernismo, Cilliers (2000, 114) destacou que, em ambos contextos, relevou-se que, para o conhecimento humano do mundo, "we have to cope with a multiplicity of discourses, many different language games - all of which are determined locally, not legitimated externally. Different institutions and different contexts produce different narratives which are not reducible to each other". E isso não é, entretanto, "merely the result of some kind of theorical approach, but a necessary result of the diversity and complexity that science has to deal with now" (Cilliers 2000, 129). Podemos também extrapolar como entendimento válido para o contexto da complexidade, as considerações de Quijano (2010, 96) sobre as relações de poder na pós-modernidade, as quais servem de argumento para a pertinência da constituição de conhecimentos direcionados a planos locais, a relações locais:
No pós-modernismo desde as suas origens pós-estru-turalistas, o poder só existe à escala das micro-relações sociais e como fenómeno disperso e fluido. Não tem sentido, consequentemente, pensar na mudança de algo que se poderia chamar de sociedade em seu conjunto e colocar para isso os seus eixos de articulação ou fatores de determinação que devem ser mudados. A mudança histórica é estritamente um assunto individual, ainda que fossem vários os indivíduos envolvidos nas micro-relações sociais. (Quijano 2010, 98)
Nessa situação:
[...] a ação só poderá ser concebida e decidida nos limites de algum determinismo local, de alguma comunidade interpretativa, e os seus sentidos tencionados e efeitos antecipados estão fadados a entrar em colapso quando retirados desses domínios isolados, mesmo quando coerentes entre eles. (Harvey 1992, 56)
Ao destacar o local, é importante relevar que isso envolve todo o quadro geográfico sem hegemonias e reducionismos previamente estabelecidos (se humano ou natural); estes somente são fixados posteriormente, de acordo com os problemas estudados e objetivos traçados - lembrando que Hartshorne (1939) já esclarecia que a perspectiva espacial é primeira na Geografia e torna a distinção humano e natural arbitrária (que, aliás, é convergente com a complexidade, no que tange a superar a dicotomia humano e natural). Pela complexidade, as dualidades tradicionais se tornam fluidas, e as dicotomias incoerentes. São reconhecidos, nos sistemas da natureza, multidomínios (ações) e dimensões (escalas) de manifestação não redutíveis, tanto nas manifestações físicas e químicas quanto nas biológicas, sociais e culturais. Os limites entre orgânico e inorgânico, entre natureza e cultura, tornam-se arbitrários. Entendimentos teóricos em torno de noções como emergências, auto-organização, incertezas, sinergia etc. questionam a dualidade moderna, ontológica e epistemológica, entre sujeito e objeto, e tratam de manifestações que exigem visões complementares entre os pares. Esses são os mesmos entendimentos científicos que faz Santos (1998) realçar o fim de sentido e utilidade da dicotomia entre Ciências Naturais e Ciências Sociais - em concordância com a superação das distinções, tais como natureza-cultura, natural-artificial, vivo-inanimado, mente-matéria, observador-observado, subjetivo-objetivo, coletivo-individual, animal-pessoa.
Em termos de produção do conhecimento, isso leva a destacar a necessidade de incorporar tanto os aspectos ambientais quanto socioculturais para a sua construção. A relação homem e ambiente não deve ser considerada em oposição, ou em termos antagónicos, mas em termos de interinfluências e modulações, sem determinismo absolutos, numa relação de autonomia e dependência (como a teoria autopoiética sugere). O conhecimento, nesses termos, é uma atividade inerente à dinâmica do ser vivo na sua relação consigo mesmo e com o ambiente (Maturana e Varela 2001). Nesse sentido, a construção de um conhecimento geográfico latino não deve querer verticalizar a relação sociedade e natureza. Fals Borda e Mora-Osejo (2004, 21) já colocavam tal questão:
La estructura del hábitat, a manera de una malla fina de nichos específicos, es la forma como se concreta la gran complejidad y biodiversidad de los ecosistemas tropicales. Estas son características propias de nuestro medio, que han condicionado a la vez formas de pensar, sentir y actuar en nuestros grupos culturales y étnicos, cada cual en su lugar y en su región. De este flujo dinámico pueden obtenerse soluciones efectivas para problemas dados, por ser relevantes al medio contextual. Estas soluciones no pueden entenderse ni aplicarse copiando o citando esquemas de otros contextos como autoridad suficiente, sino liberándonos de éstos con el fin de ejercer la plena autodisciplina investigativa de la observación y la inferencia.
