Introdução, objetivos e metodologia
No contexto da crise socioambiental contemporânea, questões relacionadas aos conflitos e à justiça nem sempre ocupam papel de destaque nas agendas de políticas públicas dos países. A literatura especializada no tratamento de problemas socioambientais, entretanto, associa o uso intenso e desigual dos recursos pela humanidade a conflitos de diversas naturezas. Na academia e em movimentos sociais, cresce o debate acerca das [in]justiças energética, climática e ambiental, que acabam ganhando fóruns diversos em arenas nacionais e internacionais que interessam às políticas públicas.
O conceito de justiça energética emergiu juntamente com o de justiça ambiental, no início da década de 1980, com o objetivo de "proporcionar a todos os indivíduos, em todas as áreas, uma energia segura, acessível e sustentável" (McCauley et al. 2013, 2). O conceito de justiça, seja ela ambiental, energética ou climática, carrega três princípios centrais, enfatizando a justiça distribucional, processual e de reconhecimento (McCauley et al. 2013, 2; Bulkeley, Edwards e Fuller 2014, 34). Sovacool e Dworkin (2015, 437) entendem que o conceito de justiça energética pode ser utilizado como uma ferramenta nas decisões que pode auxiliar no planejamento territorial e na governança, por meio da disponibilidade e acessibilidade à energia elétrica.
Nesse sentido, o conceito de justiça energética está diretamente relacionado aos sistemas de produção e consumo de energia (Jenkins et al. 2016, 175). Embora o acesso à energia seja evidentemente uma condição necessária para os desenvolvimentos socioeconòmico e humano, a sua produção pode ser considerada uma importante evidência de degradação ambiental. Nesse sentido, as questões relacionadas à injustiça ambiental não podem ser negligenciadas (Hess e Ribeiro 2016, 155).
Para Sovacool et al. (2016) as discussões sobre política energética são frequentemente abordadas nos campos disciplinares da economia e da engenharia, que raramente incorporam preocupações mais amplas como a justiça social. Para os autores, a pobreza energética é uma das questões urgentes de justiça que precisam ser tratadas. Dessa forma, propõem-se a investigar como os conceitos de justiça e ética podem informar a tomada de decisão energética.
O acesso desigual à energia pode levar parte da população a uma situação de pobreza energética. Esse fenòmeno é definido como a impossibilidade de escolha de serviços energéticos (em termos de confiabilidade, qualidade, segurança e proteção ambiental) em condições econòmicas que ofereçam suporte ao desenvolvimento econòmico e social a famílias e indivíduos (WEA 2000, 44).
No Brasil, o governo federal criou, em 2003, o Programa Luz para Todos (PLpT), que buscava universalizar o acesso e o uso da energia elétrica e assim minimizar as injustiças de natureza energética no país. O programa conseguiu atender, ao longo dos anos, mais de 16 milhões de usuários (Eletrobras, 2017). O objetivo central deste artigo consiste em recuperar, tabular, espacializar e analisar os resultados do PLpT em termos de números de ligações realizadas ao longo do período 2004-2010, no Brasil, e pelo correspondente aumento do indicador de acesso à energia elétrica. A análise dos resultados será feita com base em conceitos e enfoques sobre justiça energética.
A fim de alcançar os objetivos, a metodologia utilizada envolveu uma revisão bibliográfica semi-sistemática sobre o assunto "justiça energética" a partir das bases de periódicos como Scielo, ProQuest, Periódicos Capes, entre outros. Os dados a respeito do acesso à energia elétrica foram recuperados a partir da base Atlas Brasil, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD -Brasil) (PNUD 2013), enquanto os dados relacionados ao PLpT foram adquiridos junto ao Ministério de Minas e Energia (MME) (PBDA 2018), por meio do recurso à Lei de Acesso (BRASIL 2011). Por fim, a espacialização dos dados foi realizada com o uso do software ArcGIS 10.3 (ESRI 2014). A Figura 1 apresenta a síntese da metodologia empregada nesse trabalho.
O artigo está organizado em duas seções, além desta introdução. A primeira seção traz uma breve revisão acerca de conceitos e enfoques sobre justiça energética. A segunda seção apresenta os dados espacializados sobre o número de ligações de energia elétrica providas sob o escopo do Programa Luz para Todos. Além disso, busca-se mostrar a evolução do acesso à energia elétrica no Brasil, destacando a interpretação de qual enfoque sobre justiça energética pode estar associado ao programa, dentro dos limites da investigação aqui proposta. Finalmente, a última seção retoma a proposta do artigo e seus objetivos, destacando os principais resultados, interpretados à guisa de conclusões.
Justiça energética: uma breve revisão de conceitos e enfoques
Justiça energética é uma noção alinhada a outro conceito muito relevante para os objetivos desse artigo: o de necessidades humanas. O conceito de necessidades humanas teve, em Herrera et al. (2004, 52), uma contribuição primordial. Os autores propuseram, já em meados da década de 1970, que a saúde, a alimentação, a educação e as condições salubres de habitação deviam constituir as condições necessárias - ainda que não suficientes- para o desenvolvimento pleno de todo ser humano.
