Introdução
Apesar de ser pouco investigado pelos geógrafos brasileiros, o localismo é um processo antigo e pode ser analisado a partir de duas perspectivas diferentes, mas complementares: como um processo político e reivindicatório, engendrado por atores locais; ou como um processo de valorização e de deslocamento de decisões, execuções e ações para a escala local. No Brasil, a sua emergência está diretamente relacionada à formação territorial do país desde o período colonial, quando a instalação de municípios foi adotada como importante estratégia política, institucional e territorial para a apropriação e domínio do espaço colonial (Fonseca, Santos, Borowski 2016).
Desde então, a importância do município -foco principal do localismo- ficou oscilando no contexto do Estado territorial brasileiro: em certos momentos, teve grande importância estratégica; em outros, foi relegada ao segundo plano quanto à capacidade de tomar decisões e ações. Com a Constituição Brasileira de 1988, o município emerge com novas formas e conteúdo. Porque, ao contrário de antes, nos períodos colonial e imperial, quando o Estado brasileiro ainda estava em gestação, o município atual é parte constitutiva do Estado federal brasileiro. E, malgrado os embates envolvendo as forças de centralização e descentralização que caracterizam qualquer federação, diversas dinâmicas localistas têm ocorrido nos municípios brasileiros nas últimas décadas, como emancipação, formação de consórcios, redefinição de limites municipais, novas formas de gestão do território, criação da Agenda 21, formação e desenvolvimento de conselhos locais, que têm despertado a atenção de variados pesquisadores, inclusive da área de Geografia (Fonseca 2013).
Este artigo tem como foco central investigar exata-mente os desdobramentos de um desses localismos de caráter político e reivindicatório, as emancipações municipais no Estado da Bahia/Brasil, tomando como ponto de partida a análise comparativa do desempenho institucional dos 81 municípios emancipados desde a década de 1980 (o número de municípios do Estado da Bahia aumentou de 336, na década de 1980, para 417, na década de 2010), valorizando a opinião das lideranças sobre a distribuição dos serviços, e o Índice de Desempenho de Gestão do Território - em diante IGT, que foi elaborado com o objetivo de analisar esse localismo. Essas opiniões, indicadores e índice serão relacionados com a (in)justiça territorial.
Para tanto, este artigo está dividido em três partes, mais a introdução e as considerações finais. Na primeira parte, discutem-se a relação entre localismo, federalismo, território e (in)justiça territorial no Brasil; na segunda, apresenta-se a dinâmica de criação de municípios no Brasil; e, na terceira, expõem-se os procedimentos metodológicos e a análise do desempenho institucional dos municípios baianos criados a partir da década de 1980, relacionando-a com a (in)justiça territorial.
Localismo, federalismo e território: o contexto da (in)justiça territorial no Brasil
Com o advento do processo de reestruturação capitalista em escala global, começou a ser difundido em variados setores, inclusive no acadêmico, o discurso hegemónico segundo o qual a integração e a instantaneidade das comunicações pelo mundo, que geraria a supressão das fricções espaciais, ao mesmo tempo, que permitiria a maior mobilidade do capital, a expansão dos mercados e do livre comércio. Com isso, ocorreria a diminuição das diferenças regionais e o fim das fronteiras dos estados nacionais. Mas, apesar da expansão do processo de globalização, o que percebemos atualmente, é a ampliação do número de estados e de fronteiras, e os ressurgimentos de dinâmicas regionais e locais que, mesmo não prescindindo das redes, ratificam a atualidade e pertinência do conceito de região e a emergência de localismos em diversas partes do mundo.
Na escala local, assiste-se a manifestação de localismos municipais, expressos por novos modelos de gestão do território; iniciativas locais de combate ao desemprego; conflitos territoriais envolvendo os limites municipais; estratégias de atração de empresas e competição entre os lugares; organização e mobilização da sociedade em torno de questões ambientais, educacionais, culturais; criação e atuação de variados conselhos municipais; ampliação de consórcios intermunicipais; criação da agenda 21 local; marcha de prefeitos em defesa dos municípios e divisão/criação de novos municípios. Esses localismos, se de um lado são complementares e articulados à globalização, fragmentadores, por outro lado, podem expressar processos localizados, cooperativos, específicos, relacionados ao aumento de demandas sociais por participação no âmbito das decisões locais e aos jogos de interesses específicos, locais e regionais, envolvendo os diversos agentes (Fonseca 2013).
De forma geral, o localismo é interpretado de duas formas principais: como um movimento ou um conjunto de decisões e ações políticas, económicas e institucionais, muitas vezes de caráter reivindicatório, engendrado por agentes dominantes locais que atuam a partir de uma base territorial, ao mesmo tempo que buscam maior autonomia, visibilidade local, articulação e cooperação intermunicipal. Os agentes dominantes locais também podem competir na busca de empresas, recursos e investimentos para o seu território; e como sendo uma tendência descentralizadora, de caráter político, institucional e territorial de expansão das decisões e ações para a escala municipal, uma vez que esta é considerada por muitos como a mais exequível para a gestão territorial do desenvolvimento social, económico, cultural e ambiental (Fonseca 2013).
O localismo também envolve vínculos verticais e horizontais (Putnam [1993] 1996; Santos 1996): a versão baseada na cooperação, na articulação, no diálogo e na paridade de participação dos diversos segmentos da sociedade, pode gerar "localismos horizontalizados" com maior justiça territorial; e a versão competitiva, e com conteúdo de opressão, pode gerar "localismos verticalizados", predatórios, fragmentadores e com maior injustiça territorial. Mas, esses localismos não são sempre "puros" e mutuamente excludentes. Convivem no Brasil formas mais ou menos interpenetradas e misturadas, que dependem do contexto político, económico e institucional global, nacional e local, e dos desdobramentos oriundos dos embates internos envolvendo centralização versus descentralização, próprios do federalismo (Fonseca 2013). Como consequência, os localismos no Brasil sempre apresentarão (in)justiças territoriais, ou seja, conteúdos de maior justiça ou de maior injustiça.