Nesse caminho não verticalizado e não dual, também não devemos cair no dualismo maniqueísta da modernidade. Diferentemente da ideia do "novo" contra o "velho", não sugerimos a negação da tradição epistemológica ocidental, mas devemos sim, a partir dela, dialogar com outras leituras de mundo e começar a incrementar com nossos próprios critérios, com nossas próprias pretensões e utopias. Para novamente não cair nas unilateralidades, a perspectiva é de diálogos, de misturas e miscigenações, o que bem expressa a condição cultural de muitos países latinos. A complexidade parece oferecer um arcabouço científico, com noções, conceitos e aberturas epistemológicas favoráveis para esse projeto; ao mesmo tempo conversando com a tradição do conhecimento ocidental, mas também desconstruindo e reconstruindo essa tradição sobre novas bases, novos olhares. Tal como coloca Fals-Borda e Mora-Osejo (2004), é justamente na complementaridade entre as tradições, com respeito às suas diferenças e legitimidades, que podem também surgir novas propostas:
En esta forma sumatoria, teorías de europeos sobre complejidad y sistemas (P. B. CheckIand, Ernst Mayr) se enriquecen con las Maturana o con las de los indígenas Desana ("circuitos de la biosfera") estudiados por Reichel; la teoría del caos (Mandelbrot, Prigogine) se refresca con los estudios de la cotidianidad de la colega venezolana Jeanette Abuabara; la cosmovisión participativa de Peter Reason se contextualiza con la utopía participativa de Camilo Torres; el holismo de Bateson y Capra encuentra apoyo en pensadores orientales y aborígenes. Se perfila así una alianza de colegas del norte y del sur en la que podemos tomar parte motivados por los mismos problemas e impulsados por intereses similares, una alianza entre iguales que logre corregir en todas partes los defectos estructurales e injusticias del mundo contemporáneo. (Fals Borda e Mora-Olsejo 2004, 24)
Essa perspectiva dialógica envolve, além das tradições do conhecimento, a relação dialética entre conhecimento e estruturas socioeconómicas, de superação das desigualdades produtivas e sociais. O diálogo com as tradições dos lugares vem, assim, como resposta às imposições ambientais, culturais e económicas, constituindo também em resistência e reação às forças eurocêntricas externas que desarticulam e alienam as organizações locais (física-naturais e socioculturais).
Nesse embate, podemos perguntar: é possível, a partir do conhecimento científico, romper com a ideologia capitalista estreita, perversa e segregadora, ela uma das responsáveis pela nossa submissão histórica? E promover a integração e ajudar na construção e na vivência de um sentido de progresso mais horizontal e equânime socialmente a partir das localidades? Como desvincular o fazer da Ciência das pretensões capitalistas mais perversas? A construção da utopia latina não deve desconsiderar tais sentidos complementares entre o ambiental e o social. Entretanto, temos ainda que pensar quais são as pretensões, quais são nossas direções, quais as nossas utopias ambientais e sociais em relação ao futuro - o que queremos para nossos próprios lugares, países e continentes. Para o conhecimento, será possível, por exemplo, na esteira do sugerido por Olsejo e Fals-Borda (2002), construirmos e utilizarmos as principais ferramentas do raciocínio modernas, como a lógica, de forma a adequá-la às nossas características e romper com as unilateralidades do raciocínio? E daí usar uma lógica que aceite as contradições, complementaridades e diferenças? E construir um conhecimento para além dos dualismos, do qual o capital tanto se aproveita? Que seja outra coisa diferente de materialismo ou idealismo, e que realize a construção das condições materiais conjugada com a manutenção e afirmação (e não subjugação) das tradições pelas singularidades materiais e ideológicas dos lugares?
A complexidade nos apresenta algumas aberturas ontológicas e epistemológicas possíveis de serem exploradas. A manifestação dos sistemas da natureza é múltipla e não redutível a qualquer forma de conhecimento; envolve domínios (esferas de ação) e dimensões (escalas) interconectados e interinfluentes. O diálogo com outros conhecimentos vem para lidar com os limites da Ciência em captar essas multiplicidades e não redutibilidades. A lógica e a matemática não são absolutas. As incertezas e as subjetividades são inerentes ao conhecimento do mundo (não importa o método). A objetividade científica, assim, simplesmente não existe. O dualismo realmente não corresponde à forma como os fenómenos humanos e naturais se manifestam, e o mundo é outra coisa diferente do materialismo e do idealismo, na verdade, sendo as duas e outras coisas ao mesmo tempo. A natureza não funciona de acordo com as leis determinísticas, assim como a evolução da sociedade não se dá em direção a um progresso comum a todos. Ou seja, não existe nenhuma lei natural universal, da mesma forma que não existe nenhum progresso universal. Como diria Nietzsche ([1882] 2006), buscar semelhanças, padrões como sugere a ideia de lei universal, é típico de "mentes fracas", pois os homens não são iguais e, por isso, querem coisas diferentes. As diferenciações espaciais que dão a tonalidade geográfica das multiplicidades da natureza são vistas como fundamentais para o funcionamento e o conhecimento do mundo. As singulares relações espaciais se destacam como referências para a construção de novas formas de pensamento, a partir de relações internas. Ocorre, nesse movimento, a possibilidade de refletirmos a construção epistemológica da América Latina, tendo a referência geográfica como apoio. Ocorre a possibilidade de construirmos uma epistemologia da Geografia na América Latina que reflita a partir das multiplicidades das geografias locais.
Considerações finais
O objetivo contextual deste artigo foi destacar que o diálogo entre Geografia, complexidade e reflexão decolonial permite pensar a crítica ao colonialismo epistemológico e ajuda a refletir novas proposições. Por uma leitura geográfica, tal contato vem colocar as particularidades geográficas, as diferenciações espaciais, como balizas para a construção de novas propostas epistemológicas. A referência geográfica exige o diálogo com as raízes e com as tradições dos lugares (por exemplo, indígenas e africanas), e, a partir disso, a construção de um conhecimento, uma epistemologia, característicos da identidade de quem e de onde se propõe. Um outro caminho de análise são as discussões sobre a problemática das desigualdades sociais e da segregação espacial, aliada aos estudos sobre a significação e o imaginário das pessoas e dos grupos em relação aos lugares; considerações fundamentais para o desvelamento e a busca de ultrapassagem das "imposições" universalistas do capital-euro-anglocêntrico nos lugares. Conjugados, esses dois caminhos (o epistemológico e a segregação espacial) podem nos levar a construções mais ricas, democráticas e belas, em que o pertencimento ao espaço, à natureza local, seja mais importante do que a vazia apropriação material e intelectual.