No Brasil, desde 1988, supõe-se prevalecer que a garantia de direitos fundamentais, assegurados no país pelo art. 5° da Constituição Federal brasileira, depende do acesso a outros bens e serviços, também considerados como básicos para uma vida íntegra e significativa.
Em 1990, com Amartya Sen e Mahbub Ul Haq5, a abordagem do desenvolvimento humano ganhou corpo na proposta que deu origem à métrica do Índice de Desenvolvimento Humano (Sen 1999, 36). É no contexto do avanço desse debate que é possível incluir, dentre os bens atualmente indispensáveis ao desenvolvimento humano, conforme aponta Rosa (2016, 7), o acesso à energia elétrica.
Esta é a perspectiva da Agência Internacional de Energia, quando defende que o acesso à energia é o golden thread (fio de ouro) que une o crescimento econòmico, o desenvolvimento e a sustentabilidade ambiental (IEA 2017, 11). Deve ser de amplo conhecimento que:
[...] o acesso à energia aumenta a produtividade do trabalho, o nível educacional e a renda através da maior especialização das funções econòmicas o que tende a diminuir os custos de transporte e de comunicação, gerando assim uma economia de escala. (Souza 2014, 1)6
A despeito desse amplo reconhecimento sobre a relevância do acesso à energia elétrica para o desenvolvimento humano, a universalidade desse acesso ainda não é uma realidade no panorama mundial. Segundo a publicação da EFE (2017), a Organização das Nações Unidas (ONU) durante a Assembleia Ambiental das Nações Unidas (UNEA-3), realizada em dezembro de 2017 em Nairóbi, no Quênia, quase um bilhão de pessoas no mundo todo vivem sem eletricidade atualmente e se estima que cerca de 780 milhões delas podem permanecer fora da rede elétrica até o 2030.7
Martínez e Ebenhack (2008, 1431) realizaram uma análise estatística da correlação entre o uso de energia e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em 120 países e concluíram que a relação entre desenvolvimento humano e acesso à energia é algo inegável. Nenhum país que possui um IDH extremamente baixo (≤ 0,500) tem um PCEC (consumo de energia per capita) acima de 800 kgoe (quilos de óleo equivalente) e, em contraste, nenhum país com um IDH acima de 0,7 (alto a muito alto) apresenta um PCEC abaixo de 400 kgoe.8
No setor residencial, a vida das famílias é intensamente influenciada pelo acesso a esse serviço. A eletricidade permite uma maior flexibilidade na utilização do tempo em horários sem a luz natural do sol, favorecendo o aprendizado, o desenvolvimento de novas habilidades e uma maior eficiência no uso de novas tecnologias, além dos claros benefícios relacionados à saúde da população, pois o uso da energia elétrica para a cocção de alimentos, no aquecimento da água e outras finalidades implica uma menor exposição à fumaça proveniente da lenha, conservação de alimentos, maior conforto térmico, além da possibilidade de uma realocação do tempo familiar, especialmente para as mulheres que, tendo disponível esse serviço, não precisam sair diuturnamente em busca de alimento e de lenha (Toman e Jemelkova 2003, 98).
A contribuição essencial do acesso à energia pela humanidade há muito tempo é reconhecida para o seu desenvolvimento e prosperidade. Porém, a aprovação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODS)9 em 2015, por 193 países, mais precisamente do ODS-7, que preza por assegurar o acesso à energia acessível, fiável, sustentável e moderna para todos até 2030, levou a um novo patamar o reconhecimento político sobre a acessibilidade desse serviço. Além do ODS-7, a energia também está no cerne de outros ODS, incluindo aqueles relacionados à igualdade de gênero, redução da pobreza, melhorias na saúde e nas medidas que reduzem as alterações climáticas.10
Dos estudos que investigam as relações entre pobreza e distribuição social e espacial da energia emerge o conceito de justiça energética (Bickerstaff, Walker e Bulkeley 2013, 30). Este conceito surgiu juntamente com o de justiça ambiental, tendo aquele o objetivo de "proporcionar a todos os indivíduos, em todas as áreas, uma energia segura, acessível e sustentável" (McCauley et al. 2013, 2).11 A justiça energética, assim como a justiça ambiental, pode ser pensada a partir de três enfoques: o da justiça distributiva, o da justiça processual e o do reconhecimento, segundo Schlosberg (2007, 11) e Jenkins et al. (2016, 175).
A justiça energética distributiva tem a ver, pelo lado da oferta, com o estabelecimento de infraestruturas e de serviços, e pelo lado da demanda, com o acesso a serviços de qualidade. Do ponto de vista do consumidor, a injustiça energética, pelo lado distributivo, está associada à pobreza energética, que pode ser caracterizada pela carência de energia elétrica, utilizada para iluminação, aquecimento, refrigeração e cocção de alimentos (Jenkins et al. 2016, 176). Essa carência está associada, pois, ao não atendimento de necessidades básicas como abrigo e alimento.