O federalismo é complexo e multiforme. Há federalismo em países desenvolvidos (Estados Unidos, Alemanha, Canadá, Suíça) e em países subdesenvolvidos (Brasil, Argentina, México, Nigéria, Venezuela); em países com grandes extensões territoriais (Brasil, Estados Unidos, Canadá, Rússia) e com pequenas extensões (Bósnia-Herzegovina, Áustria); com grande e com pequeno número de habitantes; nos hemisférios norte e no sul; no leste e no oeste; está presente em diferentes sistemas políticos (república e monarquia) e em diferentes sistemas de governos, como o presidencialista e o parlamentarista (Valdés 2012). Atualmente, está presente em 28 países que equivalem, aproximadamente, a 40% da população mundial (Anderson 2009).
Apesar de expressar um pacto de base territorial, criado, na sua origem, com o objetivo de conservar a liberdade (Valdés 2012), nem sempre essa liberdade é conservada e tampouco conquistada, uma vez que a federação é um "campo de forças", é um território de territórios e está em constante tensão e conflito, em virtude dos embates entre forças centrípetas (centralizadoras) e forças centrífugas (descentralizadoras), que buscam acomodar as diferenças territoriais (Castro 2005). No Brasil, por exemplo, o federalismo passou por vários arranjos e experimentou períodos de autoritarismo e de democracia desde que foi instituído, no final do século XIX.
Com base em Arretche (2012), apesar do otimismo criado em torno das inovações constitucionais de 1988, no sentido de uma radicalização do processo de descentralização federativa, o que passou a ocorrer no Brasil, sobretudo a partir da década de 1990, foi a centralização das decisões e da regulação na esfera federal e a descentralização da execução das políticas públicas para as demais escalas, inclusive a local. Isto gerou a expansão das responsabilidades municipais e, ao mesmo tempo, a diminuição da sua autonomia.
Ou seja, os desdobramentos das inovações institucionais de 1988, ao ampliarem as atribuições e as responsabilidades de execução de políticas públicas por parte dos municípios, geraram uma descentralização "presente" (Klink 2001; Abrúcio 2006; Arretche 2012). Ao mesmo tempo, geraram uma descentralização "ausente" no que se refere à capacidade local de decisão, regulação, cooperação e coordenação federativa para elaboração de políticas públicas e para ampliação da base económica dos municípios (Fonseca 2013).
Esse perfil do federalismo brasileiro vem ocorrendo, muitas vezes, com o aval de deputados e senadores que atuam mais valorizando a lógica setorial e partidária, e menos a lógica territorial. Ao fazerem isso, o conteúdo político, material e simbólico do território é esvaziado porque passa a ser considerado, apenas, como um espaço homogêneo, plano e sem diferenças.
Na realidade, o território, com sua dimensão material e simbólica (Castro 2005), é resultado de relações sociais, relações de poder e de opressão, ocorridas no e a partir do espaço. Essas relações apresentam tanto vínculos verticais quanto horizontais (Putnam [1993] 1996; Santos 1996). Os vínculos verticais são compostos por relações predominantemente hierarquizadas, muitas vezes autoritárias, impostas, com poucos ou sem canais de negociação entre o Estado e a sociedade, e geradoras de mais desigualdades sociais e espaciais. São relações de opressão engendradas institucionalmente pelas sociedades nas mais diversas escalas (Young 1990). Conforme a referida autora, devido às práticas sociais e políticas dos movimentos sociais de esquerda (sobretudo dos movimentos feministas nos Estados Unidos), nas décadas de 1960/70, vem ocorrendo a rediscussão do significado de opressão. Desde então, a opressão não tem somente o tradicional significado de tirania de um grupo dominante, mas de múltiplas práticas habituais, muitas vezes institucionalizadas e adotadas cotidianamente, que são geradoras de sofrimento, de mais desigualdades e de injustiças sociais. Para Young (1990), a opressão abrange cinco conceitos e condições: exploração, marginalização, carência de poder, imperialismo cultural e violência.
No contexto do capitalismo, a exploração é parte constitutiva tanto das relações estruturais de classes, como a transferência da riqueza material oriunda do trabalho realizada pela maioria para satisfazer uma minoritária classe detentora dos meios de produção, quanto das relações de opressão racial e de gênero; a marginalização refere-se a pessoas ou grupos sociais que estão excluídos do mundo do trabalho e que sofrem as mais variadas privações, tais como dificuldades de acesso a serviços básicos como saúde, educação e segurança. Para Young (1990), são pessoas ou grupos sociais que o sistema não pode ou não quer usar; as carências de poder referem-se à inexistência de canais de diálogo e de participação cidadã nas tomadas de decisões e ações políticas. Pessoas e grupos sociais que sofrem de carência de poder não decidem, porque alguém decide por eles, vivem sob a submissão, numa relação de comando e obediência; o imperialismo cultural envolve tentativas de universalização de um modo de vida, de um modelo de cultura que grupos dominantes tentam impor sobre o conjunto da sociedade; e a violência abrange situações de humilhação e de ataques físicos contra pessoas e grupos sociais.
Essas condições de opressão revelam cinco aspectos importantes que foram considerados na análise territorial deste trabalho: a) a opressão é multiescalar, pois pode se manifestar nas diversas escalas: da local à global; b) a opressão tem múltiplas faces e está inserida nos diversos setores da sociedade; c) a opressão é, muitas vezes, institucionalmente aceita. Têm relação com as regras do jogo da sociedade (North 1990), que são compostas por instituições formais (Constituições e demais normativas escritas) e informais (hábitos e costumes adquiridos historicamente durante o processo de socialização); d) a opressão é o oposto de poder, é um "antipoder"; e) a opressão amplia as desigualdades sociais e espaciais e, consequentemente, a geração de injustiças territoriais.
Já os vínculos horizontais têm o predomínio de relações descentralizadas, participativas, consensuais, solidárias, inclusivas, cooperativas e com maior canal de abertura e de diálogo entre o Estado e a sociedade (Brito 2008; Fraser 2008). Ou seja, é o poder no seu estado relacional, difuso e comunicativo que, embora seja constituído de assimetrias e de conflitos de interesses, se fundamenta no consenso e não na submissão (Brito 2008). Onde predominarem esses vínculos é possível que haja menores desigualdades sociais e espaciais, uma vez que a participação cidadã poderá contribuir para que a distribuição dos serviços públicos seja mais ampla e de fácil acesso. Possivelmente, haverá maior justiça territorial. Mas, conforme Young (1990), mesmo nas atuais sociedades ocidentais, onde o poder está bastante disseminado e difuso, as relações sociais estão definidas, majoritariamente, pela opressão institucionalizada. E, de forma ainda mais objetiva, Harari (2018) afirma que há mais injustiça que justiça na história. Isso porque as principais ordens imaginárias (que são regras institucionalizadas), adotadas desde a Revolução Agrícola, nunca foram neutras ou justas. Ou seja, a justiça nunca será alcançada em sua plenitude e, por isso, teremos sempre (in)justiça territorial: justiça e injustiça juntas no mesmo território.
É no contexto dessas complexas relações sociais, envolvendo poder e opressão, que os territórios são apropriados, definidos, organizados e gerenciados. Seus conteúdos terão maior desigualdade social e injustiça, se prevalecerem os vínculos verticais (opressão); e menor desigualdade social e justiça (melhor distribuição dos serviços públicos e das demais riquezas geradas na sociedade), se predominarem os vínculos horizontais. Mas, como os dois vínculos estão interpenetrados, os territórios sempre conterão justiça e injustiça, ou seja, (in)justiças.
Portanto, o território é uma categoria de análise complexa e seus conteúdos variam na importância conforme o tempo e o espaço, conforme as instituições, os agentes e conforme as suas relações. Por conta disso, não deve ser negligenciado nos embates e nas negociações políticas, sobretudo quando se trata de um território de territórios, como é o caso do federalismo brasileiro. O território sempre será carregado de base material e simbólica, de relações de poder e de opressão (Young 1990; Castro 2005). E, no caso do território institucionalizado do Estado, que é o foco deste artigo, esta complexidade também aparece na escala do município.
O fato é que a dialética de presença/ausência da descentralização, o esvaziamento do conteúdo territorial por parte da engenharia política partidária e as novas perspectivas abertas pela globalização, têm estimulado o advento de localismos muitas vezes fragmentadores e competitivos no estilo "salve-se quem puder". Neste artigo, não se objetiva identificar as formas de localismos presentes nas 81 emancipações municipais da Bahia, mas analisar os seus desdobramentos em relação ao desempenho institucional e às (in)justiças territoriais.
E com a expansão da globalização e dos seus processos derivados, como o neoliberalismo económico e a reestruturação do aparelho do Estado, a geografia das injustiças vem se ampliando nas diversas escalas territoriais. Tais injustiças podem ser vistas através da janela da nossa casa, nas telas de TV, no cinema, nos jornais, nas revistas, nas fotografias e nas redes sociais. Estamos assistindo, nos últimos anos, a um intenso movimento de refugiados que não têm nenhuma opção, a não ser se aventurar pelo deserto de Saara ou pelo Mar Mediterrâneo, saindo da África (Líbia, Eritréia, Etiópia, Argélia) e do Oriente Médio (Síria, Jordânia), rumo à Europa. Os latino-americanos, que saem da Guatemala, Honduras, El Salvador e México tentam atravessar a fronteira em direção aos Estados Unidos. Os asiáticos, oriundos de Bangladesh e Birmânia, que fogem em pequenas embarcações pelo Mar de Andaman e tentam entrar na Tailândia, Malásia e Indonésia. A fuga em massa de venezuelanos, que entraram na Colómbia, Peru, Bolívia e Brasil para escapar da violência, da opressão, do desemprego e da fome provocados pela crise política e económica. A ampliação da segregação urbana nas grandes cidades, junto com o aumento dos automóveis e da inexistência de planos de mobilidade urbana. A distribuição bastante desigual de serviços de educação, saúde e segurança nas grandes cidades e nas regiões, sejam ou não metropolitanas, que persiste e que gera uma desigual distribuição de riquezas entre as capitais e as demais cidades espalhadas pelo território. Os crimes ambientais, como o que aconteceu no distrito de Santa Maria/Mariana, em Minas Gerais, provocando danos irreparáveis à fauna, à flora e às diversas famílias que se encontram desamparadas e desabrigadas. A excessiva centralização político-administrativa de muitos governos municipais no Brasil e a falta de canais de diálogo com as populações de distritos e povoados, dentre outras tantas injustiças territoriais.
As pesquisas sobre as geografias das injustiças, apesar de terem começado de forma tardia (a partir da década de 1970), e pontual (Estados Unidos e França), vêm se ampliando, se diversificando e se expandindo consideravelmente, a partir das duas últimas décadas, em diversos países. E nesse processo de ampliação e expansão, as abordagens vão se diferenciando. Alguns geógrafos, como Harvey (1980), preferiram usar o conceito de justiça distributiva territorial para valorizar a importância da distribuição e da equidade e eficiência na análise geográfica sobre justiça; Bret (2016) vem adotando a equidade territorial como o fundamento espacial da justiça social; e Soja (2010) adotou o conceito de justiça espacial, destacando o seu conteúdo de ação social e política. Mas, para Gervais-Lambony, Dufaux e Musset (2010), equidade territorial pertence ao vocabulário de arquitetos e urbanistas. E justiça espacial está mais vinculada aos pressupostos teóricos da filosofia e da ciência política.