Pobreza energética é definida por WEA (2000, 44) como a impossibilidade de escolha de serviços energéticos (em termos de confiabilidade, qualidade, segurança e proteção ambiental) em condições econòmicas que ofereçam suporte ao desenvolvimento econòmico e social a famílias e indivíduos.12 Ou seja, esta pobreza energética despreza as necessidades e os direitos básicos das pessoas de várias formas, seja por meio de alimentos e vacinas que não podem ser refrigerados, seja pela falta de energia para cozinhar e que em alguns casos acaba por ficar mais cara do que a própria comida, ou também pela falta de iluminação das ruas que se torna um risco para a segurança, sobretudo das mulheres.
Como soluções, WEA (2010, 58) sugere programas de assistência social, bem como parcerias público-privadas "pró-pobres" para a utilização de energia solar em casas populares, fogões melhorados, digestores de biogás e turbinas eólicas de pequena escala, energia mecânica para bombeamento, irrigação e processamento agrícola. As parcerias pró-pobre correspondem àquelas que têm por finalidade a inclusão dos pobres na geração do crescimento econòmico e no uso dos frutos deste crescimento, de acordo com Kakwani e Pernia (2000, 3).
Desta perspectiva, observa-se que há uma ponte conceitual entre a justiça distributiva e a abordagem das necessidades básicas para o desenvolvimento, sobretudo pelo lado do acesso, em concordância com a proposta de Herrera et al. (2004, 8). Ainda, Jenkins et al. (2016, 176) apresenta que ao se restringir o acesso e a escolha a serviços de necessidades básicas, há intrinsecamente uma lesão na liberdade individual destes indivíduos. Desse modo, entende-se aqui que a injustiça energética também constitui um obstáculo ao que Sem (1999) chama desenvolvimento como liberdade.
As implicações do enfoque da justiça distributiva, para finalidades práticas, são variadas. Jenkins et al. (2016, 180) apresentam essa complexidade a partir de considerações com respeito à distribuição do ònus e dos benefícios no acesso à energia. Pelo lado da distribuição do ònus, os autores refletem sobre o caso do programa alemão Energiewende, que corresponde à iniciativa do atual governo alemão de transformação do setor energético, buscando segurança, justiça energética e, ao mesmo tempo, a redução da emissão de gases de efeito estufa e da dependência tanto de combustíveis fósseis quanto de energia nuclear. Jenkins et al. (2016, 176) buscam demonstrar a complexidade da justiça energética pelo enfoque distributivo, observando alguns problemas práticos.
Observa-se, a seguir, dois desses problemas que ajudam a esclarecer como, embora o enfoque distributivo sobre a justiça energética seja muito objetivo, em termos conceituais, as decisões práticas sobre as modificações necessárias no setor de energia tornam a realidade muito mais complexa.
Um primeiro problema, ilustrado pelo caso alemão, se refere aos efeitos distributivos do incentivo ao uso de energias renováveis. O programa alemão buscou favorecer as energias renováveis, em especial a eólica e a solar, pelo uso das tarifas bonificadas (FiT pela sigla em inglês Feed-in Tariffs). Esse instrumento favorece os produtores ao oferecer um preço premium para a energia produzida a partir de fontes renováveis. O bònus no preço da energia é repassado aos produtores a partir de uma tarifa ampliada aos consumidores, de modo que os estratos economicamente menos favorecidos dos usuários de energia tendem a ser, na ausência de isenções ou compensações, penalizados. Portanto, aqui, a política pública traz implicações de (in)justiça energética do ponto de vista de segmentos de renda dos consumidores.
O segundo problema para o qual os autores chamam a atenção tem a ver com aspectos distributivos regionais. O caso alemão é bastante ilustrativo, uma vez que a maior parte da infraestrutura geradora de energia renovável se encontra no norte do país, enquanto a indústria energo-intensiva se situa no sul. Levar a energia do norte ao sul do país requer o estabelecimento de nova infraestrutura, o que é reforçado pela emergência da abordagem de redes inteligentes ou smart grids. Há, entretanto, uma aversão pública na Alemanha com relação à construção de novas linhas de transmissão, o que levou à proposta de zonas tarifárias, penalizando regiões de mais alto consumo de energia, em especial, no sul do país. Tem-se, então, neste caso, um problema distributivo regional devido à diferenciação tarifária que, ao fim e ao cabo, tende a penalizar de forma mais importante, novamente, parcelas menos abastadas da população.
Pelo lado da distribuição dos benefícios que são atinentes ao enfoque distributivo da justiça energética, os autores chamam a atenção para três benefícios significativos que tornam melhor a justiça distributiva no caso do programa alemão. O primeiro benefício que os autores sublinham é que, com a redução da atividade de produção de energia nuclear, é reduzido o risco nuclear nas antigas áreas produtoras. O segundo benefício diz respeito à descentralização da produção. Com o aumento das infraestruturas locais (produção descentralizada), há um efeito benéfico de distribuir de forma mais uniforme os ònus da distribuição das infraestruturas. O terceiro benefício apontado pelos autores é a redução da concentração industrial na oferta de energia. Com as FiTs, a Alemanha tem atraído um maior número de produtores, incluindo empresas públicas, privadas, investidores institucionais, fazendeiros e outros, que buscam se beneficiar das tarifas bonificadas (Jenkins et al. 2016, 176).