Para os objetivos deste artigo, definimos aqui alguns elementos que servirão como pontos de partida e como "fios condutores" de análise: a) justiça espacial e justiça territorial são conceitos flexíveis, integradores, e podem ser usados em situações diferentes na abordagem geográfica: se a análise envolve processos de produção do espaço, organização e distribuição de objetos no espaço, com suas formas, funções, processos e estruturas, o conceito de justiça espacial é o mais indicado. Mas, se a análise envolve "territorialidade humana" (Sack 1986), na qual estejam presentes relações de poder e opressão, é mais adequado o uso de justiça territorial. E, como este artigo se fundamenta na análise do localismo e do território, será adotado aqui o conceito de justiça territorial; b) apesar das variadas abordagens sobre justiça na geografia (Fonseca e Barbosa 2017), este artigo também valorizará a abordagem distributiva da equidade espacial/territorial, tendo em vista que o foco principal é o desdobramento das emancipações municipais, avaliado através da opinião das lideranças sobre a oferta e distribuição de serviços e infraestrutura, e do Índice de Gestão Territorial, que envolve indicadores de planejamento e gestão, descentralização (participação política) e Justiça e Segurança Pública - em diante JSP. Para Bret (2016, 1), "[a] equidade territorial enquanto dimensão espacial da justiça social, 'designa uma configuração geográfica que garantiria a todos as mesmas condições de acesso a serviços públicos, ao emprego e as várias vantagens da vida em sociedade'"1; c) o espaço/território é continente e conteúdo da (injustiça social; d) mesmo considerando que nem sempre uma situação de desigualdade espacial pode ser considerada uma injustiça territorial, é fundamental a intervenção estatal via políticas públicas territoriais, no sentido de que a distribuição dos serviços públicos, a paridade na participação, o acesso aos direitos e à democracia sejam assegurados, da melhor forma possível, ao ponto de não prejudicar ainda mais os menos favorecidos; e) sempre que houver carência de poder e deficiência ou inexistência de serviços básicos para o atendimento à população dos lugares, haverá injustiça territorial; f) a justiça territorial é multiescalar e, como tal, também se expressa através de localismos; g) e conforme a visão localista adotada neste trabalho, "poderá ocorrer maior justiça territorial se, nas relações sociais, prevalecerem vínculos horizontais e formas de distribuição de bens e de oportunidades mais equitativas e capazes de atender aos menos favorecidos da sociedade".
Dinâmica de criação de municípios no Brasil
O processo de criação de municípios no Brasil, apesar de ser antigo, vem assumindo considerável dinamismo nos últimos quarenta anos. É um processo que está inserido no contexto da globalização, da redemocratização e das transformações do papel do Estado brasileiro ocorridas partir da Constituição de 1988.
Sobre uma extensão territorial de 8.515.759,090 km2 estão distribuídos, desigualmente, 5.570 municípios e uma população estimada de 208.494.900 habitantes, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 2018). São municípios bastante heterogêneos em termos de extensão territorial, de formação histórica, de tamanho populacional e de características naturais, sociais e económicas. Conforme à Figura 1, as menores malhas municipais estão localizadas ao leste do território brasileiro, onde o processo de urbanização é mais acentuado, enquanto as maiores malhas estão localizadas, predominantemente, nas regiões Centro-Oeste e Norte. Um exemplo disso é o Município de Altamira, localizado no Estado do Pará (Região Norte), cuja malha municipal de 160.755 km2 é superior à soma dos territórios de países como Dinamarca (43.094 km2), Suíça (41.284 km2), Bélgica (30.519 km2) e Estónia (45.100 km2).
Apesar da grande extensão territorial, o número de municípios brasileiros é pequeno se compararmos com países que têm população e área menores que a nossa, tais como a França, Alemanha, Itália, Espanha, dentre outros. A França, com uma extensão territorial de 543.965 km2 e população de 65.300.000 habitantes, tem 36.778 unidades de administração local; a Alemanha, com 356.733 km2 e população de 81.760.000, tem 13.000 administrações locais; a Espanha, com 505.954 km2 e população de 47.190.000, tem 8.000; a Itália, com 301.302 km2 e população de 60.740.0000, também tem 8.000 (Castro 2013).
Nos últimos setenta anos, o número de municípios no Brasil quase quadruplicou, passando de 1.574 em 1940 para 5.570 em 2018. Mas, esse processo de emancipação não ocorreu de maneira uniforme; por todo o período, teve avanços e recuos. Entre 1940 e 1950, foram criados 315 novos municípios; de 1950 a 1960, o número de emancipações foi de 877; entre 1960 e 1970, ocorreram 1.186 emancipações, sendo que a maior parte ocorreu antes do regime autoritário, entre 1960 e 1964; entre 1970 e 1980, ainda na ditadura, foram criados somente 39 municípios; de 1980 a 1990, 500 mais foram criados; e, por fim, o intervalo de 1990 a 2015, quando surgiram 1.079 municípios, dos quais 61 foram instalados até 1 de janeiro de 2015, perfazendo um total de 5.570 (Figura 2).
Mas, o referido período foi marcado tanto por criações como por extinções de municípios. Em 1964, por exemplo, foram extintos 252 no Estado do Amazonas e, em 1965, foram extintos 161 no Estado do Ceará. Essas extinções foram motivadas por diversas irregularidades nos processos de criação de municípios naquele período.
No Brasil, há municípios antigos como São Vicente, que foi instalado em 1532, até Balneário Rincão, em Santa Catarina, por exemplo, instalado em 2013. Quanto à extensão territorial, a heterogeneidade também é marcante, pois enquanto há município com grande extensão de 160.755 km2, como Altamira, há outros minúsculos, em termos comparativos, como é o caso de Santa Cruz de Minas, no Estado de Minas Gerais, com 2,9 km2; em termos populacionais, nós temos São Paulo com uma população estimada de 12.176.866 e Serra da Saudade, em Minas Gerais, com apenas 786 habitantes (IBGE 2018).
Entre os estados da federação brasileira, Minas Gerais é o que concentra mais municípios; possui 853. Já o Estado de Roraima é o menor em número de municípios; concentra apenas 15. Em termos de regiões, o maior número de municípios brasileiros está concentrado no Nordeste com 1.794 municípios, e o menor número está no Norte, com 450 municípios. No Nordeste, o Estado da Bahia se destaca com o maior número de municípios, ou seja, 417, contra 75 no Estado de Sergipe, que tem o menor número.
Conforme Tabela 1, no Estado da Bahia o número de municípios passou de 150 em 1940, para 417 em 2001, sendo que a maior quantidade de emancipações ocorreu nos anos de 1960 e 1970, com a criação de 142 municípios; e entre 1980 e 1991, com 79 emancipações. São localidades com populações que variam de 4.561 a 138.341 habitantes.
Essas emancipações municipais vêm sendo investigadas por diversos geógrafos brasileiros nas últimas décadas. Todas as pesquisas destacam que há uma variedade de fatores que interferem e estimulam a criação de novos municípios. A pesquisa de Bremaeker (1993), por exemplo, destacou que os principais motivos para a criação de municípios foram: descaso por parte da administração do município de origem, atividade económica dinâmica, grande extensão territorial do município de origem e aumento da população do distrito interessado em se emancipar. A pesquisa de Noronha (1997) destacou que no Estado do Rio de Janeiro, as principais motivações para a criação de municípios foram administrativas, económicas dinâmicas, económicas por estagnação e políticas. Para Oliveira (2009), as principais motivações para a emancipação de distritos do município de Riachão do Jacuípe (Bahia) foram políticas, administrativas e o descaso da administração do município de origem em relação aos distritos; os fatores auxiliares foram a extensão territorial de Riachão do Jacuípe e os anseios por liberdade e independência da população para gerir as suas próprias questões. Já a pesquisa de Fonseca, Silva e Vieira (2010) enfatizou que as principais motivações para as emancipações de Luís Eduardo Magalhães - em diante LEM, e Barrocas (Bahia), foram de caráter económico e político.
As emancipações também apresentam variações no espaço e tempo. Da mesma forma que a visão estrutural (Cigolini 2009) é importante, porque focaliza este tipo de localismo no processo histórico de apropriação e uso do território, a conjuntural estimula a refletir sobre o contexto espaço e tempo que estão contribuindo para a manutenção e dinâmica desse localismo em determinados contextos.
Na Bahia, por exemplo, a relação estrutura e conjuntura nos ajuda a revelar porque ocorreu o "congelamento" da criação de municípios na década de 1990, no contexto da ascensão e domínio político do Governador António Carlos Magalhães, cuja liderança passou a ser denominada de carlismo. A forma carlista de fazer política -centralizadora, autoritária e com poucos canais de negociação entre o Estado e a sociedade- gerou mudanças nas relações entre os Poderes Executivo e Legislativo estadual, entre o governador e os poderes locais, entre o governador e o Tribunal Regional Eleitoral do Estado da Bahia e, finalmente, entre o Estado e o território.
Esse contexto carlista, de certa forma, vai ao encontro da abordagem institucional realizada por Tomio (2002) e que foi aplicada nas análises das emancipações no Estado da Bahia. Para este autor, as emancipações são resultantes de um contexto institucional favorável e as variações espaciais das emancipações estão atreladas, também, às relações entre o executivo e o legislativo estadual, às coalizões políticas e à existência de mecanismos legais.
A centralização executiva, atrelada aos dispositivos legais e ao controle das decisões dos partidos políticos, impediu que as emancipações ocorressem na Bahia na década de 1990, apesar de diversas mobilizações políticas locais que reivindicavam emancipações de distritos. Com base no referido autor, os mecanismos institucionais criados pelo governo baiano para dificultar as emancipações foram até mesmo mais restritivos que os criados durante o regime militar. Segundo Tomio:
Na década de noventa, quando a repartição do FPM ficou restrita aos municípios do próprio estado, o Governador António Carlos Magalhães (PFL) conseguiu impedir qualquer nova emancipação. Nenhum novo município foi criado, a despeito de decisões anteriores do legislativo e de protestos dos deputados estaduais favoráveis às emancipações. Somente no final dessa década, dois municípios foram emancipados. Todos com o consentimento do então Senador António Carlos Magalhães (PFL), através da aprovação de leis que violaram os princípios da Emenda Constitucional 15/96. (Tomio 2002, 192)
Os dois municípios que o autor faz referência são Barrocas e LEM, instalados em 2001. O curioso é que este último deveria ser chamado de Mimoso do Oeste, que era a sua denominação enquanto distrito. Contudo, passou a ser chamado de LEM após a emancipação. Segundo comentários das lideranças locais, a mudança fez parte do acordo político para o senador concordar com a emancipação, tendo em vista que LEM era o nome do seu filho, deputado federal, que faleceu em 1998 aos 43 anos.
Durante o período do governo de António Carlos Magalhães, alguns deputados estaduais baianos favoráveis às emancipações atenderam às reivindicações políticas locais e encaminharam consultas plebiscitárias para serem realizadas em 59 distritos. Contudo, devido à influência do governador sobre o Tribunal Regional Eleitoral da Bahia, que era o órgão responsável pela organização e realização dos plebiscitos, nenhuma dessas consultas foi realizada e muitos distritos não foram emancipados (Tomio 2002).
Essas análises revelam o peso e a importância da conjuntura nas escalas estadual e local e, dentro dessas, a relação entre o executivo e o legislativo, a configuração de forças de coalizão e a relação entre centralização e descentralização nas decisões políticas e nas reivindicações localistas. Por outro lado, a forma de fazer política do carlismo continha resquícios históricos e estruturais dos vínculos políticos verticalizados, de opressão, oriundos do processo de apropriação e uso do território brasileiro desde o Brasil Império. Isto ajuda a explicar o elevado grau de injustiça territorial presente historicamente na Bahia.
Como se percebeu, o processo de emancipação municipal não é novo no Brasil. Contudo, a velocidade e a quantidade de emancipações que começaram a ocorrer, principalmente a partir dos anos de 1980, geraram preocupações ao governo federal que resolveu mudar as regras do jogo quanto aos critérios de criação, fusão e desmembramento dos municípios. Em 12 de setembro de 1996, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional n.o 15, com o objetivo de frear o que foi popularmente denominado de "febre das emancipações".
Com as modificações na redação do § 4odo art. 18 da Constituição, devido à Emenda Constitucional n.° 15, para ocorrer o processo de criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios, são necessárias a divulgação de estudos de viabilidade municipal e a realização de um plebiscito, que deve envolver não só a população interessada, mas a população do município como um todo. Isto vem dificultando bastante qualquer tentativa reivindicatória de emancipação municipal no Brasil.
Desde então, vêm sendo travadas, nas diversas instâncias e escalas de poder no Brasil, amplas articulações e negociações políticas no sentido de ser aprovada uma inovação institucional mais flexível, que abra espaço para a criação de novos municípios. De qualquer forma, foram criados 81 novos municípios no Estado da Bahia, desde a década de 1980, e a questão fundamental destacada aqui é: como vem ocorrendo o desempenho institucional desses municípios?