Numa outra perspectiva, Schlosberg (2003, 81) definiu de forma ampla a justiça energética "baseada em reconhecimento", que também foi originalmente desenvolvida no contexto do debate sobre justiça ambiental, conforme já mencionado. O reconhecimento possui uma conotação política e significa que os indivíduos precisam ser representados de forma honesta, sendo respeitada a igualdade de direitos políticos. Nessa perspectiva, é absolutamente inaceitável que existam ameaças físicas ou de outra natureza.
A injustiça ambiental pelo enfoque do reconhecimento - e, por extensão, a energética - pode ocorrer, por exemplo, na forma de dominação política e cultural, na forma de insultos e na forma de degradação e tratamentos depreciativos. Não se resume, portanto, apenas ao não reconhecimento, mas também de um reconhecimento incorreto, uma distorção da visão que se tem sobre pessoas, comunidades, povos e nações.
Por sua vez, a justiça processual está relacionada aos processos de tomada de decisão que governam questões distributivas, como aquelas mencionadas antes. Quando se fala sobre justiça processual, o que se evoca é que existam processos para engajar, de forma não discriminatória, todas as partes interessadas (stakeholders) no tema e no caso ao qual a decisão diz respeito. Na América do Norte, onde o enfoque foi proposto pela primeira vez no contexto do movimento dos direitos civis, injustiça processual é um termo usado com referência à exclusão de direitos civis, conforme apontam Gibson-Wood e Wakefield (2013, apud Jenkins et al. 2016, 175). Desde então, o termo tem sido aplicado a classe, gênero e religião. Não é ocioso salientar que, como observam Jenkins et al. (2016, 175), há mecanismos que dão sustentação à (in)justiça processual: o acesso a sistemas legais em diversas escalas e também influências não jurídicas, como práticas, valores e comportamentos.
Ao lado disso, e aqui compreendido de forma complementar aos desenvolvimentos anteriores, Sovacool e Dworkin (2015, 437) observam o conceito de justiça energética a partir de três frentes inter-relacionadas. A primeira delas é a Ética, que implica um avanço das ideias sobre justiça. A segunda toma a justiça energética sob sua dimensão analítica, auxiliando aqueles que se esforçam para entender como os valores são incorporados aos sistemas de energia ou para resolver problemas comuns de energia. A terceira aponta a justiça energética como ferramenta nas tomadas de decisões que podem auxiliar no planejamento territorial e na governança, por meio da disponibilidade e acessibilidade à energia elétrica.
Em síntese, Sovacool et al. (2016) em seus estudos baseados nos princípios de justiça e ética, propõem uma estrutura de justiça energética centrada na disponibilidade, acessibilidade, transparência, responsabilidade, sustentabilidade e equidade. Ainda, destacam as dimensões de futuro, justiça e equidade da produção e uso de energia.
Sovacool e Dworkin (2014; 2015) destacam a eficiência energética - privilegiada na redação do ODS-7 - e observam que deve ser aplicada tanto na geração (oferta) quanto no acesso (demanda) pela energia elétrica. Sistemas elétricos devem ser concebidos, instalados, operados e administrados por serviços eficientes. Escolhas mal planejadas poderão resultar em perdas para consumidores, para produtores e para o meio ambiente. Sovacool e Dworkin (2014, 90) associam, portanto, a eficiência à justiça energética. Injustiça energética pode ocorrer quando se constata ineficiências envolvidas na geração, fornecimento de energia, conversão, distribuição e uso final. Os autores apontam, como soluções para esses problemas, mudanças nos padrões de economia no uso de combustíveis, retrofits industriais13, gerenciamento de demanda por escala de utilização, medição avançada e redes inteligentes, educação e, principalmente, conscientização do consumidor.
Outro ponto a salientar no argumento de Sovacool e Dworkin (2014, 162) compreende a relação entre direitos humanos e conflitos sociais. Eles lembram que a injustiça também pode estar associada, em alguns casos de conflitos regionais e guerras civis, à violação das liberdades civis; essas situações são frequentemente associadas às dificuldades ao acesso a combustíveis e tecnologias energéticas. Além disso, conflitos militares não infrequentemente ameaçam a produção local de energia, tanto para consumo doméstico quanto para exportação. Os autores apontam, ainda, aos casos de conflitos socioambientais nos quais, por exemplo, as famílias desalojadas por empreendimentos hidrelétricos nem sempre são devidamente indenizadas.
Com relação a este último ponto, Matiello (2011, 8) observou que as instalações de hidrelétricas causam a desapropriação de famílias nas regiões desses empreendimentos. As famílias sofrem perdas não apenas patrimoniais ou econòmicas, mais também, de forma significativa, na esfera de seus vínculos sociais, em suas relações com o espaço geográfico, onde construíam, ao longo do tempo e na forma complexa de relações interpessoais, as condições para sua existência.