Procedimentos metodológicos e análise do desempenho institucional dos municípios
Na abordagem institucional, um dos temas centrais é a análise do desempenho dos governos e das instituições. E busca-se identificar, no contexto das decisões, execuções e ações, o que foi realizado em termos económicos, sociais, políticos, educacionais, culturais, territoriais, etc. As análises, para isso, variam conforme o escopo teórico e metodológico do autor. Como as abordagens institucionais são diversas, consequentemente ocorrerão variações nas análises. Alguns valorizam mais o individualismo metodológico; outros valorizam mais a abordagem comportamental; alguns tendem ao viés económico; outros, ao político, histórico; alguns são mais quantitativos e outros mais qualitativos; alguns são estruturais; outros conjunturais (Théret 2003; Fonseca 2006; Fonseca, Silva e Vieira 2010).
Para Putnam (1996), o desempenho institucional deve ser pensado e baseado no seguinte modelo de governança:
Demandas sociais → interação política → governo →opção de política →implementação
Apesar da abrangência, este artigo não tem como objetivo a análise desse modelo exposto por Putnam. Se averiguou aqui, especificamente, os resultados da implantação ou não das políticas. Está centrado na ponta do modelo, nos resultados sociais, económicos, gerenciais e de infraes-trutura vinculados à implantação ou não das políticas.
Para sua análise, foram valorizadas duas escalas: a estadual -agregando todos os municípios baianos emancipados a partir da década de 1980 - e a local - referente aos municípios emancipados de Irecê e de Jacobina -. Quanto à análise do desempenho institucional dos municípios emancipados, foi criado o IGT, que envolve os seguintes indicadores: a) instrumentos de planejamento, regulação e gestão - em diante IPRG; b) descentralização política - em diante DP; c) JSP. Apesar da amplitude, este índice deve ser considerado como um indicador de (in) justiça territorial, e não como um resultado conclusivo. Por isso, realizamos trabalhos de campo e aplicamos entrevistas no sentido de ampliar as conclusões das análises sobre os municípios emancipados de Jacobina e Irecê.
O IGT foi calculado a partir da seguinte Equação 1.
Sendo que:
P i . corresponde ao peso de cada indicador
N i corresponde à pontuação total ou nota do município em cada indicador, a qual concentra diversas variáveis, expresso através de uma nota que varia de 0 a 1
i corresponde aos indicadores de gestão do território i=1 (IPRG); i=2 (DP); i=3 (JSP).
O IGT envolve os seguintes indicadores:
IPRG que terá um peso equivalente a 0,4 no IGT final e tem 07 variáveis:
Lei de parcelamento do solo: 0-1
Lei de zoneamento ou equivalente: 0-1
Código de obras: 0-1
Cadastro ISS: 0-1
Cobra IPTU: 0-1
Cadastro imobiliário: 0-1
Consórcio público intermunicipal: 0-1
DP (capacidade de gestão democrática) que terá um peso equivalente a 0,4 no IGT final e contém 08 variáveis:
Saúde: 0-1
Criança e Adolescente: 0-1
Educação: 0-1
Habitação: 0-1
Legislação e Planejamento: 0-1
Cultura: 0-1
Esporte: 0-1
Direitos Humanos: 0-1
JSP que terá um peso equivalente a 0,2 no IGT final e contém 09 variáveis:
Delegacia de Polícia Civil: 0-1
Delegacia de Polícia Especializada no Atendimento à Mulher: 0-1
Delegacia de Proteção ao Idoso: 0-1
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente: 0-1
Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente: 0-1
Juizado Especializado no Atendimento à Criança e ao Adolescente: 0-1
Juizado Especializado no Atendimento ao Idoso: 0-1
Juizado Especial de Violência contra a Mulher: 0-1
Município que mantém serviço de assistência jurídica: 0-1
O cómputo da nota de cada município envolve o somatório das variáveis correspondentes a cada indicador. Cada variável está caracterizada com os números 0 ou 1, representando a presença e ausência do instrumento de gestão em análise. Este somatório foi dividido pelo número total das variáveis do indicador em estudo, ou seja, normalizado, obtendo-se uma nota que pode oscilar de 0,0 (muito baixo) a 1,0 (muito alto).
Os resultados podem ser conferidos na Figura 3. Percebe-se que a maior parte dos municípios teve desempenho institucional entre médio e alto, ou seja, com índices entre 0,31 e 0,45 (médio) e 0,46 e 0,70 (alto). Quem obteve o menor índice, muito baixo, foi o Município de Quixabeira, no centro norte da Bahia. Seguido desse, municípios como Mansidão, Muquém do São Francisco, no oeste; Umburanas, São José do Jacuípe, no centro norte; e Guajerú e Aracatu, no centro sul baiano, também tiveram desempenhos baixos.
Nenhum município conseguiu obter o índice muito alto, superior a 0,70. Mesmo assim, municípios como Teixeira de Freitas, Eunápolis, Jucuruçu, Itabela, no extremo sul; LEM, Jaborandi e São Félix do Coribe, no oeste; Ourolândia, João Dourado, Lapão e Sobradinho, no centro norte, se destacaram com os melhores desempenhos. Estes últimos estão localizados na região semiárida da Bahia, que vem sendo duramente atingida pela pior estiagem dos últimos cinquenta anos e que, historicamente, é a região com maior injustiça territorial da Bahia.
Por outro lado, percebe-se que nem sempre há relação entre o tamanho populacional e os melhores iGTs. Há bons desempenhos em municípios com maior população (Teixeira de Freitas, Eunápolis e LEM) e com menor população (Capim Grosso, Lapão, João Dourado). No entanto, os piores desempenhos ocorreram em municípios pequenos, centros zonais e com pequena população. Mesmo assim, a análise dos desdobramentos desses localismos, a partir da escala estadual, apontou para um positivo desempenho institucional dos novos municípios, oscilando entre médio e alto.
Isso significa dizer que os desdobramentos dos localismos nos 81 municípios apontam para "(in)justiças territoriais". No entanto, foi necessária a realização de trabalhos de campo, na escala local, para que se pudesse identificar com mais detalhes os conteúdos dessas (in) justiças territoriais: se prevaleceu a justiça ou a injustiça, o poder ou a opressão.
As análises na escala local permitiram o acompanhamento mais empírico e detalhado, envolvendo trabalhos de campo e diálogos com agentes locais que participaram ou acompanharam os processos de criação de quatro novos municípios oriundos de Irecê (América Dourada, João Dourado, Lapão e São Gabriel) e de três oriundos de Jacobina (Capim Grosso, Ourolândia e Várzea Nova), conforme à Figura 4.
Nessa escala, os procedimentos metodológicos adotados foram os seguintes: a) trabalho de campo com duração de uma semana na região de Irecê, nos municípios de América Dourada, João Dourado, Lapão e São Gabriel; e um trabalho de campo, também com duração de uma semana, para a região de Jacobina, no qual foram visitados os municípios de Capim Grosso, Ourolândia e Várzea Nova; b) foram entrevistadas 16 lideranças em cada município: 4 políticas, 4 económicas, 2 educacionais, 3 de saúde, 2 de lazer e 1 de assistente social (vinculados ao setor administrativo), totalizando 112 entrevistas. Estas lideranças representavam a maior parte dos setores mais expressivos dos novos municípios e, além disso, as principais motivações que vêm estimulando as emancipações, quais sejam: motivação económica, política, geográfica e de distribuição de serviços (saúde, educação, lazer), conforme Fonseca, Silva e Vieira (2010).
Os resultados representaram a percepção e a experiência dos diversos agentes sociais, tomadores de decisão em relação às motivações e às emancipações. Além disso, as entrevistas foram compostas por uma tipologia de desempenho institucional, contendo 20 tipos de serviços oriundos dos indicadores sociais, económicos, gerenciais e de infraestrutura.
Nas entrevistas, cada liderança priorizou entre os 20, e em ordem hierárquica, os serviços que tiveram maior importância no desempenho institucional do município. Para a tabulação das informações e dados, foi definido um valor quantitativo às hierarquias listadas pelos entrevistados, estabelecendo a relação entre a dimensão qualitativa e a quantitativa. Por exemplo, aquele serviço que foi o primeiro em ordem de importância teve o valor 1 na coluna da hierarquia e valeu o peso 20 (peso na relação); o serviço que foi o segundo em ordem de importância teve o valor 2 na coluna da hierarquia e valeu o peso 19. E assim sucessivamente. Finalmente, o serviço que foi o último em ordem de importância teve o valor 20 na coluna da hierarquia e, por conseguinte, teve o peso 1, ou seja, o menor peso.
Ao efetuar os somatórios dessas entrevistas, seguindo essa lógica, a máxima pontuação que poderia ter o desempenho de um serviço em cada município seria de 320 pontos, ou seja, no caso em que as 20 lideranças locais de cada município priorizassem, igualmente, o mesmo serviço (20 x 16 = 320). Por outro lado, a menor pontuação seria de 16 pontos; ou seja, no caso em que as 16 lideranças tivessem colocado em último lugar o mesmo serviço (16 x 1 = 16). Mas, isso não aconteceu, pois o número máximo de pontos foi alcançado no Município de América Dourada, relacionado ao serviço de hospitais, postos de saúde e clínicas - 265 pontos. E o menor número de pontos foi registrado em Capim Grosso, no serviço relacionado à instalação de rede de esgotos, com 25 pontos.
A partir das pontuações, foi construído um quadro tipológico síntese (Tabela 2) para cada município analisado no trabalho de campo, contendo o desempenho institucional de cada serviço, segundo as informações das lideranças locais. As pontuações apresentadas hierarquicamente foram classificadas qualitativamente, como desempenho institucional muito alto, alto, médio, baixo e muito baixo. Como pode ser visto no Tabela 2, o desempenho institucional variou conforme os tipos de serviços oferecidos. Entre os que obtiveram desempenho muito alto (América Dourada, Capim Grosso, São Gabriel), a oferta de ensino fundamental e médio, serviço de comércio, a construção de calçamentos e o oferecimento de água encanada se destacaram.
Dados: trabalho de campo da pesquisa descentralização e fragmentação no território baiano, 2012 e 2013.
Outro serviço fundamental, que teve desempenho variando de muito alto (América Dourada e São Gabriel) a médio (Capim Grosso), foi o relacionado à existência de hospitais, postos de saúde e clínicas médicas. Além desses, destaca-se, também, o oferecimento de ensino médio, que variou de muito alto a alto; e a limpeza urbana que, no geral, teve um alto desempenho. Mesmo considerando que alguns desses serviços são mantidos com verbas federais, os resultados já apontaram para um avanço na gestão do território, tendo em vista que, no período em que eram distritos, os moradores tinham que se deslocar para as sedes municipais a fim de adquiri-los.
Por outro lado, os serviços de segurança (delegacias da mulher, da criança e do adolescente), de lazer e cultura (ginásio de esportes, campeonatos, teatro, cinema e gincana) e de cartórios e juizado de pequenas causas, foram considerados os mais deficientes, pois variaram de baixo a muito baixo.
Acrescenta-se a isso, a instalação de rede de esgoto que foi considerada muito baixa na maior parte dos municípios visitados, com exceção de Várzea Nova que considerou que o serviço teve um alto desempenho, e Lapão, que considerou que teve um desempenho médio.
Os resultados dessa análise apontaram que as manifestações localistas pelas emancipações foram contra a situação de injustiça territorial na qual viviam as localidades. As lideranças locais relataram que, antes das emancipações, os distritos viviam isolados, carentes de todos os tipos de serviços e com pouco espaço de participação nas decisões municipais. Essa situação de injustiça territorial foi, segundo os entrevistados, um dos principais motivos das mobilizações localistas (passeatas, publicação e divulgação de panfletos sobre a importância da emancipação, pressão política junto a deputados estaduais) relacionadas às emancipações municipais.
Durante os trabalhos de campo, também foram realizadas entrevistas com perguntas abertas, objetivando identificar a relação entre o governo e a sociedade local, em termos de participação nas decisões e ações políticas. As respostas foram quantificadas e expostas em forma de percentuais.