As iniciativas de políticas de transparência em indústrias extrativas, melhorias sociais, projetos de avaliações do impacto ambiental e a disponibilidade de apoio judiciário para os grupos vulneráveis integram medidas mitigadoras dessa dimensão da injustiça, tidas por Sovacool e Dworkin (2014, 261) como soluções iniciais, a fim de melhorar as condições ambientais e sociais causadas pelos emprendimentos.
O Programa Luz para Todos: quais enfoques de justiça energética?
O Governo Federal brasileiro lançou por meio do Decreto n° 4.873 de novembro de 2003 o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica -PLpT, cuja meta inicial era levar energia elétrica a mais de 10 milhões de pessoas até o ano de 2008 (ANEEL 2009)14. O programa foi prorrogado até o ano 2022 e destinado a propiciar o atendimento com energia elétrica à parcela da população do meio rural que não possua acesso a esse serviço público (Brasil 2018).
Conforme observado anteriormente, uma das dimensões ou enfoques críticos ao conceito de justiça energética tem a ver com a desigualdade de acesso, para a qual concorre a desigualdade na distribuição. Herrera et al. (2004, 89), como visto, chamam a atenção para o aspecto do atendimento a essa necessidade no tocante à habitação, e Cataia (2019, 12) observa que, no território brasileiro:
[...] A demanda por energia elétrica, até os anos 2000, foi um processo centrado nas classes média e alta, na indústria e no grande comércio, mas hoje é preciso acrescentar (i) a expansão do poder de compra da classe trabalhadora, que vem se traduzindo no aumento do consumo de energia elétrica em espaços populares dos grandes centros urbanos, e (ii) também no "Programa Luz para Todos", que busca incluir parcelas da população do campo e também das periferias urbanas. (Cataia 2019, 12)
Os dados e resultados levantados durante a pesquisa indicam que o benefício do acesso à eletricidade, por meio do PLpT, foi tão mais importante, evidentemente, quanto menor era a disponibilidade do serviço. Por exemplo, em 2000 os estados do Piauí, Acre e Pará, apresentavam, em média, 76 % de seus domicílios com acesso à energia elétrica. Este dado é baixo frente aos outros estados brasileiros, onde os índices apresentados foram em média majoritariamente acima de 90 %.
Em 2010, os dados apontaram para uma melhora significativa, uma vez que todos os estados possuíam mais de 90 % de domicílios com acesso à energia elétrica. Todavia, observa-se que os mesmos estados - Piauí, Acre e Pará - ainda apresentaram as menores taxas de acesso à energia elétrica do país. Esses resultados corroboram a dificuldade de acesso a determinados bens que as regiões norte e nordeste possuem (Figuras 2 e 3).
Por meio de um recorte municipal, foram espacializa-dos os municípios que possuíam menos de 50 % do acesso à energia em 2000. Assim, verificou-se que cerca de 305 municípios se encontravam nesse cenário e que destes municípios a maioria estava concentrada no estado do Piauí (77 municípios), seguido da Bahia (62 municípios), Pará (43 municípios) e Tocantins (36 municípios). Vale destacar que 12 municípios do estado do Acre, cerca de 3,93 % deste recorte, mesmo sendo um número relativamente pequeno de municípios, correspondiam ao 54 % do total do estado (Figura 2).
O mesmo exercício pode ser feito para o ano 2010. Ainda a partir dos dados disponíveis na base do PNUD sobre acesso à energia elétrica, verificou-se que apenas oito municípios apresentavam índices de acesso à energia elétrica inferiores a 50 %. O destaque negativo fica para o caso do estado do Piauí, que respondia por cinco municípios dos oito selecionados como pior indicador de acesso à energia elétrica em 2010 (Figura 3), e o estado do Acre, onde se localiza o município com menor percentagem de domicílios com acesso à energia elétrica, Uiramutã (cerca de 27 %).
Sendo assim, verifica-se uma melhora significativa nesse cenário. Ainda mais, é possível sugerir que essa melhora se associa à implantação do PLpT. Quando se observam os dados especializados sobre o número de ligações por municípios realizadas durante os primeiros sete anos do programa, revela-se um número de 2.493.284, com uma média de 455 ligações por município atendido (4.282 municípios).
A partir do número de ligações realizadas e do número de municípios atendidos pelo PLpT entre 2004 e 2010, nota-se que os estados do Pará, Acre, Maranhão e Bahia, são os estados com maior número de ligações por município (Figura 4), com destaque para as cidades de Novo Repartimento e Monte Santo, pertencentes, respectivamente, ao estado do Pará e da Bahia. Essas cidades, em 2000, estavam dentro do grupo de municípios que possuíam menos de 50 % de acesso à energia elétrica e que nos primeiros sete anos do PLpT apresentaram altas médias de ligações, com 11.744 ligações para o município paraense e 8.421 ligações para o município baiano, o que levou estas cidades para a uma taxa de aproximadamente 90 % de domicílios com acesso à energia elétrica.