Inicialmente, foi perguntado se o entrevistado já tinha sido convidado pelo governo municipal para opinar sobre alguma decisão importante para o município. Com exceção dos municípios de Várzea Nova e São Gabriel, a maioria dos outros governos municipais já tinha convidado as lideranças entrevistadas para discutir as decisões do governo. Conforme os resultados das entrevistas, os modelos de gestão do território mais aberto à participação foram os de América Dourada e Lapão, tendo em vista que 75% e 62% das lideranças, respectivamente, já foram convidadas para colaborar na tomada de decisões do governo local. Além de mais participativos, apresentaram IGT médio e alto, respectivamente. E os mais centralizadores foram Várzea Nova e São Gabriel (Tabela 3), com IGT médio.
Dados: trabalho de campo de pesquisa descentralização e fragmentação no território baiano, 2012 e 2013.
Por outro lado, quando foi perguntado se participaram de algum conselho municipal, 62% das lideranças de Capim Grosso e 56% de América Dourada responderam que sim, enquanto as lideranças que menos participaram dos conselhos foram as de Várzea Nova, com 68,8%, Lapão com 68,7% e João Dourado com 62,5%. Ou seja, esses dados apontaram para uma população mais engajada, quantitativamente, em Capim Grosso e América Dourada. E menos engajada em Várzea Nova e Lapão (Tabela 4).
Dados: trabalho de campo de pesquisa descentralização e fragmentação no território baiano, 2012 e 2013.
Esses resultados mostram que a centralização nem sempre é expressão de opressão e de injustiça territorial. Um modelo de gestão do território pode ser centralizado; contudo, desenvolve políticas públicas de distribuição de serviços de forma equitativa e pode garantir direitos, uma vez que a sua população é engajada. Mesmo assim, quando um modelo de gestão territorial, de base local, é mais descentralizado e a população é engajada, há mais possibilidade de ter justiça territorial.
Finalmente, foi perguntado se a população tinha consciência da importância em participar dos programas e projetos do governo municipal. Nesse caso, prevaleceu um nível de conscientização regular, inclusive em Capim Grosso e Várzea Nova (Tabela 5). A maior conscientização foi identificada em Lapão e a menor foi em Ourolândia. Nesse município, inclusive, nenhum serviço alcançou um desempenho institucional muito alto.
Dados: trabalho de campo de pesquisa descentralização e fragmentação no território baiano, 2012 e 2013.
No caso de América Dourada e Capim Grosso, per-cebeu-se certa relação entre a maior participação nos conselhos e as decisões do governo e o desempenho institucional de serviços como hospitais, postos de saúde e clínicas médicas. Mas, isso nem sempre acontece. Em Várzea Nova, onde foram identificados os maiores níveis de centralização entre os municípios analisados, o desempenho institucional variou de muito alto a baixo. Ou seja, não houve nenhum serviço que teve desempenho muito baixo.
Diante das análises realizadas em campo, concluiu-se que a população local, apesar de reivindicar melhorias de serviços para o município, não gostaria de retornar à situação de distrito. Foi consensual a afirmação de que houve mudanças positivas no município após a emancipação. E isso pode ser demonstrado no mapa de IGT, no quadro e nas tabelas apresentadas anteriormente. Isso porque a situação em que viviam, enquanto distrito, era de abandono, de dependência e de carência em relação aos serviços. Com base nas entrevistas com as lideranças, as reivindicações localistas para emancipação municipal representaram a transformação dos vínculos verticalizados, caracterizados pela excessiva centralização e por conteúdos de opressão (exploração, ausência de poder, marginalização), por vínculos mais horizontalizados, nos quais a participação nas decisões locais, a colaboração e a distribuição de serviços mais equitativa vem prevalecendo. Ou seja, na dialética da (in)justiça territorial, as análises revelaram que a justiça territorial vem prevalecendo nos localismos e nos novos territórios emancipados, apesar dos muitos problemas que ainda precisam ser resolvidos.
Considerações finais
As análises sobre o localismo, tanto abordando os processos políticos/reivindicatórios quanto abordando os processos que valorizam o deslocamento de decisões, execuções e ações para a escala local, não só enfatizam a importância da escala local para a compreensão dos processos políticos territoriais como, também, dão maior visibilidade ao papel que o município desempenha na federação brasileira e até mesmo no contexto global. Além disso, as análises localistas abrem um amplo campo de investigação na geografia tendo em vista a quantidade de municípios existentes. Somente no Brasil, há 5.570 municípios com diferentes características históricas, geográficas, ambientais, políticas e culturais. O Brasil, é uma federação de municípios, uma federação de localismos e uma federação de territórios locais complexos que precisam ser mais valorizados nas análises dos geógrafos brasileiros.
As análises localistas deste artigo, particularmente, revelaram mais avanços que recuos em relação ao desempenho institucional. Os municípios que se emanciparam na década de 1980 apresentaram evolução quanto a melhorias sociais, mas ainda apresentaram carência de serviços fundamentais como rede de esgoto, segurança, assistência jurídica, cartórios, etc. No geral, o desempenho institucional foi considerado entre médio e bom, malgrado a dialética de presença e ausência que tem caracterizado a descentralização federativa brasileira a partir dos anos de 1990, o "esvaziamento" do conteúdo territorial, por parte da engenharia política partidária, e as novas perspectivas competitivas abertas pela globalização.
Apesar das economias locais dos mais novos municípios serem frágeis, em sua maioria, é necessário considerar, também, que a estiagem atingiu a maior parte deles fazendo com que as atividades agrícola e pecuária fossem diretamente afetadas. Isso repercutiu, por sua vez, nos serviços que, mesmo com problemas, passaram a representar a principal base económica local. Por outro lado, o melhor desempenho social também está atrelado à execução local de políticas públicas que são construídas, reguladas e decididas, na maioria das vezes, na escala federal.
Mas, uma coisa precisa ser enfatizada: apesar da manutenção de problemas locais, nenhum entrevistado desta pesquisa deseja que o seu novo município retorne à situação de distrito. Isso significaria a ampliação da injustiça territorial.