Considerando o número de pessoas beneficiadas pelo PLpT desde o seu início até o ano 2018 (Figura 5), observa-se que em todos os estados do Brasil houve atuação deste programa. Sendo que a maioria desses estados eram das regiões norte e nordeste, incluindo moradores que vivem em áreas isoladas e reservas extrativistas. A Bahia é o estado com o maior número de pessoas beneficiadas, com 2.910.948, cerca de 20 % da população do estado15; seguido do Pará, com 1.994.438 (26 % da população do estado); do Maranhão, com 1.686.974 (25 % da população do estado); e de Minas Gerais, com 1.595.532 (8 % da população do estado), cujos munícipios mais beneficiados estão ao norte do estado e fazem parte do semiárido brasileiro16.
Há, ainda, as cidades que mesmo não possuindo altas taxas de ligações (números absolutos) pelo PLpT elevaram os níveis de acesso à energia elétrica. Isto pode estar relacionado a um alto desenvolvimento regional e econòmico, que pode ser explicado por diferentes motivos, como, por exemplo, a influência do aumento do número de empresas que buscaram tal região como um centro de instalação de sua planta ou o aumento do número de serviços que demandam alto consumo energético. Devido às limitações do escopo desse trabalho, tais fatores não foram investigados.
Em termos relativos, analisam-se os números de ligações do programa e normalizados pelo tamanho da população do município (número de ligações por mil habitantes) no período 2004-2010 (Figura 6). Por meio dessa estratégia, podem ser avaliados os municípios que mais receberam ligações em função ao tamanho da população.
Observa-se que os maiores números de ligações relativas estão concentrados em regiões de vulnerabilidade, como as regiões norte do estado de Minas Gerais e região nordeste. Essas regiões são justamente aquelas que no ano 2000 tinham os menores níveis de acesso à energia elétrica. Dessa maneira, é possível, com os resultados dessa pesquisa, atestar a efetividade do programa em atender essas demandas locais, apontando, ainda, que o acesso ainda se mantém insuficiente.
O município com maior número de ligação por mil habitantes foi Acauã, no estado do Piauí. Esse município, no ano de 2010, contava com 86,64 % da população vivendo em área rural. Já a parcela da população que tinha acesso à energia elétrica no ano 2000 era de 18,08 %. Em 2010, o acesso à energia aumentou em 447 %, atingindo 98 % da população com energia elétrica. O município que mais ampliou o acesso à energia foi Queimada Nova, também no estado do Piauí. Esse município teve um aumento de 660 %, partindo de 12 % para 96 %, no período 2000-2010.
Em contrapartida, há municípios em que o acesso à energia elétrica permanece baixo, pois a energia - ou, como se diz, a "luz" - ainda é gerada por meio de geradores alimentados por combustíveis fósseis, como o diesel e a querosene. Nesse tipo de situação, encontra-se, por exemplo, o caso ilustrativo da cidade de Jordão (AC), município contemplado pelo programa federal com 108 ligações (9,27 por mil habitantes) no período 2004-2015. Jordão, que continua apresentando um baixo índice de acesso à energia elétrica em 2010 (cerca de 41,38 %) é um município que pode ser melhor assistido com o prolongamento do PLpT até 2022, e assim ter uma parcela ainda maior de sua população beneficiada com esse serviço.
Município | Estado | Número de ligações PLpT (por mil habitantes) | Acesso à energia (2000) | Acesso à energia (2010) | Taxa de Crescimento (%) |
---|---|---|---|---|---|
Acauã | Piauí | 554,6 | 18,08 | 98,99 | 447,51 |
Mucurici | Espírito Santo | 350,66 | 91,73 | 98,97 | 7,89 |
Betânia do Piauí | Piauí | 341,15 | 19,25 | 79,14 | 311,12 |
Nova Santa Rita | Piauí | 339,38 | 16,91 | 90,15 | 433,12 |
Lagoa do Barro do Piauí | Piauí | 279,24 | 15,03 | 96,85 | 544,38 |
Canabrava do Norte | Mato Grosso | 277,06 | 36,72 | 96,41 | 162,55 |
Vera Mendes | Piauí | 268,59 | 28,51 | 99,27 | 248,19 |
Palestina do Pará | Pará | 259,93 | 61,05 | 91,03 | 49,11 |
Padre Marcos | Piauí | 242,9 | 52,08 | 97,45 | 87,12 |
Brejetuba | Espírito Santo | 239,78 | 96,73 | 99,87 | 3,25 |
Santa Terezinha | Mato Grosso | 231,85 | 60,1 | 97,94 | 62,96 |
Brejo do Piauí | Piauí | 228,83 | 35,8 | 75,29 | 110,31 |
Santa Cruz do Xingu | Mato Grosso | 222,63 | 57,52 | 96,93 | 68,52 |
Aragominas | Tocantins | 222,03 | 46,56 | 98,02 | 110,52 |
Porto Acre | Acre | 220,7 | 72,79 | 95,9 | 31,75 |
Jeronimo Monteiro | Espírito Santo | 215,55 | 98,77 | 99,84 | 1,08 |
Queimada Nova | Piauí | 206,71 | 12,62 | 96,01 | 660,78 |
Santarém Novo | Pará | 205,99 | 84,11 | 97,81 | 16,29 |
Dores do Rio Preto | Espírito Santo | 203,22 | 99,45 | 99,71 | 0,26 |
Novo Mundo | Mato Grosso | 202,95 | 70,85 | 96,97 | 36,87 |
Fonte: PNUD 2013 e PBDA 2018.
Conclusões
Nota-se, com este trabalho, que o reconhecimento do caráter indispensável do acesso à energia e questões conexas está contemplado no debate acadêmico sobre justiça energética e em ações que objetivam implementar os ODS, sob o escopo Agenda 2030. Isso representa um avanço e entende-se que a integração destes objetivos deva ser mantida no escopo das políticas públicas nacionais. A implementação dos ODS nas esferas nacionais da ação política pode representar uma oportunidade valiosa para a legitimação dos pleitos de combater desigualdades e de estimular ações públicas nesse sentido.
No caso deste artigo, coube analisar a iniciativa do PLpT, cujos objetivos contemplaram, de um lado, uma revisão sistemática da literatura especializada sobre o conceito de justiça energética, identificando três abordagens fundamentais: distributiva; processual e baseada no reconhecimento; e, de outro, o levantamento de dados e análise de resultados do PLpT, à luz dessas abordagens.
A busca por compreender melhor o conceito de justiça energética nos faz refletir sobre as desigualdades existentes no planeta terra, pois algo que no cenário atual de muitos países tidos como desenvolvidos aparenta ser um serviço trivial, em 2019, para aproximadamente 840 milhões de pessoas é um serviço inexistente, segundo o Banco Mundial (2019, 16). Dentro desse cenário, a justiça energética busca que o acesso a esse serviço seja inclusivo, justo e que respeite todos os direitos humanos, pois enxerga esse serviço como um "bem comum" que deve ser levado a todos.
Assim a justiça energética pode ser analisada por meio de três conceitos, segundo Schlosberg (2007, 13) e Jenkins et al. (2016, 176): a justiça distributiva pretende uma distribuição justa deste serviço, principalmente nas áreas mais carentes e debilitadas de seu acesso. Este conceito está no cerne do PLpT, pois visa que todos em território nacional tenham acesso à energia elétrica, já que não é raro observar comunidades inundadas para a construção de hidroelétricas serem transferidas para áreas que não tem acesso a esse serviço. A justiça processual propõe um processo de tomada de decisões, tanto na geração, quanto na distribuição, mais justo e democrático e com a presença de grupos carentes dentro desse processo. O PLpT busca que a destruição desse serviço ocorra da maneira mais justa possível, envolvendo, primordialmente as famílias mais carentes.
A justiça do reconhecimento implica reconhecer e respeitar as comunidades carentes lesadas por grandes injustiças ambientais, como a transferência de comunidades que possuem seus hábitos de vida dependentes de uma região e que, por conta de obras (sejam de infraestrutura ou de construção de barragens) são levadas para áreas com características completamente distintas das que elas estavam acostumadas, desrespeitando e descaracterizando as suas origens. Este é o conceito de justiça mais complexo de ser alcançado pelo Programa Luz para Todos, pois na maioria das regiões do Brasil ela apenas redistribui a energia gerada via hidroelétricas, ou seja, uma energia de origens na falta de reconhecimento de diversas comunidades, como é o caso da comunidade rural que teve que ser reassentada para a construção da usina hidrelétrica de Rosana (Mendes 2005, 21).
Dados sobre a evolução do acesso à energia elétrica no país e sobre o número de ligações realizadas no âmbito do PLpT foram recuperados, tabulados, espacializados e analisados para o período 2004-2010. Analisando os dados do PLpT para esse período (PBDA 2018), que coincide com os dados do PNUD (2013) para o nível de evolução do acesso à energia elétrica (2000-2010), é possível constatar que mais de 2.654.292 ligações domiciliares foram efetuadas, beneficiando aproximadamente 16 milhões de pessoas.
As regiões norte e nordeste se destacam em termos de resultados do PLpT. No nordeste, observou-se a passagem de 87,54 % para 97,89 % de domicílios com acesso à energia elétrica, representando a satisfação desta necessidade básica para 1.619.463 domicílios nesta região. Na região norte, o acesso à energia elétrica passou de 82,42 % dos domicílios em 2000, para 93,74 %, em 2010. Esse valor, entretanto, mostra-se abaixo da média nacional, que foi de 97,45 % em 2010.
A este respeito, destaca-se o município de Queimada Nova (PI), que ampliou o acesso à energia de maneira significativa, saltando de 12 % para 96 %, no período 2000-2010, um aumento de 660 % no número de domicílios com acesso a esse serviço. Contudo, o município com maior número de ligação por mil habitantes foi Acauã (PI), com cerca de 554,60 ligações do PLpT por mil habitantes, saindo de 18,08 % em 2000 para 98 % dos domicílios com energia elétrica em 2010. Ressalta-se, sobretudo, que ainda há muitos municípios que não receberam o auxílio do PLpT de maneira satisfatória, vide Jordão (AC) município contemplado pelo programa federal com 108 ligações (9,27 por mil habitantes) no período de 2004 a 2015. Esse ainda apresentou valores inferiores a 50 % de domicílios com acesso à energia elétrica em 2010. Apesar disso, o município ainda pode ser mais bem assistido com o prolongamento do PLpT até 2022 e ter uma parcela ainda maior de sua população beneficiada com esse serviço. Os resultados da implementação do PLpT contribuem no sentido de melhorar a justiça energética pelo enfoque distributivo, no sentido discutido por Schlosberg (2007, 13) e Jenkins et al. (2016, 176). Pelo lado da oferta, observa-se a ampliação do alcance das infraestruturas para que o acesso a serviços de energia chegue à população que a demanda.
Assim, a criação e a implementação, per se, deste programa são coerentes com a proposição de Sovacool e Dworkin (2014; 2015), de que a justiça energética pode ser tratada como uma ferramenta nas tomadas de decisões no intuito de auxiliar no planejamento e na governança territorial por meio da disponibilidade e acessibilidade à energia elétrica, reflexão que se conecta com a justiça processual de Jenkins et al. (2016, 178).
Por fim, nota-se que a ampliação do acesso à energia elétrica em lugares remotos por meio do PLpT possibilitou melhores condições de vida e de produção para essas regiões, permitindo assim o desenvolvimento de um espaço geográfico a partir de uma distribuição justa de serviços básicos para uma vida digna da população ali residente.
O escopo do trabalho desenvolvido implica várias limitações, que podem ensejar a reflexão sobre pontos para agendas de pesquisa em termos de ferramentas de apoio ao acompanhamento, monitoramento e avaliação de políticas voltadas à implementação de ODS, especificamente no caso do ODS-7, da busca pela justiça energética e também no que tange ao atendimento de necessidades básicas em geral.
Nesse sentido, vale salientar que os indicadores tratados nesta pesquisa representam dados quantitativos. A realidade, sabe-se, é mais complexa. A criação do programa e o cadastro das famílias que necessitam de determinados serviços, embora necessários, não garante que o benefício chegará às pessoas necessitadas. A qualidade da prestação do serviço, ao longo do tempo, também é um critério relevante, conforme aqui se compreende, para que a inclusão e o acesso possam ser considerados consistentes e efetivos.
Além disso, a escala utilizada nesse artigo não traz à luz possíveis desigualdades dentro da escala municipal, em especial em termos das diferenças de acesso entre zonas urbanas e rurais. Outro aspecto que não esteve no foco do trabalho tem a ver com o atendimento dessa necessidade - acesso à energia elétrica - por comunidades tradicionais. Este é um ponto que pode ser objeto de investigação em outros trabalhos e ajudar a esclarecer a possibilidade de ampliar a discussão da justiça energética por reconhecimento, uma vez que muitas dessas comunidades, como indígenas e quilombolas, têm, na melhor das hipóteses, suas necessidades invisibilizadas e são alvo de preconceitos, estigmas e, como tem ficado cada vez mais evidente, inúmeras formas de crueldade e violência.
Cabe, ainda a respeito de pontos para uma tal agenda, indicar a necessidade de estudos voltados aos processos decisórios que permeiam a concepção e a implementação das políticas. A literatura tem reconhecido a necessidade de participação ampla das partes interessadas em fóruns de tomada de decisão sobre as diversas políticas que afetam as condições de vida local, chegando a reconhecer, recentemente, uma "virada deliberativa" nos processos decisórios. A realidade de nossos dias, entretanto, nos leva a questionar essa percepção.
Portanto, mais estudos são necessários para melhorar o acompanhamento e a avaliação de iniciativas como o PLpT, contribuindo assim para o planejamento e gestão desse importante serviço público. Esses estudos podem constituir ferramentas valiosas de apoio à ação política por parte do governo brasileiro e dos organismos incumbentes no enfrentamento das dificuldades que ainda restam no atendimento às necessidades básicas da população, sobretudo em seus estratos de mais baixa renda.
Conclui-se que o Programa Luz para Todos pode ser entendido como ação de extensão da justiça distributiva pelo acesso à energia elétrica, favorecendo, no período, a ampliação da satisfação de uma das necessidades básicas e para o alcance do ODS-7, sendo essa uma iniciativa mitigadora, portadora de soluções para problemas de acesso a serviços voltados ao atendimento das necessidades básicas das populações e, dessa forma, contribuindo para formas mais justas de desenvolvimento. Mas a desigualdade no acesso à energia elétrica constitui apenas um desses aspectos para os quais Herrera et al. (1976; 2004) já chamavam a atenção no debate internacional desde meados da década de 1970.